Uma tia que mora em São Paulo nos visitava pela primeira vez com a
família em Itabaiana e eu resolvi testar se meu primo cabeludo era “metaleiro”.
Saquei meu vinil do Somewhere in time
do iron Maiden e, como quem não quer nada, coloquei pra tocar. A reação foi
imediata: ele saltou do sofá e veio me perguntar, empolgadíssimo, se eu curtia.
E assim nasceu uma grande amizade que, infelizmente, durou pouco, pois ele
morreu num acidente de trânsito pouco tempo depois. Mas deu tempo de irmos
juntos ao Rock In Rio II, no Maracanã, onde vimos Sepultura lançando “Arise”,
Megadeth lançando “Rust in peace” e Judas Priest na turnê do “painkiller”.
Inesquecível ...
Era assim nos anos 1980: você saía praticamente à caça de
alguém com quem pudesse conversar e compartilhar a paixão pelo rock – no meu
caso, recém-adquirida. Somewhere in time
era o mais novo lançamento do Iron Maiden e eu o havia comprado no Cine Foto
Walmir, loja que marcou época ao trazer à cidade praticamente todos os
lançamentos das gravadoras maiores – o “underground” ficava por conta da
Distúrbios Sonoros e, posteriormente, da Lókaos, de Silvio “Suburbano”,
vocalista da Karne Krua.
Eu e meu "precioso" |
Sempre quis ter uma cópia decente em vinil de Somewhere in time, já que a que saiu no
Brasil era ridícula: capa simples e encarte raquítico. Para minha surpresa
encontrei recentemente na Freedom, a “nova” (ênfase nas aspas) loja de Silvio,
a edição dos meus sonhos: com capa dupla, encarte em forma de envelope e vinil
Picture – daqueles que vêm com uma imagem gravada. Material de primeiríssima:
papel de alta qualidade o disco com som cristalino. Foi mais um sonho de
adolescente realizado – alguns anos atrás eu realizei o maior deles, ver o Iron
Maiden, finalmente, ao vivo, no “Hell”cife – para lembrar como foi clique aqui.
Somewhere in time
é o penúltimo grande disco da melhor fase do Iron Maiden. Veio depois de
“powerslave” e do disco duplo ao vivo que registrou sua turnê, “Live After
Death”, e antes de “Seventh Son of a seventh son”. Começa com uma belíssima
harmonia tocada em guitarras sintetizadas com som cristalino na faixa “Caught
somewhere in time”, uma canção existencialista sobre a passagem do tempo. Um
verdadeiro convite ao ouvinte para que embarque na viagem semiconceitual do
álbum, que prossegue com o memorável single “wasted years” e sua letra ainda
mais contestadora e reflexiva – “Então entenda: Não perca seu tempo sempre
procurando aqueles anos perdidos”. Um “Mar de loucuras” vem na sequencia, ainda
na mesma linha, cadenciada e melódica, até que a mais rápida “Heaven Can Wait”
encerre com chave de ouro o lado A. As angustias existenciais persistem, aqui
focadas na hora da morte, que chega para todos.
O Lado B começa de forma oposta com “The loneliness of the
long distance runner”, cujo ritmo, no princípio, é lento, mas logo toma fôlego
e segue assim, “martelando”, até o final. A melodia lembra a clássica “The
trooper”. Já a letra é inspirada no conto de Alan
Sillitoe que virou filme em 1962 e conta a história de Smith – Silva, um
nome bastante comum na Inglaterra, assim como no Brasil - um adolescente membro
de uma família disfuncional da classe operária que vive de pequenos furtos e
tem poucas perspectivas para o futuro. É preso e começa a correr no pátio da
prisão para passar o tempo, o que faz com que seja escolhido para representar a
instituição numa corrida de “cross-country” entre alunos da rede pública. Caso
vença, será libertado. O Iron Maiden sempre teve o mérito de levar ao metal um
conteúdo culturalmente sofisticado, com muita referência a obras clássicas do
cinema e da literatura, ou a fatos históricos – vide “Lord of the flies” (“O
Senhor das moscas”, um clássico da literatura moderna), “The Wicker man” (no
Brasil “O Homem de palha”, um dos melhores filmes de suspense e terror já
feitos, estrelado por Christopher Lee) ou a própria “Alexander the great”, que
encerra Somewhere in time contando a
história do conquistador da Macedônia.
O disco segue com “Stranger in a stranger land”, que cita
outro clássico da literatura num contexto pessimista – “No Brave New World”. A
penúltima, “Deja vu”, mantém o clima “perdidos no tempo” – “Sinto como se
tivesse estado aqui antes” – e então temos o grande épico, “Alexander the great
(356-323 B.C)”, que eles, misteriosamente, nunca tocaram ao vivo. A letra é
impressionante pois consegue, em poucas palavras – apesar da musica ser longa,
tem quase nove minutos – resumir toda a trajetória do grande monarca com um
nível de rebuscamento raro de ver entre seus pares – “ele espalhou o Helenismo
por todo o mundo e pavimentou o caminho para o surgimento do cristianismo e do
modo de vida ocidental”.
Por fim, a capa: a melhor de todas, na minha humilde
opinião. Mostra um Eddie ciborgue, com suas carnes fundidas a estruturas
artificiais, num cenário futurista a la Blade Runner repleto de referencias ao passado da
banda e à cultura pop em
geral. Até o Batman está lá!
Somewhere in time
é um disco subestimado. Sofreu na época do lançamento pela pressão de suceder
álbuns que vinham levando a banda a níveis nunca antes alcançados e por ser o
primeiro a usar sintetizadores, algo que, segundo os críticos, tirou parte do
peso do grupo. A meu ver, no entanto, é perfeito. Melhor que seu sucessor, o
aclamado “seventh son of a seventh son”, um excelente álbum conceitual no qual as
composições, no entanto, parecem às vezes engessadas por terem que ser amarradas
ao tema no qual se desenvolve a história.
O fato é que todas as músicas de Somewhere in time têm uma estrutura muito bem acabada, com melodias
e refrões marcantes. Nos arranjos, algumas das melhores perfomances individuais
dos membros da donzela de ferro, a exemplo dos solos de guitarra matadores
presentes já na faixa de abertura, a devastadora “Caught somewhere in time”.
Redescubra-o! A hora é agora, com o sensacional relançamento
em Picture disc.
por Adelvan -----------------------------------------------------------------------------------
Abaixo, uma entrevista com Bruce Dickinson feita para a
edição especial dedicada ao Heavy Metal da revista Bizz na época do lançamento
de “Somewhere in time”:
HEAVY - O que você pode nos contar do novo
LP do Iron Maiden?
BRUCE - O
nome dele será Somewhere in Time (Em Algum Lugar no Tempo) terá oito faixas. A capa
ainda não está pronta, mas já posso adiantar que o tema visual é bem futurista
e o colorido ficará genial. Passamos dois dias em Los Angeles fazendo
fotos promocionais.
HEAVY - E a
produção deste novo disco é de Martin Birch?
BRUCE -
Sim. As gravações de bateria e baixo foram feitas em Nassau, nas Bahamas. As
guitarras e os vocais foram gravados nos estúdios Whitlord, na Holanda, e a
mixagem foi feita no Electric Lady, em Nova York.
HEAVY - Já
foi programada alguma turnê de lançamento deste disco?
BRUCE - No
dia 10 de setembro começamos uma turnê européia. Partimos da Iugoslávia e
passamos por Polônia, Hungria, Áustria, Alemanha, Holanda, Suécia, Noruega e
Reino Unido.
HEAVY - E
quanto ao Brasil?
BRUCE - Não
temos nada programado para o Brasil, pelo menos nada em 1986. Depende se haverá
ou não outro Rock in Rio.
HEAVY - O
que você achou do Rock in Rio?
BRUCE -
Achei fantástico, O evento foi muito bem organizado e as pessoas envolvidas
foram muito simpáticas. Ficamos super impressionados com o público. O número de
pessoas era inacreditável e a reação foi surpreendente. E, além do mais, nunca
tínhamos visto tantas mulheres bonitas de uma só vez! Para o Iron Maiden o
único problema foi não poder ter ficado mais tempo. Precisávamos voltar a Nova
York, onde estava o maior frio! E, realmente, foi doloroso trocar o verão do
Rio pelos 15 graus de Nova York.
HEAVY - E,
por falar em público, qual foi, até agora, o melhor público para quem o Maiden
já tocou?
BRUCE -
Bom, para nós o melhor público é aquele que reage e responde áquilo que estamos
vivendo no palco durante o show. Se estamos superenergéticos e até
enlouquecidos, queremos que o público também fique energético ou enlouquecido.
E certamente os brasileiros atendem a esta expectativa.
HEAVY - E
como se saiu a Donzela de Ferro (tradução de Iron Maiden) por trás da Cortina
de Ferro?
BRUCE -
Muito bem. Foi um sucesso. Fomos muito bem recebidos pelo público. E, por isso,
vamos repetir a dose com seis apresentações na Polônia, três na Iugoslávia e
uma outra num festival em Budapeste.
HEAVY - Em
relação aos shows, o que vocês planejaram para esta nova turnê?
BRUCE -
Ainda não temos certeza, porque só começaremos os ensaios em agosto (a
entrevista foi feita em julho -Ed). Mas é certo que tocaremos "Run of the
Asian Manor" (NOTA DO BLOG: erro grotesco na transcrição, ele certamente
se referia a “The Rime of the Ancient Mariner”), "Iron Maiden",
"Number of the Beast", "Run to the Hills"... O que ocorre é
que o novo LP está muito bom, tem músicas ótimas (que podem resultar muito bem)
ao vivo e, portanto, estamos pensando em incluir cinco músicas do novo disco
nesta turnê.
HEAVY -
Como é feita a escolha das músicas que entram para os shows?
BRUCE -
Tentamos escolher entre aquilo que estamos a fim de tocar e aquilo que sabemos
que o público quer ouvir, tipo "Run to the Hills".
HEAVY -
Enquanto vocês estão trabalhando, entre gravações e turnês, como se mantêm em
contato com o que acontece no mundo da música?
BRUCE -
Para ser sincero, eu, particularmente, não fico muito ligado. Não me interesso
muito por esse novo tipo de som metal: trash metal, speed metal ou death metal.
Acho que a única coisa que fazem é tocar música rápida. E mais nada. Mas tenho
que ficar atento para qualquer coisa nova que possa me agradar.
HEAVY - O
que você costuma ouvir nas horas livres e o que tem ouvido ultimamente?
BRUCE - Sem
ser a fita de nosso LP - que escuto todos os dias, porque acho que está genial
-, tenho ouvido o último disco do Judas Priest. Mas com menor freqüência, pois
está um pouco pop demais para o meu gosto. Normalmente também escuto demo tapes
de pequenos grupos europeus que as pessoas estão sempre me enviando.
HEAVY - E
quanto à suposto ligação do heavy metal com cultos satânicos e coisas do gênero
- que o Maiden parece usar para ironizar coisas como a literatura de Edgar Alan
Poe? Você acha que para ser heavy metal um grupo precisa encarnar este tipo de
ideologia?
BRUCE -
Não, acho que isso não Importa. O que interessa é que as letras das músicas
representem alguma coisa para quem as escreve. Se a inspiração vem de um livro
ou de uma vida cotidiana - como acontece com Bon Scott (ex-vocalista do AC/DC),
que escrevia letras fantásticas sobre se embebedar e terminar a noite com
alguma garota desconhecida -, não faz diferença. Tem muita gente tentando
imitá-lo e se dando mal, porque na imitação a coisa sai sem sentimento.
HEAVY -
Você diria que existe hoje uma falsificação do heavy metal, através de grupos
do tipo trash metal?
BRUCE -
Bom, acho que é apenas uma variante da música. Na verdade eu não tento definir
um determinado som como sendo "falso" ou "verdadeiro". Eu
escuto tanto um AC/DC quando um John Cougar Mellencamp. Quando estivemos em Los Angeles fomos
assistir ao show do Buddy Rich e sua banda. É um grupo de jazz tradicional com
uma tremenda presença e uma enorme energia no palco que, realmente, surpreende.
No final é isso: se o som é feito com sinceridade, para mim está bom.
HEAVY - Que
tipo de carreira você seguiria se não fosse músico?
BRUCE -
Acho que seria ator.
HEAVY - Sua
coletânea com o Samson foi recentemente lançada aqui no Brasil. O que acha
dessa época na sua carreira?
BRUCE - Foi
uma época de algumas dificuldades. Vivia em uma casa abandonada em Isle of Dogs
(uma ilha inglesa) e até roubava comida nas festas. Apesar dos pesares, foi
divertido. Quanto ao trabalho que fizemos naquela época, penso que é muito bom
e que continua atual até hoje. Fico satisfeito em saber que foi lançado aí no
Brasil.
José Augusto Lemos, por telefone
Fonte: BIZZ “HEAVY”
1986
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