domingo, 16 de fevereiro de 2014

SOMEWHERE IN TIME

Uma tia que mora em São Paulo nos visitava pela primeira vez com a família em Itabaiana e eu resolvi testar se meu primo cabeludo era “metaleiro”. Saquei meu vinil do Somewhere in time do iron Maiden e, como quem não quer nada, coloquei pra tocar. A reação foi imediata: ele saltou do sofá e veio me perguntar, empolgadíssimo, se eu curtia. E assim nasceu uma grande amizade que, infelizmente, durou pouco, pois ele morreu num acidente de trânsito pouco tempo depois. Mas deu tempo de irmos juntos ao Rock In Rio II, no Maracanã, onde vimos Sepultura lançando “Arise”, Megadeth lançando “Rust in peace” e Judas Priest na turnê do “painkiller”. Inesquecível ...

Era assim nos anos 1980: você saía praticamente à caça de alguém com quem pudesse conversar e compartilhar a paixão pelo rock – no meu caso, recém-adquirida. Somewhere in time era o mais novo lançamento do Iron Maiden e eu o havia comprado no Cine Foto Walmir, loja que marcou época ao trazer à cidade praticamente todos os lançamentos das gravadoras maiores – o “underground” ficava por conta da Distúrbios Sonoros e, posteriormente, da Lókaos, de Silvio “Suburbano”, vocalista da Karne Krua.

Eu e meu "precioso"
Sempre quis ter uma cópia decente em vinil de Somewhere in time, já que a que saiu no Brasil era ridícula: capa simples e encarte raquítico. Para minha surpresa encontrei recentemente na Freedom, a “nova” (ênfase nas aspas) loja de Silvio, a edição dos meus sonhos: com capa dupla, encarte em forma de envelope e vinil Picture – daqueles que vêm com uma imagem gravada. Material de primeiríssima: papel de alta qualidade o disco com som cristalino. Foi mais um sonho de adolescente realizado – alguns anos atrás eu realizei o maior deles, ver o Iron Maiden, finalmente, ao vivo, no “Hell”cife – para lembrar como foi clique aqui.

Somewhere in time é o penúltimo grande disco da melhor fase do Iron Maiden. Veio depois de “powerslave” e do disco duplo ao vivo que registrou sua turnê, “Live After Death”, e antes de “Seventh Son of a seventh son”. Começa com uma belíssima harmonia tocada em guitarras sintetizadas com som cristalino na faixa “Caught somewhere in time”, uma canção existencialista sobre a passagem do tempo. Um verdadeiro convite ao ouvinte para que embarque na viagem semiconceitual do álbum, que prossegue com o memorável single “wasted years” e sua letra ainda mais contestadora e reflexiva – “Então entenda: Não perca seu tempo sempre procurando aqueles anos perdidos”. Um “Mar de loucuras” vem na sequencia, ainda na mesma linha, cadenciada e melódica, até que a mais rápida “Heaven Can Wait” encerre com chave de ouro o lado A. As angustias existenciais persistem, aqui focadas na hora da morte, que chega para todos.

O Lado B começa de forma oposta com “The loneliness of the long distance runner”, cujo ritmo, no princípio, é lento, mas logo toma fôlego e segue assim, “martelando”, até o final. A melodia lembra a clássica “The trooper”. Já a letra é inspirada no conto de Alan Sillitoe que virou filme em 1962 e conta a história de Smith – Silva, um nome bastante comum na Inglaterra, assim como no Brasil - um adolescente membro de uma família disfuncional da classe operária que vive de pequenos furtos e tem poucas perspectivas para o futuro. É preso e começa a correr no pátio da prisão para passar o tempo, o que faz com que seja escolhido para representar a instituição numa corrida de “cross-country” entre alunos da rede pública. Caso vença, será libertado. O Iron Maiden sempre teve o mérito de levar ao metal um conteúdo culturalmente sofisticado, com muita referência a obras clássicas do cinema e da literatura, ou a fatos históricos – vide “Lord of the flies” (“O Senhor das moscas”, um clássico da literatura moderna), “The Wicker man” (no Brasil “O Homem de palha”, um dos melhores filmes de suspense e terror já feitos, estrelado por Christopher Lee) ou a própria “Alexander the great”, que encerra Somewhere in time contando a história do conquistador da Macedônia.

O disco segue com “Stranger in a stranger land”, que cita outro clássico da literatura num contexto pessimista – “No Brave New World”. A penúltima, “Deja vu”, mantém o clima “perdidos no tempo” – “Sinto como se tivesse estado aqui antes” – e então temos o grande épico, “Alexander the great (356-323 B.C)”, que eles, misteriosamente, nunca tocaram ao vivo. A letra é impressionante pois consegue, em poucas palavras – apesar da musica ser longa, tem quase nove minutos – resumir toda a trajetória do grande monarca com um nível de rebuscamento raro de ver entre seus pares – “ele espalhou o Helenismo por todo o mundo e pavimentou o caminho para o surgimento do cristianismo e do modo de vida ocidental”.

Por fim, a capa: a melhor de todas, na minha humilde opinião. Mostra um Eddie ciborgue, com suas carnes fundidas a estruturas artificiais, num cenário futurista a la Blade Runner repleto de referencias ao passado da banda e à cultura pop em geral. Até o Batman está lá!

Somewhere in time é um disco subestimado. Sofreu na época do lançamento pela pressão de suceder álbuns que vinham levando a banda a níveis nunca antes alcançados e por ser o primeiro a usar sintetizadores, algo que, segundo os críticos, tirou parte do peso do grupo. A meu ver, no entanto, é perfeito. Melhor que seu sucessor, o aclamado “seventh son of a seventh son”, um excelente álbum conceitual no qual as composições, no entanto, parecem às vezes engessadas por terem que ser amarradas ao tema no qual se desenvolve a história.

O fato é que todas as músicas de Somewhere in time têm uma estrutura muito bem acabada, com melodias e refrões marcantes. Nos arranjos, algumas das melhores perfomances individuais dos membros da donzela de ferro, a exemplo dos solos de guitarra matadores presentes já na faixa de abertura, a devastadora “Caught somewhere in time”.

Redescubra-o! A hora é agora, com o sensacional relançamento em Picture disc. 

por Adelvan -----------------------------------------------------------------------------------

Abaixo, uma entrevista com Bruce Dickinson feita para a edição especial dedicada ao Heavy Metal da revista Bizz na época do lançamento de “Somewhere in time”:

            HEAVY - O que você pode nos contar do novo LP do Iron Maiden?
            BRUCE - O nome dele será Somewhere in Time (Em Algum Lugar no Tempo) terá oito faixas. A capa ainda não está pronta, mas já posso adiantar que o tema visual é bem futurista e o colorido ficará genial. Passamos dois dias em Los Angeles fazendo fotos promocionais.

            HEAVY - E a produção deste novo disco é de Martin Birch?
            BRUCE - Sim. As gravações de bateria e baixo foram feitas em Nassau, nas Bahamas. As guitarras e os vocais foram gravados nos estúdios Whitlord, na Holanda, e a mixagem foi feita no Electric Lady, em Nova York.

            HEAVY - Já foi programada alguma turnê de lançamento deste disco?
            BRUCE - No dia 10 de setembro começamos uma turnê européia. Partimos da Iugoslávia e passamos por Polônia, Hungria, Áustria, Alemanha, Holanda, Suécia, Noruega e Reino Unido.

            HEAVY - E quanto ao Brasil?
            BRUCE - Não temos nada programado para o Brasil, pelo menos nada em 1986. Depende se haverá ou não outro Rock in Rio.

            HEAVY - O que você achou do Rock in Rio?
            BRUCE - Achei fantástico, O evento foi muito bem organizado e as pessoas envolvidas foram muito simpáticas. Ficamos super impressionados com o público. O número de pessoas era inacreditável e a reação foi surpreendente. E, além do mais, nunca tínhamos visto tantas mulheres bonitas de uma só vez! Para o Iron Maiden o único problema foi não poder ter ficado mais tempo. Precisávamos voltar a Nova York, onde estava o maior frio! E, realmente, foi doloroso trocar o verão do Rio pelos 15 graus de Nova York.

            HEAVY - E, por falar em público, qual foi, até agora, o melhor público para quem o Maiden já tocou?
            BRUCE - Bom, para nós o melhor público é aquele que reage e responde áquilo que estamos vivendo no palco durante o show. Se estamos superenergéticos e até enlouquecidos, queremos que o público também fique energético ou enlouquecido. E certamente os brasileiros atendem a esta expectativa.

            HEAVY - E como se saiu a Donzela de Ferro (tradução de Iron Maiden) por trás da Cortina de Ferro?
            BRUCE - Muito bem. Foi um sucesso. Fomos muito bem recebidos pelo público. E, por isso, vamos repetir a dose com seis apresentações na Polônia, três na Iugoslávia e uma outra num festival em Budapeste.

            HEAVY - Em relação aos shows, o que vocês planejaram para esta nova turnê?
            BRUCE - Ainda não temos certeza, porque só começaremos os ensaios em agosto (a entrevista foi feita em julho -Ed). Mas é certo que tocaremos "Run of the Asian Manor" (NOTA DO BLOG: erro grotesco na transcrição, ele certamente se referia a “The Rime of the Ancient Mariner”), "Iron Maiden", "Number of the Beast", "Run to the Hills"... O que ocorre é que o novo LP está muito bom, tem músicas ótimas (que podem resultar muito bem) ao vivo e, portanto, estamos pensando em incluir cinco músicas do novo disco nesta turnê.

            HEAVY - Como é feita a escolha das músicas que entram para os shows?
            BRUCE - Tentamos escolher entre aquilo que estamos a fim de tocar e aquilo que sabemos que o público quer ouvir, tipo "Run to the Hills".

            HEAVY - Enquanto vocês estão trabalhando, entre gravações e turnês, como se mantêm em contato com o que acontece no mundo da música?
            BRUCE - Para ser sincero, eu, particularmente, não fico muito ligado. Não me interesso muito por esse novo tipo de som metal: trash metal, speed metal ou death metal. Acho que a única coisa que fazem é tocar música rápida. E mais nada. Mas tenho que ficar atento para qualquer coisa nova que possa me agradar.

            HEAVY - O que você costuma ouvir nas horas livres e o que tem ouvido ultimamente?
            BRUCE - Sem ser a fita de nosso LP - que escuto todos os dias, porque acho que está genial -, tenho ouvido o último disco do Judas Priest. Mas com menor freqüência, pois está um pouco pop demais para o meu gosto. Normalmente também escuto demo tapes de pequenos grupos europeus que as pessoas estão sempre me enviando.  

            HEAVY - E quanto à suposto ligação do heavy metal com cultos satânicos e coisas do gênero - que o Maiden parece usar para ironizar coisas como a literatura de Edgar Alan Poe? Você acha que para ser heavy metal um grupo precisa encarnar este tipo de ideologia?
            BRUCE - Não, acho que isso não Importa. O que interessa é que as letras das músicas representem alguma coisa para quem as escreve. Se a inspiração vem de um livro ou de uma vida cotidiana - como acontece com Bon Scott (ex-vocalista do AC/DC), que escrevia letras fantásticas sobre se embebedar e terminar a noite com alguma garota desconhecida -, não faz diferença. Tem muita gente tentando imitá-lo e se dando mal, porque na imitação a coisa sai sem sentimento.

            HEAVY - Você diria que existe hoje uma falsificação do heavy metal, através de grupos do tipo trash metal?
            BRUCE - Bom, acho que é apenas uma variante da música. Na verdade eu não tento definir um determinado som como sendo "falso" ou "verdadeiro". Eu escuto tanto um AC/DC quando um John Cougar Mellencamp. Quando estivemos em Los Angeles fomos assistir ao show do Buddy Rich e sua banda. É um grupo de jazz tradicional com uma tremenda presença e uma enorme energia no palco que, realmente, surpreende. No final é isso: se o som é feito com sinceridade, para mim está bom.

            HEAVY - Que tipo de carreira você seguiria se não fosse músico?
            BRUCE - Acho que seria ator.

            HEAVY - Sua coletânea com o Samson foi recentemente lançada aqui no Brasil. O que acha dessa época na sua carreira?
            BRUCE - Foi uma época de algumas dificuldades. Vivia em uma casa abandonada em Isle of Dogs (uma ilha inglesa) e até roubava comida nas festas. Apesar dos pesares, foi divertido. Quanto ao trabalho que fizemos naquela época, penso que é muito bom e que continua atual até hoje. Fico satisfeito em saber que foi lançado aí no Brasil.

José Augusto Lemos, por telefone
Fonte: BIZZ “HEAVY”

1986

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