sexta-feira, 28 de junho de 2019

Brizola, que falta faz ...

Leonel Brizola deixou a vida para entrar para história em 21 de junho de 2004, quinze anos atrás. Seu nome é o sino de bronze da luta anti-imperialista que a partir do Brasil abalou o século anterior – o punho erguido de uma Pátria que diz para História: “eis-me aqui”.

Nascido em 22 de janeiro de 1922 em uma família de pobres camponeses em Cruzinha, distrito de Carazinho no Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola era o caçula de uma tradição guerreira. Seu pai, José Brizola lutou ao lado do caudilho Leonel Rocha nos conflitos entre maragatos e chimangos que ensoparam a campanha gaúcha com o sangue da peonada. Ao regressar da guerra, José foi sequestrado e assassinado por soldados inimigos em ato criminoso, praticado depois da assinatura do tratado de paz. Conta Moniz Bandeira que o filho mais jovem de José ganhou seu nome quando, aos dois anos de idade, brandindo uma espada de madeira, disse “eu sou Leonel Rocha!”

Com muita dificuldade, Brizola ingressa em um curso de engenharia em Porto Alegre, trabalhando para se manter na capital gaúcha. É no ocaso do Estado Novo que inicia sua atuação política, no meio da campanha do queremismo, quando Brizola se vê requisitado por vários dos nascentes partidos. Na época ainda sem uma clara definição política, Brizola conta que simpatizava com Getúlio Vargas e Luís Carlos Prestes. Mas não conseguiu se identificar com a petulância dos militantes do PCB, que em suas palavras se “achavam os donos da verdade” e eram extremamente sectários. Igualmente, o PSD, organizado pelos interventores do Estado Novo e representante dos interesses da oligarquia rural e urbana, não o atraiu devido a seu “instinto de classe”.

Na estrutura do PSD, criou-se um Departamento Trabalhista, que deveria acomodar o movimento sindical. No entanto, com aval do ministro do Trabalho Marcondes Filho e do próprio Vargas, os sindicalistas se rebelaram contra essa tentativa e fundaram seu próprio partido, o PTB. Com o PTB em oposição ao governo Dutra do PSD, Brizola a duras penas organizou o partido no Rio Grande do Sul, chegando a conciliar um mandato como deputado estadual com os estudos em engenharia.

O suicídio de Vargas é o episódio-chave na formação de Brizola. O líder trabalhista dizia que seu norte político era a Carta-Testamento de Getúlio, denunciando o íntima ligação da penúria do povo brasileiro com a espoliação internacional do país.

Como governador do Rio Grande do Sul, Brizola enfrentou os monopólio norte-americano da Bond & Share, que controlava o fornecimento de energia elétrica em seu estado. A transnacional se recusava a fazer a expansão que a rede elétrica, imprescindível para o desenvolvimento do estado. Brizola então encampou o serviço público, pagando um cruzeiro pela empresa – valor que correspondia exatamente ao seu valor uma vez computado seu passivo. Também enfrentou a toda poderosa ITT na luta infraestrutura gaúcha, empresa notória por seu patrocínio ao golpe no Chile em 1973. Devido a esses episódios, ficou conhecido “Castro brasileiro” pela mídia estadunidense, atemorizada pela possibilidade do levante de um titã como o Brasil em seu hemisfério.

Ainda como governador, Brizola protagonizou a Campanha da Legalidade em 1961, quando alguns militares tentaram impedir a posse de João Goulart, que se encontrava em missão oficial a China quando Jânio Quadros renuncia. Por meio de apaixonadas transmissões pela Rádio Guaíba, organiza o povo gaúcho, inclusive com a distribuição de armas no que foi a maior e mais intensa mobilização popular da história brasileira. Assim, o povo organizado debela o golpe que se desenhava, embora o Congresso aprove uma emenda instituindo o parlamentarismo, somente para esvaziar a presidência de seus poderes.

Brizola fica até o final de seu mandato em 1963 como governador em vez de se candidatar para algum cargo pelo Rio Grande do Sul, como senador ou deputado federal. Se se candidatasse, seria obrigado a renunciar para se descompatibilizar, como mandava a legislação da época. Permaneceu no cargo para oferecer sustentação ao governo Goulart e à campanha para voltar ao presidencialismo. A organização popular mais uma vez rende frutos e o Congresso Nacional se vê forçado a convocar um plebiscito em janeiro de 1963 a respeito da emenda do parlamentarismo, prontamente derrotada. Neste mesmo ano, Brizola é eleito deputado federal pelo estado da Guanabara – seu último mandato antes do golpe de 1964.

No segundo semestre de 1963, os Estados Unidos apertam o cerco imperialista ao Brasil. O presidente Kennedy restringe o acesso do Brasil a linhas de crédito e adotas outras medidas agressivas para obrigar o país a derrubar a Lei de Remessa de Lucros – projeto de lei do próprio Vargas promulgado por Goulart. Mas a balança de pagamentos brasileira naquela época estava extremamente comprometida pela escassez de dólares, principalmente pela remessa de lucros, que consumia as divisas estrangeiras em posse do Brasil. Por essa razão, o fantasma da inflação assolava o país. Goulart via-se entre a cruz e a espada: ou lutava pelo Brasil ou capitulava para os estadunidenses. Sua opção marca a história brasileira.

Progressivamente isolado ao longo dos primeiros meses de 64 – principalmente depois de propor e em seguida retirar um pedido de estado de sítio em função de uma entrevista de Lacerda para um jornal norte-americano – Goulart faz o famoso comício da Central do Brasil em março daquele ano. O discurso precipita a ala conservadora das Forças Armadas e das montanhas das Minas Gerais desce a tropa de Olympio Mourão Filho para tomar o Rio de Janeiro e depor o governo democrático e popular dos trabalhistas.

Brizola permanece no Rio Grande do Sul para assegurar a posse do general Ladário Pereira Teles como comandante do III Exército. Quando o Presidente da República chega ao estado sulista depois de uma passagem infrutífera por Brasília, o general chega a oferecer o Exército para a defesa do país e da constituição. Não querendo manchar o Brasil com o sangue de tantos filhos em uma luta quase sem chances de vitória, Goulart declina a oferta. Ele e Brizola então fogem para o Uruguai. No exílio, as articulações de resistência de Goulart e Brizola acabam fracassando e os dois ficam por anos sem se falar.

Temido pelas forças antinacionais que haviam se apossado do país em 1964, Brizola ficou 15 anos exilado, um dos maiores períodos de afastamento compulsório registrados. Com o início da abertura “lenta, gradual e segura” do Regime Militar em 1979, os trabalhistas no exílio e no Brasil se encontram em Lisboa, onde assinam uma Carta objetivando a reconstrução do PTB.

Mesmo após tantos anos de exílio, a ditadura não deu trégua a Brizola – o regime moribundo fez de tudo para obstaculizar a campanha de Brizola ao governo do Rio de Janeiro em 1982. Golbery em conluio com o TSE entrega a sigla PTB para Ivete Vargas, somente para atrapalhar a reorganização dos trabalhistas. Aos prantos na Associação Brasileira dos Jornalistas, Brizola rasga um pedaço de papel escrito PTB e rascunha em outro a nova sigla para o velho partido, herdeiro da tradição patriótica de Vargas: PDT.

Ainda na campanha de 1982, Brizola enfrenta a Globo no famoso escândalo da Proconsult, quando a emissora foi cúmplice de uma tentativa de fraude eleitoral para entregar o governo do Rio de Janeiro para Moreira Franco. Os mandatos de Brizola como governador do Rio de Janeiro serão marcados por um forte cunho popular. Junto com Darcy Ribeiro, promove uma revolução na educação do estado com os CIEPs, até hoje referência em política educacional no Terceiro Mundo. Como governador, Brizola teria um papel destacada na campanha pelas Diretas Já em 1984.

A relação com entre o PT e o PDT foi de distância desde as primeiras tentativas de aproximação ainda em 1979. Orientados pelo uspianismo que condenava a tradição varguista e por uma visão pós-moderna da classe trabalhadora, as lideranças do Novo Sindicalismo jamais se aproximaram dos trabalhistas. Mesmo assim, num gesto de grandeza patriótica, Brizola apoia Lula no segundo turno das eleições de 1989, para tentar evitar o desastre que seria o governo Collor – gesto que o próprio Lula foi incapaz de repetir 29 anos depois em 2018, quando sacrificou o país sabotando a campanha de Ciro Gomes para manter a hegemonia petista sobre a esquerda.

O veterano Brizola ainda disputou eleições presidenciais ao longo dos anos 90, depois de um segundo mandato como governador do Rio de Janeiro, sempre condenando o neoliberalismo. Na última eleição, apoiou Ciro Gomes e ao longo do primeiro mandato de Lula, denunciou o caráter neoliberal da gestão petista. Faleceu em 2004, deixando, junto de Vargas, o legado do patriotismo popular brasileiro.

Em todas as suas falas, Brizola denunciava a contradição central do Brasil, que determina o país como um todo: a dependência. Assim como está escrito na Carta-Testamento de Getúlio Vargas, a condição de precariedade do povo brasileiro não pode ser separada da espoliação pelos monopólios internacionais. Brizola era herdeiro da luta de Vargas pela siderurgia em Volta Redonda, a criação da Vale, da Eletrobras, da Petrobras, da Justiça do Trabalho e a estrutura sindical que permitiria a organização de nosso povo.

Em uma fala na UNE em 1961, Brizola disse que “se nada temos com a União Soviética, devemos ter coragem de dizer que nada temos com os Estados Unidos”. O então governador do Rio Grande do Sul se posiciona contra a importação de modelos estrangeiros para o país, tanto a esquerda como a direita. Buscava uma solução brasileira para os problemas brasileiros – ainda que tal solução não prescindisse de um socialismo, mas um socialismo com caráter brasileiro. Neste mesmo discurso, mesmo dizendo que não era inimigo dos Estados Unidos, não deixou de reconhecer que as reformas que o Brasil tanto necessitava obrigatoriamente implicaria em uma modificação nas relações com os EUA.

Ao longo de sua vida, Brizola fez jus a seu sangue guerreiro. Até seu último suspiro, batalhou contra o caráter colonial do Brasil e lutou por sua emancipação. Deixará em todos os brasileiros a eterna dúvida do que poderia ter sido o país se o herdeiro de Vargas tivesse chegado à presidência. Chegou a colocar medo nas grandes corporações estadunidenses, que sabem a ameaça estratégica que o Brasil representa como uma superpotência no hemisfério ocidental. Brizola foi o punho erguido do Brasil ameaçando o domínio dos EUA sobre as Américas.

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