sexta-feira, 5 de junho de 2015

SERES URBANOS

Temos assistido, nos últimos anos, a um precioso resgate da produção alternativa da década de noventa do século passado, com o relançamento, agora em edições mais caprichadas, de trabalhos de gente como Alberto Monteiro, Joacy Jamys, Henry Jaepelt e Law Tissot. Todos publicados, originalmente, em fanzines xerocados e distribuídos de mão em mão ou via correios.

Estes “fanzineiros” eram, na sua maioria, artistas “solo”, encarando de forma solitária a tarefa de produzir, reproduzir e distribuir suas publicações para o Brasil e o mundo. Haviam, no entanto, os que preferiam se unir em grupos, muito antes do termo “coletivo” entrar – e sair – da moda. No nordeste brasileiro destacavam-se dois, ambos dedicados, principalmente, à produção de Histórias em quadrinhos: o “Grupo de risco”, do Maranhão, que editava a revista “Singularplural”, e os “Seres Urbanos”, de Fortaleza, Ceará, que colocaram na praça, entre os anos de 1991 e 1998, uma série de publicações antológicas, em edições caprichadas, muito acima do padrão vigente.

Uma boa parte desta produção está agora compilada no livro que leva o nome do grupo e que foi lançado com o apoio da Secretaria Estadual da Cultura do Governo do Ceará. São 100 páginas de quadrinhos existencialistas impressos de forma impecável em papel de primeira qualidade, apresentando uma produção com uma impressionante diversidade de estilos, além da diagramação e experimentação gráfica primorosa e ousada – numa das páginas, por exemplo, um personagem de quadrinhos é esfaqueado pela perna de um balão de diálogo! Noutra, vemos o resultado de um projeto de arte postal coletiva em que Lupin, um dos “Seres” – que na verdade já produzia antes mesmo da criação do grupo - enviou cópias de uma imagem aleatoriamente para várias partes do mundo solicitando que quem as recebesse enviasse de volta com algum tipo de intervenção. Trabalho de gente extremamente talentosa, que merece muito este resgate ...

O espanto começa pela capa, com um belíssimo desenho de Weaver, e prossegue à medida que vamos avançando nas páginas e mergulhando no universo dos caras, repleto de reflexões e angustias que mesclam de forma perfeita o quotidiano das pessoas mais comuns com o dos “outsiders”, dos “rockers” ao típico cidadão trabalhador, do “underground” ao senhor que se ressente da falta da esposa que preferiu ficar em casa assistindo televisão a acompanha-lo numa trivial ida ao centro da cidade para levar um relógio para consertar. Das tiras tirando sarro do jeito cearense de ser aos tipinhos presentes nas festinhas do submundo, sempre com textos afiados e cheios de grandes sacadas. Angustia e bom humor de mãos dadas. Celebração e decepção, lado a lado.

É o que vemos, também, na grande “autoentrevista” reproduzida no final, onde os caras passam a limpo sua trajetória e explicam – ou não – suas motivações e as circunstancias que fizeram com que as coisas tivessem acontecido da forma que acontecerem – a qualidade das cópias, por exemplo, se explica pela oportunidade oferecida por uma copiadora, que cedeu uma sala para o grupo em troca de parte de sua força de trabalho. Nada “de graça”, portanto. Nada “de mão beijada”: o que conseguiram, foi porque foram atrás – até porque não tinha ninguém nascido em berço de ouro ali, eram todos oriundos da periferia da cidade, que crescia – e cresce! – verticalmente e vertiginosamente.

Para o que não conseguiram, paciência. Ou um grande “foda-se” – com a consciência de que parte dos motivos foi sua própria falta de noção, como da vez em que tentaram vender para uma campanha antidrogas uma “cartilha” totalmente politicamente incorreta que se chamava LSD – Leitura Sobre Drogas. A outra parte vai pra conta da dificuldade natural que uma empreitada desse porte encontra numa cidade “solar”, centrada na indústria do turismo, que tende sempre a dourar a pílula da realidade e fechar os olhos para a diversidade cultural, punindo com o ostracismo aqueles que teimam em ir além do sonho tropical.

Os “Seres Urbanos” são Weaver, Marcílio, Elvis, Lupin, Kaos (in memoriam), Galba e Mychel. Estão na rede, aqui. O livro é fundamental, imperdível, e pode ser adquirido AQUI. AQUI, uma matéria sobre o lançamento, em vídeo. Abaixo, uma pequena seleção pessoal de trechos dos textos, sempre ácidos e certeiros. Só pra que vocês tenham uma idéia do que eu estou falando ...

“Sou o intervalo entre o que desejo ser e o que os outros me fizeram”

“Sempre que sinto falta de algum conforto eu me lembro dos golfinhos: se eles possuem um cérebro desenvolvido e passam a vida brincando, então nós humanos estamos fazendo algo errado”

“Estou ansiosa para crescer e sair da escola” “Crescer? A verdade é que sua geração terá que trabalhar em tempo integral e fazer cursos de atualização de computação, um após o outro, durante toda a vida, pra não se tornar um profissional defasado. O único contato de sua geração com o mundo será de forma artificial, através da TV.” “Em compensação, a TV terá milhares de canais.”

“O que nos preocupa no mundo não é ele ser tão grande, e sim a natureza humana ser tão pequena”

“Lili voltou dos states magérrima. “Que são esses xis nas suas mãos, Lili?”, perguntou Rita. – Mulher, agora eu sou straight edge.  – istrei o que ???!! Perguntou Wanda fazendo careta e levando todas a gargalhar. Lili deu um pequeno sorriso sem graça e se sentiu mais uma vez solitária entre suas amigas de infância.”

“Ed acordou e sua esposa havia partido. Vários pedaços dela estavam espalhados pela casa. “Devia ao menos ter deixado meu café feito”

“No início da noite do dia 29 de agosto de 1995, após um dia como outro qualquer de trabalho, Juvêncio Colares parou estático no meio da rua. E ficou lá parado pelo resto de sua vida.”

“Qualquer idiota é capaz de pintar um quadro. Mas só um gênio é capaz de vendê-lo.”

“Todas as coisas já foram ditas, mas como ninguém escuta, é preciso sempre recomeçar”

A.


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