Fanzines - de Fan(atic) + magazine(revista, em inglês) – são
publicações amadoras, geralmente produzidas de forma artesanal e sem fins
lucrativos, por (e para) fãs de determinado segmento cultural. Circulam,
principalmente, entres os aficcionados por ficção cientìfica, Histórias em
quadrinhos e pelo mundo do rock “underground”. A cultura punk, que explodiu na Inglaterra
no final da década de 1970, foi a principal responsável por sua disseminação
mundo afora, através do lema “Do It yourself”, ou “faça você mesmo”.
Havia uma cena forte de fanzines em Aracaju entre as décadas
de 80 e 90 do século passado. Do “Centauro sem cabeça” e “Seduções ecológicas”,
que circulavam nos meios universitários, ao “Clube do ódio” e “Buracaju”,
nascidos nos porões “roqueiros” da cidade. A eles se juntaram, posteriormente,
nomes como “Escarro Napalm” (deste que vos escreve) e o “Cabrunco”, editado por
Rafael Jr., baterista da banda Snooze, e por Adolfo Sá – na época, um ilustre
desconhecido ...
Marcou época, mas um dia acabou, porque nada, afinal, dura
para sempre. Adolfo, no entanto, manteve o espírito e migrou para internet, onde
criou um blog, o Viva La Brasa, que segue mais ou menos a mesma linha:
jornalismo “gonzo”, 100% independente, sem o rabo preso e feito direto das
ruas, com enfoque no cenário cultural “alternativo” mas se aventurando por
temas dos mais variados – do surf, uma de suas paixões, à política, sua
principal aflição.
Agora um apanhado de toda essa produção está disponível num
formato mais nobre, para ser lido e guardado com todo o carinho nas estantes
dos mais “antenados”: acabou de sair “Viva La Brasa”, o livro! Uma produção,
como não poderia deixar de ser, totalmente independente, bancada pelo autor na
cara e na coragem. Um verdadeiro marco no cenário editorial local, pois serve
como registro impresso, para as atuais e futuras gerações – mesmo que no futuro
não exista mais energia elétrica! – do trabalho desenvolvido não apenas por
Adolfo, mas por todo um grupo de pessoas que atuam informalmente, como ele,
longe dos holofotes e dos esquemas viciados da grande mídia comercial e dos
apadrinhamentos políticos que engessam nossa produção cultural.
CHEGOU! |
# De onde você veio, Adolfo? Conte-nos um pouco de sua
infância, do que você lembra de mais marcante e pode ter te influenciado ...
ADOLFO SÁ: Nasci em Salvador em 1975 e morei lá até 88.
Minha infância foi normal, fui campeão mirim de judô mas larguei quando quebrei
o braço e comecei a pegar onda. Eu e meus amigos costumávamos pular o muro da
escola pra curtir o dia lá fora. A rua sempre foi mais atraente do que a
academia. Em 86 comecei a surfar e no ano seguinte entrei de cabeça no rock,
ouvindo discos e fitas do Camisa de Vênus e Titãs. O álbum "Cabeça
Dinossauro" me fisgou, e o Camisa era uma lenda por lá. As revistas
Geraldão e Chiclete com Banana também fazem parte da formação nessa época.
# Qual era sua relação com Aracaju? E como você começou a
desenvolver essa vocação para o jornalismo? Foi um processo perceptível, em sua
cabeça, ou simplesmente “aconteceu”?
ADOLFO SÁ: Desde criança passava as férias de verão em
Aracaju, na casa dos meus tios no conjunto Dom Pedro I. Eu e meus primos
fazíamos o que todo moleque faz: jogar bola de gude e empinar pipa. Nunca
gostei de futebol, nunca gostei de correr nem de ficar debaixo do sol. Em 89
meu pai tava falido e mudou pra cá tentando melhorar a vida; foi o começo de um
inferno pessoal pra minha família, porque o coroa despirocou e dá trabalho até
hoje. Entrei no Colégio de Aplicação aos 14 e tive que me virar sozinho desde
então, até os livros pra estudar eu tinha que arrumar por conta própria. Eu
competia em eventos de surf, mas dos 15 aos 17 passei por 3 cirurgias no
joelho, o que me fez abandonar a ilusão de ser surfista profissional (risos).
Mas eu perdia mais do que ganhava, nunca fui competitivo, nunca quis ser melhor
do que ninguém. Na escola, me juntei aos piores alunos porque eram os caras
mais espertos e divertidos, mesmo assim volta e meia tirava 10 em redação. No
vestibular, sabia que não teria a opção de fazer faculdade particular e não via
nenhuma profissão que me empolgasse. Pensei em fazer pra Artes, mas na UFS só
rolava de se formar professor e eu nunca quis dar aula. Não gosto de falar
muito.
# Seu envolvimento com os fanzines e com o meio alternativo,
em geral – como você travou contato, primordialmente? O que o levou a começar
um fanzine? Você já pensava, na época, em se profissionalizar, virar um
jornalista “de fato”, formado, com diploma? Aliás, você vive de jornalismo?
ADOLFO SÁ: Não vivo de jornalismo. Escolhi o curso mais por
falta de opção do que por qualquer outra coisa. Trabalho há 12 anos com
audiovisual, editando e dirigindo. É daí que tiro o meu sustento. Comecei
fazendo zines por puro instinto, nem sabia o que era isso direito, mas comecei
a ser publicado num jornalzinho chamado Zona Sul, não gostava do layout nem do
perfil da parada e decidi começar a fazer meu próprio jornalzinho. Atitude
sempre tive, o que falta às vezes é grana e incentivo.
# O “Cabrunco”, seu primeiro fanzine, era um projeto pessoal
ou coletivo? Lembro que ele foi um dos primeiros, senão O primeiro, na cidade,
a usar a editoração eletrônica na confecção – antes era tudo sempre na base da
colagem, do improviso autodidata, mesmo. Havia custos com isso, e com a
impressão? Em caso afirmativo, havia retorno do investimento financeiro?
ADOLFO SÁ: Meus projetos sempre foram coletivos, nunca tive
a arrogância de fazer algo sozinho, apesar de sempre ter corrido atrás dos meus
objetivos por conta própria. Rafael Jr., que fazia o zine junto comigo, já era
meu amigo das gigs e do surf. Chamei ele, sugeri o nome "Cabrunco" e
o resto é história. Sempre tirei grana do bolso pra tocar meus projetos, nunca
esperei pelo sistema e jamais tive retorno financeiro. Pelo menos vou morrer
realizado sabendo que fiz tudo na medida do impossível.
# Qual era a tiragem, em média, do Cabrunco, e onde e de que
forma ele era distribuído? Como se deu o diálogo e a inserção de vocês dentro
da cena, que já existia, com bandas e fanzines pioneiros como o Buracaju e a
Karne Krua, na ativa desde a década de 80? Foram bem recebidos, de cara, ou houve
uma certa desconfiança inicial?
ADOLFO SÁ: A tiragem foi aumentando ao longo do tempo, o
zine era distribuído pelo correio. Nos últimos números já rolavam 1000 cópias
por edição, sempre independente. Como eu era um moleque, muita gente não botava
fé, você mesmo foi um dos mais duros críticos no início e me fez evoluir por
causa disso. A real é que a gente tinha a vontade de fazer, mas ainda tava se
desenvolvendo e descobrindo o mundo. Sem tantas referências nem facilidades
como hoje em dia, onde a internet entrega tudo de mão beijada pra molecada.
# O jornalismo é, pelo menos quando exercido de forma
independente, sem o rabo preso com nada, realmente uma atividade de risco? Você
já sentiu isso na pele? Já sofreu represálias por conta do escreveu? Lembro de
pelo menos um caso de embate físico entre você e um membro de uma banda que não
havia gostado de uma critica negativa publicada no fanzine ...
ADOLFO SÁ: Total. Já tive que sair na mão com um otário. As
pessoas não gostam de quem fala a verdade, e o esquema em Aracaju é um lamber o
rabo do outro. Mas sempre fui verdadeiro comigo mesmo, foda-se o que os outros
vão pensar.
# O “Cabrunco” acabou se tornando um marco na cena local,
com substancial projeção nacional. Quais foram os momentos mais marcantes, pra
você, na trajetória do fanzine? E o que isto te proporcionou, em termos
pessoais, sentimentais ou mesmo financeiros?
ADOLFO SÁ: Pra começar, o CABRUNCO tinha um nome que até
então era um palavrão no dialeto local, ninguém jamais havia usado pra batizar
nada. Por causa dele, conheci o Brasil indo pra festivais, morei durante
semanas ou meses em outras cidades, o que não seria possível pra um jovem pobre
como eu numa outra circunstância. Fiz amigos pra vida toda, um deles é você. E
também arrumei umas namoradas em outros estados, essa foi a melhor parte.
Fácil.
# Porque o Cabrunco acabou?
ADOLFO SÁ: Porque, quando você tá fazendo algo, o que não
falta é gente pra te criticar, policiar e botar pra baixo. Depois que passa,
todo mundo fica falando "ah, como era legal", "saudade"
etc.
# Finado o “Cabrunco” você deu uma sumida, o que aconteceu
neste hiato em que você, pelo menos aparentemente, ficou de fora da atividade
“jornalística”?
ADOLFO SÁ: Eu nunca sumi, quem sumiu foram os amigos. A
velha fuleiragem de Aracaju, gente interesseira etc. No mesmo ano que acabei
com o Cabrunco, formei uma produtora com uns chapas, a Marginal, que promovia
festas no Cultart e fez o 1º festival nacional de rock do estado, o Rock-SE.
Trouxemos um monte de bandas do país todo, incluindo os standards Marcelo D2 e
O Rappa, mas tivemos um prejuízo monstro e eu saí com uma mão na frente e outra
atrás. Mais uma vez, nenhum amigo ofereceu ajuda na hora difícil e eu tive que
me virar sozinho pra sobreviver. Entre um bico fodido e outro, me formei em
jornalismo. Apesar da minha experiência com autopublicação e colaboração em
revistas como Rock Press e Música Brasileira, nenhum jornal local me ofereceu
emprego, sequer um estágio. Filhos da puta.
# Como se deu a “retomada”, se é que podemos chamar assim?
Via blog? Porque essa opção?
ADOLFO SÁ: Em 2003, arrumei estágio numa produtora e em 2
meses me tornei editor de vídeo. No início de 2004 rolou um passaralho, geral
foi demitida, e com a grana do seguro-desemprego me joguei pro Rio de Janeiro,
onde morei na casa de Allan Sieber e aprendi um monte de coisa na
Toscographics. Quando retornei a Aracaju, tava na pilha de voltar a produzir
minhas coisas e criei o blog VIVA LA BRASA, utilizando a tecnologia mais barata
disponível. Aí as pessoas começaram a lembrar que eu existo.
# E o blog, o que te proporcionou, em termos de satisfação
pessoal, especificamente? Trace um paralelo das diferenças entre as duas épocas
que você viveu, a dos fanzines, nos anos 1990, e a virtual/digital, no século
XXI.
ADOLFO SÁ: As respostas estão no livro, é só folhear e ler
pra entender.
# O blog parou para que você pudesse se dedicar à confecção
do livro? Vai voltar?
ADOLFO SÁ: O blog já está de volta, parei porque dirigi a TV
pública de Sergipe durante 2 anos e não tinha tempo pra porra nenhuma. Meu
ex-patrão era um vampiro, que se foda aquele maldito. Dei um tempo nas
postagens, selecionei as melhores e reuni uma equipe pra fazer o livro.
# Como foi e quanto tempo durou o processo de concepção do
livro? Ficou satisfeito com o resultado final?
ADOLFO SÁ: Dois anos de muito trabalho e dor de cabeça, com
um editor preguiçoso que eu mandei SE FUDER. Não fiquei 100% satisfeito porque
tive que acumular funções que seriam de outros, como a revisão por exemplo, e
há vários pequenos erros que poderiam ter sido evitados.
# Quais suas expectativas quanto à recepção do mesmo, agora
que está nas ruas? Há alguma estratégia de distribuição?
ADOLFO SÁ: Expectativa nenhuma. Vendi 25 cópias na pré-venda
e 10 na noite de lançamento - que por sinal foi um sucesso de público, com
altas bandas e até pole dance. A maior parte dos exemplares vendidos até agora
foram pra fora do estado, pra variar né. Só de custo de impressão foram R$ 8
mil, mais R$ 5 mil com a equipe. Jamais recuperarei essa grana. Como disse um
amigo, "a galera aqui é miserável".
# Valeu/vale a pena?
ADOLFO SÁ: Vale a pena, sempre. O que importa é a satisfação
pessoal. Fodam-se os cuzões.
publicado originalmente no jornal FOLHA DA PRAIA
por Adelvan “Kenobi”
por Adelvan “Kenobi”
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