Aos 15 anos, fui ameaçada por um skinhead que estudava no mesmo colégio
que eu. Recebi um recado dizendo que, se eu não tirasse o bóton
antinazi da minha mochila, ele iria rasgá-la no meio do pátio e me pegar
na porrada. Convicta dos meus princípios punks na época, achei que não
deveria tirá-lo. Passei a ser fuzilada pelo olhar do moleque nos
intervalos. Depois, fiquei preocupada e acabei jogando o tal bóton no
lixo. Estávamos no final de mais uma temporada escolar. Coincidência ou
não, no ano seguinte o cara caiu exatamente na minha sala. Excluídos do
rolê das pessoas normais, acabamos nos aproximando por conta da forçação
de barra dos professores que insistem para que os alunos façam
trabalhos em dupla. Lembro de interrogá-lo o dia todo, tentando dirimir
minhas dúvidas sobre o tipo de merda que ele tinha na cabeça. Toda
semana ele aparecia com um hematoma novo e sempre escrevia na mesa que
“cearenses eram ratos”. Anos depois, nos reencontramos e ele estava se
formando como policial militar. Uma memória indelével.
Tentando entender os neonazistas brasileiros contemporâneos, conversei com a antropóloga Adriana Dias,
doutoranda da UNICAMP que há 11 anos se dedica ao tema. Depois de se
deparar com o fato de haver neonazistas na terra do Lampião, a
antropóloga pegou gosto pelo assunto e resolveu partir para a pesquisa
acadêmica. Ela fez um mapeamento do neonazismo no Brasil, estudando como
esses grupos se mobilizam na internet. Segundo sua pesquisa, existem
150 mil simpatizantes por aqui. Não divulgamos fotos da Adriana porque
ela já recebeu ameaças de morte. Então, leia a entrevista abaixo para
entender como ela chegou a esses números e que diabos essas pessoas
fazem desta sujidade que chamamos de vida.
VICE: Algum fator específico faz um jovem se sentir atraído pelos pensamentos neonazistas?
Adriana Dias: O jovem brasileiro que é atraído por
esse grupo é aquele que tem algum problema familiar e de relacionamento.
Tanto é que a grande maioria das famílias, quando descobre que tem um
filho neonazista, diz: “Nossa, eu jamais imaginei”. Muitas vezes as
famílias mal sabem que o adolescente tinha a tatuagem de uma suástica
nas costas, por exemplo. São jovens que têm graves problemas familiares e
de sociabilização, e eles procuram nesses grupos a resposta a por que
eles não dão certo na vida. Nos grupos, é dito que eles não dão certo
porque alguém já ocupou o lugar que seria deles. Isso é uma grande
preocupação da antropologia. O neonazista acredita que existe um lugar
natural para a raça branca que é a liderança sobre as outras raças. A
mídia, segundo o neonazista, é toda judaica, pois construiu um perfil de
um negro quase herói no Brasil – porque ele vence no esporte, na
música. Então é preciso destruir o judeu e o negro — é preciso eliminar a
ameaça nordestina para que o natural, que seria o lugar do jovem
ariano, se recupere. É uma paranoia construída atrás da outra.
De acordo com suas pesquisas, qual é a média de adeptos por aqui?
Depende do que vamos chamar de adeptos. Eu faço muita diferença entre
dois grupos: o primeiro é aquele que lê material neonazista com
frequência, que é o simpatizante. Esse é neonazista. Ele está
contaminado. Ou seja, ele baixa mais de 100 arquivos de 10 a 100 mega.
Ninguém baixa mais de 100 arquivos com textos sobre a importância da
raça, sobre como construir bombas, sobre a inferioridade dos negros, a
não ser que esteja fazendo uma pesquisa. E não tem quase ninguém
pesquisando o tema. Então, quem baixa esse material com certeza é
simpatizante. São 150 mil pessoas baixando esse volume de material no
Brasil, o que é um número muito assustador. E você vai ter 10% disso que
são os líderes realmente. São pessoas que fazem passeatas, que saem na
pancadaria, que exigem que os outros façam pancadaria, que ameaçam
pessoas, que volta e meia fazem proselitismo na rede e que tentam, de
alguma forma, coordenar o restante dos grupos. E tem os 10% desses 10%
que são as pessoas que já passaram todos os limites possíveis e de quem a
polícia já está atrás.
Dentro desses números, você sabe dizer se eles têm curso superior, trabalham?
Temos três perfis antropológicos. Não dá para trabalhar com um perfil
só. Tem o perfil de liderança, que é o cara entre 25 e 30 anos com nível
superior completo, muitas vezes pós-graduado, razoavelmente bem
sucedido na vida, que está a fim de coordenar os grupos menores. Tem o
jovem, entre 18 e 25 anos, que é o prosélito. E tem o perfil feminino,
que é muito diferente dos outros dois porque os grupos femininos são
construídos para apoiar os grupos masculinos, no sentido de providenciar
formas financeiras, dar apoio emocional. É um grupo totalmente à parte.
Até porque a mulher não é vista como líder intelectual, mas como um
aparelho reprodutor. Mulher, para eles, é uma coisa mínima.
O maior número de neonazistas ainda predomina na região sul do país?
Lá os grupos são mais densos. Os maiores crimes aconteceram lá, mas não
necessariamente entre descendentes de alemães. A pesquisa demonstra que
o estado de maior concentração é Santa Catarina, depois Rio Grande do
Sul, São Paulo, Paraná e Minas Gerais.
Quando o punk começou a ganhar adeptos no país, os nazistas
eram os caras que iam às ruas dar porrada. A internet mudou o
comportamento deles?
Na verdade, a internet intensificou esse comportamento na medida em que
ela permite que as pessoas troquem muita informação entre si sem que a
gente consiga localizar esses que vão às ruas para bater. O número de
crimes homofóbicos no Brasil está absurdo, mas eles não são considerados
como crimes de ódio. São tidos como lesão corporal, tentativa de
homicídio ou como homicídio já realizado. Não tem como separar do crime
comum o crime que teve demanda racial, demanda de ódio de um nordestino,
de gays.
E qual é o tipo de ação deles na internet? O que eles fazem?
Eles disponibilizam informações. Vejo crianças de oito anos de idade
citando Hitler nas redes sociais. Do tipo: “Quero ser rebelde, então vou
citar Hitler”. Isso é extremamente preocupante.
E qual é o tipo de ação deles fora da internet?
Normalmente, eles têm rituais de iniciação que envolvem agressões
físicas. Mas eles também têm reuniões de treinamento paramilitares,
reuniões de ideologia, eles produzem material. Existem vários zines
neonazistas publicados no Brasil por esses grupos. Obviamente, eles se
reúnem para produzir.
Qual é a maior discordância entre os grupos brasileiros?
Aqui no Brasil, a maior discordância é para ver quem manda. O que rolou em 2009,
no Paraná, era isso. Lideranças neonazistas brigando para ver quem
mandava mais; se era o Barollo, filiado ao PSDB aqui em São Paulo, ou se
era o Bernardo, de Minas Gerais.
O cara que foi assassinado junto com a namorada?
Exatamente, em 2009. Então, assim, essa é a grande discussão deles.
Quem manda mais, qual é o plano para tomar o poder no país. E muitos
neonazistas hoje estão entrando para o Partido Arena.
Que partido é esse?
Um partido novo que aceita alguns grupos nacional-socialistas. Se você vir o vídeo da fundadora do partido no YouTube, vai notar que ela assume que está aceitando nacional-socialistas no partido.
Existe uma distinção forte de ideias? Por exemplo: aqueles que não gostam de negros, mas toleram nordestinos, ou coisas do tipo?
Alguns grupos aceitam mulatos, principalmente em São Paulo. No sul do
país é mais difícil. Eles permitem a participação de mulatos, mas é para
colocá-los nas linhas de frente, para eles serem presos. É uma
estratégia muito clara. Até para depois eles poderem dizer que não são
racistas. É uma estratégia muito bem pensada, inclusive.
por
Vice
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