sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

As coisas mudam para continuarem as mesmas

Recentemente, numa palestra de Plínio de Arruda Sampaio que assisti e documentei aqui neste blog, me surpreendi com uma defesa do ditador africano Robert Mugabe feita por ele. Apenas um dos muitos exageros cometidos por Plínio - gosto dele mas, evidentemente, não endosso nem compartilho de todas as suas opiniões. Hoje me caiu às mãos uma materia interessante sobre o assunto, vinda de fonte relativamente (já que totalmente não existe) isenta, a revista Fórum. Parece não haver dúvidas quanto ás boas intenções do hoje presidente praticamente vitalício em seu início de carreira política, mas este parece ser também um típico caso daqueles em que "as coisas mudam para continuarem as mesmas". Saber ao certo não sei, mas acho saudável desconfiar, sempre. Leia a matéria abaixo e tire suas próprias conclusões - ou não.

A.

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Com eleições programadas para 2011, Robert Mugabe, aos 86 anos, se prepara mais uma vez para se reeleger presidente do Zimbábue. A pergunta é: será diferente dessa vez?

“Para o homem que eu uma vez admirei: Você se lembra da primeira vez em que nos encontramos, em 1974? Eu tinha 27 anos e você quase 50. Sintonizamo-nos imediatamente. Alguma coisa relacionada à minha juventude e avidez pela vida mexeu com você. Você se tornou meu herói adorado. Lembro como articulava sua visão sobre a liberdade da opressão colonial. Tinha certeza de que você era a pessoa certa para liderar nosso país para a liberdade. Estava preparado para lutar por aquilo em que você acreditava. Um verdadeiro homem de princípio... Quando nos encontramos há 34 anos Mugabe, eu te desejei uma vida longa, saúde e felicidade. Não imaginava que as coisas acabariam desse jeito... O Zimbábue merecia e merece muito mais.”

O trecho da carta acima, escrita pelo jornalista zimbabuano Wilf Mbanga a Robert Mugabe, expõe um sentimento presente entre muitos zimbabuanos: afinal, o que aconteceu com o líder da independência e com o país? Hoje com 63 anos, Wilf Mbanga vive desde 2004 na Inglaterra em auto-exílio e tenta entender essa mudança. Durante anos ele foi amigo e braço direito na área de comunicação de Robert Mugabe.

Os dois se conheceram na década de 70, durante o regime segregacionista de Ian Smith. Foi nessa década que a guerrilha organizada por grupos nacionalistas negros se intensificou, assim como as pressões internacionais da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, que contribuíram para acabar com o regime de minoria branca e reconhecer a independência do Zimbábue (ex-colônia inglesa) em 1980. Robert Mugabe , o principal líder dessa luta e seu partido Zanu-PF (União Nacional Africana do Zimbábue) ganharam as eleições democráticas daquele ano e têm governado o país desde então.

Assim, Mugabe se tornou o presidente da nação que ele ajudou a libertar. Os primeiros anos de seu governo foram bastante promissores, com crescimento econômico, aumento da alfabetização da população e ampliação do acesso à saúde pública. Foi nessa época, em 1981, que Wilf Mbanga foi nomeado diretor da agência de notícias do governo. “A partir daquele ano passei a acompanhar de perto o dia a dia de Mugabe. E por causa desta posição viajei com ele por todo o mundo. Isso acabou nos aproximando muito”, conta.

Porém, já no início da década de 80 a situação começou a mudar. Em 1983, Mbanga ouviu rumores de massacres no sudoeste do país. Ele não acreditou que Mugabe fosse o responsável. Anos mais tarde, entretanto, ele descobriu que o presidente tinha sido o mandante da morte de mais de 20 mil pessoas em Matabeleland. “Foi em 1987, quando participava de um projeto nacional de jornais para pequenas comunidades, que comecei a ficar desiludido. Vi como as coisas estavam sendo governadas no país e senti que não podia continuar trabalhando para o governo. Principalmente porque passei a ser crítico em relação ao que eles faziam e eles não admitiam isso”, explica Mbanga.

Questionado sobre o que teria mudado as atitudes de Mugabe, Wilf desabafa: “Foi o poder que mudou Mugabe. O poder e o medo de perdê-lo. O medo de tudo que pode vir pela frente se ele deixar de governar o país. Todo esse temor faz com que ele tome atitudes mais e mais autoritárias.”

A mídia contra o regime

A década de 1990 seguiu impulsionada por um crescente autoritarismo e declínio econômico. Isso levou à criação, em 1999, do partido de oposição Movimento para Mudança Democrática (MDC), uma aliança de sindicatos e outros grupos da sociedade civil, liderados por Morgan Tsvangirai, atual primeiro-ministro do país. No mesmo ano, cinco meses antes, Wilf Mbanga e outros amigos se juntaram e fundaram o The Daily News, o primeiro jornal diário independente do país, que rapidamente se tornou muito popular. Wallace Chuma, zimbabuano radicado na África do Sul e hoje professor de mídia na Universidade de Cape Town, fazia parte dessa equipe de jornalistas. Ele se lembra da criação do MDC e do jornal. “Era como se toda população estivesse à espera desse momento. O partido viu no nosso jornal um grande aliado. A maioria das nossas fontes e histórias políticas era sobre o MDC. Naquela época você podia telefonar ao Morgan Tsvangirai e ele imediatamente te convidaria para um café”, lembra Chuma.

Nessa mesma época, o Zanu-PF passava por muitas crises internas e tinha muitas facções. Para desmoralizar seus oponentes internos, as facções passavam as informações sobre o partido para o The Daily News. Entretanto, percebendo a real perda de poder que estava afetando o partido, os integrantes se reagruparam no início de 2000, ano que aconteceu o referendo constitucional para aprovar a nova Constituição.

O The Daily News cobriu extensivamente o referendo, em que o “Não” venceu com o voto de 53% da população, o que foi o gatilho para as invasões de terra dos brancos vivendo no Zimbábue. O jornal tomou a decisão editorial de condenar as invasões. “Por conta disso passamos a sofrer uma série de represálias. Pessoas pegas lendo o jornal eram torturadas – isso inclusive foi bem documentado, jornalistas foram presos e ameaçados, além das tentativas de literalmente explodir o jornal”, explica Chuma.

Em 2003, o jornal foi banido. Depois de ter seu telefone grampeado e ter que conviver com constantes ameaças, Wilf Mbanga decidiu deixar o país. “Passei um ano na Holanda e depois me mudei para a Inglaterra. Morando fora percebi que não tinha acesso a notícias do meu país, tanto eu quanto uma enorme quantidade de zimbabuanos vivendo no exílio. Por isso decidimos fundar o The Zimbabwean. Começamos distribuindo o jornal na Inglaterra e na África do Sul e depois passamos a levá-lo de caminhão também para o Zimbábue”, conta Mbanga.

O jornal se tornou um sucesso, mas a represália continuou. Numa ocasião, o caminhão que leva os jornais da África do Sul para o Zimbábue foi sequestrado e incendiado. Por conta disso, os 17 repórteres que compõem o jornal não têm seus nomes nos créditos e trabalham na clandestinidade, enviando seus trabalhos de lanhouses.

Os refugiados

Depois do referendo de 2000, a situação do país não melhorou. Aconteceram mais quatro eleições – duas presidenciais (em 2002 e 2008) e duas parlamentares (2000 e 2005), todas com denúncias de fraudes e forte intimidação do governo. A economia também não deu sinais de melhora. Em agosto de 2008 a inflação era de 11.200.000%, o que fazia o preço dos produtos dobrar a cada dia. Foi preciso criar a nota de um bilhão de dólares zimbabuanos. A solução encontrada foi dolarizar a economia em 2009.

Esses fatores – péssima situação econômica e política – levaram uma enorme quantidade de pessoas a deixar o país em busca de condições melhores. Só na Grã-Bretanha são cerca de um milhão. Além disso, há uma estimativa de mais dois milhões vivendo na África Austral (principalmente África do Sul e Botsuana), o que faz com que o número total de exilados seja de cerca de 20% da população do país.

O movimento migratório trouxe consigo outros problemas, como a xenofobia enfrentada por muitos deles, especialmente na África do Sul. Em 2008 houve uma onda de ataques aos zimbabuanos vivendo na Cidade do Cabo. Wallace Chuma, que vive lá, complementa: “O que você realmente sente é o racismo. Conheço centenas de imigrantes ilegais vivendo na África do Sul, alguns deles são até da minha família. Eles enfrentam dificuldade para conseguir documentos; logo, sem identidade ou passaporte não podem abrir conta no banco nem ter um emprego formal. Portanto o que lhes resta é o mercado informal de compra e venda de produtos e a marginalização da sociedade”.

Para o pesquisador do Departamento de Estudos Africanos do Instituto Alemão de Pesquisas Globais (GIGA), Christian von Soer, os principais problemas dos imigrantes são o fato de a África do Sul não ter uma política de migração para lidar com o problema, e o fato de os imigrantes ilegais oferecerem seus serviços pela metade do preço do mercado. Isso aumenta a competitividade com os sul-africanos e desvaloriza o valor do seu trabalho, que por sua vez leva a esse sentimento de ressentimento. “Apesar da pequena melhoria na economia zimbabuana, o fluxo de imigrantes ainda continua, e eles ainda têm problemas para encontrar moradia. Você os vê nas ruas, pedindo esmola, e percebe o ressentimento dos sul-africanos”.

Uma situação que talvez pudesse ter sido evitada. Segundo Christian von Soer, Mugabe deu sinais de que não era um líder tão democrático assim já na década de 1980. “Ele teve muitas atitudes autoritárias. Quando sentiu o seu poder inseguro ele passou a intimidar a população e a tornar seu o exército mais forte do que nunca. Houve sinais claros de que não era nada parecido com democracia o que estava acontecendo no Zimbábue, mas muitos atores da comunidade internacional ignoraram esses sinais”.

O que vem depois?

Em 2008, nas eleições presidenciais de maio o candidato da oposição (MDC) Tsvangirai conseguiu 47.9% e Mugabe 43.2% dos votos, o que os levou para um segundo turno, apesar dos apelos de Tsvangirai sobre fraudes ocorridas no primeiro turno. Uma semana antes da realização da votação decisiva, Tsvangirai se retirou da disputa alegando a forte violência contra as pessoas que o apoiavam. Mesmo assim o segundo turno aconteceu e deu a vitória a Mugabe com 85% dos votos. A comunidade internacional reagiu, pressionando o Zimbábue a achar uma solução mais democrática. Em 2009 Tsvangirai assumiu o posto de primeiro-ministro, passando a dividir o poder com Mugabe.

Ainda não há certeza se as eleições programadas para junho 2011 vão de fato acontecer, pois há muitas questões logísticas que ainda não foram resolvidas. A grande questão é se o pleito será diferente dos anteriores. Segundo Wilf Mbanga, atualmente existem muitos ao redor de Mugabe que se beneficiam do regime. “Essas pessoas não têm nenhum interesse em uma mudança para o país. Por isso eles estão começando uma campanha para ter Mugabe como presidente para o resto de sua vida. Ele é a cola deste partido. Se morrer amanhã, haverá muita disputa interna para ver quem irá sucedê-lo”, explica.

Wallace Chuma acredita que o sucessor de Mugabe será Emmerson Mnangagwa, também do Zanu-PF. “Não o vejo abrindo mão do seu poder tão cedo.” Para Christian von Soer, o partido tentará intimidar a campanha dos oponentes mais uma vez em 2011. “Cabe aos 15 países que constituem o SADC (Comunidade do Desenvolvimento da África Austral), liderados pelo presidente sul-africano Zuma, pressionar o Zimbábue por uma eleição limpa”.

Ainda esperançoso, Wilf Mbanga termina sua carta a Mugabe: “Não é tarde, Mukoma . Você ainda pode fazer a coisa certa. O povo pelo qual você lutou ainda está lá. Eles ainda querem a liberdade. Você uma vez os amou suficientemente para dar a sua vida pela sua liberdade. Abra mão do seu poder, Mukoma. Liberte seu povo. Deixe-os decidir quem eles querem que os governe. Essa é a única coisa que nos fará amá-lo de novo.”

BOX – O jornalismo nas universidades do Zimbábue

O Zimbábue tem cerca de seis cursos superiores e técnicos de jornalismo. Essas instituições ensinam teoria da mídia, produção de jornalismo, diagramação etc. Um acréscimo recente ao programa de jornalismo de uma das universidades é um curso chamado “Estudos Estratégicos”, que basicamente glorifica a liderança do Zanu-PF e seu papel na libertação do país. Outro fato que chama a atenção na área do jornalismo é a questão da “fuga de cérebros”. Segundo Wallace Chuma, “Quem podia deixar o país, deixou.” Ele ainda acrescenta que os professores podem expressar livremente suas opiniões, especialmente agora com um governo de coalizão. “Entretanto aqueles que o fazem não são promovidos, pois a maioria das instituições é politizada e Robert Mugabe é o chanceler de todas as instituições do país”, explica.

Por Caroline d’Essen

Fórum

2 comentários:

A Wild Garden disse...

O pior é que isso se estendeu a todos os setores da vida!

Anônimo disse...

Discussão palpitante neste sítio, visões como aqui vemos dão valor ao indivíduo que analisar nesta página :)
Dá mair quantidade deste sítio, aos teus utilizadores.