Trata-se de uma peça de “resistência ao ordinário”, sentença cara a nós, sergipanos, graças a outro “herói da resistência”, o jornal independente “O Capital”, de Ilma Fontes. Conta a história de uma trupe de teatro libertária comandada de forma livre, leve e solta – na medida do possível – por Clécio, interpretado de forma magistral, como sempre, por Irandhir Santos. Que passa a ter um relacionamento amoroso com o recruta Arlindo, apelidado Fininha (Jesuíta Barbosa), o que desperta o recalque em Paulete, seu ex-amante – que quase rouba a cena devido à atuação estupenda de Rodrigo Garcia. Detalhe: a história se passa nos anos 1970, em plena ditadura militar. E foca num romance homossexual envolvendo um membro das gloriosas Forças Armadas do Brasil-sil-sil! Não tinha como ter um final feliz, não é mesmo?
Mas até que tem. Ou não. Depende do ponto de vista de quem assiste. Não vou contar o final do filme, evidentemente. Mas posso dizer que a trama flui de forma suave e poética, evitando o foco na violência da repressão, porém sem desviar as lentes nos momentos de intimidade mais intensos. É o que vemos na cena da primeira relação sexual entre os dois amantes, que eu já considero uma das melhores dentre as muitas retratas na tela de nosso cinema. Forte, intensa e despudorada. E chocante, mas apenas para os que ainda estão demasiadamente amarrados a concepções ultrapassadas de moral repressora.
O grande destaque, no entanto, são os “sketchs” musicais, sempre muito divertidos e criativos. E “libertários”. Sem medo de mostrar a nudez, por exemplo. Com isso, consegue o feito de esfregar na nossa cara nossas próprias limitações, fruto da educação francamente repressora que muitos de nós teve. Eu, por exemplo, tive. E confesso que senti um certo desconforto diante de algumas imagens. Essas coisas ficam entranhadas em nosso subconsciente, de forma quase genética. Pensamos que superamos, e de certa forma sim, viramos a página, num certo nível, consciente. Mas elas estão lá, escondidinhas. Elas resistem. Infelizmente. “Onde você guarda o seu racismo?”, perguntava aquele anuncio …
Não é um filme perfeito: há cenas francamente piegas e “clicherosas”, como a do close no rosto do filho de Clécio pegando uma carona no jipe do pai, e a captação de áudio foi sofrível, fazendo com que tenhamos que nos esforçar para entender algumas falas. Mas diante do cenário que temos, de franca diluição comandada pelo “império do mal” da Vênus platinada, é um bem vindo sopro de vida inteligente.
por Adelvan Kenobi
* * *
Abaixo, trechos do roteiro do filme:
*
SEQ 39 - CONTATOS IMEDIATOS
(Chão de Estrelas- int - noite - cor)
O Chão de Estrelas continua com seu burburinho noturno. Aparentemente os shows acabaram e as pessoas circulam entre as mesas. Estão mais alcoolizadas e mais afoitas. O elenco está misturado com a plateia.
_Fininha está em sua mesa, em companhia de Paulete e Viveca, que está com sua roupa de "baleira", mas sem a peruca e o tabuleiro. Está descalça. Conversam animadamente. Numa mesa, mais para o centro do Chão de Estrelas, estão Clécio, Joubert, Marquinho Odara e Dedê. Clécio olha para Fininha e termina o convidando, com um sinal, para ir à mesa. Paulete vê o sinal enviado por Clécio e, junto com Fininha e Viveca, segue até o grupo.
PAULETE (expansivo) Meu povo, esse aqui é Arlindo. Meu cunhado. Então vamos evitando o ataque, pois conheço minha manada e amo minha irmã.
Clécio olha para Fininha, sorrindo. Joubert intervém, animadamente.
JOUBERT (animada e largamente) Paulete, meu preferido... Você sabia que o ciúme é a primeira forma de possessão capitalista enquanto ideia? É aí que o desejo se mistura com a mercadoria e dá uma volta no juízo, uma confusão sem fim.
CLÉCIO (apertando a mão de Arlindo) Clécio. Muito prazer.
FININHA (sorrindo e falando muito baixo) Prazer.
O grupo fica em silêncio, como se tivessem acabado uma rodada de assunto. Clécio toma a dianteira.
CLÉCIO Peguem cadeiras e sentem com a gente.
PAULETE (fazendo cara de abuso) Posso? (pequena pausa) Não posso. Tenho que arrumar as coisas lá trás. (Se voltando para Viveca) Vamos, Viveca, que a gente já sai mais cedo pra anarquia e o prazer.
VIVECA (fazendo expressão de contentamento) Fazer o quê, Paulete? (saindo e olhando a mesa) Volto logo. (se voltando para Paulete, que a puxa com força) Peraí, frango. Porra! Deixa eu pegar um cigarro.
Arlindo, sem jeito, senta-se à mesa. Os outros continuam suas conversas. Clécio puxa assunto com Fininha.
CLÉCIO (sorrindo) E aí, Arlindo, como é o nome de sua namorada? A irmã de Paulete.
FININHA (tímido) Jandira. (silêncio) Jandira.
CLÉCIO (simpático) Eu ouvi. Sabia que Jandira é um poema de Murilo Mendes? (Fininha faz um sinal negativo com a cabeça enquanto se serve de cerveja) Gostou?
FININHA De que?
CLÉCIO Dos shows, da casa... de mim.
FININHA (sorrindo) É a primeira vez que venho num lugar assim. (pausa) Gostei de você cantando. (pequena pausa) Essa roupa não deixa você com muito calor?
CLÉCIO (sorrindo) Ou bem pensamos na elegância, ou bem pensamos no calor. (pausa) Que coincidência! Eu tinha certeza que um dia você ia aparecer aqui.
FININHA (sem compreender) Minha Tia Zózima diz que a coincidência é uma das provas de Deus.
CLÉCIO (encarando-o e irônico) Estamos feitos: tradição e família. Só falta a propriedade. (pausa) Onde você mora?
FININHA (sorrindo) No quartel.
CLÉCIO (falso espanto) Então você é um infiltrado? Veio aqui para nos vigiar? (pequena pausa) Ou para nos prender?
Clécio e Fininha miram-se, mas já não dizem mais nada. Fininha se mostra seduzido.
*
SEQ 40 - CUMPLICIDADES
(Casa de Clécio- int - madrugada - cor)
Vista da cidade do Recife à noite. Uma luminosidade de madrugada. Luzes de vapor de mercúrio contrastam com o breu das casas adormecidas. A visão que temos é a partir da janela do apartamento de Clécio. Começamos a ouvir o chiado de um disco que é colocado na vitrola. Fininha entra em quadro, e a câmera afasta-se um pouco, deixando as esquadrias quase como moldura da cena. A voz da cantora Dolores Duran explode.
Fininha está sem camisa. Observa a noite. Clécio, também sem camisa, entra em quadro. O movimento da câmera desvenda o apartamento. Os dois se encaram:
CLÉCIO (quase tímido) É essa a música que eu te falei. (pequena pausa) Conhece? (Fininha faz sinal negativo com a cabeça) Hum! Sua voz é tão agradável. Você não parece que tem essa voz, mas quando a gente ouve, não pode pensar em outra para você.
FININHA (de olhar baixo) No quartel me chamam de Fininha.
CLÉCIO (sorrindo) Melhor que Arlindo. (pausa) Não que Arlindo é feio, mas Fininha parece com você, Arlindo não.
FININHA (ainda olhar baixo) Você também não parece com Clécio. Parece outro.
CLÉCIO Qual? (Fininha dá de ombros e olha para Clécio) Quer dançar comigo? _(Fininha faz sinal afirmativo com a cabeça) _ Vamos?
Os dois se dirigem ao centro da sala. Atrapalham-se na hora de decidir quem "leva" a dança, mas Fininha cede. No início parecem tímidos, mas Clécio vai insistindo, e Fininha cedendo. A respiração dos dois é profunda. Começam a conversar, quase que falando dentro da orelha do outro.
FININHA Eu nunca tinha dançado assim com um homem.
CLÉCIO Eu nunca tinha dançado assim com um soldado. (pausa) Seu corpo tem cheiro doce.
FININHA (sorrindo) Doce? (Clécio balança afirmativamente a cabeça) Hum! Tá bem quente aqui.
CLÉCIO Eu servi no Exército, mas nunca tinha sentido esse cheiro.
FININHA (espantado) Você serviu? (Clécio faz sinal afirmativo com a cabeça) Qual a sua idade?
CLÉCIO Trinta e três.
FININHA, _ sem parar de dançar, se afasta um pouco e fica observando o rosto de Clécio. Respira fundo e volta a aninhar-se na dança._
FININHA Não parece. (pausa) Você serviu?
Os dois ficam em silêncio. A música continua e vai tomando conta da cena.
CLÉCIO (encarando Fininha) Meu pai é militar e achava que servindo ao Exército eu ia tomar jeito. Ia virar homem. (pequena pausa) Você já beijou um
homem?
Fininha nada responde. Encara Clécio e começa a beijá-lo
#
Nenhum comentário:
Postar um comentário