No fim de março de 1968, as primeiras cópias de 2001: Uma Odisseia no Espaço começaram a ser projetadas para integrantes das elites do cinema de Hollywood e do jornalismo cultural dos Estados Unidos, e produziram um retumbante fracasso.
Ninguém tolerou a visão de futuro do
nova-iorquino de ascendência judia Stanley Kubrick, nem mesmo o
cientista e escritor inglês Arthur C. Clarke, que trabalhava havia
quatro anos, em parceria com o cineasta, na versão literária do filme,
que seria lançada logo a seguir.
No livro recém-lançado 2001: Uma Odisseia no Espaço – Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a Criação de uma Obra-Prima,
o escritor e cineasta Michael Benson, nascido seis anos antes da
estreia, narra com gozo as circunstâncias agudas daqueles dias de 50
anos atrás.
Nas pré-estreias, Clarke, executivos do
estúdio MGM e críticos de cinema se irmanaram naquilo que a viúva de
Stanley, Christiane Kubrick, descreve no livro como o “prazer em ver a
dor alheia” estampada no rosto do cineasta.
Acontecia ali um daqueles fenômenos em
que as elites de um determinado tempo se divorciam completamente da
realidade e entendem um fato pelo contrário simétrico do que ele
significa. Desesperado pela rejeição inicial, Kubrick encurtou 19
minutos do filme (restaram 139 minutos para a posteridade).
Em lépidos 16 dias, um dos inúmeros críticos que apontaram os “erros” de 2001 produziu a primeira reavaliação, de mea-culpa, sobre o filme, e o apontou como “obra-prima”. Amparado pelas plateias mais jovens, 2001 se transformaria no filme mais lucrativo de 1968 e num dos épicos cinematográficos indeléveis do século passado.
Estima-se que a MGM, que embolsara algo como 12 milhões de dólares com 2001, foi recompensada com uma bilheteria de até 190 milhões de dólares. Antes que 1968
terminasse, a nave Apollo 8 fez o primeiro voo ao redor da Lua; em
julho de 1969, a vida imitou Kubrick e fez um terráqueo pisar pela
primeira e única vez o solo do satélite artificial do planeta que 2001 gostaria de suplantar.
De modo análogo ao que Kubrick fez ao
explorar por dentro as espaçonaves e o robô com (maus) sentimentos
humanos HAL 9000, o livro de Benson penetra as entranhas da produção de
1964-68 para explorar minuciosamente o futuro do pretérito que é a
substância de 2001.
O que emerge é a colisão criativa sem
tréguas entre passado e futuro, memória e invenção, o peso do tempo e a
leveza do vento. É flagrante o desespero financeiro de Arthur Clarke
diante da relutância de Kubrick em liberar o lançamento da versão
literária de 2001.Ao longo da produção, o diretor vai extirpando as palavras da versão audiovisual.
Quando o livro vem à tona, o texto passa a
servir de guia auxiliar de decifração para os enigmas não verbais do
filme – o monólito alienígena que atravessa milhões de anos entre a
Terra e a Lua e Júpiter e além, o salto humano entre o berço terrestre e
o infinito intergaláctico, o astronauta que envelhece e volta ao útero
materno ao percorrer o Portal das Estrelas imaginado por Clarke, e assim
por diante.
Na tensão entre opostos
complementares, é como se Kubrick compusesse a melodia da sinfonia que
adornaria (ou melhor, ocultaria) as letras de Clarke para um épico folk-rock
de Bob Dylan (a certa altura, o diretor cogita, não se sabe se a sério
ou zombeteiramente, entregar a encomenda da trilha sonora para os
Beatles).
Na contramão das trilhas especialmente
compostas para filmes de grande orçamento, Kubrick queria impor à MGM o
uso de peças eruditas – do ribombante e nietz-schiano Also Sprach Zarathustra (1896), do alemão Richard Strauss, ao manjado e “cafona” Danúbio Azul (1867), do austríaco Johann Strauss.
Ao vencer a peleja, o diretor impôs à
indústria canibal um paradoxal balé futurista banhado por sons compostos
mais de um século antes de 2001. Contraste ainda mais chocante era
produzido pela cena de envelhecimento do astronauta, ambientado num
quarto de hotel interestelar decorado à moda Luís XV.
O arco de ambição da odisseia homérica e joyciana de Kubrick para longe da ave-mãe
Terra ajuda a explicar a repulsa da elite que primeiro teve acesso ao
filme, e faz o diretor retroceder a hominídeos de milhões de anos atrás,
no prólogo A Aurora do Homem.
Combustível fóssil abastece e incendeia a
narrativa de Benson sobre o processo de caracterização dos neandertais
coreografados pelo mímico Daniel Richter. Ele também acabaria por
interpretar Moonwatcher, o homem-macaco namorado da Lua que, após
vislumbrar o monólito, aprendia a usar ossos como armas e tornava a
espécie carnívora e ereta.
Ao atirar aos céus o fêmur animal que, na
montagem, se convertia numa espaçonave em forma de espermatozoide capaz
de furar a Via Láctea, Moonwatcher metaforizava o raio de alcance
almejado por 2001.
Richter só foi creditado
como ator, porque Kubrick não admitia que ninguém, além dele,
acumulasse mais de um crédito nos letreiros. De olho nas estatuetas
danúbias do Oscar, o diretor engoliu a equipe de efeitos visuais e
assinou a autoria desse setor que era um dos monólitos de inovação do
filme.
Os efeitos visuais renderam o único Oscar para 2001 e para Kubrick, diretor também de outros clássicos pop-rock do cinema mundial, como Dr. Fantástico (1964), Laranja Mecânica (1971) e O Iluminado (1980). Idealizador de epopeias de época, guerra, terror e thriller sexual, Kubrick jamais dirigiu um faroeste.
Para Benson, 2001 marca o encerramento do ciclo do cinema de Velho Oeste e a substituição dos épicos sertanejos e caipiras pelo breu interestelar. Psicodélico na travessia do Portal das Estrelas, 2001 o filme saiu da mente de um diretor que evitava religiosamente as drogas, por medo de que lhe sabotassem o fluxo criativo.
Embora um semideus se consolide na narrativa de Benson, biógrafo não perdoa os traços mui humanos do mito que brinca de deus. Em diversas passagens, Kubrick é retratado como limítrofe à ética, e 2001 assoma
como resultado da predação do artista que, à maneira das personagens,
aprendeu a usar ossos e espaçonaves como armas de destruição em massa
(não seria Hollywood se assim não fosse).
Kubrick exigiu da equipe o transplante de
árvores africanas em extinção para cenário mais adequado, e depois do
uso as silhuetas vegetais pré-históricas extraídas clandestinamente
foram serradas e destruídas, simples assim.
Trabalhadores acidentados no exercício da
filmagem foram sumariamente demitidos. Além do estúdio
hipercapitalista, também o cineasta aparece como obcecado por planilhas,
cálculos, lucros, luxo. Ele, afinal, também pertencia à vanguarda que
inicialmente rejeitou sua obra-prima.
Kubrick não quis esperar para ver a
realidade concretizar (em tablets e internets) e desmentir (na conquista humana tímida do espaço) sua projeção de 2001. O homem que, entre os 36 e os 40 anos, orquestrou uma visão transcendental de futuro morreu de infarto, em 1999, aos 71 anos.
por Pedro Alexandre Sanches
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