quinta-feira, 16 de julho de 2015

Epa ...

(*) No filme “2001 — Uma odisseia no espaço”, do Stanley Kubrick, astronautas descobrem na Lua (ou era em Marte?) um misterioso monólito, de origem desconhecida. Depois fica-se sabendo que o monólito fora posto ali como uma espécie de alarme. Quando exploradores da Terra o descobrissem, seria o sinal de que nossa civilização tinha os meios para invadir o espaço e se tornava uma ameaça para as civilizações extraterrenas que nos estudavam de longe desde que o primeiro primata acertara a primeira cacetada na cabeça de outro, e sabiam do que nós éramos capazes. A descoberta do monólito era um aviso: atenção, a barbárie vem aí, disfarçada de conquista científica.

Às vezes imagino como seria ser um judeu na Alemanha dos anos vinte e trinta do século passado, pressentindo que alguma coisa que ameaçava sua paz e sua vida estava se formando mas sem saber exatamente o quê. Este judeu hipotético teria experimentado preconceito e discriminação na sua vida, mas não mais do que era comum na história dos judeus. Podia se sentir como um cidadão alemão, seguro dos seus direitos, e nem imaginar que em breve perderia seus direitos e eventualmente sua vida só por ser judeu. Em que ponto, para ele, o inimaginável se tornaria imaginável? E a pregação nacionalista e as primeiras manifestações fascistas deixariam de ser um distúrbio passageiro na paisagem política do que era, afinal, uma sociedade em crise mas com uma forte tradição liberal, e se tornaria uma ameaça real? O ponto de reconhecimento da ameaça não era evidente como o monólito do Kubrick. Muitos não o reconheceram e morreram pela sua desatenção à barbárie que chegava.

A preocupação em reconhecer o ponto pode levar a paralelos exagerados, até beirando o ridículo. Mas não há algo difuso e ominoso se aproximando nos céus do Brasil, à espera que alguém se dê conta e diga “Epa” para detê-lo? Precisamos urgentemente de um “Epa” para acabar com esse clima. Pessoas trocando insultos nas redes sociais, autoridades e ex-autoridades sendo ofendidas em lugares públicos, uma pregação francamente golpista envolvendo gente que você nunca esperaria, uma discussão aberta dentro do sistema jurídico do país sobre limites constitucionais do poder dos juízes... Epa, pessoal.

Se está faltando um monólito para nos avisar quando chegamos ao ponto de reconhecimento irreversível, proponho um: o momento da posse do Eduardo Cunha na presidência da nação, depois do afastamento da Dilma e do Temer.

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(*) O economista francês Thomas Piketty deu uma entrevista à revista alemã “Die Zeit” em que disse, entre outras coisas, que antes de exigir o pagamento a qualquer custo da dívida grega os alemães deveriam lembrar seu passado de devedores. Segundo Piketty, a Alemanha nunca pagou suas dívidas. Cobrou, com a mesma intransigência de agora, a dívida de outros, como a reparação paga pela França com muito sacrifício depois da guerra franco-prussiana de 1870, mas não pagou sua própria reparação depois da Primeira Guerra Mundial. Esta dívida foi perdoada em 1934, o que desmente a tese de que foram as exigências dos vencedores da guerra que levaram a Alemanha, ressentida, a seguir Hitler. Em 34 a Alemanha não foi humilhada, como diz a tese. Foi perdoada. Em 1953, depois da Segunda Guerra Mundial, numa conferência realizada em Londres, decidiu-se perdoar 60% da dívida alemã, uma generosidade muito maior do que a que os gregos estão pedindo agora. Foi este presente que possibilitou à Alemanha derrotada na guerra iniciar o “milagre” que a transformou na potência econômica que é hoje, na posição de mandar na economia de toda a Europa e pregar a austeridade e a “responsabilidade” que ela mesmo exemplifica. Uma superioridade moral conquistada de calote em calote.

Na entrevista, Piketty faz um histórico de dívidas nacionais através dos tempos, mostrando como há várias maneiras de cobrá-las ou equacioná-las além da ortodoxia assassina receitada por Angela Merkel, mais preocupada com a saúde dos bancos credores do que com a saúde de populações inteiras privadas de assistência social pela tal austeridade. O que a Alemanha desmemoriada não admite é que façam como ela fez, e não como ela manda.

* Luis Fernando Verissimo é escritor


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Dois meses antes de o governo Dilma Rousseff anunciar oficialmente o corte de 70 bilhões de reais do Orçamento por conta do ajuste fiscal, uma brasileira foi convidada pelo Syriza, partido grego de esquerda que venceu as últimas eleições, para compor o Comitê pela Auditoria da Dívida Grega com outros 30 especialistas internacionais. A brasileira em questão é Maria Lucia Fattorelli, auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” no Brasil. Mas o que o ajuste tem a ver com a recuperação da economia na Grécia? Tudo, diz Fattorelli. “A dívida pública é a espinha dorsal”.
Enquanto o Brasil caminha em direção à austeridade, a estudiosa participa da comissão que vai investigar os acordos, esquemas e fraudes na dívida pública que levaram a Grécia,segundo o Syriza, à crise econômica e social. “Existe um ‘sistema da dívida’. É a utilização desse instrumento [dívida pública] como veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro”, complementa Fattorelli.
Esta não é a primeira vez que a auditora é acionada para esse tipo de missão. Em 2007,Fattorelli foi convidada pelo presidente do Equador, Rafael Correa, para ajudar na identificação e comprovação de diversas ilegalidades na dívida do país. O trabalho reduziu em 70% o estoque da dívida pública equatoriana.
Em entrevista a CartaCapital, direto da Grécia, Fattorelli falou sobre como o “esquema”, controlado por bancos e grandes empresas, também se repete no pagamento dos juros da dívida brasileira, atualmente em 334,6 bilhões de reais, e provoca a necessidade do tal ajuste.
Leia a entrevista:

CartaCapital:
 O que é a dívida pública?
Maria Lucia Fattorelli: A dívida pública, de forma técnica, como aprendemos nos livros de Economia, é uma forma de complementar o financiamento do Estado. Em princípio, não há nada errado no fato de um país, de um estado ou de um município se endividar, porque o que está acima de tudo é o atendimento do interesse público. Se o Estado não arrecada o suficiente, em princípio, ele poderia se endividar para o ingresso de recursos para financiar todo o conjunto de obrigações que o Estado tem. Teoricamente, a dívida é isso. É para complementar os recursos necessários para o Estado cumprir com as suas obrigações. Isso em principio.
CC: E onde começa o problema?

MLF: O problema começa quando nós começamos a auditar a dívida e não encontramos contrapartida real. Que dívida é essa que não para de crescer e que leva quase a metade do Orçamento? Qual é a contrapartida dessa dívida? Onde é aplicado esse dinheiro? E esse é o problema. Depois de várias investigações, no Brasil, tanto em âmbito federal, como estadual e municipal, em vários países latino-americanos e agora em países europeus, nós determinamos que existe um sistema da dívida. O que é isso? É a utilização desse instrumento, que deveria ser para complementar os recursos em benefício de todos, como o veículo para desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro. Esse é o esquema que identificamos onde quer que a gente investigue.
CC: E quem, normalmente, são os beneficiados por esse esquema? Em 2014, por exemplo, os juros da dívida subiram de 251,1 bilhões de reais para 334,6 bilhões de reais no Brasil. Para onde está indo esse dinheiro de fato?MLF: Nós sabemos quem compra esses títulos da dívida porque essa compra direta é feita por meio dos leilões. O processo é o seguinte: o Tesouro Nacional lança os títulos da dívida pública e o Banco Central vende. Como o Banco Central vende? Ele anuncia um leilão e só podem participar desse leilão 12 instituições credenciadas. São os chamados dealers. A lista dos dealers nós temos. São os maiores bancos do mundo. De seis em seis meses, às vezes, essa lista muda. Mas sempre os maiores estão lá: Citibank, Itaú, HSBC...é por isso que a gente fala que, hoje em dia, falar em dívida externa e interna não faz nem mais sentido. Os bancos estrangeiros estão aí comprando diretamente da boca do caixa. Nós sabemos quem compra e, muito provavelmente, eles são os credores porque não tem nenhuma aplicação do mundo que pague mais do que os títulos da dívida brasileira. É a aplicação mais rentável do mundo. E só eles compram diretamente. Então, muito provavelmente, eles são os credores.
CC: Por quê provavelmente?
MLF: Por que nem mesmo na CPI da Dívida Pública, entre 2009 e 2010, e olha que a CPI tem poder de intimação judicial, o Banco Central informou quem são os detentores da dívida brasileira. Eles chegaram a responder que não sabiam porque esses títulos são vendidos nos leilões. O que a gente sabe que é mentira. Porque, se eles não sabem quem são os detentores dos títulos, para quem eles estão pagando os juros? Claro que eles sabem. Se você tem uma dívida e não sabe quem é o credor, para quem você vai pagar? Em outro momento chegaram a falar que essa informação era sigilosa. Seria uma questão de sigilo bancário. O que é uma mentira também. A dívida é pública, a sociedade é que está pagando. O salário do servidor público não está na internet? Por que os detentores da dívida não estão? Nós temos que criar uma campanha nacional para saber quem é que está levando vantagem em cima do Brasil e provocando tudo isso.
CC: Qual é a relação entre os juros da dívida pública e o ajuste fiscal, em curso hoje no Brasil?
MLF: Todo mundo fala no corte, no ajuste, na austeridade e tal. Desde o Plano Real, o Brasil produz superávit primário todo ano. Tem ano que produz mais alto, tem ano que produz mais baixo. Mas todo ano tem superávit primário. O que quer dizer isso, superávit primário? Que os gastos primários estão abaixo das receitas primárias. Gasto primários são todos os gastos, com exceção da dívida. É o que o Brasil gasta: saúde, educação...exceto juros. Tudo isso são gastos primários. Se você olhar a receita, o que alimenta o orçamento? Basicamente a receita de tributos. Então superávit primário significa que o que nós estamos arrecadando com tributos está acima do que estamos gastando, estão está sobrando uma parte.
CC: E esse dinheiro que sobra é para pagar os juros dívida pública?

MLF: Isso, e essa parte do superávit paga uma pequena parte dos juros porque, no Brasil, nós estamos emitindo nova dívida para pagar grande parte dos juros. Isso é escândalo, é inconstitucional. Nossa Constituição proíbe o que se chama de anatocismo. Quando você contrata dívida para pagar juros, o que você está fazendo? Você está transformando juros em uma nova divida sobre a qual vai incidir juros. É o tal de juros sobre juros. Isso cria uma bola de neve que gera uma despesa em uma escala exponencial, sem contrapartida, e o Estado não pode fazer isso. Quando nós investigamos qual é a contrapartida da dívida interna, percebemos que é uma dívida de juros sobre juros. A divida brasileira assumiu um ciclo automático. Ela tem vida própria e se retroalimenta. Quando isso acontece, aquele juros vai virar capital.  E, sobre aquele capital, vai incidir novos juros. E os juros seguintes, de novo vão se transformados em capital. É, por isso, que quando você olha a curva da dívida pública, a reta resultante é exponencial. Está crescendo e está quase na vertical. O problema é que vai explodir a qualquer momento.
CC: Explodir por quê?
MLF: Por que o mercado – quando eu falo em mercado, estou me referindo aos dealers – está aceitando novos títulos da dívida como pagamento em vez de receber dinheiro moeda? Eles não querem receber dinheiro moeda, eles querem novos títulos, por dois motivos. Por um lado, o mercado sabe que o juros vão virar novo título e ele vai ter um volume cada vez maior de dívidas para receber. Segundo: dívida elevada tem justificado um continuo processo de privatização. Como tem sido esse processo? Entrega de patrimônio cada vez mais estratégico, cada vez mais lucrativo. Nós vimos há pouco tempo a privatização de aeroportos. Não é pouca coisa os aeroportos de Brasília, de São Paulo e do Rio de Janeiro estarem em mãos privadas. O que no fundo esse poder econômico mundial deseja é patrimônio e controle. A estratégia do sistema da dívida é a seguinte: você cria uma dívida e essa dívida torna o pais submisso. O país vai entregar patrimônio atrás de patrimônio. Assim nós já perdemos as telefônicas, as empresas de energia elétrica, as hidrelétricas, as siderúrgicas. Tudo isso passou para propriedade desse grande poder econômico mundial. E como é que eles [dealers] conseguem esse poder todo? Aí entra o financiamento privado de campanha. É só você entrar no site do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e dar uma olhada em quem financiou a campanha desses caras. Ou foi grande empresa ou foi banco. O nosso ataque em relação à dívida é porque a dívida é o ponto central, é a espinha dorsal do esquema.
CC: Como funcionaria a auditoria da dívida na prática? Como diferenciar o que é dívida legítima e o que não é?
MLF: A auditoria é para identificar o esquema de geração de dívida sem contrapartida. Por exemplo, só deveria ser paga aquela dívida que preenche o requisito da definição de dívida. O que é uma dívida? Se eu disser para você: ‘Me paga os 100 reais que você me deve’. Você vai falar: “Que dia você me entregou esses 100 reais?’ Só existe dívida se há uma entrega. Aconteceu isso aqui na Grécia. Mecanismos financeiros, coisas que não tinham nada ver com dívida, tudo foi empurrado para as estatísticas da dívida. Tudo quanto é derivativo, tudo quanto é garantia do Estado, os tais CDS [Credit Default Swap - espécie de seguro contra calotes], essa parafernália toda desse mundo capitalista 'financeirizado'. Tudo isso, de uma hora para outra, pode virar dívida pública. O que é a auditoria? É desmascarar o esquema. É mostrar o que realmente é dívida e o que é essa farra do mercado financeiro, utilizando um instrumento de endividamento público para desviar recursos e submeter o País ao poder financeiro, impedindo o desenvolvimento socioeconômico equilibrado. Junto com esses bancos estão as grandes corporações e eles não têm escrúpulos. Nós temos que dar um basta nessa situação. E esse basta virá da cidadania. Esse basta não virá da classe politica porque eles são financiados por esse setor. Da elite, muito menos porque eles estão usufruindo desse mecanismo. A solução só virá a partir de uma consciência generalizada da sociedade, da maioria. É a maioria, os 99%, que está pagando essa conta. O Armínio Fraga [ex-presidente do Banco Central] disse isso em depoimento na CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] da Dívida, em 2009, quando perguntado sobre a influência das decisões do Banco Central na vida do povo. Ele respondeu: “Olha, o Brasil foi desenhado para isso”. 
CC: Quanto aproximadamente da dívida pública está na mão dos bancos e de grandes empresas? O Tesouro Direto, que todos os brasileiros podem ter acesso, corresponde a que parcela do montante?

MLF: Essa história do Tesouro Direto é para criar a impressão que a dívida pública é um negócio correto, que qualquer um pode entrar lá e comprar. E, realmente, se eu ou você comprarmos é uma parte legítima. Agora, se a gente entrar lá e comprar, não é direto. É só para criar essa ilusão. Tenta entrar lá para comprar um título que seja. Você vai chegar numa tela em que vai ter que escolher uma instituição financeira. E essa instituição financeira vai te cobrar uma comissão que não é barata. Ela não vai te pagar o juros todo do título, ela vai ficar com um pedaço. O banco, o dealer, que compra o título da dívida é quem estabelece os juros. Ele estabelece os juros que ele quer porque o governo lança o título e faz uma proposta de juros. Se, na hora do leilão, o dealer não está contente com aquele patamar de juros, ele não compra. Ele só compra quando o juros chega no patamar que ele quer. Invariavelmente, os títulos vêm sendo vendidos muito acima da Selic [taxa básica de juros]. Em 2012, quando a Selic deu uma abaixada e chegou a 7,25%, nós estávamos acompanhando e os títulos estavam sendo vendidos a mais de 10% de juros. E eles sempre compram com deságio. Se o título vale 1000 reais, ele compra por 960 reais ou 970 reais, depende da pressão que ele quer impor no governo aquele dia. Olha a diferença. Se você compra no Tesouro Direto, você não vai ter desconto. Pelo contrário, você vai ter que pagar uma comissão. E você também não vai mandar nos juros. É uma operação totalmente distinta da operação direta de verdade que acontece lá no leilão.
CC: Por que é tão difícil colocar a auditoria em prática? Como o mercado financeiro costuma reagir a uma auditoria?
MLF: O mercado late muito, mas na hora ele é covarde. Lá no Equador, quando estávamos na reta final e vários relatórios preliminares já tinham sido divulgados, eles sabiam que tínhamos descoberto o mecanismo de geração de dívida, várias fraudes. Eles fizeram uma proposta para o governo de renegociação. Só que o Rafael Correa [atual presidente do Equador] não queria negociar. Ele queria recomprar e botar um ponto final. Porque quando você negocia, você dá uma vida nova para a dívida. Você dá uma repaginada na dívida. Ele não queria isso. Ele queria que o governo dele fosse um governo que marcasse a história do Equador. Ele sabia que, se aceitasse, ficaria subjugado à dívida. Ele foi até o fim, fez uma proposta e o que os bancos fizeram? 95% dos detentores dos títulos entregaram. Aceitaram a oferta de recompra de no máximo 30% e o Equador eliminou 70% de sua dívida externa em títulos. No Brasil, durante os dez meses da CPI da Dívida, a Selic não subiu. Foi incrível esse movimento. Nós estamos diante de um monstro mundial que controla o poder financeiro e o poder político com esquemas fraudulentos. É muito grave isso. Eu diria que é um mega esquema de corrupção institucionalizado.
CC: O mercado financeiro e parte da imprensa costumam classificar a auditoria da dívida de calote. Por que a auditoria da dívida não é calote?
MLF: A auditoria vai investigar e não tem poder de decisão do que vai ser feito. A auditoria só vai mostrar. No Equador, a auditoria só investigou e mostrou as fraudes, mecanismos que não eram dívidas, renúncias à prescrição de dívidas. O que é isso? É um ato nulo. Dívidas que já estavam prescritas. Uma dívida prescrita é morta. E isso aconteceu no Brasil também na época do Plano Brady, que transformou dívidas vencidas em títulos da dívida externa. Depois, esses títulos da dívida externa foram usados para comprar nossas empresas que foram privatizadas na década de 1990: Vale, Usiminas...tudo comprado com título da dívida em grande parte. Você está vendo como recicla? Aqui, na Grécia, o país está sendo pressionado para pagar uma dívida ilegítima. E qual foi a renegociação feita pelo [Geórgios] Papandréu [ex-primeiro-ministro da Grécia]? Ele conseguiu um adiamento em troca de um processo de privatização de 50 bilhões de euros. Esse é o esquema. Deixar de pagar esse tipo de dívida é calote? A gente mostra, simplesmente, a parte da dívida que não existe, que é nula, que é fraude. No dia em que a gente conseguir uma compreensão maior do que é uma auditoria da dívida e a fragilidade que lado está do lado de lá, a gente muda o mundo e o curso da história mundial.
CC: Em comparação com o ajuste fiscal, que vai cortar 70 bilhões de reais de gastos, tem alguma estimativa de quanto a auditoria da dívida pública poderia economizar de despesas para o Brasil?

MLF: Essa estimativa é difícil de ser feita antes da auditoria, porém, pelo que já investigamos em termos de origem da dívida brasileira e desse impacto de juros sobre juros, você chega a estimativas assustadoras. Essa questão de juros sobre juros eu abordei no meu último livro. Nos últimos anos, metade do crescimento da divida é nulo. Eu só tive condição de fazer o cálculo de maneira aritmética. Ficou faltando fazer os cálculos de 1995 a 2005 porque o Banco Central não nos deu os dados. E mesmo assim, você chega a 50% de nulidade da dívida, metade dela. Consequentemente para os juros seria o mesmo [montante]. Essa foi a grande jogada do mercado financeiro no Plano Real porque eles conseguiram gerar uma dívida maluca. No início do Plano Real os juros brasileiros chegaram a mais de 40% ao ano. Imagina uma divida com juros de 40% ao ano? Você faz ela crescer quase 50% de um ano para o outro. E temos que considerar que esses juros são mensais. O juro mensal, no mês seguinte, o capital já corrige sobre o capital corrigido no mês anterior. Você inicia um processo exponencial que não tem limite, como aconteceu na explosão da dívida a partir do Plano Real. Quando o Plano Real começou, nossa dívida estava em quase 80 bilhões de reais. Hoje ela está em mais de três trilhões de reais. Mais de 90% da divida é de juros sobre juros.
CC: E isso é algo que seria considerado ilegal na auditoria da dívida pública?
MLF: É mais do que ilegal, é inconstitucional. Nossa Constituição proíbe juros sobre juros para o setor público. Tem uma súmula do Supremo Tribunal Federal, súmula 121, que diz que ainda que tenha se estabelecido em contrato, não pode. É inconstitucional. Tudo isso é porque tem muita gente envolvida, favorecida e mal informada. Esses tabus, essa questão do calote, muita gente fala isso. Eles tentam desqualificar. Falamos em auditoria e eles falam em calote. Mas estou falando em investigar. Se você não tem o que temer, vamos abrir os livros. Vamos mostrar tudo. Se a dívida é tão honrada, vamos olhar a origem dessa dívida, a contrapartida dela.
CC: Ao longo da entrevista, a senhora citou diversos momentos da história recente do Brasil, o que mostra que esse problema vem desde o governo Fernando Henrique Cardoso, e passou pelas gestões Lula e Dilma. Mas como a questão da dívida se agravou nos últimos anos? A dívida externa dos anos 1990 se transformou nessa dívida interna de hoje?
MLF: Houve essa transformação várias vezes na nossa história. Esses movimentos foram feitos de acordo com o interesse do mercado. Tanto de interna para externa, como de externa para interna, de acordo com o valor do dólar. Esses movimentos são feitos pelo Banco Central do Brasil em favor do mercado financeiro, invariavelmente. Quando o dólar está baixo, e seria interessante o Brasil quitar a dívida externa, por precisar de menos reais, se faz o contrário. Ele contrai mais dívida em dólar. Esses movimentos são sempre feitos contra nós e a favor do mercado financeiro.
CC: E o pagamento da dívida externa, em 2005?
MLF: O que a gente critica no governo Lula é que, para pagar a dívida externa em 2005, na época de 15 bilhões de dólares, ele emitiu reais. Ele emitiu dívida interna em reais. A dívida com o FMI [Fundo Monetário Internacional] era 4% ao ano de juros. A dívida interna que foi emitida na época estava em média 19,13% de juros ao ano. Houve uma troca de uma dívida de 4% ao ano para uma de 19% ao ano. Foi uma operação que provocou danos financeiros ao País. E a nossa dívida externa com o FMI não era uma dívida elevada, correspondia a menos de 2% da dívida total. E por que ele pagou uma dívida externa para o FMI que tinha juros baixo? Porque, no inconsciente coletivo, divida externa é com o FMI. Todo mundo acha que o FMI é o grande credor. Isso, realmente, gerou um ganho político para o Lula e uma tranquilidade para o mercado. Quantos debates a gente chama sobre a dívida e as pessoas falam: “Esse debate já não está resolvido? Já não pagamos a dívida toda?’. Não são poucas as pessoas que falam isso por conta dessa propaganda feita de que o Lula resolveu o problema da dívida. E o mercado ajuda a criar essas coisas. Eu falo o mercado porque, na época, eles também exigiram que a Argentina pagasse o FMI. E eles também pagaram de forma antecipada. Você vê as coisas aconteceram em vários lugares, de forma simultânea. Tudo bem armado, de fora para dentro, na mesma época.
CC: O que a experiência grega de auditoria da dívida poderia ensinar ao Brasil, na sua opinião?
MLF: São muitas lições. A primeira é a que ponto pode chegar esse plano de austeridade fiscal. Os casos aqui da Grécia são alarmantes. Em termos de desemprego, mais de 100 mil jovens formados deixaram o país nos últimos anos porque não têm emprego. Foram para o Canadá, Alemanha, vários outros países. A queda salarial, em média, é de 50%. E quem está trabalhando está feliz porque normalmente não tem emprego. Jornalista, por exemplo, não tem emprego. Tem até um jornalista que está colaborando com a nossa comissão e disse que só não está passando fome por conta da ajuda da família. A maioria dos empregos foram flexibilizados, as pessoas não têm direitos. Serviços de saúde fechados, escolas fechadas, não tem vacina em posto de saúde. Uma calamidade terrível. Trabalhadores virando mendigos de um dia para o outro. Tem ruas aqui em que todas as lojas estão fechadas. Todos esses pequenos comerciantes ou se tornaram dependentes da família ou foram para a rua ou, pior, se suicidaram. O número de suicídios aqui, reconhecidamente por esse problema econômico, passa de 5 mil. Tem vários casos de suicídio em praça pública para denunciar. Nesses dias em que estou aqui, houve uma homenagem em frente ao Parlamento para um homem que se suicidou e deixou uma carta na qual dizia que estava entregando a vida para que esse plano de austeridade fosse denunciado.
por Renan Truffi — publicado 09/06/2015
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Entre as várias faixas empunhadas pelos milhares de manifestantes que saíram às ruas contra o Governo Dilma Rousseff nas grandes manifestações deste ano, uma em particular escandalizou a intelectualidade brasileira: “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”. Enquanto enchiam as redes sociais de textos em defesa do patrono da educação brasileira, que tornou-se referência mundial, professores universitários se questionavam de onde poderia ter saído uma crítica como essa. Se tivessem folheado um dos livros mais vendidos dos últimos tempos no Brasil, topariam com o seguinte questionamento: “Vocês conhecem alguém que tenha sido alfabetizado pelo método Paulo Freire? Algumas dessas raras criaturas, se é que existem, chegou a demonstrar competência em qualquer área de atividade técnica, científica, artística ou humanística? Nem precisa responder. Todo mundo já sabe que, pelo critério de ‘pelos frutos o conhecereis’, o célebre Paulo Freire é um ilustre desconhecido”.
A citação, que é seguida por uma reunião de críticas de estudiosos estrangeiros sobre a Pedagogia do Oprimido, está no artigo "Viva Paulo Freire!", parte de O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (Record), fenômeno de vendas no país, com quase 150.000 exemplares vendidos em menos de dois anos, nas contas da editora. O livro, um dos frutos do pensamento conservador que toma as livrarias brasileiras, reúne artigos publicados em jornais e revistas nos últimos anos pelo filósofo brasileiro Olavo de Carvalho.

Em suas inúmeras postagens nas redes sociais, Carvalho mistura comentários filosóficos e críticas agressivas a petistas, feministas e "gayzistas", entre outros. “Feminista vive de polêmica... é para enganar mulher trouxa, assim como o gayzismo é feito para enganar gay trouxa”, diz em um vídeo. Morador dos  Estados Unidos desde 2005 e professor de um seminário online de filosofia, o filósofo menciona entre seus feitos, em postagem recente, a “quebra da hegemonia intelectual da esquerda, com o meu livro O Imbecil Coletivo e a minha coluna no Globo, abrindo para liberais e conservadores um espaço que lhes era negado desde os anos 80 pelo menos”.

Apesar de ter publicado obras sobre a filosofia de Aristóteles e Schopenhauer, Carvalho é mais conhecido por esses vídeos e debates virtuais, nos quais interage com figuras como o deputado Jair Bolsonaro, em que critica, em meio a palavrões e insultos, aqueles que defendem políticas e condutas progressistas, com atenção especial ao Foro de São Paulo e aos defensores de governos do PT. A postura bélica, que o filósofo considera uma peneira pela qual passariam apenas aqueles dispostos a exercitar o próprio conhecimento, passou a ser replicada nas batalhas das redes sociais, muito alimentadas pelo blogueiro Felipe Moura Brasil, responsável por organizar O mínimo que você precisa saber..., o jornalista Reinaldo Azevedo e o economista Rodrigo Constantino, autor de outro bestseller, o estigmatizante Esquerda Caviar (Record), que vendeu 50.000 exemplares.

Com textos contundentes e ataques pessoais a figuras públicas das quais discordam — como no caso em que Constantino zombou do ativismo social da atriz Letícia Spiller um dia depois de ela ter sido mantida refém por assaltantes —, os arautos virtuais da direita brasileira contribuíram para a popularização de um ideário conservador que ganhou espaço num momento de desgaste do PT. A intensidade figadal com que defendem o Estado mínimo e condenam ativismos em nome de minorias assusta, contudo, a parcela formalmente educada do país, tão acostumada a conceitos consolidados como justiça social ou histórica e a divisão da sociedade entre opressores e oprimidos.

A guerra das redes sociais é a parte mais visível e estridente de um aumento na circulação de ideias conservadoras e libertárias pelo país, incentivada por meio de instituições liberais como o Instituto Millenium e de livros publicados nos últimos anos. Munidos de valores e conceitos opostos ao progressismo, os conservadores brasileiros travam com seus oponentes ideológicos o que o economista austríaco Friedrich Hayek definiu, na década de 1940, em seu O Caminho da Servidão, como a disputa entre os dois valores fundamentais e excludentes da direita e da esquerda: liberdade e segurança, respectivamente. Hayek, expoente da escola austríaca de economia, é um dos pensadores liberais clássicos cuja obra, disponível gratuitamente em sites como o do Instituto Ludwig von Mises Brasil, embasa muito da produção intelectual da direita liberal que inunda as livrarias do país.

Há quem veja no fenômeno de saída do armário dos direitistas uma espécie de fim de ressaca do período da ditadura militar (1964-1985), associada à direita. Há até pouco tempo, nem parlamentares do antigo PFL se diziam de direita, e ninguém no mainstream se arvorava a defender discursos que não envolvessem a palavra desigualdade. Nos últimos anos, parece ter entrado em curto circuito o consenso social que levou à Constituição de 1988, de inspiração social-democrata europeia, com o Estado e os direitos no centro do debate.

Editor de muitas das obras da onda conservadora que toma as livrarias, Carlos Andreazza, da Editora Record, faz uma leitura liberal clássica do sucesso dessa empreitada. "Havia e há uma imensa demanda reprimida, culpa dos cerca de 50 anos em que a produção editorial brasileira excluiu os pensamentos liberal e conservador de suas prensas, por que se recolocassem, com tratamento profissional, as importantíssimas ideias liberais e conservadoras nas prateleiras das livrarias". Andreazza reivindica o pioneirismo na percepção do nicho no país e diz que a Record investiu pesado para se tornar referência e líder nesse mercado.

Segundo o editor, todos os livros do gênero lançados recentemente pela Record são grandes sucessos, "com vendas consistentes e perenes, e com presença nas listas de livros mais vendidos". A editoria lançou recentemente Por trás da Máscara, do passe livre aos black blocs, sobre os protestos de junho de 2013, que já segue para a segunda edição, e Pare de Acreditar no Governo, por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado, com 12.000 exemplares vendidos em menos de dois meses — ambos de inspiração conservadora.


Para Flavio Morgenstern (leia entrevista), autor de Por trás da Máscara, a internet e as redes sociais tiverem um papel fundamental para o renascimento do pensamento de direita no Brasil. Ele argumenta que, pelas redes, o público teve acesso aos grandes intelectuais direitistas, que haviam sido "escorraçados das universidades nacionais por pesquisadores esquerdistas". Não por acaso, autores como o próprio Morgenstern, Alexandre Borges, Gustavo Nogy e Francisco Razzo entraram no radar da Record após se destacar no ambiente virtual.

Morgenstern acredita que, no poder durante os governos Lula e Dilma, a esquerda perdeu muito do prestígio adquirido durante os anos de enfrentamento à ditadura. Prova disso é o sucesso de autores como o jornalista Guilherme Fiuza, autor do recente Não é a Mamãe, reunião de textos com críticas a Dilma Rousseff — segundo Andrezza, "tudo quanto [Fiuza] escreve vende como água no deserto". "Vejo que outras editoras voltam-se agora também para essa janela. É ótimo, pois sugere que talvez retomemos a saúde intelectual, impossível sem equilíbrio", disse o editor ao EL PAÍS.

Andreazza se refere a casas de publicação como a Edições de Rio de Janeiro, que lançou neste ano O mito do Governo Grátis, do economista Paulo Rabello de Castro, e a portuguesa Leya, responsável por publicar livros de autores como o historiador Marco Antonio Villa, especializado em criticar os governos do PT em obras como A década perdida, o filósofo Luiz Felipe Pondé e o jornalista Leandro Narloch, autor do mega-sucesso Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, com mais de 200.000 exemplares vendidos. Já a Três Editorial, do Grupo Folha, lançou recentemente Por que Virei à Direita, escrito por Denis Rosenfield, por Pondé e pelo português João Pereira Coutinho, que também publicou pela editora As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários‬.

Esses livros recuperam e divulgam obras de autores como Hayek e Ludwig von Mises, defensores das liberdades individuais diante do estatismo, e de pensadores como os norte-americanos Thomas Sowell e Eric Hoffer, que apontam os limites e contradições dos ideais progressistas, além do clássico conservador Edmund Burke. Para Bruno Garschagen, autor de Pare de acreditar no Governo, os livros chegam em boa hora, pois o Brasil passa por um momento "propício para o surgimento de intelectuais conservadores" (leia entrevista abaixo). Segundo ele, um dos benefícios é "apresentar à sociedade ideias políticas alternativas e mais adequadas ao Brasil num período histórico em que a esquerda e as demais ideologias intervencionistas dominam a nossa política formal".

Garschagen aposta que "o pensamento conservador político moderno, que não tem nada a ver com isso o que se chama de conservadorismo no Brasil quando se quer insultar políticos como Eduardo Cunha, poderá mudar a nossa cultura política", pois se baseia "na ideia de mais sociedade e menos Estado justamente porque desconfia e rejeita projetos de poder que tornam o Governo o grande agente social, político e econômico". É nisso que o escritor aposta para acabar com o que chama de política centenária do patrimonialismo nacional. "A mudança é possível e terá que vir de baixo para cima", diz. Se ele tem razão, as livrarias, mais do que as redes sociais, são o primeiro front.

por Rodolfo Borges

El País

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“É um erro confundir a insatisfação com Dilma com apoio a sua saída”

Renato Meirelles aprendeu a enxergar o Brasil pelos olhos dos mais pobres. Sua empresa de pesquisa, o Data Popular, nasceu para ler o comportamento desse grupo, que representa, na verdade, a maioria das famílias brasileiras – 66% vivem com pouco mais de 2000 reais mensais. Essa proximidade o ajudou a antecipar diversos movimentos na economia – como a explosão da classe C a partir de 2004 – e na política – ele previu no início de 2013 que haveria uma pressão popular cada vez mais forte por serviços públicos de qualidade, mote das manifestações de junho daquele ano. Neste momento, ele enxerga o jogo de lideranças nebuloso, com um Governo e uma oposição que não conseguem apresentar perspectivas de futuro.
Pergunta. Tivemos uma semana de estresse, com o Congresso desgovernado, e um debate explícito sobre impeachment. Como isso está na cabeça dos brasileiros?
Resposta. A decisão do futuro do país está na mão de uma briga de torcida e o brasileiro percebe isso. Não se pode colocar a estabilidade do país abaixo do interesse político. Ainda que as pessoas estejam insatisfeitas com o Governo elas se perguntam qual é o real interesse de um impeachment. É um erro confundir quem está insatisfeito com o Governo com apoio à saída da Dilma.
P. Os políticos passaram uma sensação de insegurança, o que fez empresários virem a público pedir bom senso e entendimento.
R. Estão todos em busca de um consenso, de entendimento. A fala do Michel Temer – precisamos de alguém que una o Brasil – contribuiu. As demonstrações raivosas, de ira, atiçam os guardiões do bom senso. O nervosismo do Temer ao falar na quarta-feira mostrou que temos de dirigir a classe política. Ninguém enxerga a porta de saída nem na situação nem na oposição, e essa guerra impossibilita o bom senso e prejudica a solução da crise política que paralisa a economia.
P. Nesse flerte com o impeachment, em que a oposição apoia em um momento, recua, volta a apoiar. Como é que funciona para o eleitor?
R. Primeira coisa para entender. Nas pesquisas, quando você pergunta sobre manifestações. “Você lembra de passeatas que aconteceram nos últimos tempos, que juntou muita gente na rua, não só na sua cidade mas no Brasil inteiro? A grande maioria das pessoas lembra de 2013. Estou falando muito mais a classe C e D. Eles não têm as manifestações deste ano como referência. Estamos há meses sem manifestação, porque se tentou radicalizar para o impeachment naquela conjuntura e aí foi perdendo força. Por que estamos voltando com isso agora? Porque além da Lava Jato ter ganhado novas proporções, do ponto de vista da comunicação com a opinião pública o Governo não fez nada para explicar, por exemplo, o ajuste fiscal e a crise econômica. A última passeata [de abril] teve menos gente do que a penúltima [março] e isso deixou uma sensação de que as coisas estavam resolvidas para o Governo. E não estavam, como não estão resolvidas desde 2013. Pensar no que levou as pessoas a reelegerem este Governo é fundamental pra entender o que a população quer e acredita. E o Governo tinha que ter aprendido. Por outro lado, a oposição tinha que refletir em como ela conseguiu perder uma eleição em que 71% queriam mudança. O que também não é uma coisa trivial...
P. A oposição não está conseguindo ganhar o terreno que o Governo está perdendo?
R. Se uma pesquisa de intenção de voto mostra, por exemplo, que o senador Aécio Neves estaria na frente se a eleição fosse hoje, é muito mais por ser o nome mais conhecido de oposição. Ele é o ímã dos insatisfeitos. Mas está longe de conquistar o coração e mente de pessoas. Muito mais longe de conquistar as pessoas que estão órfãos do presidente Lula.
P. Temos muitos órfãos?
R. Temos mais órfãos do que oposicionistas.
P. Órfãos do Lula?
R. Órfãos de uma liderança que defenda o estado de igualdade de oportunidades.
P. A raiva contra Dilma é somente pela economia?
R. Se a gente for olhar alguns dos grandes indicadores econômicos como desemprego, como reservas internacionais. Ou a escolaridade média do trabalhador. Na prática nós temos indicadores melhores hoje do que tínhamos antes, em 2008, por exemplo, ano de outra grande crise. O que diferencia os dois momentos? É não saber para onde estamos indo. O Brasil tem uma crise econômica? Evidente que tem. É só sair na rua. O Brasil tem uma crise moral e ética? Claro que tem. São as maiores do Brasil? Não. A maior crise do Brasil é a de falta de perspectiva. O brasileiro não sabe para onde vai e não consegue enxergar nem na situação nem na oposição, uma luz no fim do túnel. Isso que vai fazer diferença em todo o resto. No limite, o Lula chamava para conversar, como em 2008 “Ah meu amigo. Estão dizendo  pra você guardar o seu dinheiro e não gastar. Se você não gastar, o seu primo que trabalha na fábrica Brastemp vai ficar desempregado...”
P. A lição popular de economia...
R. O governo tinha um reason why forte para essa condição de futuro. Só que ele está desde o segundo turno sem falar ou fazer algo que caminhe nesse sentido, enquanto o povo está fazendo seu ‘ajuste fiscal’ doméstico: rodízio de contas pra pagar, bico extra, cortando despesas... Não se explicou o que era o ajuste fiscal. E um monte de medidas que efetivamente poderiam ser muito positivas, não foram vistas por dessa forma por causa disso. Por exemplo, fraude no seguro desemprego. O seguro desemprego precisava mudar não por causa do ajuste fiscal. Por causa das fraudes!
P. O fato da Dilma não ter pedido desculpas, dizendo “erramos ao estender uma fórmula de economia”, pesa?
R. Temos que entender o que é a tradição cristã do Brasil. Os cristãos valorizam quem reconhece o erro. O Brasil valoriza quem joga limpo e pede ajuda. Seria muito bom que a Dilma conseguisse falar para a sociedade que reconhece o que as pessoas estão passando. Isso seria bom pra ela, e seria bom para o país. Do mesmo jeito que a oposição tinha de dizer claramente qual a proposta dela para sair deste momento.
P. O que é pior para a população da base da pirâmide: Lava Jato ou é a inflação que comeu o salário dele?
R. A gente tem pesquisado muito esse assunto no Data Popular. E basicamente vemos que a corrupção acaba sendo vista como a grande responsável pelo aumento de preços, por exemplo... por que a gasolina aumentou? Na cabeça do povo a gasolina aumentou porque tinha roubo na Petrobras e nós estamos pagando esse roubo com o aumento da gasolina.
P. Embora não seja exatamente essa lógica, não é de todo errado, se falarmos da gestão da empresa...
R. O meu negócio é percepção da opinião pública. A corrupção acabou sendo a grande vilã de tudo. Mas vamos pegar o histórico. Em 2013, passeatas, porque a régua de qualidade, de exigência dos que recebiam serviço público, tinha mudado. Eles haviam saído de 2010 com uma perspectiva de melhora de vida gigantesca, e a ela não estava mais melhorando. E os governos, de todos os níveis, não perceberam essa mudança. Mas o brasileiro pensava: “Eu estou fazendo a minha parte e o governo não está fazendo a dele”. Depois veio a Copa. E na sequência, o processo eleitoral mais pesado, e a percepção que a crise começou a crescer. A gente começou o processo eleitoral com 71% dos eleitores querendo mudança. O que aconteceu depois? Eu desafio qualquer brasileiro a me dizer cinco medidas positivas que o governo fez depois do segundo turno.
P. A base da pirâmide faz panelaço?
R. Faz. Primeiro entenda a eleição. Por primeira vez em muitos anos a classe C rachou. Os jovens da classe C estão indo para a oposição. E os mais velhos vão mais para a situação. O panelaço é a demonstração de insatisfação. Ele aconteceu muito mais em áreas ricas do que pobres? Sim. Isso significa que não acontece na periferia? Não é verdade. Agora, panelaço é a representação física da intolerância. Porque significa que você não quer ouvir, você só quer brigar.
P. Uma proposta de impeachment vai adiante?
R. Impeachment é um processo legal, logo, não é golpe. Mas é político. Portanto, sujeito a influências políticas, perspectivas de poder, e arranjos internos. Sujeito a negociações como moeda de troca por alguém estar sendo investigado pela Procuradoria. Podemos não ter abertura de processo de impeachment por uma questão legal, ou como abraço dos afogados do presidente da Câmara. Nesse jogo político tudo cabe. Achar que a população que diz defender impeachment não pode ser influenciada com o debate é um erro.
P. Em outras palavras, a batalha do impeachment está longe de ser ganha?
R. Completamente longe. Nem para um lado e nem para o outro. É a raiz da crise de perspectiva. Quando a gente coloca a seguinte questão em pesquisas – Quando eu falo futuro, qual é a palavra que aparece? As pessoas ficam em silêncio.
P. Quando você fazia essa mesma pergunta alguns anos atrás, quais eram as respostas?
R. Sempre era: ver meu filho se formar, ser dono do meu negócio, eu me formar. Conseguir viajar para o exterior, ter minha casa. Hoje há silêncio. E depois de um tempo respondem: incerteza, escuridão. Porque não tem perspectiva. O impeachment do Collor havia perspectiva. Não era só revolta. Este não tem. E a oposição não conseguiu formar quadros com a visão de ser um estadista. Um líder de verdade capaz de oferecer perspectiva de futuro. O maior erro da oposição é o que fortalece o Lula. Ele fica como a única opção efetiva. Agora, não é o Lula que xinga imprensa. Mas o que olhar pra frente, responsável pelas maiores mudanças do pais.
P. Um encontro entre Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseffseria revolucionário nos dias de hoje?
R. Os dois ganhariam, sem medo de errar. O brasileiro não suporta mais político que age como candidato, estão buscando estadistas. Quem ocupar esse papel ganha o eleitorado.
P. Como São Francisco de Assis, “onde houver ódio que eu leve o amor”, e “ onde houver dúvidas que eu leve a fé”?
R. É basicamente um discurso de identidade. Por que o papa Francisco tem essa popularidade? Os políticos deveriam se inspirar na postura dele, de redução de desigualdade e defesa dos mais pobres. É o que o Brasil quer.
P. Mas e essas teses sobre fim de Bolsa Família, o discurso pela meritocracia, está restrito a um grupo pequeno, ainda que barulhento?
R. Toda vez que os movimentos de protesto de rua defendem meritocracia sem levar em conta a diferença de oportunidades, tratando pobre como vagabundo, defendendo Estado mínimo, ou quando alguém usa meme na internet, com adesivo ofensivo com a Dilma de pernas abertas, eles perdem. Quando eles dizem que o imposto dele paga o BF não está certo. Quem paga mais imposto, proporcionalmente, é a classe baixa. A elite tem dificuldade de entender, tanto no Brasil, como na América Latina, que houve melhora, com projetos de redução de desigualdade. E radicalizações de discurso não são positivos. A classe C não racionaliza o ganho de oportunidade. Ela só sabe que ganhou algumas coisas nos últimos anos, que teve oportunidades, que nunca antes imaginou em ter.
P. A ideia de um Estado que dá igualdade de direitos é um valor claro na cabeça do brasileiro?
R. O valor de defesa da igualdade de oportunidades está absolutamente claro para pelo menos dois terços do eleitorado brasileiro.
P. Ou seja, se o PMDB que está em evidência agora, com planos de lançar presidente. Se ele não oferecer isso, ele não se elege?
R. Se ele não oferece, mas os outros também não oferecem, talvez ele pode ter uma candidatura boa. Não depende só dele. Eleição é um jogo do que está sendo afetado. Agora que esse é um valor consagrado, é. Esse valor hoje é identificado com algum partido político? Não, nem com o PT.
P. Há um divórcio dos partidos?
R. A classe política não entendeu o recado de 2013. Empurrou esse não entendimento até hoje e agora tudo estourou. Qual é o recado número um? Minha régua de qualidade é outra, sou mais criterioso com o que espero do Estado. Mas o principal recado não foi esse. O principal recado foi a classe política não me representa. Os partidos políticos não me representam. Isso já refletia uma ausência de perspectiva. Isso parte de um entendimento de que o Lula, depois de anos e anos foi o primeiro político que conseguiu gerar identidade do povo. As pessoas gostavam e muitos gostam ainda do presidente Lula por duas razões. Ele tinha um reason why concreto do governo dele, então ele fez coisas que efetivamente melhoraram a vida das pessoas. Se era conjuntura internacional, se eram ações próprias do governo é um longo debate, eu acho que eram as duas coisas. E tinha um fator emocional, que ‘ele veio de baixo, ele sabe o que eu sofro, ninguém me entende como ele me entende’. E tudo isso foi elevado à vigésima potência em 2010 com a economia bombando e com maior índice de popularidade do Lula. As pessoas foram perdendo essas referências. 2013 estourou e nenhum partido político fez um conjunto de ações para trazer essas pessoas a voltarem a gostar da política organizada. Para mostrar que o Estado estava a serviço do cidadão. Na prática, isso foi o que levou ao Fla-Flu político. Ninguém acredita que os políticos que apoiam o impeachment da presidente Dilma o querem para melhorar a vida do povo.
P. Por isso não há identidade com as manifestações deste ano?
R. As manifestações de 2013 tinham a ver com discussões do cotidiano. E estas estão mais com uma coisa de disputa eleitoral, mais com o Fla Flu político. Não entendem como uma manifestação pode ser no domingo, e não em dia de semana como ele já viu. E não entende gente de classe média levando a babá, ter ‘camarote’ na passeata. Então não tem um lastro com a vida real das pessoas.
P. Não se pode dizer que as manifestações atuais representam o Brasil?
R. Representam os 20% mais ricos. Isso não quer dizer que o restante do Brasil esteja satisfeito. Mas os decepcionados são em número maior dos que radicalmente oposicionistas. Quando as pesquisas perguntam: você apoia as manifestações? Todo mundo apoia, diz ‘sou a favor’. Mas isso não dura 30 segundos de reflexão. E aí na pesquisa qualitativa, eles não sabem quem entraria melhor, sem proposta de futuro.
P. Vamos supor que houvesse uma eleição agora. Se um sucessor de Dilma não entregar perspectiva de futuro, ele corre o risco de viver o mesmo inferno que ela?
R. Claramente. Para mim, o maior termômetro de qualquer crise é quando as coisas mudam numa velocidade tão rápida que o que discutimos hoje pode não valer na semana que vem. Se tivesse uma eleição hoje, vamos supor, se fosse aquele modelo o mais difícil de acontecer: Impeachment completo e novas eleições. A chance de um novo, de alguém desconhecido aparecer, é muito maior. O momento é esse. Com alguém em tese sem nenhum tipo de vínculo, de lastro. Tudo isso muda? Tudo isso muda, campanha é campanha. Agora, a pauta da oposição é o antipetismo. Mas não é antipetismo que ganha a eleição, é uma discussão de futuro.
P. O que os analistas políticos repetem é que o objetivo central é matar o mito Lula. Conseguiram?
R. Quem primeiro entendeu a força do Lula foi o ex-presidente Fernando Henrique. Se você pegar os os artigos que ele escreveu no início do ano, todos eram ‘é o Lula, é o Lula.’ Porrada na Dilma todo dia, e ele diz: “Vocês não estão entendendo, é o Lula”. O Lula tem força.
P. Mas perde ibope?
R. Claramente. A popularidade dele cai por conta dos ataques, mas cai também por ele não aparecer. Estão batendo em um jogador que está no banco. Objetivamente qual a última entrevista que o presidente Lula deu?
P. Agora, você disse que o Brasil só quer consenso mas o Lula entrou no jogo do Fla-Flu quando ele fica falando de rico contra pobre e começa a falar que os petistas estão sendo tratados como judeus, não?
R. Mantenho o que disse antes. Qualquer radicalização é ruim, inclusive a dele. A gente fez uma pesquisa no Data assim: o que você acha de um político que fala mal do outro? Ele está querendo esclarecer alguém disso? Pouquíssimo. Ele está querendo o lugar do outro político? 80% respondem que sim. Quando um político critica outro, ele pode até desgastar o seu adversário, mas não ganha nada. Pelo contrário. A sua rejeição aumenta.
P. Com qual liderança há vínculo emocional por parte do povo?
R. O único político com real lastro emocional com a população é o Luiz Inácio Lula da Silva.
P. Nem Aécio?
R. O Aécio tem para parte do eleitorado dele uma alternativa de mudança. Muito mais inflacionado pelo antipetismo do que uma identificação com ele. A pessoa que gera identificação ainda é o Lula. As pessoas comentam que nas últimas pesquisas o Lula tinha 30% de intenção de voto, quando ele sempre aparecia no topo. Eu digo: sem dar nenhuma entrevista em quase um ano, tomando porrada todo dia, ele ainda tem 30% dos votos. E por que as pessoas não gostam do Lula agora? Porque esse é o Lula raivoso e o que eles sentem saudade é do Lula paz e amor, de 2002, é do Lula que passa a mão na cabeça e fala 'vamos vencer, vai na minha, eu sei o que você está passando. Eu sei o que é passar fome, eu sei o que é dar o que seu filho está pedindo'. É desse Lula que as pessoas têm saudade.
P. O que o brasileiro médio pensa do Eduardo Cunha?
R. Não sabe quem é. Eles acham que é mais nessa confusão de políticos. Que ora ele faz alguma coisa que as pessoas defendem, a maioria da população defende, como a redução da maioridade penal, ora faz algo que eles não sabem direito o que significa..
P. E o Congresso como é visto?
R. É tudo igual. A mesma percepção que começou em 2013 e que a classe política não foi capaz de mudar, de que político é tudo igual. Isso é tão sério, porque isso gera um vício de origem na critica política. Por que o tema corrupção hoje é mais importante do que foi na eleição? Ninguém fez essa pergunta né? Porque o tema da corrupção sai de um debate da sociedade civil, da opinião pública e da imprensa. Na eleição saía de outros candidatos. Quem são os outros candidatos? São políticos e se é político, é ladrão. Na opinião pública.
P. Você está mais para pessimista, realista ou otimista com o país?
R. Com o Brasil, otimista. Porque o povo é foda, transforma limão em limonada, não vai parar de comer o churrasco no domingo, o brasileiro quer sonhar. Ele sabe que esta não é a primeira nem a segunda crise que vai passar. Temos hoje uma população mais empoderada, mais escolarizada, que sabe seus direitos de cidadão, de consumidor. Escolaridade maior, sonha em ter o filho da universidade. Vai ser com dor, sofrimento, não vai ser fácil, mas o povo brasileiro é foda...
por Carla Jiménez

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(#) Os governantes da Europa que retornaram de Bruxelas a suas capitais, após a maratona de negociações que manteve a Grécia na zona do euro, com enorme custo para a soberania política do país, definiram um novo cenário político para o continente. Ele é ameaçador. Ao forçar o governo de Alexis Tripras a uma rendição abjeta – ignorando os pedidos de alguns de seus vizinhos, em particular a França – a Alemanha exerceu com estrondo, talvez pela primeira vez após a reunificação, seu poder no palco europeu.
Desde que o Syriza, partido grego de esquerda, foi eleito, em janeiro, sobre uma plataforma de acabar com as políticas de “austeridade” impostas pela União Europeia (UE), tornou-se óbvio que Angela Merkel, a chanceler alemã e governante de facto da Europa, reteve a chave que permitiria resolver a crise. Por duas vezes nos últimos meses – primeiro em março e depois na semana passada – expressei a esperança de que a chanceler ultrapassasse a ideologia econômica conservadora alemã, uma espécie de “ordoliberalismo”, e os preconceitos germânicos contra os europeus do Sul. Ele poderia conceber uma solução que, embora obtendo concessões significativas do governo grego, preservasse os ideais de comunalidade e solidariedade que supostamente sustentam a UE. Tragicamente, a chanceler foi incapaz de corresponder ao desafio

Ao invés de adotar o manto de uma estadista europeia, ela colocou-se ao lado de seu ministro de Finanças linha-dura, Wolfgang Schäuble, forçando Atenas a rastejar diante de seus credores, sob pena de deixar a zona do euro – uma opção à qual a sociedade grega se opunha. Agora que Tsipras voltou a Atenas, ele enfrenta a tarefa indesejável de persuadir o parlamento grego a aprovar o que talvez seja o acordo mais impositivo e invasivo entre uma nação avançada e seus credores desde a Segunda Guerra Mundial. Se o Parlamento grego recusar a ceder ao acerto, o país não receberá mais dinheiro, seu governo será forçado a dar calote em mais empréstimos, seus bancos entrarão em colapso e ele será forçado a lançar sua própria moeda.

Uma declaração de seis páginas emitida na tarde de segunda-feira pelos governantes da zona do euro estabeleceu os termos da rendição grega. O documento foi redigido em termos que parecem escolhidos para infligir humilhação máxima sobre Tsipras e seus companheiros do Syriza. Tome-se, por exemplo, o papel de um dos credores da Grécia, o Fundo Monetário Internacional (FMI), que muitos gregos culpam pelas políticas de “austeridade” impostas como condições, nos empréstimos de 2010 e 2012. Nas últimas duas semanas, à medida em ia sendo forçado a recuar em todos os pontos, Tsipras insistiu que, sob um novo acordo, a Grécia poderia ao menos ver o FMI pelas costas. Ao contrário. A declaração frisa que quando estados-membros da zona do euro requerem assistência do Mecanismo de Estabilidade Europeu (ESM, em inglês – um fundo de resgate, baseado em Luxemburgo e estabelecido em 2012), eles estão obrigados a pedir ajuda ao FMI. “Esta é uma pré-condição para que o eurogrupo aceite um novo programa do ESM”, diz o texto, e prossegue: “Portanto, a Grécia requerirá apoio contínuo do FMI (monitoramento e financiamento) a partir de maço de 2016”.

E sobre a reestruturação da vasta dívida grega, que Tsipras também queria tornar parte do acordo? A declaração diz que o eurogrupo (essencialmente, os ministros de Finanças da eurozona) aceitam considerar a sustentabilidade da dívidas, mas apenas após a implementação, pela Grécia, dos termos do novo empréstimo, para satisfação das “instituições” que irão supervisioná-lo – ou seja, a temida “troika”, que reúne o Banco Central Europeu (BCE), a Comissão Europeia e o FMI.

“O eurogrupo permanece pronto a considerar, se necessário, possíveis medidas adicionais, visando assegurar que as necessidades de financiamento [da Grécia] permanecerão em nível sustentável”, diz a declaração. “Estas medidas estarão condicionadas à completa implementação das medidas a serem acordadas num possível novo programa, e serão consideradas após a primeira conclusão positiva de uma revisão”. Mesmo neste caso, as ações a ser consideradas serão modestas. “O encontro do euro frisa que reduções nominais da dívida não podem ser adotadas”, prossegue o texto.

Os credores aceitaram algum recuo num único aspecto. Modificaram ligeiramente uma proposta que obrigará a Grécia a transferir ativos nacionais avaliados em 50 bilhões de euros para um novo fundo de privatização, com sede fora da Grécia, administrado por estrangeiros e encarregado de leiloar bens pela melhor oferta. Quando o tema emergiu, no sábado, num documento interno do ministro das Finanças alemão que vazou, houve quem enxergasse a imposição como um objeto de barganha, suscitado para forçar concessões do Syriza em outras áreas.

De maneira alguma. Nas negociações da madrugada, entre Merkel, Tsipras, o presidente francês François Hollande e o presidente do Conselho Europeu, Donal Tusk, a chanceler alemã teria dito que o fundo era uma das “linhas vermelhas” da qual não recuaria. Sob pressão dos franceses e gregos, os alemães aceitaram ao final que localizar o fundo de privatização fora da Grécia seria uma humilhação muito extrema. Insistiram, no entanto, no essencial. A declaração emitida na segunda esclarece que o fundo terá sede em Atenas e será “gereniado pelas autoridades gregas, sob supervisão das Instituições Europeias relevantes”.

Exceto por esta mínima concessão, os gregos foram submetidos a uma lição cruciante sobre o funcionamento de uma zona monetária que, para muitos países europeus, converteu-se em camisa de forças. Os alemães têm as chaves dos cadeados que trancam as correias. No combativo estilo que o tornou famoso, Yanis Varoufakis, o ex-ministro das Finanças grego descreveu o acordo como um “novo tratado de Versalhes” e ligou-o a um “golpe de Estado”.

Tal linguagem deveria se usada com cuidado, ao descrever um continente que assistiu a tanto conflito, extremismo e ditadura. Não houve uma guerra, e a Grécia ainda é uma democracia. Mesmo agora, o parlamento grego tem poderes para rejeitar o acordo e coordenar uma retirada grega do euro (NOTA DO BLOG: Mas não rejeitou, aprovou. Ontem, quarta-feira, dia 15/07/2015). De fato, uma das críticas que podem ser feitas a Tsipras e Varoufakis é que eles não desenvolveram mais seriamente a opção de uma saída, durante os cinco meses que gastaram em disputas com os credores da Grécia. Apesar de todos os riscos e dificuldades que acompanhariam tal escolha, ela ofereceria o perspectiva de permitir à Grécia, ao fim, libertar-se e seguir seu próprio caminho.

Mas se o que aconteceu durante o fim de semana não equivale exatamente a um golpe, foi uma exibição rude de poder, por parte da Alemanha e uma lembrança apavorante da lógica impiedosa de uma união monetária dominada por credores e economia pré-keynesiana. Nas palavras de Paul De Grawe, um conhecido economista belga que ensina na London School of Economics, um “alicerce do futuro modo de governo” da zona do euro foi cimentado no fim de semana: “Submeta-se aodomínio alemão ou saia”. Nos próximos anos e décadas, a Alemanha corre o risco de descobrir que muitos europeus preferirão a segunda opção.

Por John Cassidy | Tradução: Antonio Martins


#  John Cassidy é um jornalista anglo-norte-americano que trabalha na revista The New Yorker e contribui com a The New York Review of Books. Foi editor do jornal The Sunday Times of London. Formou-se na Universidade de Oxford e tem mestrado em jonalismo e economia. É autor do livro "Dot.con: The Greatest Story Ever Sold", e "How Markets Fail: The Logic of Economic Calamities".

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Grécia e União Europeia: de derrotas humilhantes e vitórias pírricas




É muito curioso que as cúpulas políticas da União Europeia (UE) e seus tradicionais porta-vozes, os políticos, economistas e a grande imprensa que, durante décadas, sustentou e defendeu esse projeto, não deram mostras de alegria e confiança pela ordem irreversível ter sido mantida com a derrota humilhante ao governo e ao povo da Grécia.

O primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, foi derrotado e submetido a um “sacrifício ritual” pelo ministro alemão de Finanças Wolfgang Schäuble, que age como o “guardião do templo” de um fundamentalismo de mercado que é a verdadeira natureza da UE, que não tolera o menor desvio ou interpretação do dogma.

Fora esses guardiães do templo, ninguém na UE parece realmente feliz ou satisfeito com essa vitória esmagadora. Basta dar uma olhada no que muitos crentes do euro descreveram na “grande imprensa” – o que faremos mais adiante – para compreender que esta foi uma vitória pírrica, e que se o [partido] Syriza e o povo grego foram derrotados e humilhados, foi com o elevadíssimo preço de expor o sistema antidemocrático da UE, sua rigidez institucional e o insensato dogmatismo que levou, inclusive, a criar um mecanismo de negociação sem existência legal – o Eurogrupo – para “asfixiar mentalmente” (mental waterboarding) os representantes governamentais dissidentes, neste caso de um governo que unicamente procurava proteger seu povo das brutais políticas de austeridade que vem sofrendo dia após dia, ano após ano, e de renegociar uma dívida pública ilegal e impagável.

Não é menos curioso que nestes momentos a derrota humilhante da Syriza não seja vista por muitas forças da esquerda como o que na verdade é: uma complexa e difícil experiência que além das suas consequências negativas está carregada de ensinos positivos e de objetivos políticos a curto e longo prazo, tanto pelas lideranças políticas do campo popular como para os povos.

A trágica experiência vivida pelo Syriza confirma que o sistema do fundamentalismo de mercado da UE não pode ser mudado jogando as regras do jogo; nesse sentido, essa experiência política deveria ser vista como o divisor de águas político e ideológico das lutas populares para recuperar a soberania nacional e popular, para lutar contra o sistema neoliberal totalitário da UE e do imperialismo em geral, um sistema que já mostra os primeiros sinais de caminhar para o colapso.

Nesse momento tão difícil, talvez porque no caso grego haja uma humilhação insuportável frente à “máfia” da UE, é que pessoalmente não posso tirar da minha cabeça que depois da terrível derrota no ataque ao Quartel Mocada, que muitos interpretaram como o fim da experiência “aventureira” para derrotar a ditadura mafiosa e pró-imperialista de Fulgencio Batista em Cuba, Fidel Castro não apenas se defendeu com seu discurso A História me Absolverá, mas com ele proporcionou as armas políticas e ideológicas para prosseguir e ampliar a luta para recuperar a soberania e a dignidade do povo, até alcançar a vitória final poucos anos mais tarde.

Não se trata de seguir o exemplo de Cuba, mas de saber que há derrotas que, bem assimiladas, conduzem a vitórias reais dos povos. 

Como a “vitória” da UE é vista nos grandes meios de comunicação?

A capitulação do primeiro-ministro grego Alexis Tsipras ante a União Europeia foi inevitável desde o momento no qual o Eurogrupo, sob a batuta de Schäuble, colocou na mesa que se não existia rendição total e incondicional, a Grécia seria expulsa da zona do euro. Foi a partir desse momento e em condições de legalidade duvidosa, como veremos mais adiante, que o ditado de condições substituiu a negociação e que se selou tanto o destino imediato do governo e o povo da Grécia, mas também o da UE.

Prova de que o “catalisador” grego funcionou, acelerando o processo de trazer à luz a verdadeira natureza da UE, são as nunca antes vistas reações dos meios de comunicação, agências e jornais de grande tiragem.

No Irish Times, por exemplo, um artigo expressa que atormentar a Grécia é como enviar uma mensagem de que agora estamos vivendo uma nova UE. “A UE como a conhecemos acabou durante o final de semana. O projeto da UE era sobretudo uma convergência gradual de nações iguais em direção a uma “união mais próxima”. Isso terminou (...) tanto que a instituição coercitiva chegou a um estado de divisões profundas. Não há maior divisão que (a existente) entre quem é castigado e os castigadores” (1).

Sobre a ameaça de uma expulsão da Grécia da zona do euro o diário irlandês aponta que “a longo prazo importa menos que essa ameaça não tenha sido levada adiante que o fato de que tenha sido feita e considerada aceitável. Depois de isso ter acontecido, todos os projetos europeus irreversíveis se tornam reversíveis, e o irrevogável se torna revogável”, e sobre a “disciplina financeira” baseada internacionalmente em que todas as dívidas devem ser pagas, o diário aponta que é duvidosa, “considerando que, em março, o FMI, quase sem alvoroço, anunciou um pacote financeiro para um país europeu (Ucrânia) que é de longe mais corrupto, instável e oligárquico que a Grécia”.

Em “Pontos de Vista” da agência Bloomberg, Clive Crook escreve que “este desastre pertence à Europa”, que o “acordo” ao qual a Grécia teve de se submeter, e a maneira como foi obtido, põe em questão o julgamento da totalidade do projeto europeu: “a saída do sistema euro tem sido agora contemplada pela Alemanha e por outros países, e não como horrível, senão como um remédio para ser aplicado deliberadamente. Isso não pode ser desaprendido. Seguirá como uma ameaça contra a Grécia: também pour encourager les autres”, como se diz.

E Crook completa que “essa crise demonstrou a impressionante incapacidade da UE para governar. A disfunção dos últimos meses tem sido uma educação, pelo menos para mim. A indecisão patológica foi institucionalizada (...). A UE está presa em um terreno médio insustentável. A moeda comum torna necessária uma união política mais estreita, a forma como o sistema funciona torna impossível uma união política mais estreita. Não escutamos o último dos ‘exit’ (2).

“Já é suficiente: a Grécia deve deixar o sistema do euro”, diz um artigo dos editores da agência Bloomberg, no qual apontam que “os termos impostos ao primeiro-ministro Alexis Tsipras no final de semana passado têm poucas possibilidades de serem aceitos, aplicados e sustentados pelo governo grego ou seus sucessores. O Parlamento grego talvez os aceite porque pensa que a alternativa é pior – e no curto prazo isso talvez seja verdade. No longo prazo, um acordo imposto sob uma dureza extrema e amargamente ressentido pelos gregos não será um êxito. A confiança colapsou a ponto de que se disse à Grécia que ela deve se transformar em uma colônia da UE, que não é uma Estado soberano (...).

Não importa o que aconteça nas próximas semanas, a Grécia pode terminar saindo do sistema do euro. Uma saída agora será dolorosa, certamente. Os riscos para o restante da Europa não são pequenos. Mas a Grécia estará pelo menos comandando seu próprio futuro, sem ter de culpar alguém por seus problemas. Quanto mais rápido isso acontecer, melhor será” (3).

Um editorial do diário canadense Globe and Mail, intitulado “Culpem Berlim: Por que o acordo com a Grécia está condenado ao fracasso?”, afirma que um dos mais preocupantes aprendizados do que aconteceu nas negociações é que a “zona do euro, agora vemos, não é realmente uma união monetária. Seu membro mais forte, a Alemanha, pode ameaçar os membros mais fracos a impedi-los de usar (o euro) e a tirar proteção. Se Berlim não gosta das suas políticas fiscais, pode empurrar essas economias para o caos. A perda de membros da zona do euro era até há pouco um perigo que os políticos europeus queriam evitar a todo custo; agora se transformou em uma oportunidade de chantagear que não se pode deixar passar. Isso parece uma vitória completa para a Alemanha, para a chanceler Ângela Merkel e o ministro de Finanças Wolfgang Schäuble. A longo prazo, a destruição da economia da Grécia talvez sirva de embasamento para uma Europa mais unificada, dirigida pela Alemanha. Ou talvez marque o momento em que começa a se desfazer o largo movimento em direção a uma integração da Europa. A Alemanha teve a sua grande vitória sobre a Grécia; é muito provável que cedo ou tarde se provará que foi pírrica” (4).

Por sua vez, nada menos que o FMI, um dos membros da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI) reconfirma que a receita aplicada a Grécia é insustentável. Em seu resumo “Análise preliminar sobre a sustentabilidade da dívida”, do dia 14 de julho de 2015 (relatório público 15/186) que segue o documento similar do FMI de junho passado, diz o seguinte: a dívida pública da Grécia se transformou em muito insustentável. Isso é devido às políticas de alívio do último ano, para as quais contribuíram no último ano a recente deterioração macroeconômica no plano doméstico e no âmbito financeiro pelo fechamento do sistema bancário (corralito), o que contribuiu significativamente para uma dinâmica adversa. O financiamento necessário até o final de 2018 é agora de 85 bilhões de euros e a dívida chegará a 200 por cento do PIB nos próximos dois anos, sempre que haja um acordo cedo em um programa. A dívida da Grécia somente pode agora ser sustentável por meio de medidas que vão muito além do que (a UE) está disposta a aceitar até o momento”.

Guardião do templo e diretor da orquestra

A capitulação era previsível, assim como a humilhação e as pressões às quais Tsipras foi submetido nas reuniões depois que o “diretor da orquestra” do Eurogrupo, o ministro alemão Schäuble, exigiu que para continuar com as “negociações” que o ministro grego de Finanças, Yanis Varoufakis, fosse substituído (5).

Um a um os véus que protegiam os olhos europeus da feia nudez da UE foram caindo nessa “negociação” na qual a Grécia foi obrigada a capitular sob a ameaça de ser expulsa da zona do euro, e o primeiro véu a cair foi o de que todos os países são iguais e se negocia respeitosamente: “nos puseram uma faca na garganta”, disse Alexi Tsipras, enquanto Varoufakis disse que “negociou com uma pistola” na têmpora. Para que Tsipras aceitasse “entregar a soberania” de seu país – disseram “alegremente os funcionários de UE, foi submetido a um mental waterboarding” (uma asfixia mental), reporta o diário Irish Times (nota 1);

Outro dos véus que caiu é a resposta que Varoufakis recebeu quando pediu que o Eurogrupo lhe dissesse qual era a base legal da ameaça de expulsão da Grécia da UE, que tinha recebido um pouco antes. Varoufakis, em entrevista ao NewStatesman (ver nota 5) disse que não teve resposta porque os especialistas da UE lhe disseram que o Eurogrupo não tem existência legal, pode dizer e fazer o que lhe dá vontade e não deixa rastros porque não guarda as minutas das discussões.

Tsipras, ou seja, o governo de Syriza amparado por um referendo bem sonoro, tinha ousado pedir mudanças sensatas a esse fundamentalismo neoliberal da UE: reduzir as políticas de austeridade e renegociar parte da dívida externa que justifica tais políticas para aliviar o fardo do desemprego e da pobreza aguda que está esmagando o povo grego, e poder ter desenvolvimento econômico para pagar as dívidas.

Em artigos anteriores dizíamos (6) que, com esse pedido, a Grécia seria o catalizador que aceleraria a tomada de decisões e aprofundaria o sistema de “governança” destinado a aplicar a pauladas as políticas da Troika e eliminar definitivamente qualquer vestígio de soberania nacional e popular. E que o Syriza e o referendo de 5 de julho despiriam a verdadeira e horrível natureza de UE, e assim aconteceu.

Isso é agora amplamente reconhecido e sujeito às análises, comentários e opiniões dos grandes diários do mundo ocidental, a imagem da UE é agora clara, precisa e aterrorizante, o que de passagem é bom saber na Nossa América em um momento de persistente retorno das iniciativas de certos países em celebrar acordos de livre comércio com a UE.

Por que era importante despir a UE? Porque a vitória humilhante e tipicamente imperial da UE contra a Grécia, pequeno povo em uma região de muitos povos também esmagados pela austeridade do dogma neoliberal e pela utopia monetária do euro (que tanto se parece ao padrão ouro, de triste memória) demonstra de forma clara e precisa o que já muitos alertavam, que não há nem haverá alternativas econômicas, sociais e políticas favoráveis às maiorias populares dentro da UE em seu formato atual, que foi cuidadosamente criado para ser o que é, e não outra coisa, e que o “sono europeu” se transformou em “o pesadelo europeu”.

As possíveis consequências das derrotas humilhantes

Frente à capitulação de Tsipras, as primeiras reações foram bastante decepcionantes e não faltaram os que o qualificaram de traidor, como se tivesse tido outra alternativa a não ser entrar na arena e tourear. Mas não demoraram a surgir nos movimentos populares, sindicais e partidos políticos de muitos países europeus um forte sentimento de repúdio generalizado às políticas da UE, um chamado à solidariedade com o Syriza e o povo grego, e à resistência e ao combate contra as políticas da UE.

Sobre a visão que o povo grego tem agora da UE, Stathis Kouvelakis, da Plataforma de Esquerda – um dos componentes do Syriza – disse a Jacobin (7), que tinha recebido uma mensagem de um camarada dizendo que “era verdade que o governo do Syriza tinha conseguido fazer que a UE seja muito mais odiada pelo povo grego que tudo o que (outras formações de esquerda) tinham conseguido conquistar em 20 anos de retórica contra a UE”.

Na realidade, o Syriza, como a maioria das esquerdas da UE que nasceram do “eurocomunismo” dos anos 80, jogavam (agora creio que é necessário escrever esse verbo no passado) com uma “possível” mudança de UE “realmente existente” por via de negociações, pressões políticas e eleições nacionais para transformá-la em uma “Europa Social” com economias capitalistas regulamentadas.

Por isso não figurava, no programa do Syriza, uma saída do euro, e também porque o povo grego não favorecia essa opção. As opiniões mudaram? Os próximos dias e semanas nos dirão, ainda que esse passo não seja uma simples declaração que possa ser feita sem antes um grande, extenso e bem planejado preparativo.

Por quê? Pela simples razão de que a UE, por via dos Tratados, da pressão do Bundesbank e do BCE, da Alemanha, para dizer de forma mais curta, e das diretivas dos burocratas para completar o controle total, desenhou a criação do euro a partir da monopolização da emissão da moeda e da política monetária dos países membros, ou seja, demolindo tudo o que poderia tornar possível um “retrocesso” às soberanias nacionais e populares. A imprensa que imprima os Dracmas não existe mais, como disse Varoufakis.

Dito em termos mais militares, a UE, sob a direção da Alemanha de Ângela Merkel, ao esmagar o pequeno e inofensivo povo grego, ganhou uma batalha que semeou dúvidas sobre a direção a “guerra” e os meios utilizados para esmagar a Grécia. Dois aliados importantes de Berlim, Paris e Roma estão endividados e politicamente asfixiados pelas políticas de austeridade, e podem se ver submetidos à “asfixia mental” do Eurogrupo. Ao mesmo tempo, a Alemanha criou mais inimigos potenciais em outros povos europeus que também podem ser vistos dentro de pouco tempo na situação atual da Grécia. Que é isso, senão uma “vitória pírrica”?

Inversamente, a humilhante derrota que nesta batalha o Syriza sofreu pela inevitável tarefa de buscar como diminuir o fardo de medidas de austeridade e começar a renegociar a impagável dívida, é talvez o catalizador do processo de tomada de consciência popular e nacional que faça com que o sofrido povo grego decida resistir enquanto continua lutando por uma volta à verdadeira soberania nacional e popular.

Por último, talvez valha a pena reproduzir aqui alguns parágrafos do que os canadenses da esquerda radical, Leo Panich e Sam Gindin, escrevem da Grécia e para a esquerda internacional, com o título “Tratando o Syriza de forma responsável”: apesar das caracterizações que nos últimos dias alguns da esquerda radical fizeram sobre o Syriza, “os partidários do neoliberalismo deixaram claro que eles acreditam que o Syriza não era um típico partido socialdemocrata no qual pudesse confiar que se acomodaria com o neoliberalismo. Na verdade, eles veem claramente que o Syriza é um partido de esquerda com o socialismo em seus genes, e um que, apesar de todas as limitações de continuar pertencendo à UE, continuará desafiando o capitalismo europeu e global.

“O conteúdo exato do acordado entre o Syriza e a liderança da UE será examinado nos próximos dias e a reação do partido daqueles que o apoiaram no referendo será avaliada. Esperamos que o Syriza possa se manter unido uma vez que é a mais eficiente nova formação política surgida na esquerda europeia nas décadas recentes. O papel responsável da esquerda internacional é apoiar isso, enquanto continua afirmando as debilidades do partido em termos de capacidade para construir redes de solidariedade de forma a criar planos econômicos alternativos regionalmente, para que (os gregos) possam trabalhar em relações sociais transformadas. Isso é o que realmente importa, e que não será menos crucial inclusive com uma saída do euro. O potencial disso será abordado no futuro. Dada nossa própria debilidade nesse sentido e enquanto presenciamos como todo esse drama se desenvolve, pedimos uma considerável paciência e modéstia da esquerda internacional. (8)

(*) Alberto Rabilotta é jornalista argentino-canadense. Artigo originalmente publicado na Agencia Latinoamericana de Información

(**) Tradução: Kelly Cristina

Notas:
1.- http://www.irishtimes.com/opinion/tormenting-greece-is-about-sending-a-message-that-we-are-now-in-a-new-eu-1.2283593

2.- http://www.bloombergview.com/articles/2015-07-13/europe-owns-this-disaster

3.- http://www.bloombergview.com/articles/2015-07-13/greece-should-just-quit

4.- http://www.theglobeandmail.com/globe-debate/editorials/blame-berlin-why-the-greek-debt-deal-is-doomed-to-fail/article25489080/

5.- Trechos do que Yanis Varoufakis, o ministro de Finanças da Grécia obrigado a renunciar a pedido do Eurogrupo, disse ao NewStatesman (http://www.newstatesman.com/world-affairs/2015/07/yanis-varoufakis-full-transcript-our-battle-save-greece):
Pergunta: Qual é o maior problema com a maneira geral do funcionamento do Eurogrupo?
Varoufakis: (como exemplo) houve um momento no qual o presidente do Eurogrupo decidiu agir contra nós e efetivamente nos silenciar, e tornou público que a Grécia estava essencialmente na via de saída da zona do euro... Há uma convenção que os comunicados devem (obter) a unanimidade, e que o presidente não pode convocar uma reunião da zona do euro e excluir um Estado membro. E ele me disse: “Oh, não estou certo disso”. Então pedi uma opinião legal. Isso criou um pouco de nervosismo. Por uns 5 a 10 minutos a reunião parou, com empregados e funcionários falando uns com outros, por telefone e, eventualmente um funcionário, algum especialista legal, se dirigiu a mim e disse as seguintes palavras, que “bom, o Eurogrupo não existe na lei (da UE), não há Tratado no qual esteja conveniada (a formação) desse grupo”. Então, o que temos é um grupo não existente que tem os maiores poderes para determinar as vidas dos europeus. Não deve se reportar a ninguém (ou organismo algum) porque legalmente não existe; não são feitas minutas; e tudo é confidencial. Então nenhum cidadão poderá jamais saber o que se diz no interior (do Eurogrupo)... Essas são decisões de quase vida ou morte, e nenhum membro tem de responder a alguém.

NewStatesman: E esse grupo é controlado pelas atitudes da Alemanha?

Varoufakis: Completa e absolutamente. Não pelas atitudes (mas) pelo ministro de Finanças da Alemanha. É como uma orquestra muito bem afinada e ele é o diretor. Tudo acontece de forma afinada. Haverá momento nos quais a orquestra está desafinada, mas ele a reúne e a afina novamente.

NewStatesman: Não há um poder alternativo dentro do grupo, o (ministro) francês podem se opor a esse poder?

Varoufakis: Somente o ministro da Fazenda (francês) provocou ruídos que foram diferentes da linha (estabelecida pela) Alemanha, mas esses ruídos foram muito sutis. Uma pessoa poderia sentir que ele deveria utilizar uma linguagem muito prudente, para não parecer que se opunha. E na análise final, quando o Doc Schäube respondia e efetivamente determinava a linha oficial, o ministro francês sempre se dobrava e aceitava.

6.- O catalisador grego http://www.alainet.org/es/active/80771 ; A lição de democracia do catalisador grego http://www.alainet.org/es/articulo/170722 ; O povo grego despiu a verdadeira natureza da UE http://www.alainet.org/es/articulo/170941

7.- https://www.jacobinmag.com/2015/07/tsipras-varoufakis-kouvelakis-syriza-euro-debt/

8. - Leo Panich e Sam Gindin: Tratando SYRIZA Responsavelmente http://links.org.au/node/4507





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O Homem capital




O economista francês Thomas Piketty chegou a Washington no domingo 13 de abril para uma semana de palestras em alguns dos mais importantes centros de pesquisa sobre políticas públicas dos Estados Unidos. Sua visita também poderia ter sido anunciada como uma volta olímpica pela Costa Leste. Lançada havia menos de cinco semanas, a tradução inglesa de seu novo livro, O Capital no Século XXI – 700 páginas de um rigor formidável sobre a história da riqueza –, tinha acabado de entrar para a lista dos mais vendidos do New York Times. Antes mesmo da publicação, um punhado de resenhas do livro e um grande burburinho na internet produziram uma transformação na imagem de Piketty: de pesquisador respeitado na área da distribuição de renda, ele virou um pensador de alto calibre que, armado de enorme quantidade de dados e gráficos – e de uma habilidade com as palavras incomum entre economistas –, se propunha a pôr abaixo décadas de sabedoria convencional sobre a desigualdade, por meio de uma análise inédita do passado.

A revista The Economist declarou que o livro de Piketty poderia “revolucionar o modo como as pessoas enxergam a história econômica dos últimos dois séculos”, e deu início a um grupo de leitura online, a fim de discuti-lo capítulo por capítulo. A também britânica Prospect acrescentou Piketty a sua lista anual de pensadores mais influentes do mundo ocidental, e comentou-se que seu livro circulava pelo gabinete de Ed Miliband, o líder do Partido Trabalhista inglês. Documentaristas começaram a competir pela oportunidade de transformar o livro em filme, e um compositor pediu a bênção do autor para transformá-lo numa ópera.

Agora, à maneira de um herdeiro de Tocqueville hábil no manejo de gráficos e fórmulas matemáticas, o francês de 43 anos tinha ido dizer aos americanos como salvar o que ele chamou de “ideal igualitário dos pioneiros” de uma “tendência à oligarquia” potencialmente devastadora. Sua unção foi tanto mais notável na medida em que, com seu livro, ele não pretendeu apenas apresentar um novo ponto de vista sobre a desigualdade, mas também repreender duramente a economia como disciplina, em particular em sua vertente norte-americana.

Na segunda-feira, dia 14, a agenda de Piketty incluía o Conselho Econômico da Casa Branca, o Government Accountability Office, órgão do Congresso americano que audita gastos do governo, e o gabinete do secretário do Tesouro, Jacob Lew, que o convocou para uma reunião particular com o intuito de discutir a proposta do francês de um imposto progressivo sobre a riqueza. Na terça, Piketty apareceu em companhia de dois prêmios Nobel de Economia: George Akerlof, que ao apresentá-lo a um grupo no Fundo Monetário Internacional declarou que ele era “o mais próximo que um economista pode chegar de uma estrela do rock”; e Robert Solow, que, no Instituto de Política Econômica – onde uma multidão de centenas de pessoas enfrentou um aguaceiro gelado para ouvi-lo falar –, louvou a originalidade da argumentação de Piketty e “a própria coleta, apresentação e análise” dos dados, prevendo que “vamos passar um bom tempo digerindo tudo isso”.

Piketty encarou o estardalhaço com um sorriso modesto. Vestia um paletó cinza, sem gravata, e, com seu cabelo escuro aparado, o rosto redondo e limpo e uma postura despretensiosa, sugeria menos um astro de rock que um estudante muito empenhado de pós-graduação. Falando por 45 minutos sem parar e sem a ajuda de notas, num inglês ágil, Piketty expôs com zelo suas descobertas. “Os mais ricos ficam de 6 a 7% mais ricos a cada ano, uma velocidade que é três vezes maior que a da economia mundial”, disse ele no Instituto de Política Econômica. “Ninguém sabe onde isso vai parar.”



A aparente simplicidade da tese de Piketty dissimula sua ousadia: a desigualdade é intrínseca ao capitalismo e, se não for combatida com vigor, é provável que ela cresça – e cresça a níveis que ameaçam nossa democracia e bloqueiam o crescimento econômico. Karl Marx fez previsões bem mais sombrias – a desigualdade largada à própria sorte conduziria, em última instância, ao colapso social –, e Piketty toma o cuidado de distanciar seu ponto de vista daquele do apocalipse previsto por Marx. Ainda assim, sua tese caminha na contramão da teoria econômica estabelecida, que postula que a desigualdade tende a diminuir, de acordo com um processo conhecido como “convergência”.

Segundo Piketty, que recolheu dados relativos a renda e riqueza que se estendem por três séculos e vinte países, as forças que propiciam a convergência (a disseminação do conhecimento e da qualificação, por exemplo) são consideráveis, mas, de modo geral, as que provocam divergência levaram a melhor. O cerne de seu argumento resume-se a uma fórmula de simplicidade enganosa: r > g – onde “r” representa a taxa média anual do retorno obtido pelo capital (ou seja, lucros, dividendos, juros e renda de imóveis) e “g”, a taxa de crescimento econômico. Ao longo de grande parte da história moderna, sustenta Piketty, a taxa de retorno obtida pelo capital ficou entre 4 e 5%, ao passo que a taxa de crescimento tem sido bem mais baixa, entre 1 e 2%. (Piketty é convincente ao argumentar ser improvável que o crescimento econômico, que depende em boa parte do crescimento populacional, venha a se acelerar radicalmente em qualquer outra parte do mundo que não seja a África, considerando-se as tendências demográficas atuais.) É daí que ele aduz “a principal força desestabilizadora do capitalismo”: sempre que r > g, “o capitalismo automaticamente gera desigualdades arbitrárias e insustentáveis, que minam de forma radical os valores meritocráticos nos quais se assentam as sociedades democráticas”.

Em outras palavras: numa economia de crescimento lento, a riqueza acumulada cresce mais depressa que a renda proveniente do trabalho. Assim, os ricos, já detentores da maior parte da riqueza, se tornarão mais ricos, enquanto o resto, que depende sobretudo da renda obtida com seus empregos, terá sorte se conseguir acompanhar a inflação. Hoje, r > g na maioria dos países do mundo desenvolvido, incluindo os Estados Unidos, onde os 10% mais ricos detêm mais de 50% da renda nacional. Se Piketty estiver certo, os Estados Unidos podem estar se tornando rapidamente o pior caso em escala mundial. Por todo o Ocidente, escreve ele, “os níveis de desigualdade crescem a uma taxa insustentável em longo prazo, o que deveria preocupar até os mais ardorosos defensores do mercado autorregulável”. (No quadro traçado por Piketty, o mercado autorregulável é, por definição, um regime do r > g: “Quanto mais perfeito o mercado de capitais” – como o entendem os economistas –, “maior é a probabilidade de r ser maior que g.”) Impressionado com essa justaposição de r e g, Solow comentou: “Que eu saiba, ninguém atentou para isso antes.”

A exceção digna de nota ao reinado do r > g é o período que se estende de 1945 a 1970, a chamada “época de ouro” do capitalismo, também conhecida como “a grande compressão”, em que as economias da Europa Ocidental e dos Estados Unidos se expandiram e a desigualdade diminuiu. Não é por acaso, Piketty sugere, que esse período deu origem ao credo otimista da disciplina econômica moderna: o livre mercado gera dividendos para todos. Esse mantra, ele insiste, baseia-se numa ilusão. Vista em seu contexto histórico, a “era de ouro” revela-se uma aberração – uma exceção passageira ao sombrio domínio do r > g. Duas guerras mundiais e a Grande Depressão, acompanhadas por uma tributação “confiscatória” imposta aos ricos para pagar pelo esforço da guerra, reduziram bastante muitas fortunas familiares, diminuindo, assim, temporariamente a diferença entre as classes alta e baixa. Enquanto a teoria da convergência afirmou que a desigualdade descreve uma curva em forma de sino, declinando à medida que a economia amadurece, Piketty descobriu que acontece o contrário: a desigualdade no século XX descreve uma curva de sino invertida – isto é, em forma de U –, cuja escalada íngreme não mostra agora nenhum sinal de arrefecimento.

Deslumbradas, ao que parece, com os argumentos apresentados no livro, poucas resenhas mencionaram o ataque que ele contém à economia como disciplina. O desdém de Piketty, no entanto, é inequívoco; ele se revela no lamento de um estudioso há muito afastado do núcleo central e estabelecido de sua profissão. “Há tempo demais”, escreve ele, “os economistas têm buscado se definir com base em seus métodos supostamente científicos. Na verdade, esses métodos se apoiam no emprego desmesurado de modelos matemáticos que, com frequência, nada mais são que uma desculpa para marcar terreno e mascarar o vazio do conteúdo. Um excesso de energia foi e continua sendo gasto em especulações puramente teóricas, sem uma demarcação clara dos fatos econômicos que se tenta explicar e dos problemas sociais e políticos que se tenta resolver.”



O primeiro artigo publicado por Piketty apareceu no Journal of Economic Theory em 1993, quando ele tinha 22 anos. O artigo consistia em um modelo matemático para a definição da melhor tabela possível de imposto de renda. Continha abundantes referências à teoria dos jogos, ao ótimo de Pareto e aos equilíbrios bayesianos[1]. Estudante precoce de matemática, Piketty entrara para uma escola de elite, a École Normale Supérieure de Paris, aos 18 anos; ao fazer 22, tinha um PhD em economia e ofertas de emprego do MIT, de Harvard e da Universidade de Chicago. “Estavam muito entusiasmados porque eu era uma máquina de provar teoremas, e eles gostavam disso”, me disse. Escolheu o MIT e se mudou para Cambridge, no estado de Massachusetts, onde permaneceu apenas dois anos.

Piketty gostava de morar nos Estados Unidos e dos colegas do MIT, e achava estimulante dar aulas para estudantes de pós-graduação, a maioria mais velha que ele. “Eu estava muito feliz, mas, ao mesmo tempo, achava que tinha alguma coisa estranha acontecendo”, ele contou. O problema, Piketty logo concluiu, era que ele “não sabia coisa nenhuma de economia”.

Thomas Piketty continuou publicando fórmulas sobre distribuição de renda, mas se perguntava cada vez mais como era a desigualdade no mundo real. Como ela se desenvolvera ao longo do tempo? “Percebi que havia muitos dados à disposição que nunca tinham sido usados de forma sistemática”, conta. Como estudante, ele interessara-se tanto por história e sociologia como por economia, e admirava a obra de Pierre Bourdieu, Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss. Seus pais, que nunca terminaram o colégio, tinham participado dos protestos estudantis de 1968 e, ainda adolescente, Piketty passara um verão trabalhando para o avô, “um empresário com uma ética capitalista muito forte” que tinha uma pedreira nas proximidades de Paris. Mas influência ainda maior em seu desenvolvimento, ele acredita, veio dos acontecimentos dramáticos no Leste Europeu. No ano em que entrou na École Normale, caiu o Muro de Berlim, e, ao se formar, também a União Soviética já havia desmoronado. “Para mim, a pergunta natural e importante era: o que podemos dizer sobre desigualdade e justiça social e sobre a dinâmica da distribuição no regime capitalista? Por que é que em determinado momento as pessoas acharam que o comunismo era necessário?”

Os colegas de Piketty demonstravam pouco interesse pela pesquisa histórica. “O que achei bastante surpreendente no MIT foi que, às vezes, havia um nível de arrogância inacreditável em relação a outras disciplinas das ciências humanas”, afirma. “No caso da distribuição de renda, que era o que me interessava, quase não dispúnhamos de fatos históricos que conhecêssemos bem. Achava muito espantoso o abismo entre a autoconfiança dos economistas e os feitos reais de seu ofício.”

Ou, nas palavras de Branko Milanovic, entusiasta de primeira hora do livro de Piketty e especialista do Centro de Estudos de Renda da City University de Nova York (CUNY): “Os modelos matemáticos têm essa coisa estéril; não se baseiam na realidade, e sim naquilo que alguém imagina ser o comportamento das pessoas. A economia perdeu o gosto pelas grandes questões. Mergulhamos em questões minúsculas, e o exemplo extremo disso é o livro Freakonomics,[2] que trata do comportamento de lutadores de sumô e da razão pela qual traficantes de drogas moram com a mãe. Temos 25% de desemprego na Espanha, e vamos discutir lutadores de sumô?”



Em certo sentido, críticas à disciplina não são nenhuma novidade. Economistas, uma gente muito falante, parecem ocupar espaço desproporcional na blogosfera e gastam um bocado de tempo em acalorados debates metodológicos. Em uma briga muito comentada ocorrida no mês de março, Paul Krugman e Lars P. Syll, economista da Universidade de Malmö, na Suécia, postaram visões divergentes sobre o modelo IS-LM,[3] que há décadas tem sido o esteio da teoria macroeconômica. Syll descartou o modelo como um “dispositivo de uma tolice brilhante”. Krugman o defendeu como “uma simplificação da realidade, projetada para facilitar a compreensão de certas questões específicas, um modelo que, desde 2008, tem, sim, cumprido seu papel com brilhantismo”. (Numa postagem posterior a respeito do assunto, Krugman foi mais circunspecto: “A gente deve usar modelos, mas também deve se lembrar de que são modelos e sempre tomar cuidado com conclusões que dependam demais das premissas simplificadas.”)

Ainda assim, trocar farpas online é uma coisa; outra, bem diferente, é alguém apresentar sua magnum opus como ato de sublevação metodológica. Piketty deixa claro:O Capital no Século XXI é sua ideia de como um estudo de economia deveria ser, ou seja, é preciso combinar análises de questões macro (crescimento) e micro (distribuição de renda); o trabalho deve estar fundado em abundantes dados empíricos e entremeado de referências sociológicas, históricas e literárias; e deve, ainda, economizar na matemática. Em sua escala e em seu alcance, o livro lembra as obras fundadoras da economia clássica: Ricardo, Malthus e Marx, a cujo tratado sobre o capitalismo o título de Piketty alude. A extensa literatura recente sobre vários aspectos da desigualdade mal é mencionada. “Tem uma boa quantidade de trabalhos empíricos por aí”, diz James K. Galbraith, da Universidade do Texas, que estuda desigualdade salarial e publicou na revista Dissent uma das poucas resenhas céticas a respeito do livro de Piketty até o momento. “Ele tende a citar com deferência pensadores do mainstream e ignora as críticas já feitas a esses economistas.”

Romances de Jane Austen, Balzac e Henry James, por outro lado, têm um segmento só para si no livro. Piketty chega ao ponto de extrapolar de uma leitura atenta de um romance de Balzac, O Pai Goriot, um fenômeno que chama de “dilema de Rastignac”, referindo-se ao fato de que, ao longo de todo o século XIX, unir-se pela via do matrimônio a uma família detentora de riqueza herdada constituía rota muito mais segura para uma vida confortável que tentar subir na vida por meio do talento próprio, da educação e do trabalho duro. Hoje, escreve Piketty, séries de tevê em horário nobre, como House, Bones e The West Wing, “são estreladas por heróis e heroínas carregados de diplomas e altas qualificações” e parecem celebrar “uma desigualdade justa, baseada no mérito, na educação e na utilidade social das elites”. Mas isso, afirma ele, não passa da expressão fantasiosa de um desejo: o número das heranças gigantescas caiu desde a Belle Époque e, no entanto, na Europa – assim como, em menor grau, nos Estados Unidos – o montante da riqueza herdada retornou ao nível daquela época. Na visão de Piketty, isso tem o efeito de distorcer nossa democracia.

Não há dúvida de que a eloquência acessível do livro tem beneficiado sua recepção. Ao destacar-lhe a veia irônica, um crítico já comparou as notas de Piketty às do historiador inglês Edward Gibbon. (Um típico comentário: “Entre os membros desses grupos de maior renda estão acadêmicos e economistas norte-americanos, muitos dos quais acreditam que a economia dos Estados Unidos está funcionando razoavelmente bem e, em particular, que ela recompensa o talento e o mérito de maneira correta e precisa.”) Mas Piketty foi favorecido também por um timing excelente.



Depois de deixar o MIT, em 1995, ele voltou a Paris e passou os três anos seguintes nos arquivos que ficam no porão do Ministério das Finanças francês, coletando e selecionando dados relativos a renda, herança e legislação tributária em pastas caindo aos pedaços. O resultado dessa pesquisa foi o livro Les Hauts Revenus en France au XXe Siècle: Inégalités et Redistributions, 1901–1998 [As rendas altas na França do século XX: desigualdades e redistribuição, 1901–1998]. Foi nele que, pela primeira vez, Piketty identificou a curva em forma de U que descreve a desigualdade na França do século passado. Ele diz que não teria escrito o livro se tivesse ficado no MIT, ou pelo menos não antes de obter uma cátedra vitalícia. “Eu quis voltar à França porque queria ficar mais perto de historiadores e sociólogos”, conta. “Meu sentimento era o de que, se ficasse no MIT, teria incentivos muito fortes para continuar fazendo aquilo em que eu era bom, ou seja, teoremas matemáticos.”

Piketty enviou esse primeiro livro a Anthony Atkinson, eminente estudioso da desigualdade de renda que trabalhava na Universidade de Oxford e é, desde então, seu colaborador. Atkinson propôs que ele estendesse seus estudos a outros países. Piketty retornou ao MIT por um semestre em 2000 e, enquanto estava lá, recrutou um então estudante de pós-graduação em economia, Emmanuel Saez, para colaborar com ele num estudo de dados de renda dos Estados Unidos. Outros estudiosos da distribuição de renda tendiam a se basear sobretudo em pesquisas domiciliares, em que o próprio pesquisado fornecia a informação. Piketty se valeu das declarações de imposto de renda, que, introduzidas em 1913, oferecem um quadro bem mais exato da renda no topo da pirâmide.

Ele não foi o primeiro a usar esses dados. Simon Kuznets, autor na década de 50 da influente teoria de que a desigualdade tendia a declinar, também se baseou em declarações de imposto de renda. Seus dados, porém, cobriam apenas o período de 1913 a 1948 – quando a desigualdade caiu. O próprio Kuznets foi mais cuidadoso quanto ao valor de sua “curva de Kuznets” – em forma de U invertido – do que muitos de seus seguidores, segundo Piketty influenciados pela geopolítica da Guerra Fria.

“Quando a competição entre os modelos soviético e capitalista era muito forte, as pessoas no Ocidente queriam muito acreditar que economias de mercado eram capazes de reduzir a desigualdade e equilibrar a distribuição de renda e da riqueza”, Piketty me disse.

Com modéstia característica, ele sugeriu que sua principal vantagem como economista foi ter pertencido a uma geração para a qual “o conflito entre comunismo e capitalismo na verdade não existe mais”. Contudo, para muitos dos discípulos de Kuznets o fim da União Soviética parece ter reforçado sua crença. Em 2011, um comitê de economistas de ponta elegeu o artigo de 1955, em que Kuznets apresentou sua famosa curva, um dos vinte textos mais influentes já publicados na American Economic Review.

A inovação de Piketty foi expandir o trabalho de Kuznets para outras décadas e outros países, numa época em que a maioria dos economistas, quando se baseava em dados empíricos, concentrava-se em algumas poucas décadas e, de modo geral, em salários, e não em riqueza. Ou então obtinha seus dados por intermédio de amostras controladas, e não pela via da pesquisa histórica. “O que é de fato bastante estranho é que ninguém tenha feito isso antes”, diz Piketty sobre a abrangência de sua análise. “É história demais para os economistas, e economia demais para os historiadores. Uma espécie de terra de ninguém em termos acadêmicos.”

Em 2003, Piketty, então catedrático da École des Hautes Études en Sciences Sociales, e Emmanuel Saez publicaram suas descobertas sobre a desigualdade de renda nos Estados Unidos. Mais uma vez, os dados indicavam uma curva em U ao longo do século XX. (Se a análise de ambos subestimou alguma coisa, diz Piketty, foi a taxa de desigualdade atual, dado que muitos dos principais detentores de capital levam sua riqueza para paraísos fiscais, onde ela não é declarada).

De início, o trabalho ensejou poucos comentários. Naquele mesmo ano, Robert E. Lucas Jr., economista da Universidade de Chicago agraciado com o prêmio Nobel, declarava que “entre as tendências prejudiciais a uma ciência econômica sólida, a mais sedutora, e na minha opinião a mais insidiosa, é concentrar-se em questões de distribuição”. Lucas, um entusiasta da chamada economia de oferta – segundo a qual quanto menos impostos e regulação, maior o estímulo ao investimento e à produção –, pregava a fé nos benefícios de longo prazo do crescimento econômico. “O potencial de melhoria da vida dos pobres que deriva da busca de meios diferentes de distribuir a produção atual não é nada, se comparado ao potencial aparentemente ilimitado de aumentar a produção.”

Cinco anos depois, com o colapso do mercado imobiliário e as revelações das práticas de empréstimos predatórios e das recompensas estratosféricas pagas aos executivos dos bancos de investimentos, a desigualdade virou notícia. No início de 2009, num resumo do Orçamento que seria proposto ao Congresso, o governo Obama apresentou um gráfico extraído da pesquisa de Piketty e Saez, mostrando a íngreme escalada da renda nacional nas mãos do 1% mais rico. O Wall Street Journal batizou o gráfico de “a pedra de Roseta da mente do presidente Barack Obama”, ajudando, assim, a disseminar a ideia (sem dúvida exagerada) da influência de Piketty e Saez na Casa Branca.

Em maio de 2011, o economista da Universidade Columbia Joseph E. Stiglitz relatou à revista Vanity Fair que, nos Estados Unidos, o 1% mais rico controlava 40% da riqueza do país, tornando esse “1%” expressão corrente e um sonoro epíteto do movimento Occupy, que tomou impulso naquele outono. Dois anos depois, Robert Reich, ex-secretário do Trabalho e hoje catedrático em Berkeley, citou o trabalho de Piketty e Saez em seu famoso documentário Desigualdade para Todos (no qual Saez faz uma breve aparição).

Por volta de dezembro do ano passado, quando se começou a falar no livro de Piketty, então já publicado na França, a desigualdade como tópico político havia passado por sua própria transformação: de obsessão predileta da esquerda liberal americana tornou-se prioridade tanto para democratas como para republicanos. Naquele mês, Barack Obama dedicou um discurso importante ao tema, caracterizando a desigualdade como “o desafio decisivo de nossa época”. Republicanos proeminentes – incluindo-se aí o líder da maioria na Câmara, Eric Cantor, e o senador Marco Rubio – logo seguiram o exemplo e fizeram discursos que mencionavam, ainda que com cautela, a desigualdade de renda. A Comissão de Finanças do Senado promoveu uma audiência sobre o sofrimento da classe média.



Se O Capital no Século XXI vai sobreviver a seu lançamento espetacular e se tornar inspiração para futuros estudos – para não falar em futuras políticas públicas –, isso dependerá em parte de como os dados de Piketty e sua interpretação resistirão ao tempo. Os resmungos contra o livro que se ouvem aqui e ali ainda não se reuniram numa refutação de peso. (Kevin Hassett, economista do American Enterprise Institute, um centro de estudos conservador, participou de um painel com Piketty em Washington e argumentou que, quando se levam em conta as transferências governamentais feitas a grupos de menor renda nos últimos trinta anos – em comida e subsídios diversos –, essas transferências virtualmente compensariam o aumento de renda dos 20% mais ricos. Piketty respondeu: “É verdade que houve um grande aumento nas transferências. Mas me surpreende que alguém como o senhor, no AEI, fique feliz com a ideia de que transferências estejam diminuindo a desigualdade.”) Mesmo detratores concordam a respeito do valor inestimável da World Top Incomes Database, a base de dados sobre a concentração de renda no topo da pirâmide social que Piketty e seus colaboradores reuniram na Escola de Economia de Paris, onde ele agora leciona. No momento, ela cobre trinta países e é, de longe, a maior base de dados internacional sobre desigualdade.

Menor chance de sobrevivência tem o remédio proposto por Piketty para a desigualdade: um imposto progressivo global sobre a riqueza para fortunas acima de 1 milhão de euros, ou cerca de
3 milhões de reais.

Em Washington, cidade em que se definem políticas, os comentadores da obra de Piketty queriam discutir soluções, embora muitos tenham descartado a proposta dele e aproveitado a oportunidade para promover suas próprias ideias. Até mesmo Piketty reconhece que aplicar um imposto global sobre a riqueza exigiria níveis inéditos de cooperação internacional e, pelo menos nos Estados Unidos – onde muitos acreditam que impostos mais altos levam a um crescimento menor –, a superação de uma ferrenha oposição política. Ainda assim, em seu livro ele faz uma defesa apaixonada dessa proposta, assinalando que os Estados Unidos, afinal, inventaram a tributação confiscatória – em 1919, quando o Congresso aprovou uma alíquota máxima de 77% no imposto de renda, sob o argumento de que rendas e patrimônios gigantescos eram “inaceitáveis, do ponto de vista social, e economicamente improdutivos”. (Hoje, a alíquota máxima é de cerca de 40%.)

Recentemente, a ideia de Piketty ganhou o impulso indireto de um estudo publicado em fevereiro pelo Fundo Monetário Internacional, que está longe de ser uma instituição radical. Esse estudo, uma análise da desigualdade de renda que abrange diversos países, descobriu não apenas que há “pouca evidência de que medidas redistributivas típicas” – impostos e crédito – “tenham, em média, efeito adverso sobre o crescimento”, mas também que baixa desigualdade em geral se associa a crescimento mais rápido. Como me disse em um e-mail Jonathan D. Ostry, o principal autor desse estudo, “essa lógica de fato contribuiu para abrir nossos olhos”.



Na quarta-feira, dia 16, Piketty estava à noite em Nova York, onde participou de um painel na CUNY com mais ganhadores do Nobel: Joseph Stiglitz (que ganhou o prêmio duas vezes) e Paul Krugman, além de Steven Durlauf, economista da Universidade de Wisconsin-Madison. Duas dúzias de jornalistas estavam no auditório. O interesse da mídia por Piketty era tanto que uma parte dos assentos foi reservada a ela, e uma sala de imprensa foi preparada para que o entrevistassem ao final do evento.

Mais cedo, Piketty estivera no Conselho de Relações Exteriores e na ONU. Na CUNY, porém, estava entre seus pares: os acadêmicos. Parecia muito contente. “Os Estados Unidos inventaram a tributação progressiva em grande parte porque não queriam se parecer com a Europa, dominada por classes”, disse ele, enquanto, ainda sem gravata, mas com um sorriso largo, projetava para a plateia um gráfico feito em PowerPoint que mostrava as flutuações da alíquota máxima do imposto de renda.

Os demais membros do painel fizeram efusivos elogios. “É um livro fantástico!”, exultou Krugman. “Ele resolve problemas que vêm preocupando as pessoas há décadas.” Stiglitz, em tom de lamento, declarou: “Alguns de nós nos especializamos num momento particular da curva que ele apresenta, quando as coisas pareciam ir muito bem. Isso nos deu uma imagem distorcida do mundo.”

Eufóricos com as ideias de Piketty sobre desigualdade, os participantes chapinharam aqui e ali por terreno mais técnico – modelos estocásticos e a teoria da produtividade marginal foram invocados mais de uma vez. Mas estavam igualmente ansiosos para discutir o remédio proposto, o imposto global sobre a riqueza. “Nós tivemos aqui decisões da Suprema Corte que afirmam que as grandes empresas têm o mesmo direito que as pessoas quando se trata de financiar a política, mas não têm deveres equivalentes quando se trata de responderem pelo que fazem. Não vai ser uma batalha fácil”, observou Stiglitz.[4] Krugman citou o discurso de Theodore Roosevelt “O novo nacionalismo”, de 1910, que clama por impostos progressivos sobre “grandes fortunas”. Esse discurso, sugeriu Krugman, é um motivo para se ter esperança de que os americanos venham, um dia, a retomar o combate à desigualdade. “A visão pessimista é a de que a diminuição da desigualdade no século xxfoi, em sua totalidade, o resultado de guerras”, disse Krugman. “Mas, na verdade, Roosevelt fez esse discurso antes da guerra, o que significa que um sistema político democrático, que acredita em ideais, é capaz de se reformar também na ausência de catástrofes.”

Piketty ainda sorria quando deixou o palco. Uma sala cheia de jornalistas esperava por ele.

[1]Uma referência às teses do sociólogo italiano Vilfrido Pareto (1848–1923) e do matemático inglês Thomas Bayes (1701–61).

[2]Best-seller do economista Steven Levitt e do jornalista Stephen J. Dubner lançado em 2005, no qual os dois buscavam mostrar que alguns comportamentos sociais obedeciam a constantes matemáticas.

[3]Uma formalização da teoria de John Maynard Keynes, em geral apresentada como um gráfico, usada para avaliar os efeitos conjuntos das políticas fiscal e monetária sobre a renda e a taxa de juros.

[4]Stiglitz refere-se a uma decisão de 2010 que acabou com limites para os gastos de empresas em campanhas eleitorais. A maioria da Suprema Corte equiparou esses gastos ao direito de expressão dos cidadãos. Seus oponentes argumentavam que eles distorcem a disputa política em favor dos interesses corporativos.


por EMILY EAKIN

piauí 

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