
por Adelvan Kenobi

Esta é uma das conseqüências ruins do crescimento urbano. Aparece de mãos dadas com o aumento da violência e a deterioração da qualidade de vida (mal que, pelo menos por enquanto, graças a algumas ações acertadas do poder publico nos últimos anos, inclusive no transito, com a implantação de ampla rede de ciclovias, ainda não sofremos). Mas há também o fator positivo: o aumento das opções de entretenimento e cultura, propiciado por uma concentração maior de pessoas dispostas a bancar espetáculos e eventos de qualidade. Há dois anos nasceu em Aracaju uma idéia que, por ter frutificado de forma surpreendente, demonstra um salto qualitativo no aspecto cultural da cidade: A Sessão “Cine Cult”, exibida diariamente no cinemark, atualmente detentor das únicas salas de exibição de cinema em Aracaju. O sucesso do Cine cult demonstra que havia uma demanda reprimida por uma programação diferenciada entre os amantes da sétima arte, para além dos simples consumidores de pipoca e adeptos do bate-papo dos Blockbusters (impressionante como tem gente que parece que considera o cinema o lugar ideal para se ir para ... conversar!). O projeto já existia há alguns anos nos cinemas do Shopping Riomar, mas nessa nova fase tornou-se diári0, com uma sessão a preços populares às 15:00 e uma sessão extra na quarta à noite. Uma avanço considerável, tendo em vista que antes acontecia apenas nos finais de semana, às 11:00 da manhã.


A seguir, puxarei um pouco pela memória e exporei minhas impressões sobre alguns dos filmes que assisti nestes dois anos de Cine Cult (não vi todos, longe disso), a começar pelos exibidos durante a última Virada:

CONTOS DE CANTEMBURY: O “filme surpresa” da última Virada foi este clássico de Píer Paolo Pasolini, parte de sua chamada “trilogia da vida” e baseado nas obscenas histórias de Geoffrey Chaucer do século XIV. Perversão sexual e libertinagem até dizer chega, com um forte teor anti-clerical que culmina numa imagem do inferno de dar inveja ao célebre pintor Hieronymos Bosch, onde os monges habitam o ânus do demônio. Adorei.


BEIJO ROUBADO: Entre um cochilo e outro, na primeira Virada, deu pra notar que é mais interessante que o outro filme que tinha assistido do mesmo diretor, 2046, também na sessão Cinecult da época do Shopping Riomar. Ainda estiloso, porém menos confuso. Um pouco ingênuo, talvez vazio de conteúdo, mas interessante. Boa atuação de Natalie Portman como uma jogadora profissional, boa estréia de Norah Jones, cantora consagrada, como atriz.
PARANOID PARK – Curioso e competentíssimo exercício estilístico de Gus Van Sant. Belas imagens e pouquíssimos diálogos para ilustrar a vida vazia e alienada de uma certa parcela da juventude atual, tudo centrado no universo do skate e girando em torno do acobertamento de um acidente fatal. O resultado reflete bem o universo retratado: muito estilo e pouco conteúdo.

A CRIANÇA – Co-produção belgo-francesa ganhadora da palma de ouro de Cannes em 2005. Drama existencial focado nas dificuldades de relacionamento de um casal diante do nascimento de um filho. Ela quer cuidar da criança, mas o pai quer apenas continuar sua vida medíocre sustentada em pequenos furtos, e enxerga no pequeno rebento apenas mais uma oportunidade de negócios – excusos, evidentemente. Bom filme.

SICKO – Virou meio que moda falar mal de Michael Moore depois dele ter ganho o Oscar. É insistentemente chamado de Panfletário, maniqueísta e manipulador. E pode até ser que seja (panfletário é, sem sombra de dúvidas), mas qual político não acaba sendo também um manipulador ? – e o que Michael Moore faz em seus filmes é política. Ele mira num alvo e, a partir daí, faz o possível para tentar nos convencer de que está certo. No mínimo, levanta questionamentos inquestionavelmente relevantes e incômodos que, de outra forma, seriam irremediavelmente varridos para baixo do tapete pelo “status quo”. Se ele omite alguns fatos com a intenção deliberada de nos

LADY VINGANÇA – já tinha ficado impressionado com “old boy”, a segunda parte desta trilogia, e este aqui não deixa a peteca cair. Mais uma parábola sobre vingança contada de forma vigorosa e original pelo diretor Park Chan-Wook, desta vez sob o ponto de vista feminino, o de Geum-Ja, que passou 13 anos de sua vida planejando uma vingança contra seu namorado, o verdadeiro culpado pelo crime pelo qual foi presa, o assassinato de um garoto de 7 anos de idade. Excelente fotografia contrastando branco e vermelho.

PRINCESAS – Drama realista sobre a vida de prostitutas estrangeiras na Espanha. A discriminação e as conseqüências psicológicas da banalização do sexo permeiam a historia, que é comovente e contada de modo acessível e fluente, de forma dura, “pero sin perder la ternura jamás”
INFÂNCIA ROUBADA – Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro, esta película sul-africana tem lá suas qualidades, mas meio que se perde numa pieguice açucarada sem fim, especialmente do meio para o final, com uma solução dramática das mais pueris. Vale mais pelo aspecto antropológico, no sentido de ficar conhecendo o dia-a-dia da periferia de Johannesburgo, que se tem muito em comum com as periferias de qualquer parte do mundo, goza também de algumas peculiaridades, como o curioso dialeto local.
A CASA DE ALICE – Um drama naturalista. Um daqueles filmes que muitos detestam por,

A VIA-LÁCTEA – O contrário de “A Casa de Alice”. Pretensioso e chato – mas devo admitir que bem realizado. A montagem é primorosa.
BATISMO DE SANGUE – De boas intenções o inferno está cheio, já dizia (muito bem) o ditado popular. Este aqui é mais um daqueles filmes com ótimas intenções mas que derrapa num academicismo exagerado em sua realização. Baseado num livro de Frei Beto, conta a historia dele e dos demais frades dominicanos que se envolveram com o combate á ditadura nos anos 70, com especial destaque na figura trágica do Frei Tito, que não conseguiu se desvencilhar dos traumas da tortura e acabou se suicidando no exílio, na França. Não chega a ser de todo ruim, mas é dispensável – a não ser que você tenha um interesse muito específico pelo tema e não queira ler direto da fonte de onde foi tirado.
O QUE EU FIZ PARA MERECER ISSO – Almodóvar em grande forma. Excelente.
CÃO SEM DONO – Drama pesado, arrastado e existencialista dirigido com maestria por Beto Brant. Nas mãos de um diretor pretensioso porém sem talento seria insuportável, mas aqui é comovente. Não há pano de fundo social, há apenas o beco sem saída de um personagem que parece não se adaptar á sua própria condição miserável de ser humano, mesmo tendo em seus braços uma namorada belíssima, fato que, por si só, já seria, presumivelmente, de levantar o astral de qualquer ser devidamente provido de testosterona. Testosterona não falta a Ciro, vivido por Júlio Andrade, que até que dá uma assistência legal á sua namorada Marcela (Tainá Muller). Falta-lhe o resto. Um rumo na vida. O personagem parece viver encalhado em uma eterna crise existencial, mergulhado numa vida medíocre sobrevivendo como tradutor de textos em russo. Um torpor do qual só desperta quando seu “quase-namoro” é interrompido de súbito por um acontecimento trágico. Um filme maduro, de um cineasta que domina de forma magistral sua arte.
HERCULES 56 – Excelente documentário sobre o destino dos prisioneiros libertos em troca do embaixador americano seqüestrado no episodio já anteriormente explorado pelo polêmico “que é isso companheiro”, de Bruno Barreto. O diretor teve a excelente idéia de colocar 5 dos envolvidos numa mesa de bar (aparentemente sem a presença de bebida alcoólica ) e entrevistá-los todos de uma vez, de forma a evitar algumas armadilhas bastante comuns em depoimentos históricos, como a tendência a se moldar os fatos de forma favorável ao entrevistado. De quebra, a memória de um compensa os lapsos da memória do outro, e um painel bem mais claro e amplo acaba se configurando – auxiliado por ricas e até então inéditas imagens da época. Fato curioso: um dos presos políticos libertados é Sergipano e vive até hoje em Aracaju, Agonalto Pacheco, velho militante comunista. Fato lamentável: o péssimo hábito de confabular no cinema enquanto o filme é projetado não é privilegio de sessões de blockbusters americanos povoados de adolescentes, como pude comprovar por um grupo de pessoas atrás de mim que pareciam estar promovendo um verdadeiro debate com o filme em pleno andamento. O fato se agravava toda vez que aparecia na tela a figura do ex-ministro José Dirceu (vivíamos o auge do escândalo do “mensalão”), quando os “debatedores” não conseguiam se conter e irrompiam em xingamentos exaltados de baixo calão.
PARIS, TE AMO – curiosa declaração de amor à cidade de Paris realizada com a costura de pequenos contos dirigidos por nomes como Alfonso Cuarón, Walter Salles, Wes Craven e Gerard Depardieu, tendo como resultado um amplo painel do cinema contemporâneo. Como não poderia deixar de ser, o resultado final é irregular mas, a meu ver, bastante satisfatório.
BUBBLE – Um filme israelense que versa sobre o amor homo-erótico entre um judeu e um palestino. Mais polêmico, impossível. O próprio título deixa claro que os protagonistas vivem numa “bolha”, no caso, a cidade de Tel-Aviv, mais cosmopolita e aberta que o restante de Israel, eternamente atolado numa guerra sem-fim contra seus vizinhos indesejados. As confusões decorrentes do choque cultural são bastante previsíveis, mas no final das contas resulta num bom filme, surpreendentemente leve e otimista até, apesar da premissa original prenunciar um apocalipse regado a intolerância.
2H37 – filme australiano com uma premissa bem parecida à de “Elefante”, de Gus Van Sant – uma tragédia anunciada num ambiente escolar repleto de adolescentes desajustados. O final surpreende, pois o desfecho trágico não decorre dos conflitos com maior destaque na trama.
A MORTE DO BOOKMAKER CHINÊS – Um filme cru, que dá a impressão de ter sido feito de improviso, num esquema “qualquer nota”. Lendo a respeito, soube que não foi, já que o diretor John Cassavetes era famoso por ensaiar exaustivamente cada cena antes de registrá-la. Certamente um belo exercício de estilo, mas um tanto quanto cansativo para uma tarde de domingo modorrenta. Confesso que “morguei” e, com isso, perdi a oportunidade única de ver na tela grande a obra de um grande diretor. É a vida.
CONCEIÇÃO – AUTOR BOM É AUTOR MORTO – Longa experimental que conta a revolta de um grupo de personagens contra seus próprios criadores. O filme foi realizado com recursos da UFF e tem sua direção assinada por cinco alunos daquela instituição. Os argumentos sugeridos numa mesa de bar, entre copos de cerveja e cigarros de maconha sorvidos um atrás do outro, vão se materializando na tela de forma divertida e aparentemente descompromissada. Uma prova concreta de que uma obra experimental não precisa ser, necessariamente, uma obra chata.
TRANSYLVANIA – O contrário de “conceição”. Chato. Chato pra caralho. Nem um pouco descontraído ou descompromissado. Vale pela beleza e exotismo de Ásia Argento e das paisagens romenas.
ATRAVESSANDO A PONTE – O SOM DE ISTAMBUL - Uma bela surpresa, especialmente para mim, que não sabia que o filme é obra, em grande parte, do baixista da legendária banda de rock industrial alemã Einsturzende Neubaten, que aqui assume o papel principal como “alter ego” do diretor Fatih Akin, também alemão mas descendente de turcos. Mostra a música feita em Istambul, uma mistura de referencias orientais e ocidentais, reflexo do que é a própria Turquia, diga-se de passagem.
MUTUM – Outro “drama naturalista”. Baseado em “campo geral”, de Guimarães Rosa, mostra, sob o ponto de vista de uma criança, o nebuloso mundo dos adultos, repleto de mentiras, traições, silêncios e reações violentas. Me identifiquei bastante. Me lembrei de quando era criança e assistia, meio sem querer, aos filmes de Nelson Rodrigues na televisão. Não entendia e, o pouco que entendia, me causava repugnância. Então era isso, o tal “mundo dos adultos” ? Por pouco não sofro da “síndrome de Peter pan” e me recuso a crescer – ou não, tendo em vista que tenho 38 anos e ainda visto basicamente o mesmo tipo de roupa de quando era adolescente, não sou casado, não tenho filhos, vou a shows de rock pesado e barulhento e adoro ficar em casa no sábado à noite lendo revistas em quadrinhos. E tenho sérias duvidas se quero mudar de comportamento, daqui pra frente .