terça-feira, 27 de dezembro de 2011

VIVA O GRANDE LÍDER!

Capítulo 1 – Do outro lado do mundo existe uma república popular

Vista de dentro do pequeno Citroen vermelho, a cidade parecia estranha. Chegar em Pequim é sempre uma coisa preocupante. As multidões, a poeira, as bicicletas como um enxame de abelhas, a indelicadeza de seus habitantes, tudo parece minar a confiança do forasteiro. A confusão urbana ajuda a lembrar que aquele é um território ainda desconhecido e perigoso.

A Estação Rodoviária Oeste, aonde cheguei no trem proveniente de Hong Kong, seria, segundo a propaganda oficial, a mais moderna de toda a China. Estava semi-escura, cheia de gente e tumultuada. Quando saí para a rua e peguei um táxi, já estava começando a anoitecer.

Já tendo estado antes em Pequim, eu conhecia mais ou menos o trajeto que o táxi deveria fazer para chegar ao hotel onde eu tinha reserva, localizado na Dongsanhuan, a terceira perimetral leste. Mas, dentro do carrinho vermelho, rapidamente perdi o senso de orientação e comecei a suspeitar que o motorista estivesse dando uma volta monumental em torno do centro para chegar ao hotel. E o pior: com pouco dinheiro em iuane no bolso, eu temia não ter como pagar a corrida. Não seria possível que, após dez minutos de percurso, o taxímetro ainda estivesse marcando 10 iuanes. Barato demais para ser verdade.

Ao contrário da confusão presenciada na estação de trem, seguíamos agora por grandes avenidas asfaltadas, passando velozmente em frente a arranha-céus iluminados por letreiros em néon. O pequeno táxi era acompanhado nas vias expressas por centenas de carros de todos os lados. Esta não era a Pequim de quatro anos atrás. Onde estava a velha China dos riquixás e da população vestida de azul ? Observada do meio das avenidas do novo capitalismo, a cidade cheirava a tinta e surgia como uma miragem refletindo um inimaginável progresso material. Lembrava mais Los Angeles do que uma metrópole asiática. A sensação de riqueza reforçava minha preocupação com o táxi. Aquilo ia me custar uma fortuna. Somente depois de uma meia hora de dúvidas, chegamos ao Hotel Golden Era. O táxi custou 27 iuanes – pouco mais de três dólares – e eu nem fiz questão do troco. Estava vencida a primeira batalha na capital chinesa.

A segunda batalha começaria no dia seguinte, um sábado. Eu estava em Pequim, desta vez, com um único objetivo: embarcar para a Coréia do Norte, que é considerada como o país mais fechado do planeta. Para se chegar à Coréia do Norte é necessário uma passada obrigatória na China, sobretudo para se conseguir uma forma de transporte até Pyongyang. No sábado de manhã, caí em campo para tentar comprar uma passagem no trem que partiria na segunda-feira à tarde em direção a Dandong, na fronteira da China, seguindo depois ate Pyongyang. Fui ao local mais apropriado para estrangeiros poderem comprar passagens: uma agência do Serviço de Viagens Internacionais da China, a CITS, no Beijing International Hotel. Apesar do padrão luxuoso do hotel, localizado na moderníssima avenida Jianguomennei, o serviço na CITS ainda é soviético. Um atendente que não falava inglês me informou bruscamente, e de má vontade, que não havia passagem à venda. Tudo esgotado. Passagem só com um mês de antecedência. Um burocrata norte-coreano, que panava para conseguir seu bilhete para uma data posterior, me confirmou:

- É muito difícil conseguir passagem de trem. Por que você não tenta o avião ?

por Marcelo Abreu

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sábado, 24 de dezembro de 2011

Dean Moriarty


Fui apresentado recentemente, através da leitura do clássico “on the road”, a Dean Moriarty, um daqueles personagens eternos e fascinantes que povoam a história da literatura mundial, digno de ocupar o mesmo panteão onde estão Ahab, de “Moby Dick”, Raskólnikov, de “crime e castigo” e a nossa Emilia, do “Sítio do Pica-pau amarelo”, dentre outros. Baseado na figura real de Neil Cassady, escritor "beat", ele é o rolo compressor incansável atrás do qual está sempre o autor da narrativa, Jack Kerouak, aqui atendendo pela alcunha de Sal Paradise.

Lendo o livro, uma pergunta não me saía da cabeça: Como diabos não fizeram ainda um filme adaptando esta história? O papel de Dean Moriarty já teria um dono certo, a meu ver: Dennis Hopper. Era a imagem dele que me vinha a mente sempre que o texto discorria sobre aquele maluco sedutor irresistível que todos sabiam ser um canalha mas quase ninguém conseguia odiar, ou mesmo evitar. Uma daquelas pessoas que possuem uma personalidade magnético em torno da qual gravita um séqüito de seguidores devotados, e o mais célebre e devotado deles era, justamente, Jack kerouak/Sal Paradise.

Tarde demais: Hopper já morreu. Mas os planos de uma adaptação para o cinema seguem vivos, desta vez num projeto confuso que está nas mãos do cineasta brasileiro Walter Salles. Reza a lenda que as filmagens já terminaram e o filme entrará em cartaz no ano que vem. No papel de Dean, um tal de Garrett Hedlund. Sua namorada (e amante de Sal), Marylou, será vivida por Kristen Stewart, a “Bela” da saga Crepúsculo. Seja lá o que Deus quiser ...

“On the road”, que recebou o subtítulo “pé na Estrada”, no Brasil, é um relato das viagens do alter ego de seu autor pelas rodovias norteamericanas no final dos anos 40 e início dos anos 50. Tudo gira em torno de Dean, pelo qual Sal, o narrador, é absolutamente fascinado. É Dean que o tira da letargia da vida pacata e monótona de classe média na costa leste para cair na estrada, sempre rumo ao oeste, do atlântico ao pacífico, à toda velocidade em carros possantes nem sempre adquiridos de forma legal – Dean é um ladrão habilidoso. É também um louco, que não hesita em abandonar seus amigos e companheiras nas piores situações quando lhe dá na telha, para reaparecer do nada algum tempo depois e voltar a seduzi-los com a promessa de novas aventuras. É assim durante toda a narrativa. Dean Moriarty parece incansável, e Sal Paradise está sempre na sua cola.

Não foi assim na vida real, evidentemente. Chegou uma hora em que Kerouac, aparentemente, cansou. Normal: (quase) todo mundo cansa. De tudo. Cansou da estrada e de tudo o que sua célebre obra-prima literária provocou: uma verdadeira revolução comportamental que culminou no verão do amor hippie e, posteriormente, no niilismo da “geração x”, aquela que não tinha futuro. Desiludido e solitário, foi morar com a mãe em Long Island. Sob a influência da matriarca, o vigor deu lugar ao cansaço e o escritor que inspirou os loucos e rebeldes de todo o mundo (ocidental, principalmente) revelou-se um católico conservador resmungão cuja vida resumia-se a sentar no sofá o dia inteiro assistindo a programas de auditório pela TV. Morreu cedo, aos 47 anos, na Florida, para onde se mudou com a última esposa e a mãe.

Já Neal Cassady eu não diria que "cansou", mas certamente tentou, em vários momentos, atender aos apelos de suas companheiras e levar uma vida mais sossegada, mais equilibrada, mais responsável, enfim - afinal ele tinha filhos para criar. Mas nele o apelo da estrada parecia ser mais forte, portanto continuou sua saga alucinada e chegou a se unir, nos anos 60, aos célebres Merry Pranksters, um grupo de amigos que percorria os Estados Unidos divulgando seus experimentos com LSD. Morreu em 1968, em decorrência de uma mistura fatal de drogas e álcool, logo após sair de uma festa de casamento.

por Adelvan

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

5 Anos sem Joacy Jamys

Nunca encontrei Joacy Jamys pessoalmente, mas ele era meu amigo. Amigo à distancia de uma época pré-internet, quando nos comunicávamos via correio ou telefone. Trocamos várias longas cartas e alguns igualmente longos telefonemas, nos quais falávamos dos nossos interesses em comum e também de nossas discordâncias num clima de camaradagem, sem estresse. Os assuntos em comum eram geralmente o rock underground e os quadrinhos. As divergências ficavam no campo político: ele era um punk anarquista convicto e eu um simpatizante do PT.

Jamys era um artista “underground”, portanto pouco conhecido na chamada “grande mídia”, mas bastante reconhecido no cenário alternativo dos quadrinhos e do movimento punk. E foi justamente quando eu comecei a me aventurar por estas paragens inóspitas que o conheci : ele já era um veterano quando eu estava dando meus primeiros passos. Adorava receber seus zines, tanto as voltados para a musica, como o “Sociedade dos Mutilados”, quanto os dedicados aos quadrinhos, como o “Legenda” e o “Singularplural”. Admirava muito sua competência e consistência, apesar da eterna tosquice. Sim, porque as cópias de suas publicações e as gravações das bandas das quais participava eram sempre toscas, mas por trás daqueles ruídos quase inaudíveis e daquelas páginas xerocadas em máquinas vagabundas havia muito conteúdo – especialmente os desenhos, sempre muito bons, com um traço sinuoso e elegante. Das bandas, confesso que não gostava muito. A que mais me agradou foi a Última Marcha, a última (sic) da qual participou. Já a Estrago e a Terror Terror eram “feijão com arroz” demais, aquele punk rock panfletário musicalmente pobre e clicheroso até a medula. Nunca deixei, no entanto, de admirar sua persistência e convicção de idéias, algo sempre importante, especialmente nesses tempos confusos em que vivemos.

Joacy morreu há exatos 5 anos, no dia 16 de dezembro de 2006. Era carioca de nascença (1971) mas radicado no Maranhão desde os 14 anos. Em seus 35 anos de vida deixou um currículo lotado de Quadrinhos modernos e música revoltada, além de exemplos de solidariedade, generosidade e, sobretudo, muita atitude. Viverá para sempre na memória e no coração de todos os que o conheceram.

Abaixo, uma entrevista conduzida em 2004 por Ademir Pascale para o site Cranik:

Ademir Pascale: O que você acha do Gênero Fantasia-Fantástica nos dias atuais?
Joacy James: Quase não existe mais a produção no Brasil. Depois da Art &Comics, muitos de nossos artistas enveredaram e adaptaram suas HQs para tentar uma chance no mercado dos Estados Unidos. Muitos zineiros novos seguiram (e seguem) esta meta, sempre tentando fazer trampos voltados para conseguir um contrato (de escravidão, na maioria das vezes, servem de mão-de-obra barata do Terceiro Mundo, da globalização, pois o tal mercado paga bem abaixo do valor real para artistas estrangeiros). Porém, outros muitos continuam firmes, inclusive os “novatos”. O mangá também invadiu o mundo, mexeu até com o mercado europeu. A gurizada se vicia nisto tentando adaptar culturas que não compreendem/vivem. A própria fantasia-fantástica é da escola franco-belga, Moebius, Caza e tal. Foi minha influência no começo quando adolescente. Mas, fiz uma adaptação para minha realidade e eles reconheceram isto lá, quando comentavam meus trabalhos na Europa. A fantasia-fantástica perdeu muito de seus expoentes no Brasil. Mas, outros continuam produzindo outras linhas autorais e expressionistas, como Andraus e Edgar Franco. Contudo, a Fantasia quase não se tem mais desenhistas fazendo, eu mesmo estou produzindo aos poucos. Adoro este gênero. Também existem outros gêneros/linhas que foram perdendo sua força, como fazia Alberto Monteiro, Ricardo Borges, Hermuche e outros.

Ademir Pascale: Poderia comentar sobre o Zine Legenda?
Joacy James: Ele é o primeiro de quadrinhos no Maranhão e ainda resiste. Desde 1990, seguiu a linha editorial autoral, onde um autor tem uma coletânea de seus trabalhos e a apresenta. Depois lancei o Legenda Comix, que segue a linha mista, HQs nacionais e estrangeiras (não pirateadas, mas que autores enviam), notícias, entrevistas, artigos etc. O mais atual é o nº 27, com coletânea de meus trabalhos chamada “Canciones de sangre”, só HQs na linha existencial, tristes...muitas inéditas.

Ademir Pascale: E o que você diz sobre a primeira edição de quadrinhos pós-modernos Brasileiros?
Joacy James: O Flávio Calazans sempre está incentivando e estudando, pesquisando e dando conceitos sobre trabalhos que acha interessante. Isto é bom. Vejo que ele sempre teve uma atenção com meus trampos. Quando lancei o “Legenda 20 – Contos Fictícios”, que reuniu em 1990, 20 HQs desta série de fantasia-fantástica, ele tratou-a como “pós-moderno”. Este zine está entre os três principais títulos publicados até hoje no Brasil, ao lado de “Psiu Mudo” (Edgar Guimarães) e “Guerra das Idéias” (Calazans), tem outros ainda que não podem ser esquecidos como “Psiu Mudo” e “Psiu Ecologia”. É uma pena não termos mais iniciativas editoriais como estas, de grandes zines que realmente mudam coisas, que infincam idéias e mostram que há trabalhos inteligentes com quadrinhos de qualidade. Lembro ainda das edições do Henrique Magalhães, do Worney , do Calazans e Edgard Guimarães. O Legenda 20 – Contos Fictícios, ainda virou material de estudo na USP e UFMS. Em breve estarei lançando a 2ª parte desta minha série, que chegam a 35 HQs, publicadas em diversos zines brasileiros e Portugal.

Ademir Pascale: Como surgiu o grupo “Singularplural”?
Joacy James: Reunião de alguns adolescentes e fanzineiros em 1989, que queriam não só ficar produzindo quadrinhos e zines, mas montar uma associação. Como tínhamos poucos autores, o jeito foi criar um grupo, como propôs o Iramir. Desde 1991, a formação mudou muito, primeiro foi o nome Grupo de Risco para Singularplural Quadrinhos (Singularplural era o nome do zine do Grupo de Risco, que na verdade foi um “marco”, digo porque publicava mais de 25 quadrinhistas por edição e foi o primeiro a divulgar o cenário de quadrinhos, eventos e grupos do mundo no Brasil – não existia internet! Tudo pesquisado por mim...êta, como não tenho modéstia! Desculpem estas falhas humanas. Veja quantas citações o Henrique Magalhães fez em seu livro “Rebuliço Mundo dos Fanzines” (desculpe se o título certo não é este). Abria os capítulos sobre “fanzines” com citações em matéria publicada em nosso zine. Mais de uma década depois, ele lembra disso.

Ademir Pascale: Além de produzir quadrinhos e ilustrações, você ainda é vocalista da banda anarcopunk Última Marcha, e mantém a distribuidora/selo “Grito Punk Prod”, também organiza eventos de quadrinhos e shows punks. Como você organiza todas essas tarefas no seu dia-a-dia?
Joacy James: Ainda tenho família e trampo o dia inteiro. Todos sempre perguntavam sobre isso do meu tempo e conciliação. Digo que é teimosia e insatisfação. Insatisfeito em ficar parado, em não poder somar com nada. Quando tudo isto vira sua vida, fica mais fácil e prazeiroso em fazer. Você não se cansa. Além do que citou, ainda colaboro com zines (e agora sites), faço diversos sites, respondo trocentas cartas do Brasil e exterior, produzo quadrinhos, cartuns, fanzines, revistas e ainda bebo cachaça com os(as) amigos(as) no final de semana.

Ademir Pascale: Poderia comentar sobre os concursos e exposições no qual participou e ainda participa?
Joacy James: Ganhei Menção Honrosa no Concurso de Carlos Barbosa/RS (HQ) e Mostra de Humor do Maranhão (cartum). Participei de exposições em São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Maranhão, Piauí, Portugal, Cabo Verde e etc. Sejam exposições de quadrinhos, cartuns e zines.

Ademir Pascale: Fiquei sabendo que você já Publicou na Espanha, Dinamarca, Portugal, França, Polônia entre outros lugares. Como o seu trabalho é visto fora do Brasil? Quais são os comentários dos críticos?
Joacy James: sempre recebo bons comentários. Agora mesmo, o editor da Atomik (França) elogiou bastante uma tira que publicou na revista dele em 1995! Disse que surtiu ótimo efeito entre os leitores. Com a fantasia-fantástica, produzi muitas HQs sem diálogos, ficando fácil publicar no exterior. Algumas HQs são em inglês e espanhol. A PLG (uma das maiores associações de quadrinhistas franceses),tratou meus trabalhos como o “Moebius” brasileiro. Sempre mantive bons contatos com os estrangeiros e tive diversos trabalhos lá, até um especial em Portugal. Também sempre enviei trabalhos de brasileiros para o exterior, eles adoram. Preferem raízes, não adaptações de mangás e super-heróis, todos cansam disso. Olha que gosto de muitos mangás e super-heróis melhores produzidos (atual Demolidor e Hulk, por exemplo).

Ademir Pascale: Qual é a sua visão dos desenhistas nos dias atuais no quesito “criatividade”?
Joacy James: meio à meio. Temos ótimos quadrinhistas e argumentistas. O pessoal evoluiu muito, falando sério. Invejo muitos jovens que estão arrebentando. Aqui em São Luís mesmo, tem um pessoal novo que detona. Até o pessoal que está produzindo super-heróis e mangás, estão bons. Infelizmente, muitos se pasteurizaram, ficando bonitinhos demais e estão atolados em temas que não somam com nada, transformando ARTE em apenas PRODUTO. O Brasil está cheio de artistas-produtos, preocupados com elogios e status em grupos fechados. Mas, tem outros que mantém trabalhos coerentes e interessantes. Veja o pessoal da revista Graffiti (MG), Front (SP), Ragú (PE), Fúria (MA) e outros. Tem gente boa por aí, sim. Veja os sites. Tem coisas bem trabalhas e produzidas.

http://www.cranik.com/entrevista10.html

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Goiânia Noise

(recordar é viver) Sempre tive bons contatos e ainda melhores amigos em Goiânia e, muito por conta disso, nutria desde tempos imemoriais uma vontade de, um dia, aparecer por lá. Aconteceu, finalmente, em novembro de 2003, aproveitando a data para conferir, “in loco”, mais uma edição do Goiânia Noise Festival – minha primeira e, pelo menos por enquanto, última vez.
Era bem mais barato ir daqui (Aracaju) pra São Paulo e de lá para Goiânia, então foi o que fiz, me programando para, já que teria que passar por lá mesmo, ficar uma semana (das duas que tinha disponíveis) na terra da garoa. Não sem antes fazer uma volta absurda, parando primeiro em Maceió e depois em Petrolina, Pernambuco (o aeroporto de Petrolina parecia um sítio, apenas uma casinha no meio de um descampado)! Coisas da finada BRA ...
Não conhecia absolutamente nada de Goiânia, por isso entrei na net para pesquisar pontos turísticos e coisa e tal. Não achei praticamente nada, a não ser uma estátua de Ananhguera* que parece ser, realmente, um ponto de referência. Bom, pelo menos eu senti que estava finalmente na capital de Goiás ao me ver em frente ao referido monumento.
O centro da cidade é interessante, lembra um pouco Aracaju no sentido de haver uma curiosa mistura de cidade grande com aquele clima de interior: num momento você está numa avenida enorme e movimentadíssima cercade de prédios, mas então vira uma esquina e se depara com uma rua só de casas onde as pessoas ainda se sentam na porta para conversar. É legal isso. É aconchegante, como aconchegante foi o hotelzinho 5 cruzes onde eu me hospedei até conseguir finalmente entrar em contato com meu camarada de longa data Marcio jr., na casa de quem ficaria.
Aproveitei para freqüentar dois cinemas de rua que ainda existiam por lá – sempre aproveito essas viagens para ver filmes em cinemas de rua nas cidades que porventura ainda os tenha. Vi a parte final de “Matrix” em um e o filme d’Os Normais” em outro. Nada de muito incrível, nem os filmes, nem os cinemas, mas tava valendo. O que mais me impressionou, no entanto, foi a incrível quantidade de sebos, de livros e de discos, que havia na cidade. Até me arrependi de ter gastado quase toda a minha grana em Sampa, já que vi coisas bem mais interessantes e, mais importante, mais baratas, por lá.
Mas vamos ao festival: Lá vi, pela primeira vez, o Matanza, ainda não tão famoso. Grande show. Grandes shows também fizeram o Relespública, de Curitiba; Os Astronautas, de Recife; o Mukeka di rato, do Espírito Santo (este com direito à presença de uma vaca cenográfica que eles capturaram de um depósito ao lado no palco); Walverdes, de Porto Alegre, e Autoramas, do Rio. Das bandas locais destacaria O Mechanics, que são sempre bons, especialmente ao vivo, Hang The Superstars e MQN. O MQN foi mais que bom, foi ótimo – Fabrício Nobre é um ótimo performer e tem o público na mão. Me lembro da preocupação dele com um gordinho (maneira de dizer, o cara era OBESO, MUITO GORDO) do publico que, me parece, teve um ataque cardíaco durante o festival ...
Já excelentes foram os shows do Ratos de Porão, dos Retrofoguetes, de Salvador – estes são sempre ótimos, é até covardia comparar – e, principalmente, do Guitar Wolf, legendária formação de garage rock do Japão. Merecem, inclusive, um parágrafo à parte ...
Não foi bem um show, foi uma perfomence regada e muito barulho e insanidade. Os caras, pelo que lembro, praticamente não tocaram nenhuma musica inteira - apenas começavam algum riff e partiam pra ignorância, para a microfonia pura e simples, se contorcendo e se jogando no palco e/ou oferecendo os instrumentos para que o publico tocasse, no que foram atendidos diversas vezes. Musicalmente caótico, mas valeu pela catarse coletiva. Foi divertido. Aliás, os caras são muito divertidos: São rock and roll até a medula! Saí com eles e uma galera pra bater um rango num boteco depois do show e ficava impressionado com o cuidado que eles tinham com os topetes e com a quantidade de fotos que os pessoas que os acompanhavam tiravam. Era foto de tudo: do cardápio do bar, dos copos, das mesas, dos pés, do cachorro que passava pela rua ...
Um registro: vi também o Mundo Livre S/A, e foi estranho ver o Mundo Livre S/A fora do Recife, ou do nordeste. Mas de repente não foi nem isso, já que o Mundo Livre é meio estranho mesmo: às vezes fazem shows sensacionais, outras vezes nem tanto. Foi lá também, no Jóquei Clube de Goiás, uma das ultimas vezes em que eu caí no pogo, ao som do crustcore preciso dos candangos da Terror Revolucionário, banda capitaneada pelo herói da resistência Fellipe CDC, meu amigo de longa data. Foi muito bom revê-lo, assim como foi rever Renzo (com o qual esbarrei em plena roda de pogo) e Phu, ex-DFC. Perguntei pelo Túlio e Phu respondeu que “Túlio é playboy, não vem pra esses rocks não”.
Foi muito bom também rever, mesmo que brevemente, meu amigo de fé, irmão e camarada Oscar F., hoje Fortunato, artista plástico conceituado na cidade. E conhecer pessoalmente, finalmente, alguns grandes correspondentes dos tempos das cartas e zines, como o (então) casal Eduardo e Lorena D’Allara, dos Resistentes – que também tocaram no festival. Eduardo era impressionante, uma verdadeira enciclopédia viva de punk rock nacional. Era também meio esquisito, tinha uns tiques nervosos com sanduíches com maionese, por exemplo, mas normal. “De perto, ninguém é normal”, já dizia Caê.
Bem legal também participar dos bastidores do evento – Almoçar arroz de pequi com pimenta com os Retrofoguetes, relembrar o Punka com Gabriel do Autoramas, os tempos do rock alagoano com Wado (que eu não lembrava que eu já conhecia do tempo em que andava por lá com os caras da Living In the Shit), ouvir as merdas do Finatti e as reclamações do Gordo do Ratos - especialmente quanto à viagem de avião, que também foi pela BRA. De “quebra”, me batí com Pompeu, do Korzus, que era técnico de som do Ratos, e com Juninho, o baixista, que me reconheceu e foi logo cantando algumas singelas composições da minha banda de grindcore pornográfico, a 120 Dias de Sodoma, que ele havia conhecido algum tempo antes quando havia tocado aqui em Aracaju com a Discarga.
Amanhã começa mais uma edição do Goiânia Noise. É a décima sétima (a que eu fui foi a nona). Não vai dar pra mim, mais uma vez, mas tenho saudades. Qualquer dia apareço de novo por lá ...
por Adelvan
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* Goiás tira seu nome dos extintos índios Goyazes, que eram considerados bonitos, de pele clara, acolhedores e de trato ameno. E por isso mesmo tomaram na tarraqueta. Os Goyazes dominavam uma grande região às margens do Rio Araguaia. Viviam tranqüilos, pescando e dormindo. Até que lá pelo século XVII, atrás de ouro, pedras preciosas e escravos, chegaram os bandeirantes paulistas. Em 1647, o sanguinário Manuel Correia encontrou ouro em quantidade considerável na terra dos Arais. Regressou a São Paulo levando uma penca de índios, que eram torturados das formas mais absurdas.
Sabendo do ouro e das índias bonitonas, outros bandeirantes sanguinolentos despencaram para cá: Francisco Lopes Benevides, Francisco Ribeiro de Morais, Jerônimo Bueno, João Martins Heredia, Antônio Ribeiro Roxo, entre outros elementos de pouca cultura e moral.
Tentaram alcançar o cerradão. Mas cobra, onça, índio bom de flecha, mosquito, enfermidades e o calor insuportável desviaram essa corja rumo ao Pará, Pernambuco e Bahia. Outros foram para o Sul. E alguns, sem querer, acabaram voltando para São Paulo. E os Goyazes haviam tirado o seu da reta por mais um tempo.
Até que em 1682, o malcheiroso Bartolomeu Bueno da Silva resolveu seguir o rastro deixado por Manoel Correia, trazendo seu filho infelético de mesmo nome. Bartolomeu era sobrinho do nefando Amador Bueno, irmão de Jerônimo Bueno, o qual a indiada encheu de flechas, à beira do rio Taquari.
O safado alcançou o Rio Vermelho, onde travou contato com os Goyazes, que lamentariam para sempre aquele encontro. Aquela estória de colocar fogo em um prato cheio de aguardente para forçar a indiada abrir o bico e falar onde estava o ouro é atribuída, segundo o historiador Pedro Taques, ao bandeirante Pires Ribeiro, sobrinho de Fernão Dias Paes Leme. Afirma ele ainda que o apelido Anhanguera se deva a outra razão. Imaginem: os Goyazes, lá no meio do mato, pescando e nadando com suas índias formosas. Aparece um homem fedorento, cabeludíssimo, coberto de piolhos e com um dos olhos furados. Não deu outra, acertaram-lhe a alcunha.
Primeira coisa que o biltre fez foi jogar os Arais contra os Goyazes, aprisionar um monte de índios e voltar para São Paulo.
1722. Lembram do Anhanguerinha? Pois é, o sifilítico junto com João Leite da Silva Ortiz, comandando cem homens, seguindo o caminho do pai, descobriram os rios: dos Pilões, Corumbá, das Almas, Rico e da Perdição. Uma centena de homens rudes e violentos no meio do mato não poderia acabar bem. Brigas, ataques dos Caiapós e enfermidades deixaram um monte de paulistas no meio do caminho. Os que voltaram levaram ouro que não dava para cobrir os gastos da expedição. Ainda assim, três anos depois, o piolhento Anhanguera Júnior chegou ao Rio Vermelho. Dois índios velhos o reconheceram e o caldo entornou. Controlada a situação com os nativos que queriam vingança, fez um trato com os índios, que liberaram seus homens a fornicarem com as índias. Resultado? Além dos filhos feios, fundaram os arraiais de Santana, Barra, Ferreira e Ouro Fino. Voltando a São Paulo, mostrou, ao então Governador Antônio da Silva Caldeira Pimentel, tanto ouro que o safardana financiou uma nova expedição.
A Ordem Régia de 14 de março de 1731 outorgou ao Anhanguerinha, filho de meretriz portuguesa, a patente de Capitão-mor e governador das terras por ele descobertas. Começou então a chegar todos os tipos de patifes, ladrões e gente de quinta categoria, atrás de ouro e das índias. Fundaram as povoações de Meia Ponte, Santa Cruz e Orixá. Sendo Goiás longe dos grandes centros, tinham ouro mas não tinham o conforto das cidades. Viviam miseravelmente, cobriam-se com trapos. Entregaram-se ao vício da bebida, ao roubo, mataram os Goyazes dizimando uma boa parte de seus compatriotas.
Em 11 de fevereiro de 1736, uma Ordem Régia tornou Goiás comarca dependente de São Paulo. Nomeou Agostinho Pacheco Teles primeiro Ouvidor-Geral. Pouco depois, Antônio Luís de Távora, então governador paulista, elevou o povoado à condição de vila passando a se chamar Vila Boa. Mas o pau continuava quebrando e os poucos Goyazes que restaram comeram o pão que o diabo amassou na mão dos novos mandatários. Em 1739, Luis de Mascarenhas instalou o Senado da Câmara, construiu uma igreja, uma cadeia e uma forca que era “um monumento de pronta justiça que intentava fazer nos malfeitores”. Os mais chegados à confusão, arrumaram as trouxas e subiram para o Norte.
Um alvará de oito de novembro de 1744 tornou Goiás independente. D. Marcos de Noronha, o tal de Conde dos Arcos, foi o primeiro governador e Capitão-General da nova capitania, em 1749. Seguiram-se a ele vários governantes que mantiveram a política de extermínio aos índios. João Manuel de Melo, José de Almeida Vasconcelos e Tristão da Cunha Menezes. Esse último expulsou os Caiapós das terras onde viviam desde antes do Descobrimento. Socaram o cacete nos Xavantes, que fugiram para selva e lá ficaram isolados por muito tempo.
Durante o século XVIII, acharam mais ouro e diamantes nas lavras de Cocal, Tesouras e Fundão. A casa de fundição, que funcionava em São Félix, mudou-se para Cavalcanti, em 1798. Dezesseis anos depois, uma nova Carta Régia transformou a então Vila Boa de Goiás em cidade. Luís da Cunha Menezes, urbanista, alinhou as ruas, construiu pontes, criou as milícias, “pacificou” os Caiapós e começou a dar os contornos atuais de nosso Estado.
Em nove de novembro de 1942, uma estátua de corpo inteiro foi erguida no cruzamento das avenidas Goiás e Anhanguera, criação do artista plástico Armando Zago, com a inacreditável inscrição “à nobre estirpe dos Bandeirantes”. Essa homenagem a esse ASSASSINO permanece lá, envergonhando um Estado inteiro. Existem tentativas de substituir o abominável genocida por uma estátua de Atílio Correa Lima, esse sim merecedor de justa homenagem. A praça do Bandeirante, na verdade, se chama Praça Atílio Correa Lima.
por Oscar Fortunato
Fonte: Plus galeria

sábado, 26 de novembro de 2011

O ódio

O flagrante orbitou pelo mundo. E o rosto de uma adolescente de 15 anos tornou-se a imagem oficial da intolerância racial na América.

Ódio revisitado

por Dorrit Harazim
na piauí

Nada mais fugidio e elusivo do que o “momento decisivo” perseguido e fotografado por Henri Cartier-Bresson ao longo da vida – aquele que define a essência de uma situação. Não raro, esse instante se apresenta sem avisar. Com frequência, sequer é percebido por quem o captou.
Cinquenta e quatro anos atrás, um jovem fotógrafo do Arkansas Democrat conseguiu encapsular um desses momentos com sua primeira Nikon S2, máquina da era pré-digital. Carregou a máquina com um filme Kodak Plus X, ótimo para manhãs ensolaradas de final de verão, e foi cobrir o primeiro dia de aula de um grupo de estudantes negros na maior e melhor escola média de Little Rock. Esse pedaço de história ficou gravado no negativo de número 15.

WASP
Eram apenas nove os jovens negros selecionados pela direção do principal colégio da cidade, o Central High School, para cumprir a ordem judicial de integração racial no país. Segundo David Margolick, autor do recém-publicado Elizabeth and Hazel: Two Women of Little Rock (ainda inédito no Brasil), a peneira foi cautelosa. A busca se concentrou em colegiais que moravam perto da escola, tinham rendimento acadêmico ótimo, eram fortes o bastante para sobreviver à provação, dóceis o bastante para não chamar a atenção e estoicos o suficiente para não revidar a agressões. Como conjunto, também deveria ser esquálido, para minimizar a objeção dos 2 mil estudantes brancos que os afrontariam.

Assim nasceu o grupo que entraria na história dos direitos civis americanos como “Os Nove de Little Rock”. Eram todos adolescentes bem-comportados, com sólidos laços familiares, filhos de funcionários públicos e integrantes da ainda incipiente classe média negra sulista. Entre eles, a reservada Elizabeth Eckford, de 15 anos.

Os pais dos nove pioneiros foram instruídos a não acompanharem os filhos naquele 4 de setembro de 1957, pois as autoridades temiam que a presença de negros adultos inflamasse ainda mais os ânimos. Por isso, os escolhidos agruparam-se na casa de uma ativista dos direitos civis e de lá seguiram juntos para o grande teste de suas vidas. Menos Elizabeth, que não recebera o aviso para se encontrar com os demais e partiu sozinha rumo a seu destino.

e longe ela avistou a massa de alunos brancos passando desimpedidos pelo cordão de isolamento montado pela Guarda Nacional do Arkansas. Ao tentar fazer o mesmo, foi barrada por três soldados que ergueram seus rifles. Elizabeth recuou, procurou passar pela barreira de soldados em outro lugar da caminhada e a cena se repetiu. Alguém, de longe, gritou “Não a deixem entrar” e uma pequena multidão começou a se formar às suas costas. Foi quando Elizabeth se lembra de ter começado a tremer. Com a majestosa fachada da escola à sua frente, ela ainda fez uma terceira tentativa de atravessar o bloqueio em outro ponto do cordão de isolamento.

Como pano de fundo, começou a ouvir invectivas de “Vamos linchá-la!”, “Dá o fora, macaca”, “Volta pro teu lugar”, frases proferidas por vozes adultas e jovens. Atordoada, dirigiu-se a uma senhorinha branca – a mãe lhe ensinara que em caso de apuro era melhor procurar ajuda entre idosos. A senhorinha, porém, lhe cuspiu no rosto.

Como não conseguisse chegar à escola, a adolescente então tomou duas decisões: não correr (temeu cair se o fizesse) e andar um quarteirão até o ponto de ônibus mais próximo. Um aglomerado de cidadãos brancos passou a seguir cada passo seu. Imediatamente às suas costas vinha um trio de adolescentes, alunas do colégio. Entre elas, Hazel Bryan.

“Vai pra casa, negona! Volta para a Á”– clic– “frica!” Segundo o autor do livro centrado no episódio, foi este o instante em que a câmera de Will Counts captou a imagem que se tornaria histórica.

Hazel, de quinze anos e meio, não carregava qualquer livro escolar. Apenas uma bolsa e um inexplicável jornal. Ela não planejara nada para aquela manhã. Vestira-se com o esmero que era sua marca – roupas e maquiagem ousadas para uma adolescente daquela época – e arvorou-se de audácia ao ver tantos fotógrafos e soldados da Guarda Nacional. Nada além disso. O resto pode ser debitado à formação que recebera em casa – família de origem rural, ideário fundamentalista cristão, atitude racial aprendida com o pai.

foto que correu mundo e fez a alegria da União Soviética naquele auge da Guerra Fria é tudo, menos estática. Ela fala, grita, tem vida e movimento. Mostra Elizabeth num vestido de algodão feito em casa, estalando de branco, com um fichário e um livro apertados contra o peito e medo escondido por óculos escuros. Em meio à massa de brancos que a seguem, Hazel. Olhos e sobrancelhas franzidos, a boca aberta contorcida pelo ódio e pela raiva. Foi assim que Elizabeth e Hazel se “encontraram” sem se conhecerem. E é o que as manteve ligadas, ora contra, ora por vontade própria, por mais de cinquenta anos.

Assim como Hazel se converteu na imagem oficial da intolerância, a caminhada solitária de Elizabeth virou bandeira para toda uma geração de atletas, advogados, professores negros decididos a não recuar. Décadas depois do episódio, Bill Clinton, que governou o mesmo Arkansas nos anos 80, admitiu o quanto a foto fez com que ele acertasse seu compasso moral.

Em seu livro sobre essas duas vidas, o jornalista David Margolick responde a todas as perguntas que a foto deixa suspensas, e vai além. Editor da revista Vanity Fair, ele já havia escrito Strange Fruit – The Biography of a Song, a canção que Billie Holiday imortalizou em 1939 e que já expunha o racismo e denunciava os linchamentos de negros.

O episódio daquela manhã de 1957 levou Little Rock à combustão e convenceu o presidente Dwight Eisenhower a enviar tropas da 101ª Divisão Aerotransportada para assegurar a integração escolar decidida três anos antes pela Suprema Corte. Ironicamente, Hazel e Elizabeth jamais chegaram a se cruzar nos corredores da Central High School, pois os pais da menina branca, assustados com a repercussão da foto, preferiram trocá-la de escola. Mas “Os Nove de Little Rock”, uma vez admitidos, viveram anos de pavor. Semana após semana, foram alvo de agressões – desde cusparadas a cacos de vidro no chão do chuveiro na hora do banho. Elizabeth, primeira a ser empurrada escadaria abaixo, só teve o rosto preservado por ter usado como escudo o mesmo arquivo que segura na foto.

ali em diante, em plena era Kennedy dos anos 60, Hazel, a garota branca, seguiu seu destino. Abandonou o colégio, casou-se aos 17 anos, teve três filhos, morou em trailers, partiu de Little Rock e fez paradas temporárias em atividades tão distintas como apresentações de dança do ventre e trabalho voluntário junto a crianças carentes negras. De volta a Little Rock, despencou para perto da linha da pobreza e era vista como um fantasma a rondar o passado de violência da cidade. Decidiu então ir ao encontro de seu indesejado papel na história americana e embarcou em ações sociais e ativismo comunitário.

Elizabeth, enquanto isso, passou cinco anos servindo no Exército, mas conseguiu formar-se em história pela Universidade do Estado de Ohio. Mãe solteira de dois filhos e recorrendo ao auxílio-desemprego nos anos 80, beirou a depressão. Um de seus filhos, também depressivo, acabou sendo morto por um policial ao sair dando tiros pela rua.

Somenteem 1997 as duas mulheres, então com 55 anos de idade, se encontraram de verdade. A ocasião foi um evento, com novo espocar de flashes e publicidade: o 40º aniversário da fatídica manhã de 4 de setembro de 1957. Várias décadas antes, Hazel conseguira localizar Elizabeth pela lista telefônica, tomou coragem e discou o número para pedir desculpas. Elas foram aceitas sem, contudo, entreabrir qualquer contato pessoal.

Foi por ocasião do evento comemorativo de 1997 que as duas mulheres estabeleceram um tênue laço. Participaram de um seminário sobre questões raciais, deram palestras, foram entrevistadas por Oprah Winfrey. Chegaram a cogitar escrever um livro a quatro mãos. E posaram também, desta vez lado a lado, para nova foto feita pelo mesmo Will Counts. Nela, as duas aparecem sorrindo em frente ao portal da Central High School, e a imagem acabou sendo transformada num pôster intitulado “Reconciliação”. E quando a sessão de fotos se encerrou, com ambas já fora de enquadramento, as duas mulheres iniciaram uma tentativa de amizade.

À medida que Elizabeth foi ganhando em autoestima, porém, ela voltou a tomar distância de Hazel. A bordo do cargo de oficial de justiça e agraciada com uma Medalha de Ouro do Congresso, ela foi se tornando mais exigente, mais crítica, menos disposta a oferecer perdão em nome de um final feliz. Desconfianças antigas reemergiram e quando o episódio completou meio século, em 2007, a relação tinha azedado de vez. Naquele ano, Elizabeth acusou Hazel de se esconder atrás de uma confortável amnésia sobre o incidente – ela havia descoberto que a adolescente branca mantivera contato o tempo todo com os alunos da escola que infernizaram a vida dos nove negros, e que Hazel fazia parte de um grupo organizado que os atacava fisicamente.

Hazel, por seu lado, mantém até hoje que naquela manhã de 54 anos atrás ela não pestanejou nem se sentiu mal. Para o autor de Two Women [Duas Mulheres], em momento algum ela achou ter feito algo errado. Ou inusitado. Ou que marcaria a sua vida para sempre. Ela estava apenas traduzindo o que ouvira em casa durante quinze anos.

Ambas chegam à terceira idade cansadas de dar palestras e entrevistas que apenas reavivaram ressentimentos e frustração – Hazel diz que não aguenta mais pedir desculpas; Elizabeth sustenta que sua nêmesis, no fundo, sequer sabe do que está se desculpando. “Elizabeth só então se deu conta do quanto de amargura carregava no peito, e o quanto de raiva e ódio a haviam paralisado”, escreveu Margolick. E conclui: “Ela sempre teve melhor formação e foi mais intelectualizada do que Hazel, mas Hazel acabou mais bem ajustada no seu entorno social.”

Segundo o autor, novas barreiras substituíram as antigas e o embrião de amizade acabou sendo solapado pelas mesmas fissuras e incompreensões que continuam a permear as relações raciais nos Estados Unidos. Margolick vai além do simples acompanhamento das duas mulheres idade adentro. Ele amplia a narrativa, torna-a mais complexa. As vidas entrelaçadas de Elizabeth e Hazel servem de metáfora para o país, sem soluções fáceis para um impasse moral dessa grandeza.

Elizabeth não se dispôs a entrar na Central High School em 1957 para fazer amizades. Ela sentou nos bancos da escola segregada para quebrar as barreiras legais e institucionais que negavam aos negros americanos oportunidades iguais. Hoje, as barreiras legais não mais existem. Mas a cor da pele ainda marca bairros, igrejas, prisões e também escolas nos Estados Unidos. Em 2007, meio século depois que Elizabeth e Hazel protagonizaram o “momento decisivo” captado em foto, 40% das crianças negras americanas ainda frequentavam escolas quase totalmente segregadas.

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terça-feira, 22 de novembro de 2011

A Balada de um derrotado.

Tá bom, é inveja, eu admito. Mas não é sem motivo! O filho da puta era o maior vagabundo, um parasita! Vivia de bobeira às custas da mãe. Seus dias se resumiam a chegar em casa de madrugada, acordar por volta do meio-dia e voltar à rua, não sem antes sorver com apetite o almoço que a pobre coitada preparava com todo o carinho.

Confesso que a sua simples presença era suficiente para me tirar do sério. Aqueles olhos sonolentos, aquela conversa mole, e a bajulação - porra, como bajulavam aquele cara! "Bicho, quando é que tu pinta lá no ensaio?". "Vou dar uma festa lá em casa mas só pros mais chegados, tu tá convidade e pode chamar quem quiser". "Cara, valeu pelo show, foi de fuder"

Mas isso não é nada, o cara era simpático mesmo. Boa pinta. Além do mais, eu sempre soube que as garotas gostavam mesmo era dos cafajestes. Quanto mais machuca, mais elas se derretem. As mulheres parecem ter desenvolvido, em nossa sociedade machista, uma estranha compulsão para a dependência, para o masoquismo. O pior era a banda. A porra da banda. "Vermes da lepra" era meu grupo preferido, a mais fodida banda de death metal que já apareceu por estes lados - e olha que nossa região é pródiga de bandas do estilo. Um dia, eles perderam o vocalista. Eu não falei nada, mas acredito que tava na cara, era meu sonho! Eu vivia babando atrás dos caras, ia a todos os ensaios. Era fã de carteirinha. Chegaram até a comentar, certo dia, que meus vocais "guturais" eram legais e que se eles um dia ficassem sem vocalista iriam me chamar para a vaga. Mas não me surpreendi quando me chamaram para assitir ao primeiro ensaio com o novo vocalista. Ele, sempre ele! Parecia disposto a acabar de vez com a minha vida, a me perseguir até o fim dos meus dias. A partir daquele momento, passei a demonstrar abertamente a minha antipatia, o que me afastou ainda mais de pessoas que, até pouco tempo, eram como irmãos para mim.

Nas rodas de conversa, tudo o que ele dizia era motivo para chacota de minha parte. E era pretensioso, o canalha! Espalhava pra Deus e pro mundo que tinha planos de, um dia, viajar pros Estados Unidos, entrar pra industria de filmes pornô, ganhar uma grana preta (dava grana, naquela época) e ainda por cima, pasmem, comer o cu da Belladona! Vejam só vocês, ele falava sério! Foi um dos meus poucos momentos de triunfo. Porque, claro, esta ninguém engoliu e o babaca recebeu, finalmente, o que merecia: o riso e o escárnio de todos.

E assim foram se passando os dias, eu cada vez mais afastado da antiga turma, até me desligar por completo. Arrumei um emprego estável, casei e isolei-me em casa com a família. Tornei-me o esterótipo perfeito do homem de classe média conformista e acomodado: gordo, sedentário, apático, dividindo o tempo entre o trabalho e o aparelho de televisão. Me afastei da cena também. Nem tinha internet, não acompanhava mais as notícias e os lançamentos do mundinho do rock underground. Só não parei de ver filmes pornográficos. Gostava de pornografia, e sei que a net tá cheia disso, mas preferia ver em DVD.

Um dia soube que o filho da puta havia sumido. Circulavam boatos de que havia embarcado clandestinamente no porão de um navio rumo aos "states". Não dei ouvidos. Achei que ele tinha era jogado uma mochila nas costas e pegado a estrada, deixando os baba-ovos de sempre chupando vento. Hoje, bicho-grilo que era, estaria vendendo bugingangas numa calçada imunda, barbudo e sujo como um hippie fora de época.

É foda. Nunca vou esquecer aquela olhadinha que ele deu para a câmera, os mesmos olhos mortiços e embaçados que povoavam meus pesadelos e pareciam sussurrar em meus ouvidos: "você nunca vai deixar de ser o que sempre foi: NADA".

publicado originalmente no Fanzine Escarro Napalm # 4.

por Adelvan.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A Metamorfose, de Franz Kafka

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.

Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado,desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia! Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado — ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação,não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara. Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos. Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as costas, — mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado. Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era capaz de ser bom para mim — quem sabe? Se não tivesse de me agüentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária! Também é hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem — o que deve levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às cinco.

Olhou para o despertador, que fazia tique-taque na cômoda. Pai do Céu! — pensou. Eram seis e meia e os ponteiros moviam-se em silêncio, até passava da meia hora, era quase um quarto para as sete. O despertador não teria tocado? Da cama, via-se que estava corretamente regulado para as quatro; claro que devia ter tocado. Sim, mas seria possível dormir sossegadamente no meio daquele barulho que trespassava os ouvidos? Bem, ele não tinha dormido sossegadamente; no entanto, aparentemente, se assim era, ainda devia ter sentido mais o barulho. Mas que faria agora? o próximo trem saía às sete; para o apanhar tinha de correr como um doido, as amostras ainda não estavam embrulhadas e ele próprio não se sentia particularmente fresco e ativo. E, mesmo que apanhasse o trem, não conseguiria evitar uma reprimenda do chefe, visto que o porteiro da firma havia de ter esperado o trem das cinco e há muito teria comunicado a sua ausência. O porteiro era um instrumento do patrão, invertebrado e idiota. Bem, suponhamos que dizia que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria lá à casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes perfeitamente saudáveis. E enganaria assim tanto desta vez? Efetivamente, Gregório sentia-se bastante bem, à parte uma sonolência que era perfeitamente supérflua depois de um tão longo sono, e sentia-se mesmo esfomeado.

À medida que tudo isto lhe passava pela mente a toda a velocidade, sem ser capaz de resolver a deixar a cama — o despertador acabava de indicar um quarto para as sete, ouviram-se pancadas cautelosas na porta que ficava por detrás da cabeceira da cama.

— Gregório — disse uma voz, que era a da mãe, - é um quarto para as sete. Não tens de apanhar o trem?

Aquela voz suave! Gregório teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível e persistente guincho chilreante como fundo sonoro, que apenas conservava a forma distinta das palavras no primeiro momento, após o que subia de tom, ecoando em torno delas, até destruir-lhes o sentido, de tal modo que não podia ter-se a certeza de tê-las ouvido corretamente. Gregório queria dar uma resposta longa, explicando tudo, mas, em tais circunstâncias, limitou-se a dizer:

— Sim, sim, obrigado, mãe, já vou levantar.

( ... )

O Anticristo, de Friedrich Nietzsche

Prefácio

Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo. É possível que se encontrem entre aqueles que compreendem o meu “Zaratustra”: como eu poderia misturar-me àqueles aos quais se presta ouvidos atualmente? – Somente os dias vindouros me pertencem. Alguns homens nascem póstumos.

As condições sob as quais sou compreendido, sob as quais sou necessariamente compreendido – conheço-as muito bem. Para suportar minha seriedade, minha paixão, é necessário possuir uma integridade intelectual levada aos limites extremos. Estar acostumado a viver no cimo das montanhas – e ver a imundície política e o nacionalismo abaixo de si. Ter se tornado indiferente; nunca perguntar se a verdade será útil ou prejudicial... Possuir uma inclinação – nascida da força – para questões que ninguém possui coragem de enfrentar; ousadia para o proibido; predestinação para o labirinto. Uma experiência de sete solidões. Ouvidos novos para música nova. Olhos novos para o mais distante. Uma consciência nova para verdades que até agora permaneceram mudas. E um desejo de economia em grande estilo – acumular sua força, seu entusiasmo... Auto-reverência, amor-próprio, absoluta liberdade para consigo...

Muito bem! Apenas esses são meus leitores, meus verdadeiros leitores, meus leitores predestinados: que importância tem o resto? – O resto é somente a humanidade. – É preciso tornar-se superior à humanidade em poder, em grandeza de alma – em desprezo...

Friedrich Nietzsche

I
– Olhemos-nos face a face. Somos hiperbóreos(1) – sabemos muito bem quão remota é nossa morada. “Nem por terra nem por mar encontrarás o caminho aos hiperbóreos”: mesmo Píndaro, em seus dias, sabia tanto sobre nós. Além do Norte, além do gelo, além da morte – nossa vida, nossa felicidade... Nós descobrimos essa felicidade; nós conhecemos o caminho; retiramos essa sabedoria dos milhares de anos no labirinto. Quem mais a descobriu? – O homem moderno? – “Eu não conheço nem a saída nem a entrada; sou tudo aquilo que não sabe nem sair nem entrar” – assim suspira o homem moderno... Esse é o tipo de modernidade que nos adoeceu – a paz indolente, o compromisso covarde, toda a virtuosa sujidade do moderno Sim e Não. Essa tolerância e largeur(2) de coração que tudo “perdoa” porque tudo “compreende” é um siroco(3)para nós. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes modernas e outros ventos do sul!... Fomos bastante corajosos; não poupamos a nós mesmos nem os outros; mas levamos um longo tempo para descobrir aonde direcionar nossa coragem. Tornamo-nos tristes; nos chamaram de fatalistas. Nosso destino – ele era a plenitude, a tensão, o acumular de forças. Tínhamos sede de relâmpagos e grandes feitos; mantivemo-nos o mais longe possível da felicidade dos fracos, da “resignação”... Nosso ar era tempestuoso; nossa própria natureza tornou-se sombria – pois ainda não havíamos encontrado o caminho. A fórmula de nossa felicidade: um Sim, um Não, uma linha reta, uma meta...
1 – Os Gregos acreditavam que no extremo Norte da Terra vivia um povo que gozava de felicidade eterna, os hiperbóreos, que nunca guerreavam, adoeciam ou envelheciam. Sem a ajuda dos Deuses, seu território era inalcançável. (N. do T.)
2 – Grandeza.
3 – Vento asfixiante, quente e empoeirado originário de desertos. (N. do T.)
II
O que é bom? – Tudo que aumenta, no homem, a sensação de poder, a vontade de poder, o próprio poder.
O que é mau? – Tudo que se origina da fraqueza.
O que é felicidade? – A sensação de que o poder aumenta – de que uma resistência foi superada.
Não o contentamento, mas mais poder; não a paz a qualquer custo, mas a guerra; não a virtude, mas a eficiência (virtude no sentido da Renascença, virtu(1), virtude desvinculada de moralismos).
Os fracos e os malogrados devem perecer: primeiro princípio de nossa caridade. E realmente deve-se ajudá-los nisso.
O que é mais nocivo que qualquer vício? – A compaixão posta em prática em nome dos malogrados e dos fracos – o cristianismo...
1 – “Vir”, em latim, significa “varão”, “homem”. Ou seja, “virtu”, neste “sentido da Renascença”, designa qualidades viris como força, bravura, vigor, coragem, e não humildade, compaixão, etc. (N. do T.)
III
O problema que aqui apresento não consiste em rediscutir o lugar humanidade na escala dos seres viventes (– o homem é um fim –): mas que tipo de homem deve ser criado, que tipo deve ser pretendido como sendo o mais valioso, o mais digno de viver, a garantia mais segura do futuro.
Este tipo mais valioso já existiu bastantes vezes no passado: mas sempre como um afortunado acidente, como uma exceção, nunca como algo deliberadamente desejado. Com muita freqüência esse foi precisamente o tipo mais temido; até ao presente foi considerado praticamente o terror dos terrores; – e devido a esse terror, o tipo contrário foi desejado, cultivado e atingido: o animal doméstico, o animal de rebanho, a doentia besta humana: o cristão...
IV
Pelo que aqui se entende como progresso, a humanidade certamente não representa uma evolução em direção a algo melhor, mais forte ou mais elevado. Este “progresso” é apenas uma idéia moderna, ou seja, uma idéia falsa. O Europeu de hoje, em sua essência, possui muito menos valor que o Europeu da Renascença; o processo da evolução não significa necessariamente elevação, melhora, fortalecimento.
É bem verdade que ela tem sucesso em casos isolados e individuais em várias partes da Terra e sob as mais variadas culturas, e nesses casos certamente se manifesta um tipo superior; um tipo que, comparado ao resto da humanidade, parece uma espécie de super-homem. Tais golpes de sorte sempre foram possíveis e, talvez, sempre serão. Até mesmo raças inteiras, tribos e nações podem ocasionalmente representar tais ditosos acidentes.
V
Não devemos enfeitar nem embelezar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra este tipo de homem superior, anatematizou todos os instintos mais profundos desse tipo, destilou seus conceitos de mal e de maldade personificada a partir desses instintos – o homem forte como um réprobo, como “degredado entre os homens”. O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo e fracassado; forjou seu ideal a partir da oposição a todos os instintos de preservação da vida saudável; corrompeu até mesmo as faculdades daquelas naturezas intelectualmente mais vigorosas, ensinando que os valores intelectuais elevados são apenas pecados, descaminhos, tentações. O exemplo mais lamentável: o corrompimento de Pascal, o qual acreditava que seu intelecto havia sido destruído pelo pecado original, quando na verdade tinha sido destruído pelo cristianismo! –
VI
Um doloroso e trágico espetáculo surge diante de mim: retirei a cortina da corrupção do homem. Essa palavra, em minha boca, é isenta de pelo menos uma suspeita: a de que envolve uma acusação moral contra a humanidade. A entendo – e desejo enfatizar novamente – livre de qualquer valor moral: e isso é tão verdade que a corrupção de que falo é mais aparente para mim precisamente onde esteve, até agora, a maior parte da aspiração à “virtude” e à “divindade”. Como se presume, entendo essa corrupção no sentido de decadência: meu argumento é que todos os valores nos quais a humanidade apóia seus anseios mais sublimes são valores de decadência.
Denomino corrompido um animal, uma espécie, um indivíduo, quando perde seus instintos, quando escolhe, quando prefere o que lhe é nocivo. Uma história dos “sentimentos elevados”, dos “ideais da humanidade” – e é possível que tenha de escrevê-la – praticamente explicaria por que o homem é tão degenerado. A própria vida apresenta-se a mim como um instinto para o crescimento, para a sobrevivência, para a acumulação de forças, para o poder: sempre que falta a vontade de poder ocorre o desastre. Afirmo que todos os valores mais elevados da humanidade carecem dessa vontade – que os valores de decadência, de niilismo, agora prevalecem sob os mais sagrados nomes.
VII
Chama-se cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as paixões tônicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde poder quando se compadece. Através da perda de força causada pela compaixão o sofrimento acaba por multiplicar-se. O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão; sob certas circunstancias pode levar a um total sacrifício da vida e da energia vital – uma perda totalmente desproporcional à magnitude da causa (– o caso da morte de Nazareno). Essa é uma primeira perspectiva; há, entretanto, outra mais importante. Medindo os efeitos da compaixão através da intensidade das reações que produz, sua periculosidade à vida mostra-se sob uma luz muito mais clara. A compaixão contraria inteiramente lei da evolução, que é a lei da seleção natural. Preserva tudo que está maduro para perecer; luta em prol dos desterrados e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, dá à própria vida um aspecto sombrio e dúbio. A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (– em todo sistema de moral superior ela aparece como uma fraqueza –); indo mais adiante, chamaram-na a virtude, a origem e fundamento de todas as outras virtudes – mas sempre mantenhamos em mente que esse era o ponto de vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo há a inscrição negação da vida. Schopenhauer estava certo nisto: através a compaixão a vida é negada, e tornada digna de negação – a compaixão é uma técnica de niilismo. Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso opõe-se a todos os instintos que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida: no papel de defensor dos miseráveis, é um agente primário na promoção da decadência – compaixão persuade à extinção... É claro, ninguém diz “extinção”: dizem “o outro mundo”, “Deus”, “a verdadeira vida”, Nirvana, salvação, bem-aventurança... Essa inocente retórica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito menos inocente quando se percebe a tendência que oculta sob palavras sublimes: a tendência à destruição da vida. Schopenhauer era hostil à vida: esse foi o porquê de a compaixão, para ele, ser uma virtude... Aristóteles, como todos sabem, via na compaixão um estado mental mórbido e perigoso, cujo remédio era um purgativo ocasional: considerava a tragédia como sendo esse purgativo. O instinto vital deveria nos incitar a buscar meios de alfinetar quaisquer acúmulos patológicos e perigosos de compaixão, como os presentes no caso de Schopenhauer (e também, lamentavelmente, em toda a nossa décadence literária, de St. Petersburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner), para que ele estoure e se dissipe... Nada é mais insalubre, em toda nossa insalubre modernidade, que a compaixão cristã. Sermos os médicos aqui, sermos impiedosos aqui, manejarmos a faca aqui – tudo isso é o nosso serviço, é o nosso tipo de humanidade, é isso que nos torna filósofos, nós, hiperbóreos! –
VIII
É necessário dizer quem consideramos nossos adversários: os teólogos e tudo que tem sangue teológico correndo em suas veias – essa é toda a nossa filosofia... É necessário ter visto essa ameaça de perto, melhor ainda, é preciso tê-la vivido e quase sucumbido por ela, para compreender que isso não é qualquer brincadeira (– o alegado livre-pensamento de nossos naturalistas e fisiologistas me parece uma brincadeira – não possuem a paixão nessas coisas; não sofreram –). Este envenenamento vai muito mais longe do que a maioria imagina: encontro o arrogante hábito de teólogo entre todos aqueles que se consideram “idealistas”, entre todos que, em virtude uma origem superior, reivindicam o direito de se colocarem acima da realidade, e olhá-la com suspeita... O idealista, assim como o eclesiástico, carrega todos os grandes conceitos em sua mão (– e não apenas em sua mão!); os lança com um benevolente desprezo contra o “entendimento”, os “sentidos”, a “honra”, o “bem viver”, a “ciência”; vê tais coisas abaixo de si, como forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais “o espírito” plana como a coisa pura em si – como se a humildade, a castidade, a pobreza, em uma palavra, a santidade, não tivessem causado muito mais dano à vida que quaisquer outros horrores e vícios... O puro espírito é a pura mentira... Enquanto o padre, esse negador, caluniador e envenenador da vida por profissão for aceito como uma variedade de homem superior, não poderá haver resposta à pergunta: Que é a verdade?(1)A verdade já foi posta de cabeça para baixo quando o advogado do nada foi confundido com o representante da verdade.
1 – Alusão à passagem bíblica (Novo Testamento, Evangelho segundo João 18:38) na qual Pilatos pergunta a Jesus: “Que é a verdade?”. (N. do T.)
IX
É contra este instinto teológico que guerreio: encontro vestígios dele por toda parte. Todo aquele que possui sangue teológico em suas veias é cínico e desonrado em todas as coisas. Ao pathos(1) que se desenvolve dessa condição denomina-se fé: em outras palavras, fechar os olhos ante si mesmo de uma vez por todas para evitar o sofrimento causado pela visão de uma falsidade incurável. As pessoas constroem um conceito de moral, de virtude, de santidade a partir dessa falsa perspectiva das coisas; fundamentam a boa consciência sobre uma visão falseada; após terem-na tornado sacrossanta com os nomes “Deus”, “salvação” e “eternidade” não aceitam mais que qualquer outro tipo de visão possa ter valor. Descubro este instinto teológico em todas direções: é a mais disseminada e mais subterrânea forma de falsidade que se pode encontrar na Terra. Tudo que um teólogo considera verdadeiro é necessariamente falso: aqui temos praticamente um critério da verdade. Seu profundo instinto de autopreservação não lhe permite honrar ou sequer mencionar a verdade. Onde quer que a influência dos teólogos seja sentida, há uma transmutação de valores, os conceitos de “verdadeiro” e “falso” são forçados a inverter suas posições: tudo que é mais prejudicial à vida é nomeado “verdadeiro”, tudo que a exalta, a intensifica, a afirma, a justifica e a torna triunfante é nomeado “falso”... Quando teólogos, através “consciência” dos príncipes (ou dos povos –), estendem suas mãos ao poder, não há qualquer dúvida quanto a este aspecto fundamental: que o anseio pelo fim, a vontade niilista, aspira ao poder...
1 – O termo phatos vem do grego, significando “sentimento”, “emoção” “paixão”. Opõe-se a logos, pensamento racional, lógico. (N. do T.)
X
Entre os alemães sou imediatamente compreendido quando digo que o sangue teológico é a ruína da filosofia. O pastor protestante é o avô da filosofia alemã; o protestantismo em si é o peccatum originale(1). Definição do protestantismo: paralisia hemiplégica(2) do cristianismo – e da razão... Precisa-se apenas pronunciar as palavras “Escola de Tübingen”(3) para compreender o que é, no fundo, a filosofia alemã – uma forma muito astuta de teologia... Os suevos são os melhores mentirosos da Alemanha; mentem com inocência... Qual o porquê de toda alegria que se estendeu pelo universo erudito da Alemanha – que é formado em três quartos por filhos de pastores e professores – com o aparecimento de Kant? Por que ainda ecoa na convicção alemã que com Kant houve uma mudança para melhor? O instinto teológico dos estudiosos alemães os fez enxergar nitidamente o que tinha se tornado possível novamente... Abria-se um caminho que conduzia de volta ao velho ideal; os conceitos de “mundo verdadeiro” e de moral como essência do mundo (– os dois erros mais viciosos que já existiram!)
estavam, uma vez mais, graças a um ceticismo sutil e astucioso, se não demonstráveis, pelo menos irrefutáveis... A razão, o direito da razão, não vai tão longe... A realidade foi relegada a uma “aparência”; um mundo absolutamente falso – o da essência – foi transformado na realidade... O sucesso de Kant foi um sucesso meramente teológico; assim como Lutero ou Leibniz, ele não foi senão um empecilho à já pouco estável integridade alemã. –
1 – Pecado original.
2 – Hemiplegia designa paralisia de um dos lados do corpo.
3 – A Escola de Tübingen (fundada em 1477) possui uma famosa faculdade de teologia, na qual estudaram Hegel e Johannes Kepler. (N. do T.)
XI
Agora uma palavra contra Kant como moralista. A virtude deve ser nossa invenção; deve surgir de nossa necessidade pessoal e em nossa defesa. Em qualquer outro caso é fonte de perigo. Tudo que não pertence à vida representa uma ameaça a ela; uma virtude nascida simplesmente do respeito ao conceito de “virtude”, como Kant a desejava, é perniciosa. A “virtude”, o “dever”, o “bem em si”, a bondade fundamentada na impessoalidade ou na noção de validez universal – são todas quimeras, e nelas apenas encontra-se a expressão da decadência, o último colapso vital, o espírito chinês de Konigsberg(1). Exatamente o contrário é exigido pelas mais profundas leis da autopreservação e do crescimento: que cada homem crie sua própria virtude, seu próprio imperativo categórico(2). Uma nação se reduz a ruínas quando confunde seu dever com o conceito universal de dever. Nada conduz a um desastre mais cabal e pungente que todo dever “impessoal”, todo sacrifício ao Moloch(3) da abstração. – E imaginar que ninguém pensou no imperativo categórico de Kant como algo perigoso à vida!... Somente o instinto teológico tomou-o sob sua proteção! – Uma ação suscitada pelo instinto vital prova estar correta pela quantidade de prazer que gera: e ainda assim esse niilista, com suas vísceras de dogmatismo cristão, considerava o prazer como uma objeção... O que destrói um homem mais rapidamente que trabalhar, pensar e sentir sem uma necessidade interna, sem um profundo desejo pessoal, sem prazer – como um mero autômato do dever? Essa é tanto uma receita para a décadence(4) quanto para a idiotice... Kant tornou-se um idiota. – E ele era contemporâneo de Goethe! Este calamitoso fiandeiro de teias de aranha foi reputado o filósofo alemão par excellence(5) – e continua a sê-lo!... Abstenho-me de dizer o que penso dos alemães... Kant não viu na Revolução Francesa a transformação do estado da forma inorgânica para a orgânica? Não perguntou a si mesmo se havia algum evento que não poderia ser explicado exceto através de uma disposição moral no homem, para que, fundamentada nisso, “a tendência da humanidade ao bem”
pudesse ser explicada de uma vez por todas? Resposta de Kant: “Isso é a revolução”. O instinto que engana sobre toda e qualquer coisa, o instinto como revolta contra a natureza, a decadência alemã em forma de filosofia – isso é Kant!
1 – Cidade da Prússia onde Kant nasceu e passou toda a sua vida. Por isso, também é conhecido como “filósofo de Köenizberg”. (Pietro nasseti)
2 – Conceito kantiano. Considera-se imperativo uma proposição que tenha a forma de comando, de imposição e, em particular, de um comando ou ordem que o espírito dá a si próprio, Kant distinguia duas espécies de imperativos: o hipotético (ou condicional), quando a ordem ou determinação está subordinada como meio para atingir um determinado fim (ex.: sê justo, se queres ser respeitado); e o categórico (ou não-condicional), se a ordem é incondicional (ex. sê justo). Para Kant só existia um imperativo categórico fundamental (e é a esse que Nietzsche se refere) cuja fórmula é: “Age de tal maneira que o motivo que te levou a agir possa ser convertido em lei universal”. (Pietro nasseti)
3 – Divindade adorada pelos amonitas e moabitas, à qual sacrificavam crianças em troca de boas colheitas e vitória nas guerras. (N. do T.)
4 – Decadência.
5 – Por excelência.
XII
Ponho à parte uns poucos céticos, os tipos decentes na história da filosofia: o resto não possui a menor noção de integridade intelectual. Comportam-se como donzelas, todos esses grandes entusiastas e prodígios – consideram os “belos sentimentos” como argumentos, o “peito estufado” como o sopro de uma inspiração divina, a convicção como um critério da verdade. Ao final, com “alemã” inocência, Kant tentou dar um caráter científico a essa forma de corrupção, essa falta de consciência intelectual, chamando-a de “razão prática”. Deliberadamente inventou uma variedade de razões para usar ocasionalmente quando fosse desejável não se preocupar a razão – isto é, quando a moral, quando o sublime comando “tu deves” fosse ouvido. Lembrando do fato que, entre todos os povos, o filósofo não representa nada mais que o desenvolvimento dos velhos sacerdotes, essa herança sacerdotal, essafraude contra si mesmo deixa de ser algo surpreendente. Quando um homem sente que possui uma missão divina, digamos, melhorar, salvar ou libertar a humanidade – quando um homem sente uma faísca divina em seu coração e acredita ser o porta-voz de imperativos supranaturais – quando tal missão o inflama, é
simplesmente natural que ele coloque-se acima dos níveis de julgamento meramente racionais. Sente a si próprio como santificado por essa missão, sente que faz parte de uma ordem superior!... O que padres têm a ver com filosofia! Estão muito acima dela! – E até agora os padres reinaram! – Determinaram o significado dos conceitos de “verdadeiro” e “falso”!
XIII
Não subestimemos este fato: que nós mesmos, nós, espíritos livres, já somos a “transmutação de todos os valores”, uma manifesta declaração de guerra e uma vitória contra todos os velhos conceitos de “verdadeiro” e “falso”. As intuições mais valiosas são as mais tardiamente adquiridas; as mais valiosas de todas são aquelas que determinam os métodos. Todos os métodos, todos os princípios do espírito científico de hoje foram alvo, por milhares de anos, do mais profundo desprezo; caso um homem se interessasse por eles era excluído da sociedade das pessoas “decentes” – passava por “inimigo de Deus”, por zombador da verdade, por “possesso”. Enquanto homem da ciência, pertencia à Chandala(1)... Tivemos contra nós toda a patética estupidez da humanidade – toda a noção que tinham do que a verdade deveria ser, de qual deveria ser a função da verdade – todo o seu “tu deves” era arremessado contra nós... Nossos objetivos, nossos métodos, nossa calma, cautela, desconfiança – para eles tudo isso parecia algo absolutamente indecoroso e desprezível. – Olhando para trás, alguém até poderia perguntar-se, com alguma razão, se não foi, na verdade, um senso estético que manteve os homens cegos por tanto tempo: o que exigiam da verdade era uma eficiência pitoresca, e daquele em busca do conhecimento uma forte impressão sobre seus sentidos. Foi nossa modéstia que por tanto tempo lhes desceu a contragosto... Quão bem o adivinharam, esses pavões da divindade!
1 – Chandala é a casta mais baixa no sistema hindu. (N. do T.)
XIV
Nós desaprendemos algo. Nos tornamos mais modestos em todos os sentidos. Não derivamos mais o homem do “espírito”, do “desejo de Deus”; rebaixamos o homem a um mero animal. O consideramos o mais forte entre eles porque é o mais astuto; um dos resultados disso é sua intelectualidade. Em
contrapartida, nós nos precavemos contra este conceito: de que o homem é o grande objetivo da evolução orgânica. Em verdade, pode ser qualquer coisa, menos a coroa da criação: ao lado dele estão muitos outros animais, todos em similares estágios de desenvolvimento... E mesmo quando dizemos isso, estamos exagerando, pois o homem, relativamente falando, é o mais corrompido e doentio de todos os animais, o mais perigosamente desviado de seus instintos – apesar disso tudo, com certeza, continua a ser o mais interessante! – No que concerne aos animais inferiores, foi Descartes quem primeiro teve a admirável ousadia de descrevê-los como uma machina(1); toda a nossa fisiologia é um esforço para provar a veracidade dessa doutrina. Entretanto, é ilógico colocar o homem à parte, como fez Descartes: todo o conhecimento que temos sobre o homem aponta precisamente ao que o consideramos: uma máquina. Antigamente, concedíamos ao homem, como herança de algum tipo de ser superior, o que se denominava “livre-arbítrio”; agora lhe retiramos até essa vontade, pois o termo não descreve qualquer coisa que possamos compreender. A velha palavra “vontade” agora designa apenas um tipo de resultado, uma reação individual, que se segue inevitavelmente de uma série de estímulos parcialmente discordantes e parcialmente harmoniosos – a vontade não mais “age” ou “movimenta”... Antigamente pensava-se que a consciência humana, seu “espírito”, era uma evidência de sua origem superior, de sua divindade. Aconselharam-no que, para que se tornasse perfeito, assim como a tartaruga, recolhesse seus sentidos em si mesmo e não tivesse mais contato com coisas terrenas, para escapar de seu “envoltório mortal” – assim apenas restaria sua parte importante, o “puro espírito”. Aqui também pensamos melhor sobre o assunto: para nós a consciência, ou “o espírito”, aparece como um sintoma de uma relativa imperfeição do organismo, como uma experiência, um tatear, um equívoco, como uma aflição que consome força nervosa desnecessariamente – nós negamos que qualquer coisa feita conscientemente possa ser feita com perfeição. O “puro espírito” é uma pura estupidez: retire o sistema nervoso e os sentidos, o chamado “envoltório mortal”, e o resto é um erro de cálculo – isso é tudo!...
1 – Máquina.
XV
No cristianismo, nem a moral nem a religião têm qualquer ponto de contado com a realidade. São oferecidas causas puramente imaginárias (“Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, “livre arbítrio” – ou mesmo o “não-livre”) e efeitos puramente imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “punição”, “remissão dos pecados”). Um intercurso entre seres imaginários (“Deus”, “espíritos”, “almas”); uma história natural imaginária (antropocêntrica; uma negação total do conceito de causas naturais); uma psicologia imaginária (mal-entendidos sobre si, interpretações equivocadas de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis, por exemplo, os estados do nervus sympathicus com a ajuda da linguagem simbólica da idiossincrasia moral-religiosa – “arrependimento”, “peso na consciência”, “tentação do demônio”, “a presença de Deus”); uma teleologia imaginária (o “reino de Deus”, “o juízo final”, a “vida eterna”). –
Esse mundo puramente fictício, com muita desvantagem, se distingue do mundo dos sonhos; o último ao menos reflete a realidade, enquanto aquele falsifica, desvaloriza e nega a realidade. Após o conceito de “natureza” ter sido usado como oposto ao conceito de “Deus”, a palavra “natural” forçosamente tomou o significado de “abominável” – todo esse mundo fictício tem sua origem no ódio contra o natural (– a realidade! –), é evidência de um profundo mal-estar com a efetividade... Isso explica tudo. Quem tem motivos para fugir da realidade? Quem sofre com ela. Mas sofrer com a realidade significa uma existência malograda... A preponderância do sofrimento sobre o prazer é a causa dessa moral e religião fictícias: mas tal preponderância, no entanto, também fornece a fórmula para a décadence...
XVI
Uma crítica da concepção cristã de Deus conduz inevitavelmente à mesma conclusão. – Uma nação que ainda acredita em si mesma possui seu próprio Deus. Nele são honradas as condições que a possibilitam sobreviver, suas virtudes – projeta o prazer que possui em si mesma, seu sentimento de poder, em um ser ao qual pode agradecer por isso. Quem é rico lhe prodigaliza sua riqueza; uma nação orgulhosa precisa de um Deus ao qual pode oferecer sacrifícios... A religião, dentro desses limites, é uma forma de gratidão. O homem é grato por existir: para isso precisa de um Deus. – Tal Deus precisa ser tanto capaz de beneficiar quanto de prejudicar; deve ser capaz representar um amigo ou um inimigo – é admirado tanto pelo bem quanto pelo mal que causa. Castrar esse Deus, contra toda a natureza, transformando-o em um Deus somente bondade, seria contrário à inclinação humana. A humanidade necessita igualmente de um Deus mau e de um Deus bom; não deve agradecer por sua própria existência à mera tolerância e à filantropia... Qual seria o valor de um Deus que desconhecesse o ódio, a vingança, a inveja, o desprezo, a astúcia, a violência? Que talvez nem sequer tenha experimentado os arrebatadores ardeurs(1) da vitória e da destruição? Ninguém entenderia tal Deus: por que alguém o desejaria? – Sem dúvida, quando uma nação está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio futuro, sua esperança de liberdade estão se esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como primeira necessidade e como medida de autopreservação, então precisa também modificar seu Deus. Ele então se torna hipócrita, tímido e recatado; aconselha a “paz na alma”, a ausência de ódio, a indulgência, o “amor” aos amigos e aos inimigos. Torna-se um moralizador por excelência; infiltra-se em toda virtude privada; transforma-se no Deus de todos os homens; torna-se um cidadão privado, um cosmopolita... Noutros tempos representava um povo, a força de um povo, tudo que em suas almas havia de agressivo e sequioso de poder; agora é simplesmente o bom Deus... Na verdade não há outra alternativa para os Deuses: ou são a vontade de poder – no caso de serem os Deuses de uma nação – ou a inaptidão para o poder – e neste caso precisam ser bons.
1 – Ardores.
XVII
Onde quer que, por qualquer forma, a vontade de poder comece enfraquecer, haverá sempre um declínio fisiológico concomitante, uma décadence. A divindade dessa décadence, despida de suas virtudes e paixões masculinas, é convertida forçosamente em um Deus dos fisiologicamente degradados, dos fracos. Obviamente, eles não se denominam os fracos; denominam-se “os bons”... Nenhuma explicação é necessária para se entender em quais momentos da História a ficção dualista de um Deus bom e um Deus mau se tornou possível pela primeira vez. O mesmo instinto que leva os inferiores a reduzir seu próprio Deus à “bondade em si” também os leva a eliminar todas as qualidades do Deus daqueles que lhes são superiores; vingam-se demonizando o Deus de seus dominadores. – O bom Deus, assim como o Diabo – ambos são frutos da décadence. – Como podemos ser tão tolerantes com o simplismo dos teólogos cristãos, aceitando sua doutrina de que a evolução do conceito de Deus a partir do “Deus de Israel”, o Deus de um povo, ao Deus cristão, a essência de toda a bondade, significa um progresso? – Mas até Renan(1) o fez. Como se Renan tivesse o direito ao simplismo! O contrário, na realidade, é o que se faz ver. Quando tudo que é necessário à vida ascendente; quando tudo que é forte, corajoso, imperioso e orgulhoso foi amputado do conceito de Deus; quando se degenerou progressivamente até tornar-se uma bengala para os cansados, uma tábua de salvação aos que se afogam; quando vira o Deus dos pobres, o Deus dos pecadores, o Deus dos incapazes par excellence, e o atributo de “salvador” ou “redentor” continua como o atributo mais essencial da divindade – qual é a significância de tal metamorfose? O que implica tal redução do divino? – Sem dúvida, com isso o “reino de Deus” cresceu. Antigamente, tinha somente seu povo, seus “escolhidos”. Mas desde então saiu perambulando, assim como seu próprio povo, a territórios estrangeiros; desistiu de acomodar-se; e finalmente passou a sentir-se em casa em qualquer lugar, esse grande cosmopolita – até agora possui a “grande maioria” ao seu lado, e metade da Terra. Mas esse Deus da “grande maioria”, esse democrata entre os Deuses, não se tornou um Deus pagão orgulhoso: pelo contrário, continua um judeu, continua um Deus das esquinas, um Deus de todos os recantos e gretas, de todos lugares insalubres do mundo!... Seu reino na Terra, agora, assim como sempre, é um reino do submundo, um reino subterrâneo, um reino-gueto... Ele mesmo é tão pálido, tão fraco, tão décadent... Até o mais pálido entre os pálidos é capaz de dominá-lo – os senhores metafísicos, os albinos do intelecto. Esses teceram teias ao seu redor por tanto tempo que finalmente o hipnotizaram, o transformaram em aranha, em mais um metafísico. E então retornou mais uma vez ao seu velho serviço de tecer o mundo a partir de sua natureza interior sub specie Spinozae(2); após isso se transformou em algo cada vez mais tênue e pálido – tornou-se o “ideal”, o “puro espírito”, o “absoluto”, a “coisa em si”... O colapso de um Deus: ele converte-se na “coisa em si”.
1 – O filólogo e historiador Ernest Renan (1823-1892), que dera a um dos volumes de sua obra-mestra, Les Origines du Christianisme, precisamente o título L’Atnéchrist. O volume continha uma história das heresias. (Rubens Rodrigues Torres Filho)
2 – Frase de sentido duplo: segundo a óptica de Espinoza e sob a forma de aranha. Trata-se de um jogo de palavras baseado no próprio de Espinoza – spinne significa aranha em alemão. (Pietro Nasseti)
XVIII
A concepção cristã de Deus – Deus o como protetor dos doentes, o Deus que tece teias de aranha, o Deus na forma de espírito – é uma das concepções mais corruptas que jamais apareceram no mundo: provavelmente representa o nível mais ínfero da declinante evolução do tipo divino. Um Deus que se degenerou em uma contradição da vida. Em vez de ser sua própria glória e eterna afirmação! Nele declara-se guerra à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus transforma-se na fórmula para todas calúnias contra o “aqui e agora” e para cada mentira sobre “além”! Nele o nada é divinizado e a vontade do nada se faz sagrada!...
XIX
O fato de as raças fortes do Norte da Europa não terem repudiado esse Deus cristão não dá qualquer crédito aos seus dotes religiosos – para não mencionar seus gostos. Deveriam ter sido capazes de sobrepujar tal moribundo e decrépito produto da décadence. Uma maldição paira sobre eles porque não o repeliram; absorveram em seus instintos a enfermidade, a senilidade e a contradição – e a partir de então não criaram mais nenhum Deus. Dois mil anos se passaram – e nem um único Deus novo! Em vez disso, ainda existe como que por algum direito intrínseco – como se fosse um ultimatum(1) e maximum(2) da força criadora de divindades, do creator spiritus(3) da humanidade –, esse deplorável Deus do monótono-teísmo cristão! Essa imagem híbrida da decadência, destilada do nada, da contradição e da imaginação estéril, na qual todos os instintos da décadence, todas as covardias e cansaços da alma encontram sua sanção! –
1 – Última palavra.
2 – Máximo.
3 – Espírito criador.
XX
Em minha condenação do cristianismo certamente espero não injustiçar uma religião análoga que possui um número ainda maior de seguidores: aludo ao budismo. Ambas devem ser consideradas religiões niilistas – são religiões da décadence – mas distinguem-se de um modo bastante notável. Pelo simples fato de poder compará-las, o crítico do Cristianismo está em débito com os estudiosos da Índia. – O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo – é parte de sua herança de vida ser capaz de encarar problemas de modo objetivo e impassível; é o produto de longos séculos de especulação filosófica. O conceito “Deus” já havia se estabelecido antes dele surgir. O budismo é a única religião genuinamente positiva que pode ser encontrada na História, e isso se aplica até mesmo à sua epistemologia (que é um fenomenalismo estrito) – ele não fala sobre “a luta contra o pecado”, mas, rendendo-se à realidade, diz “a luta contra o sofrimento”. Diferenciando-se nitidamente do cristianismo, coloca a autodecepção que existe nos conceitos morais por detrás de si; isso significa, em minha linguagem, além do bem e do mal. – Os dois fatos fisiológicos nos quais se apóia e aos quais direciona a maior parte de sua atenção são: primeiro, uma excessiva sensibilidade à sensação que se manifesta através de uma refinada suscetibilidade ao sofrimento; segundo, uma extraordinária espiritualidade, uma preocupação muito prolongada com os conceitos e com os procedimentos lógicos, sob a influência da qual o instinto de personalidade submete-se à noção de “impessoalidade” (– ambos esses estados serão familiares a alguns de meus leitores, os objetivistas, por experiência própria, assim como são para mim). Esses estados fisiológicos produzem uma depressão, e Buda tentou combatê-la através de medidas higiênicas. Prescreveu a vida ao ar livre, a vida nômade; moderação na alimentação e uma cuidadosa seleção dos alimentos; prudência em relação ao uso de intoxicantes; igual cautela em relação a quaisquer paixões que induzem comportamentos biliosos e aquecimento do sangue; finalmente, não se preocupar nem consigo nem com os outros. Encoraja idéias que produzam serenidade ou alegria – e encontra meios de combater as idéias de outros tipos. Entende o bem, o estado de bondade, como algo que promove a saúde. A oração não está inclusa, e nem o asceticismo. Não há um imperativo categórico ou qualquer disciplina, mesmo dentro dos monastérios (– dos quais é sempre permitido sair –). Todas essas coisas seriam simplesmente meios para aumentar aquela excessiva sensibilidade supramencionada. Pelo mesmo motivo não advoga qualquer conflito contra os incrédulos; seus ensinamentos não antagonizam nada senão a vingança, a aversão, o ressentimento (– “inimizade nunca põe fim à inimizade”: o refrão que move o budismo...) E nisso tudo estava correto, pois são precisamente essas paixões que, na perspectiva de seu principal objetivo regimental, são insalubres. A fadiga mental que apresenta, já claramente evidenciada pelo excesso de “objetividade” (isto é, a perda do interesse em si mesmo, a perda do equilíbrio e do “egoísmo”), é combatida por vigorosos esforços a fim de levar os interesses espirituais de volta ao ego. Nos ensinamentos de Buda o egoísmo é um dever. A “única coisa necessária”, a questão “como posso me libertar do sofrimento”, é o que rege e determina toda a dieta espiritual (– talvez alguém lembrar-se-á daquele ateniense que também declarou guerra ao “cientificismo” puro, a saber, Sócrates, que também elevou o egoísmo à condição de princípio moral).
XXI
As necessidades do budismo são um clima extremamente ameno, muita gentileza e liberalidade nos costumes, e nenhum militarismo; ademais, que seu início provenha das classes mais altas e educadas. Alegria, serenidade e ausência de desejo são os objetivos principais, e eles são alcançados. O budismo não é uma religião na qual a perfeição é meramente objeto de aspiração: a perfeição é algo normal. – No cristianismo os instintos dos subjugados e dos oprimidos vêm em primeiro lugar: apenas os mais rebaixados buscam a salvação através dele. Nele o passatempo prevalecente, a cura favorita para o enfado, é a discussão sobre pecados, a autocrítica, a inquisição da consciência; nele a emoção produzida pelo poder (chamada de “Deus”) é insuflada (pela reza); nele o bem mais elevado é considerado algo inatingível, uma dádiva, uma “graça”. Também falta transparência: o encobrimento e os lugares obscurecidos são cristãos. Nele o corpo é desprezado e a higiene é acusada de lascívia; a Igreja distancia-se até da limpeza (– a primeira providência cristã após a expulsão dos mouros foi fechar os banhos públicos, dos quais havia 270 apenas em Córdoba). Também é cristã uma certa crueldade para consigo e para com os outros; o ódio aos incrédulos; o desejo de perseguir. Idéias sombrias e inquietantes ocupam o primeiro plano; os estados mentais mais estimados, portando os nomes mais respeitáveis, são epileptiformes; a dieta é determinada com o fim de engendrar sintomas mórbidos e supra-estimulação nervosa. Também é cristã toda a inimizade mortal aos senhores da terra, aos “aristocratas” – juntamente com uma rivalidade secreta contra eles (– resignam-se do “corpo” – querem apenas a “alma”...). É cristão todo o ódio contra o intelecto, o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem intelectual; o ódio aos sentidos, à alegria dos sentidos, à alegria em geral, é cristão...
XXII
Quando o cristianismo abandonou sua terra natal, aqueles das classes mais baixas, o submundo da
Antigüidade, e começou a buscar poder entre os povos bárbaros, não tinha mais de se relacionar com homens exauridos, mas homens ainda intimamente selvagens e capazes de sacrifícios – em suma, homens fortes, mas atrofiados. Aqui, distintamente do caso dos budistas, a causa do descontentamento consigo, do sofrimento por si, não é meramente uma sensibilidade extremada e uma suscetibilidade à dor, mas, ao contrário, uma excessiva ânsia por infligir sofrimento aos outros, uma tendência a obter uma satisfação subjetiva em feitos e idéias hostis. O cristianismo tinha de adotar conceitos e valorações bárbaras para obter domínio sobre os bárbaros: assim como, por exemplo, o sacrifício do primogênito, a ingestão de sangue como um sacramento, o desprezo pelo intelecto e pela cultura; a tortura sob todas as suas formas, corporal e espiritual; toda a pompa do culto. O budismo é uma religião para pessoas em um estágio mais adiantado de desenvolvimento, para raças que se tornaram gentis, amenas e demasiado espiritualizadas (– a Europa ainda não está madura para ele –): é um convite de retorno à paz e à felicidade, a um cuidadoso racionamento do espírito, a um certo enrijecimento do corpo. O cristianismo visa dominar animais de rapina; sua estratégia consiste em torná-los doentes – enfraquecer é a receita cristã para domesticar, para “civilizar”. O budismo é uma religião para o final, para os derradeiros estágios de cansaço da civilização. O cristianismo surge antes da civilização mal ter começado – sob certas circunstâncias cria as próprias fundações desta.
XXIII
O Budismo, eu repito, é uma centena de vezes mais austero, mais honesto, mais objetivo. Não precisa mais justificar suas aflições, sua suscetibilidade ao sofrimento, interpretando essas coisas em termos de pecado – simplesmente diz o que simplesmente pensa: “eu sofro”. Para o bárbaro, entretanto, o sofrimento em si é pouco compreensível: o que necessita é, em primeiro lugar, uma explicação sobre o porquê de seu sofrimento (o seu instinto leva-o a negar completamente seu sofrimento, ou a suportá-lo em silêncio). Aqui a palavra “Diabo” era uma bênção: o homem devia possuir um inimigo onipotente e terrível – não havia motivos para envergonhar-se por sofrer nas mãos de tal inimigo.
– No seu íntimo o cristianismo possui várias sutilezas que pertencem ao Oriente. Em primeiro lugar, sabe que é de pouca relevância se uma coisa é verdadeira ou não, desde que se acredite que é verdadeira. Verdade e fé: aqui temos dois mundos de idéias inteiramente distintas, praticamente dois mundos diametralmente opostos – os seus caminhos distam milhas um do outro. Entender esse fato a fundo – isso é quase o suficiente, no Oriente, para fazer de alguém um sábio. Os brâmanes sabiam disso, Platão sabia disso, todo estudante de esoterismo sabe disso. Quando, por exemplo, um homem sente qualquer prazer através da idéia de que foi redimido do pecado, não é necessário que seja realmente pecador, mas que simplesmente sinta-se pecador. Mas quando a fé é exaltada acima de tudo, disso segue-se necessariamente o descrédito à razão, ao conhecimento e à investigação meticulosa: o caminho que leva à verdade torna-se proibido. – A esperança, em suas formas mais vigorosas, é um estimulante muito mais poderoso à vida que qualquer espécie de felicidade efetiva. Para o homem resistir ao sofrimento deve possuir uma esperança tão elevada que nenhum conflito com a realidade possa destruí-la – de fato, tão elevada que nenhuma conquista possa satisfazê-la: uma esperança que alcança além deste mundo (precisamente por causa do poder que a esperança tem de fazer os sofredores persistirem, os gregos a consideravam o mal entre os males, como o mais maligno de todos males; permaneceu no fundo da fonte de todo o mal(1)). – Para que o amor seja possível, Deus deve tornar-se uma pessoa; para que os instintos mais baixos tenham seu espaço, Deus precisa ser jovem. Para satisfazer o ardor das mulheres, um santo formoso deve aparecer na cena; para satisfazer o dos homens, deve haver uma virgem. Tais coisas são necessárias se o cristianismo quiser assumir controle sobre um solo no qual o culto de Afrodite ou de Adônis já tenha estabelecido a noção de como uma adoração deve ser. Insistir na castidade aumenta grandemente a veemência e a subjetividade do instinto religioso – torna o culto mais fervoroso, mais entusiástico, mais espirituoso. – O amor é o estado no qual o homem vê as coisas quase totalmente como não são. A força da ilusão alcança seu ápice aqui, assim como a capacidade para a suavização e para a transfiguração. Quando um homem está apaixonado sua tolerância atinge ao máximo; tolera-se qualquer coisa. O problema consistia em inventar uma religião na qual se pudesse amar: através disso o pior que a vida tem a oferecer é superado – tais coisas sequer serão notadas. – Tudo isso se alcança com as três virtudes cristãs: fé, esperança e caridade: as denomino as três habilidades cristãs. – O budismo encontra-se em um estágio de desenvolvimento demasiado avançado, demasiado positivista para ter esse tipo de astúcia. –
1 – Ou seja, na caixa de Pandora. (H. L. Mencken)
XXIV
Aqui apenas toco superficialmente o problema da origem do cristianismo. A primeira coisa necessária para resolver o problema é a seguinte: que o cristianismo deve ser compreendido apenas a partir da análise do solo em que se originou – não é uma reação contra os instintos judaicos; é sua conseqüência inevitável; é simplesmente mais um passo dentro da intimidante lógica dos judeus. Nas palavras do Salvador: “a salvação vem dos judeus”(1). – A segunda coisa a ser lembrada é esta: que o tipo psicológico do Galileu(2) ainda é reconhecível, mas que apenas em sua forma mais degenerada (mutilado e sobrecarregado com características estrangeiras) pôde servir da maneira em que foi utilizado: como tipo para Salvador da humanidade.
– Os judeus são o povo mais notável da História, pois quando foram confrontados com o dilema do ser ou não ser, escolheram, através de uma deliberação excepcionalmente lúcida, o ser a qualquer preço: esse preço envolvia uma radical falsificação de toda a natureza, de toda a naturalidade, de toda a realidade, de todo o mudo interior e também o exterior. Colocaram-se contra todas aquelas condições sob as quais, até agora, os povos foram capazes de viver, ou até mesmo tiveram o direito de viver; a partir deles se desenvolveu uma idéia que se encontrava em direta oposição às condições naturais – sucessivamente distorceram a religião, a civilização, a moral, a história e a psicologia até as transformar em uma contradição de sua significação natural. Nós encontramos o mesmo fenômeno mais adiante, em uma forma incalculavelmente exagerada, mas apenas como uma cópia: a Igreja cristã, comparada ao “povo eleito”, exibe absoluta ausência de qualquer pretensão à originalidade. Precisamente por esse motivo os judeus são o povo mais funesto de toda a história universal: sua influência causou tal falsificação na racionalidade da humanidade que hoje um cristão pode sentir-se anti-semita sem se dar conta de que ele próprio não é senão a última conseqüência do judaísmo.
Em minha “Genealogia da Moral” apresentei a primeira explicação psicológica dos conceitos subjacentes a estas coisas antitéticas: uma moral nobre e uma moral do ressentimento, a segunda sendo um mero produto da negação da primeira. O sistema moral judaico-cristão pertence à segunda divisão, e em todos os sentidos. Para ser capaz de dizer Não a tudo que representa uma evolução ascendente da vida – isto é, ao bem-estar, ao poder, à beleza, à auto-afirmação – os instintos do ressentimento, aqui completamente transformados em gênio, tiveram de inventar outro mundo no qual a afirmação da vida representasse as maiores malignidades e abominações imagináveis. Psicologicamente, os judeus são pessoas dotadas da mais forte vitalidade, tanto que, quando se viram frente a condições onde a vida era impossível, escolheram voluntariamente, e com um profundo talento para a autopreservação, tomar o lado de todos os instintos que produzem a decadência – não por estarem dominados por eles, mas como que adivinhando neles o poder através do qual “o mundo” poderia ser desafiado. Os judeus são exatamente o oposto dos decadentes: simplesmente foram forçados se mostrar com esse disfarce, e com um grau de habilidade próximo ao non plus ultra(3) do gênio histriônico conseguiram se colocar à frente de todos of movimentos decadentes (– por exemplo, o cristianismo de Paulo –), e assim fazerem-se algo mais forte que qualquer partido de afirmação da vida. Para o tipo de homens que aspiram ao poder no judaísmo e no cristianismo – em outras palavras, a classe sacerdotal – a decadência não é senão um meio. Homens desse tipo têm um interesse vital em tornar a humanidade enferma, em confundir os valores de “bom” e “mau”, “verdadeiro” e “falso” de uma maneira que não é apenas perigosa à vida, mas que também a falsifica.
1 – João 4:22.
2 – A palavra possui forte conotação histórica, pois assim era mais freqüentemente designado Cristo no séc IV, na época das grandes lutas entre pagãos ou helenos, liderados pelo imperador Juliano, e os cristãos alcunhados depreciativamente Galileus, fanáticos do Galileu. (Pietro Nasseti)
3 – Não mais além, isto é, algo inexcedível, que não se ultrapassa.
XXV
A história de Israel é inestimável como uma típica história de uma tentativa de deturpar todos os valores naturais: exponho três fatos corroboram isso. Originalmente, e acima de tudo no tempo da monarquia, Israel manteve uma atitude justa em relação às coisas, ou seja, uma atitude natural. O seu Iavé(1) era a expressão da consciência de seu próprio poder, de sua alegria consigo mesmo, da esperança que tinha em si: através dele os judeus buscavam a vitória e a salvação, através dele esperavam que a natureza lhes desse tudo que fosse necessário para sua existência – acima de tudo, chuva. Iavé é o Deus de Israel e, conseqüentemente, o Deus da justiça: essa é a lógica de toda raça que possui poder em suas mãos e que o utiliza com a consciência tranqüila. Na cerimônia religiosa dos judeus ambos aspectos dessa auto-afirmação ficam manifestos. A nação é grata pelo grande destino que a possibilitou obter domínio; é grata pela benéfica regularidade na mudança das estações e por toda a fortuna que favorece seus rebanhos e colheitas. – Essa visão das coisas permaneceu ideal por um longo período, mesmo após ter sido despojada de validade tragicamente: dentro, a anarquia, fora, os assírios. Mas o povo ainda conservou, como uma projeção de sua mais alta aspiração, a visão de um rei que era ao mesmo tempo um galante guerreiro e um decoroso juiz – foi conservada sobretudo por aquele profeta típico (ou seja, crítico e satírico do momento), Isaías. – Mas toda a esperança foi vã. O velho Deus não podia mais fazer o que fizera noutros tempos. Deveria ter sido abandonado. Mas o que ocorreu de fato? Simplesmente isto: sua concepção foi mudada – sua concepção foi desnaturalizada; esse foi o preço que tiveram de pagar para mantê-lo. – Iavé, o Deus da “justiça” – não está mais de acordo com Israel, não representa mais o egoísmo da nação; agora é apenas um Deus condicionado... A noção pública desse Deus agora se torna meramente uma arma nas mãos de agitadores clericais, que interpretam toda felicidade como recompensa e toda desgraça como punição em termos de obediência ou desobediência a Deus, em termos de “pecado”: a mais fraudulenta das interpretações imagináveis, através da qual a “ordem moral do mundo” é estabelecida e os conceitos fundamentais, “causa” e “efeito”, são colocados de ponta cabeça. Uma vez que o conceito de causa natural é varrido do mundo por doutrinas de recompensa e punição, algum tipo de causalidade inatural torna-se necessária: seguem-se disso todas as outras variedades de negação da natureza. Um Deus que ordena – no lugar de um Deus que ajuda, que dá conselhos, que no fundo é meramente um nome para cada feliz inspiração de coragem e autoconfiança...
A moral já não é mais um reflexo das condições que promovem vida sã e o crescimento de um povo; não é mais um instinto vital primário; em vez disso se tornou algo abstrato e oposto à vida – uma perversão dos fundamentos da fantasia, um “olhar maligno” contra todas as coisas. Que é a moral judaica? Que é a moral cristã? A sorte despida de sua inocência; a infelicidade contaminada com a idéia de “pecado”; o bem-estar considerado como um perigo, como uma “tentação”; um desarranjo fisiológico causado pelo veneno do remorso...
1 – Uma das designações do Deus de Israel utilizadas nos Livros Sagrados. (Pietro Nasseti)
XXVI
O conceito de Deus falsificado; o conceito de moral falsificado; – mas mesmo aqui os feitos dos padres judaicos não cessaram. – Toda a história de Israel não lhes tinha qualquer valor: então a dispensaram! – Tais padres realizaram essa prodigiosa falsificação da qual grande parte da Bíblia é uma evidência documentária; com um grau de desprezo sem paralelos, e em face de toda a tradição e toda a realidade histórica, traduziram o passado de seu povo em termos religiosos, ou seja, converteram-no em um mecanismo imbecil de salvação, através do qual todas ofensas contra Iavé eram punidas e toda devoção recompensada. Nós consideraríamos esse ato de falsificação histórica algo muito mais vergonhoso se a familiaridade com a interpretação eclesiástica da história por milhares anos não tivesse embotado nossas inclinações à retidão inhitoricis(1). E os filósofos apóiam a Igreja: a mentira sobre a “ordem moral do mundo” permeia toda a filosofia, mesmo a mais recente. O que significa uma “ordem moral do mundo”? Significa que existe uma coisa chamada vontade de Deus, a qual determina o que o homem deve ou não fazer; que a dignidade de um povo ou de um indivíduo deve ser medida pelo seu grau de obediência ou desobediência à vontade de Deus; que os destinos de um povo ou de um indivíduo são controlados por essa vontade de Deus, que recompensa ou pune de acordo com a obediência ou desobediência manifestadas. – Em lugar dessa deplorável mentira, a realidade teria isto a dizer: o padre, essa espécie parasitária que existe às custas da toda vida sã, usa o nome de Deus em vão: chama o estado da sociedade humana no qual ele próprio determina o valor de todas as coisas de “o reino de Deus”; chama os meios através dos quais esse estado é alcançado de “vontade de Deus”; com um cinismo glacial, avalia todos povos, todas épocas e todos indivíduos através de seu grau de subserviência ou oposição do poder da ordem sacerdotal. Observemo-lo em serviço: pelas mãos do sacerdócio judaico a grande época de Israel transfigurou-se em uma época de declínio; a Diáspora, com sua longa série de infortúnios, foi transformada em uma punição pela grande época – na qual os padres ainda não significavam nada. Transformaram, de acordo com suas necessidades, os heróis poderosos e absolutamente livres da história de Israel ou em fanáticos miseráveis e hipócritas, ou em homens totalmente “ímpios”. Reduziram todos grandes acontecimentos à estúpida fórmula: “obedientes ou desobedientes a Deus”. – E foram mais adiante: a “vontade de Deus” (em outras palavras, as condições necessárias para a preservação do poder dos padres) tinha de ser determinada – e para tal fim necessitavam de uma “revelação”. Dizendo de modo mais claro, uma enorme fraude literária teve de ser perpetrada, “sagradas escrituras” tiveram de ser forjadas – e então, com grandiosa pompa hierática e dias penitência e muita lamentação pelos longos dias de “pecado” agora terminados, foram devidamente publicadas. A “vontade de Deus”, ao que parece, há muito já havia sido estabelecida; o problema foi que a humanidade negligenciou as “sagradas escrituras”... Mas a “vontade de Deus” já havia sido revelada a Moisés... O que ocorreu? Simplesmente isto: os padres tinham formulado, de uma vez por todas e com a mais estrita meticulosidade, que tributos deveriam ser-lhe pagos, desde o maior até o menor (– não se esquecendo dos mais apetitosos cortes de carne, pois o padre é um grande consumidor de bifes); em suma, ele disse o que desejava ter, qual era a “vontade de Deus”... Desse tempo em diante as coisas se organizam de tal modo que o padre tornou-se indispensável em todos os lugares; em todos os importantes eventos naturais da vida, no nascimento, no casamento, na enfermidade, na morte, para não falar no “sacrifício” (ou seja, na ceia), o sacro-parasita se apresenta para os desnaturalizar – na sua linguagem, para os “santificar”... Pois é necessário salientar isto: que todo hábito natural, toda instituição natural (o Estado, a administração da Justiça, o casamento, os cuidados prestados aos doentes e pobres), tudo que é exigido pelo instinto vital, em suma, tudo que tem valor em si mesmo é reduzido a algo absolutamente imprestável e até transformado no oposto ao que é valoroso pelo o parasitismo dos padres (ou, se alguém preferir, pela “ordem moral do mundo”). O fato precisa de uma sanção – um poder para criarvalores faz-se necessário, e tal poder só pode valorar através da negação da natureza... O padre deprecia e profana a natureza: esse é o preço para que possa existir. – A desobediência a Deus, ou seja, a desobediência ao padre, à lei, agora porta o nome de “pecado”; os meios prescritos para a “reconciliação com Deus” são, é claro, precisamente os que induzem mais eficientemente um indivíduo a sujeitar-se ao padre; apenas ele “salva”. Considerados psicologicamente, os “pecados” são indispensáveis em toda sociedade organizada sobre fundamentos eclesiásticos; são os únicos instrumentos confiáveis de poder; o padre vive do pecado; tem necessidade de que existam “pecadores”... Axioma Supremo: “Deus perdoa a todo aquele que faz penitência” – ou, em outras palavras, a todo aquele que se submete ao padre.
1 – Nas questões históricas.
XXVII
O cristianismo se desenvolveu a partir de um solo tão corrupto que nele todo o natural, todo valor natural, toda realidade se opunha aos instintos mais profundos da classe dominante – surgiu como uma espécie de guerra de morte contra a realidade, e como tal nunca foi superada. O “povo eleito” que para todas as coisas adotou valores sacerdotais e nomes sacerdotais, e que, com aterrorizante lógica, rejeitou tudo que era terrestre como “profano”, “mundano”, “pecaminoso” – esse povo colocou seus instintos em uma fórmula final que era conseqüente até o ponto da auto-aniquilação: como cristianismo, de fato negou mesmo a última forma da realidade, o “povo sagrado”, o “povo eleito”, a própria realidade judaica. O fenômeno tem importância de primeira ordem: o pequeno movimento insurrecional que levou o nome de Jesus de Nazaré é simplesmente o instinto judaico redivivus(1) – em outras palavras, é o instinto sacerdotal que não consegue mais suportar sua própria realidade; é a descoberta de um estado existencial ainda mais abstrato, de uma visão da vida ainda mais irreal que a necessária para uma organização eclesiástica. O cristianismo de fato nega a igreja...
Não sou capaz de determinar qual foi o alvo da insurreição da qual Jesus foi considerado – seja isso verdade ou não – o promotor, caso não seja a Igreja judaica – a palavra “igreja” sendo usada aqui exatamente no mesmo sentido que possui hoje. Era uma insurreição contra “os bons e os justos”, contra os “Santos de Israel”, contra toda a hierarquia da sociedade – não contra a corrupção, mas contra as castas, o privilégio, a ordem, o formalismo. Era uma descrença no “homem superior”, um Não arremessado contra tudo que padres e teólogos defendiam. Mas a hierarquia que foi posta em causa por
esse movimento, ainda que por apenas um instante, era uma jangada que, acima de tudo, era necessária à segurança do povo judaico em meio às “águas” – representava sua última possibilidade de sobrevivência; era o último residuum(2) de sua existência política independente; um ataque contra isso era um ataque contra o mais profundo instinto nacional, contra a mais tenaz vontade de viver de um povo que jamais existiu sobre a Terra. Esse santo anarquista incitou o povo de baixeza abissal, os réprobos e “pecadores”, os chandala do judaísmo a emergirem em revolta contra a ordem estabelecida das coisas – e com uma linguagem que, se os Evangelhos merecem crédito, hoje o conduziria à Sibéria –, esse homem certamente era um criminoso político, ao menos tanto quanto era possível o ser em uma comunidade tão absurdamente apolítica. Foi isso que o levou à cruz: a prova consiste na inscrição colocada sobre ela. Morreu pelos seus pecados – não há qualquer razão para se acreditar, não importa quanto isso seja afirmado, que tenha morrido pelo pecado dos outros. –
1 – Que retornou à vida; ressuscitado.
2 – Resíduo.
XXVIII
Se ele próprio era consciente dessa contradição – ou se, de fato, essa era a única da qual tinha conhecimento – essa é uma questão totalmente distinta. Aqui, pela primeira vez, toco o problema da psicologia do Salvador. – Para começar, confesso que muitos poucos livros, para mim, são mais difíceis de ler que os Evangelhos. Minhas dificuldades são bastante diferentes daquelas que possibilitaram à curiosidade letrada da mente alemã perpetrar um de seus triunfos mais inesquecíveis. Faz um longo tempo desde que eu, como qualquer outro jovem erudito, desfrutava da incomparável obra de Strauss(1) com toda a sapiente laboriosidade de um meticuloso filólogo. Naquele tempo possuía vinte anos: agora sou sério demais para esse tipo de coisa. Que me importam as contradições da “tradição”? Como alguém pode chamar lendas de santos de “tradição”? As histórias de santos são a mais dúbia variedade de literatura existente; examiná-las à luz do método científico na ausência total de documentos corroborativos a mim parece condenar toda a investigação desde suas origens – isso seria simplesmente uma divagação erudita...
1 – David Friedrich Strauss (1808-74), autor de “Das Leben Jesu” (1835-6), uma obra muito famosa em sua época. Nietzsche se refere a ela. (H. L. Mencken)
XXIX
O que me importa é o tipo psicológico do Salvador. Esse tipo talvez seja descrito nos evangelhos, apesar de que em uma forma mutilada e saturada de caracteres estrangeiros – isto é, a despeito dos Evangelhos; assim como a figura de Francisco de Assis se apresenta em suas lendas a despeito de suas lendas. A questão não é a veracidade das evidências sobre seus feitos, seus ditos ou sobre como foi sua morte; a questão é se seu tipo ainda pode ser compreendido, se foi conservado. – Todas as tentativas de que tenho conhecimento de se ler a história da “alma” nos Evangelhos revelam para mim apenas uma lamentável leviandade psicológica. O Senhor Renan, esse arrivista in psychologicis(1), contribuiu às duas noções mais inadequadas concernentes à explicação do tipo de Jesus: a noção de gênio e a de herói (“heros”). Mas se existe alguma coisa essencialmente antievangélica, certamente é a noção de herói. O que os Evangelhos tornam instintivo é precisamente o oposto de todo o esforço heróico, de todo o gosto pelo conflito: a incapacidade de resistência converte-se aqui em algo moral: (“não resistas ao mal” – a mais profunda sentença dos Evangelhos, talvez a verdadeira chave para eles) a saber, na bem-aventurança da paz, da bondade, na incapacidade para a inimizade. Qual o significado da “boa-nova”? – Que verdadeira vida, a vida eterna foi encontrada – não foi meramente prometida, está aqui, está em você; é a vida que se encontra no amor livre de todos os retraimentos e exclusões, livre de todas as distâncias. Todos são filhos Deus, Jesus não reivindica nada apenas para si; como filhos de Deus, todos os homens são iguais... Imagine fazer de Jesus um herói! – E que tremenda incompreensão escorre da palavra “gênio”! Toda nossa concepção do “espiritual”, toda concepção de nossa civilização não possui qualquer sentido no mundo em que Jesus viveu. Falando com o rigor de um fisiologista, uma palavra bastante diferente deveria ser usada aqui... Todos sabemos que há uma sensibilidade mórbida dos nervos táteis que faz com que os sofredores evitem todo o tocar, se retraiam ante a necessidade de agarrar um objeto sólido. Infere-se disso que, em última instância, tal habitatus(2) fisiológico transforma-se em um ódio instintivo contra toda a realidade, em uma fuga ao “intangível”, ao “incompreensível”; uma repugnância por toda fórmula, por todas noções de tempo e espaço, por todo o estabelecido – costumes, instituições, Igreja –; a sensação de estar em casa em um mundo sem contado com a realidade, um mundo exclusivamente “interior”, um mundo “verdadeiro”, um mundo “eterno”... “O reino de Deus está dentro de vós”...
1 – Em assuntos psicológicos.
2 – Comportamento.
XXX
O ódio instintivo contra a realidade: a conseqüência de uma extremada suscetibilidade à dor e irritação – tão intensa que meramente ser “tocado” torna-se insuportável, pois cada sensação manifesta-se muito profundamente.
A exclusão instintiva de toda aversão, toda hostilidade, todas as fronteiras e distâncias no sentimento: a conseqüência de uma extremada suscetibilidade à dor e irritação – tão grande que sente toda a resistência, toda a compulsão à resistência como uma angústia insuportável (– em outros termos, como nocivo, como proibido pelo instinto de autopreservação), e considera a bem-aventurança (alegria) como algo possível apenas após não ser mais necessário oferecer resistência a nada nem a ninguém, nem mesmo ao mal e ao perigoso – amor como única, como a última possibilidade de vida...
Essas são as duas realidades fisiológicas a partir das quais e por causa das quais a doutrina da salvação se desenvolveu. Denomino-as um sublime hedonismo superdesenvolvido assentado sobre um solo completamente insalubre. O que fica mais próximo delas, apesar de misturado com uma grande dose de vitalidade grega e força nervosa, é o epicurismo, a teoria da salvação do paganismo. Epicuro era um típicodecadente: fui o primeiro a reconhecê-lo. – O medo da dor, mesmo da dor infinitamente pequena – o resultado disso não pode ser qualquer coisa exceto uma religião do amor...
XXXI
Antecipadamente dei minha resposta ao problema. Seu pré-requisito é a assunção de que o tipo do Salvador chegou até nós com sua forma altamente distorcida. Tal distorção é muito provável: há muitos motivos para que esse tipo não deva ser transmitido em sua forma pura, completa e livre de acréscimos. O ambiente no qual esta estranha figura se movia deve ter deixado vestígios nela, e ainda mais deve ter sido feito pela história, pelo destino das primeiras comunidades cristãs; a última, de fato, deve ter embelezado o tipo retrospectivamente com caracteres que apenas podem ser compreendidos enquanto finalidades de guerra e propaganda. Aquele mundo estranho e doentio ao qual os Evangelhos nos conduzem – um mundo aparentemente vindo de uma novela russa, no qual a escória da sociedade, as moléstias nervosas e a idiotice “pueril” se reúnem – deve, de qualquer modo, ter tornado o tipo grosseiro: os primeiros discípulos, em particular, devem ter sido forçados a traduzir, com sua crueza própria, um ser totalmente formado por símbolos e coisas ininteligíveis para poderem compreender alguma coisa – na visão deles o tipo apenas existiu após ter sido reformado em moldes mais familiares... O profeta, o messias, o futuro juiz, o professor de moral, o milagreiro, João Batista – todas simplesmente chances de desfigurá-lo... Finalmente, não subestimemos o proprium(1) de todas as grandes venerações, especialmente as sectárias: tendem a apagar dos objetos venerados todas as características originais e idiossincrasias, não raro dolorosamente estranhas – nem mesmo os vê. Deve-se lamentar muito que nenhum Dostoievski tenha vivido nas vizinhanças do mais interessante dos décadents – ou seja, alguém que teria sentido o comovente encanto de tal mistura do sublime, do mórbido e do infantil. Em última análise, o tipo, enquanto tipo da decadência, talvez possa realmente ter sido peculiarmente complexo e contraditório: não se deve excluir essa possibilidade. Contudo, as probabilidades parecem estar em seu desfavor, pois neste caso a tradição teria sido particularmente precisa e objetiva, enquanto temos razões para admitir o contrário. Entretanto, existe uma contradição entre o pacífico pregador das montanhas, dos lagos e dos campos, que parece como um novo Buda em um solo muito pouco indiano, e o fanático agressivo, o inimigo mortal dos teólogos e dos eclesiásticos, que é glorificado pela malícia de Renan como “lê grand maitre em ironie(2)”. Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que a maior parte desse veneno (e não menos de esprit(3)) haja penetrado no tipo do Mestre apenas como um resultado da agitada natureza da propaganda cristã: todos conhecemos a inescrupulosidade dos sectários quando decidem fazer de seu líder uma apologia para si mesmos. Quando os primeiros cristãos precisaram de um teólogo hábil, contencioso, pugnaz e maliciosamente sutil para enfrentar outros teólogos, criaram um “Deus” para satisfazer tal necessidade, exatamente como também, sem hesitação, colocaram em sua boca certas idéias que eram necessárias a eles, mas totalmente divergentes dos Evangelhos – “a volta de Cristo”, “o juízo final”, todos os tipos de expectativas e promessas temporais. –
1 – Propriedade, qualidade.
2 – O grande mestre em ironia.
3 – Espírito, ironia.
XXXII
Repito que me oponho a todos os esforços para introduzir o fanatismo na figura do Salvador: a própria palavra imperieux(1), usada por Renan, sozinha é suficiente para anular o tipo. A “boa-nova” nos diz simplesmente que não existem mais contradições; o reino de Deus pertence às crianças; a fé anunciada aqui não é mais conquistada por lutas – está ao alcance das mãos, existiu desde o princípio, é um tipo de infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e incompleta dos organismos é familiar aos fisiologistas como sintoma da degeneração. A fé desse tipo não é furiosa, não denuncia, não se defende: não empunha “espada” – não entende como poderia um dia colocar homem contra homem. Não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou “escrituras”: é, do principio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio “reino de Deus”. Essa fé não se formula – simplesmente vive, e assim guarda-se contra fórmulas. Com certeza, a casualidade do
ambiente, da formação educacional dá proeminência aos conceitos de certa espécie: no cristianismo primitivo encontramos apenas noções de caráter judaico-semítico (– a de comer e beber em comunhão pertence a esta categoria – uma idéia que, como tudo que é judaico, foi severamente fustigada pela Igreja). Cuidemo-nos para não ver nisso tudo mais que uma linguagem simbólica, uma semântica(2), uma oportunidade para falar em parábolas. A teoria de que nenhuma palavra deve ser tomada ao pé da letra era um pressuposto para que este anti-realista pudesse discursar. Colocado entre hindus teria usado os conceitos de Shanhya(3), e entre chineses os de Lao-Tsé(4) – e em ambos os casos isso não faria qualquer diferença a ele. – Tomando uma pequena liberdade no uso das palavras, alguém poderia de fato chamar Jesus de “espírito livre(5)” – não lhe importa o que está estabelecido: a palavra mata(6), tudo aquilo que é estabelecido mata. A noção de “vida” como uma experiência, como apenas ele a concebe, a seu ver encontra-se em oposição a todo tipo de palavra, fórmula, lei, crença e dogma. Fala apenas de coisas interiores: “vida”, ou “verdade”, ou “luz”, são suas palavras para o mundo interior – a seu ver todo o resto, toda a realidade, toda natureza, mesmo a linguagem, tem valor apenas como um sinal, uma alegoria. – Aqui é de suprema importância não se deixar conduzir ao erro pelas tentações existentes nos preconceitos cristãos, ou melhor, eclesiásticos: este simbolismo par excellence encontra-se alheio a toda religião, todas noções de adoração, toda história, toda ciência natural, toda experiência mundana, todo conhecimento, toda política, toda psicologia, todos livros, toda arte – sua “sabedoria” é precisamente a ignorância pura(7) em relação a todas essas coisas. Nunca ouviu falar de cultura; não a combate – nem mesmo a nega... O mesmo pode ser dito do Estado, de toda a ordem social burguesa, do trabalho, da guerra – não tem motivos para negar o “mundo”, nem sequer tem conhecimento do conceito eclesiástico de “mundo”... Precisamente a negação lhe era impossível. – De modo idêntico carece de capacidade argumentativa, não acredita que um artigo de fé, que uma “verdade” possa ser estabelecida através de provas (– suas provas são “iluminações” interiores, sensações subjetivas de felicidade e auto-afirmação, simples “provas de força” –). Tal doutrina não pode contradizer: não sabe que outras doutrinas existem ou podem existir, é inteiramente incapaz de imaginar um juízo oposto... E se, porventura, o encontra, lamenta por tal “cegueira” com uma sincera compaixão – pois somente ela vê a “luz” – no entanto não fará quaisquer objeções...
1 – Imperioso.
2 – A palavra semiótica está no texto, mas é provável que semântica seja a palavra que Nietzsche tinha em mente. (H. L. Mencken)
3 – Um dos seis grandes sistemas da filosofia hindu. (H. L. Mencken)
4 – Considerado o fundador do taoísmo. (H. L. Mencken)
5 – O nome que Nietzsche da aos que aceitam sua filosofia. (H. L. Mencken)
6 – Isto é, a rigorosa palavra da lei – o objetivo mais importante nas primeiras pregações de Jesus. (H. L. Mencken)
7 – Referência à “ignorância pura” (reine Thorheit) do Parsifal de Richard Wagner.(H. L. Mencken)
XXXIII
Em toda a psicologia dos Evangelhos os conceitos de culpa e punição estão ausentes, e o mesmo vale para o de recompensa. O “pecado”, que significa tudo aquilo que distancia o homem de Deus, é abolido – essa é precisamente a “boa-nova”. A felicidade eterna não está meramente prometida, nem vinculada a condições: é concebida como a única realidade – todo o restante não são mais que sinais úteis para falar dela.
Os resultados de tal ponto de vista projetam-se em um novo estilo de vida, um estilo de vida especialmente evangélico. Não é a “fé” que o distingue do cristão; a distinção se estabelece através da maneira de agir; ele age diferentemente. Não oferece resistência, nem em palavras, nem em seu coração, àqueles que lhe são opositores. Não vê diferença entre estrangeiros e conterrâneos, judeus e pagãos (“próximo”, é claro, significa correligionário, judeu). Não se irrita com ninguém, não despreza ninguém. Não apela às cortes de justiça nem se submete às suas decisões (“não prestar juramento”(1)). Nunca, quaisquer sejam as circunstâncias, se divorcia de sua esposa, mesmo que possua provas de sua infidelidade. – No fundo, tudo isso é um princípio; tudo surge de um instinto. –
A vida do salvador foi simplesmente professar essa prática – e também em sua morte... Não precisava mais de qualquer formula ou ritual em suas relações com Deus – nem sequer da oração. Rejeitou toda a doutrina judaica do arrependimento e recompensa; sabia que apenas através da vivência, de um estilo de vida alguém poderia se sentir “divino”, “bem-aventurado”, “evangélico”, “filho de Deus”. Não é o “arrependimento”, não são a “oração e o perdão” o caminho para Deus: apenas o modo de viver evangélico conduz a Deus – isso é justamente o próprio o “Deus”! – O que os Evangelhos aboliram foi o judaísmo presente nas idéias de “pecado”, “remissão dos pecados”, “salvação através da fé” – toda a dogmática eclesiástica dos judeus foi negada pela “boa-nova”.
O profundo instinto que leva o cristão a viver de modo que se sinta “no céu” e “imortal”, apesar das muitas razões para sentir que não está “no céu”: essa é a única realidade psicológica na “salvação”. – Uma nova vida, não uma nova fé.
1 – Mateus 5:34.
XXXIV
Se compreendo alguma coisa sobre esse grande simbolista, é isto: que considerava apenas realidades subjetivas como reais, como “verdades” – que viu todo o resto, todo o natural, temporal, espacial e histórico apenas como símbolos, como material para parábolas. O conceito de “Filho de Deus” não designa uma pessoa concreta na história, um indivíduo isolado e definido, mas um fato “eterno”, um símbolo psicológico desvinculado da noção de tempo. O mesmo é válido, no sentido mais elevado, para o Deus desse típico simbolista, para o “reino de Deus” e para a “filiação divina”. Nada poderia ser mais acristão que as cruas noções eclesiásticas de um Deus como pessoa, de um “reino de Deus” vindouro, de um “reino dos céus” no além e de um “filho de Deus” como segunda pessoa da Trindade. Isso tudo – perdoem-me a expressão – é como soco no olho (e que olho!) do Evangelho: um desrespeito aos símbolos elevado a um cinismo histórico-mundial... Todavia é suficientemente óbvio o significado dos símbolos “Pai” e “Filho” – não para todos, é claro –: a palavra “Filho” expressa a entrada em um sentimento de transformação de todas as coisas (beatitude); “Pai” expressa esse próprio sentimento – a sensação da eternidade e perfeição. – Envergonho-me de lembrar o que a Igreja fez com esse simbolismo: ela não colocou uma história de Anfitrião(1) no limiar da “fé” cristã? E um dogma da “imaculada conceição” ainda por cima?... – Com isso conseguiu apenas macular a concepção...
O “reino dos céus” é um estado de espírito – não algo que virá “além do mundo” ou “após a morte”. Toda a idéia de morte natural está ausente nos Evangelhos: a morte não é uma ponte, não é uma passagem; está ausente porque pertence a um mundo bastante diferente, um mundo apenas aparente, apenas útil enquanto símbolo. A “hora da morte” não é uma idéia cristã – “horas”, tempo, a vida física e suas crises são inexistentes para o mestre da “boa-nova”...
O “reino de Deus” não é uma coisa pela qual os homens aguardam: não teve um ontem nem terá um amanhã, não virá em um “milênio” – é uma experiência do coração, está em toda parte e não está em parte alguma...
1 – Mitologia grega. Anfitrião era o filho de Alceu. Alcmena era sua esposa. Durante sua ausência ela foi visitada por Zeus e Heracles. (H. L. Mencken)
XXXV
O “portador da boa-nova” morreu assim como viveu e ensinou – não para “salvar a humanidade”, mas para demonstrar-lhe como viver. Seu legado ao homem foi um estilo de vida: sua atitude ante os juízes, ante os oficiais, ante seus acusadores – sua atitude perante a cruz. Não resiste; não defende seus direitos; não faz qualquer esforço para evitar a maior das penalidades – ainda mais, a convida... E roga, sofre e ama com aqueles, por aqueles que o maltratam. Não se defender, não se encolerizar, não culpar... Mas igualmente não resistir ao mal – amá-lo...
XXXVI
– Nós, espíritos livres – nós somos os primeiros a possuir os pré-requisitos para entender o que, por dezenove séculos, permaneceu incompreendido – temos aquele instinto e paixão pela integridade que declara uma guerra muito mais ferrenha contra a “sagrada mentira” que contra todas as outras mentiras... A humanidade estava indizivelmente distante de nossa benevolente e cautelosa neutralidade, de nossa disciplina de espírito que sozinha torna possível solucionar coisas tão estranhas e sutis: o que os homens sempre buscaram, com descarado egoísmo, foi sua própria vantagem; criaram a Igreja a partir da negação dos Evangelhos...
Todos que procurassem por sinais de uma divindade irônica que maneja os cordéis por detrás do grande drama da existência não encontrariam pequena evidência neste estupendo ponto de interrogação chamado cristianismo. A humanidade ajoelha-se exatamente perante a antítese do que era a origem, o significado e a lei dos Evangelhos – santificaram no conceito de “Igreja” justamente o que o “portador da boa-nova” considerava abaixo si, atrás de si – seria vão procurar por um melhor exemplo de ironia histórico-mundial –
XXXVII
– Nossa época orgulha-se de seu senso histórico: como, então, se permitiu acreditar que a grosseira fábula do fazedor de milagres e Salvador constitui as origens do cristianismo – e que tudo nele de espiritual e simbólico surgiu apenas posteriormente? Muito pelo contrário, toda a história do cristianismo – da morte na cruz em diante – é a história de uma incompreensão progressivamente grosseira de um
simbolismo original. Com toda a difusão do cristianismo entre massas mais vastas e incultas, até mesmo incapazes de compreender os princípios dos quais nasceu, surgiu a necessidade de torná-lo mais vulgar e bárbaro – absorveu os ensinamentos e rituais de todos cultos subterrâneos do imperium Romanum e as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocínio doentio. Era o destino do cristianismo que sua fé se tornasse tão doentia, baixa e vulgar quanto as necessidades doentias, baixas e vulgares que tinha de administrar. O barbarismomórbido finalmente ascende ao poder com a Igreja – a Igreja, esta encarnação da hostilidade mortal contra toda a honestidade, toda grandeza de alma, toda disciplina do espírito, toda humanidade espontânea e bondosa. – Valores cristãos – valores nobres: apenas nós, espíritos livres, restabelecemos a maior das antíteses em matéria de valores!...
XXXVIII
– Não posso, neste momento, evitar um suspiro. Há dias em que sou visitado por um sentimento mais negro que a mais negra melancolia – o desprezo pelos homens. Que não haja qualquer dúvida sobre o que desprezo, sobre quem desprezo: é o homem de hoje, do qual desgraçadamente sou contemporâneo. O homem de hoje – seu hálito podre me asfixia!... Em relação ao passado, como todos estudiosos, tenho muita tolerância, ou seja, um generoso autocontrole: com uma melancólica precaução atravesso milênios inteiros de mundo-manicômio, chamem isso de “cristianismo”, “fé cristã” ou “Igreja cristã”, como desejaram – tomo o cuidado de não responsabilizar a humanidade por sua demência. Mas um sentimento irrefreável irrompe no momento em que entro nos tempos modernos, nos nossos tempos. Nossa época é mais esclarecida... O que era antigamente apenas doentio agora se tornou indecente – é uma indecência ser cristão hoje em dia. E aqui começa minha repugnância. – Olho à minha volta: não resta sequer uma palavra do que outrora se chamava “verdade”; já não suportamos mais que um padre pronuncie tal palavra. Mesmo um homem com as mais modestas pretensões à integridade precisa saber que um teólogo, um padre, um papa de hoje não apenas se engana quando fala, mas na verdade mente – já não se isenta de sua culpa através da “inocência” ou da “ignorância”. O padre sabe, como todos sabem, que não há qualquer “Deus”, nem “pecado”, nem “salvador” – que o “livre arbítrio” e a “ordem moral do mundo” são mentiras –: a reflexão séria, a profunda auto-superação espiritual impedem que quaisquer homens finjam não saber disso... Todas idéias da Igreja agora estão reconhecidas pelo que são – as piores falsificações existentes, inventadas para depreciar a natureza e todos os valores naturais; o padre é visto como realmente é – como a mais perigosa forma de parasita, como a peçonhenta aranha da criação... – Nós sabemos, nossa consciência agora sabe – exatamente qual era o verdadeiro valor de todas essas sinistras invenções do padre e da Igreja e para que fins serviram, com sua desvalorização da humanidade ao nível da autopoluição, cujo aspecto inspira náusea – os conceitos de “outro mundo”, de “juízo final”, de “imortalidade da alma”, da própria “alma”: não passam de instrumentos de tortura, sistemas de crueldade através dos quais o padre torna-se mestre e mantém-se mestre... Todos sabem disso, mas, mesmo assim, nada mudou. Para onde foi nosso último resquício decência, de auto-respeito se nossos homens de Estado, no geral uma classe de homens não convencionais e profundamente anticristãos em seus atos, agora se denominam cristãos e vão à mesa de comunhão?... Um príncipe à frente de seus regimentos, magnificente enquanto expressão do egoísmo e arrogância de seu povo – e mesmo assim declarando, sem qualquer vergonha, que é um cristão!...(1) Quem, então, o cristianismo nega? O que ele chama “o mundo”? Ser soldado, ser juiz, ser patriota; defender-se a si mesmo; zelar pela sua honra; desejar sua própria vantagem; ser orgulhoso... Toda prática trivial, todo instinto, toda valoração convertida em ato agora é anticristã: que monstro de falsidade o homem moderno precisa ser para se denominar um cristão sem envergonhar-se! –
1 – Nietzsche refere-se ao Kaiser Guilherme II, que subira ao trono da Alemanha em 15 de abril de 1888, cinco meses antes da redação de O Anticristo. (Pietro Nasseti)
XXXIX
– Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. – A própria palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O “Evangelho” morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou-se de “Evangelho” era exatamente o oposto do que ele viveu: “más novas”, um Dysangelium(1). É um erro elevado à estupidez ver na “fé”, e particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do cristão: apenas a prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Hoje tal vida ainda é possível, e para certos homens até necessária: o cristianismo primitivo, genuíno, continuará sendo possível em quaisquer épocas... Não fé, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os estados de consciência, uma fé qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como verdade – como todo psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta ordem se comparado ao dos instintos: estritamente falando, todo o conceito de causalidade intelectual é falso. Reduzir o ato ser cristão, o estado de cristianismo, a uma aceitação da verdade, a um mero fenômeno de consciência, equivale a formular uma negação do cristianismo. De fato, não existem cristãos. O “cristão” – aquele que por dois mil anos passou-se por cristão – é simplesmente uma auto-ilusão psicológica. Examinado de perto, parece que, apesar de toda sua “fé”, foi apenas governado por seus instintos – e que instintos! – Em todas as épocas – por exemplo, no caso de Lutero – “fé” nunca foi mais que uma capa, um pretexto, uma cortina por detrás da qual os instintos faziam seu jogo – uma engenhosa cegueira à dominação de certos instintos... Eu já denominei a “fé” uma habilidade especialmente cristã – sempre se fala de “fé” mas se age de acordo com os instintos... No mundo de idéias do cristão não há qualquer coisa que sequer toque a realidade: ao contrário, reconhece-se um ódio instintivo contra a realidade como força motivadora, como único poder de motivação no fundo do cristianismo. Que se segue disso? Que mesmo aqui, in psychologicis, há um erro radical, isto é, determinante da essência, ou seja, da substância. Retire-se uma idéia e coloque-se uma realidade genuína em seu lugar – e todo o cristianismo reduz-se a um nada! – Visto calmamente, este fenômeno é dos mais estranhos, uma religião não apenas dependente de erros, mas inventiva e engenhosa apenas em criar erros nocivos, venenosos à vida e ao coração – constitui um verdadeiro espetáculo para os Deuses – para aquelas divindades que também são filósofas, as quais encontrei, por exemplo, nos célebres diálogos de Naxos. No momento em que a repugnância as deixar (– e também a nós!) ficarão agradecidas pelo espetáculo proporcionado pelos cristãos: talvez por causa desta curiosa exibição somente o miserável e minúsculo planeta chamado Terra mereça olhar divino, uma demonstração de interesse divino... Portanto, não subestimemos os cristãos: o cristão, falso até a inocência, está muito acima do macaco – uma teoria das origens bastante conhecida(2), quando aplicada aos cristãos, torna-se simplesmente uma delicadeza...
1 – Um dos muitos neologismos de Nietzsche. Ele compõe este vocábulo angelium (cuja origem vem do grego e que significa “nova”, “notícia”) fazendo oposição com os prefixos dys (mau, infeliz – “notícia má”) e eu (bom, feliz – “boa nova”, “boa notícia”). (Pietro Nasseti)
2 – Referência à teoria de Charles Darwin sobre as origens do homem. (Pietro Nasseti)
XL
– O destino do Evangelho foi decidido no momento de sua morte – foi pendurado na “cruz”... Somente a morte, essa inesperada e vergonhosa morte; somente a cruz, a qual geralmente era reservada apenas à canalha – somente este assombroso paradoxo colocou os discípulos face a face com o verdadeiro enigma: “Quem era este? Oque era este?” – O sentimento de desalento, de profunda afronta e injúria; a suspeita de que tal morte poderia constituir uma refutação de sua causa; a terrível questão “Por que aconteceu assim?” – esse estado mental é facilmente compreensível. Aqui tudo precisa ser considerado como necessário; tudo precisa ter um significado, uma razão, uma elevadíssima razão; o amor de um discípulo exclui todo o acaso. Apenas então da fenda da dúvida bocejou: “Quem o matou? Quem era seu inimigo natural?” – essa pergunta reluziu como um relâmpago. Resposta: o judaísmo dominante, a classe dirigente. A partir desse momento revoltaram-se contra a ordem estabelecida, começaram a compreender Jesus como um insurrecto contra a ordem estabelecida. Até então este elemento militante, negador estava ausente em sua imagem; ainda mais, isso representava seu próprio oposto. Decerto a pequena comunidade não havia compreendido o que era precisamente o mais importante: o exemplo oferecido pela sua morte, a liberdade, a superioridade sobre todo o ressentimento – uma plena indicação de quão pouco foi compreendido! Tudo que Jesus poderia desejar através de sua morte, em si mesma, era oferecer publicamente a maior prova possível, um exemplo de seus ensinamentos. Mas os discípulos estavam muito longe de perdoar sua morte – apesar de que fazê-lo seria consoante ao evangelho no mais alto grau; e também não estavam preparados para se oferecerem, com doce e suave tranqüilidade de coração, a uma morte similar... Muito pelo contrário, foi precisamente o menos evangélico dos sentimentos, a vingança,
que os possuiu. Parecia-lhes impossível que a causa devesse perecer com sua morte: “recompensa” e “julgamento” tornaram-se necessários (– e o que poderia ser menos evangélico que “recompensa”, “punição” e “julgamento”!). – Uma vez mais a crença popular na vinda de um messias apareceu em primeiro plano; a atenção foi direcionada a um momento histórico: o “reino de Deus” virá para julgar seus inimigos... Mas nisso tudo há um mal-entendido gigantesco: conceber o “reino de Deus” como ato final, como uma simples promessa! O Evangelho havia sido, de fato, a própria encarnação, o cumprimento, a realização desse “reino de Deus”. Foi apenas então que todo o desprezo e acridez contra fariseus e teólogos começaram a aparecer no tipo do Mestre, que com isso foi transformado, ele próprio, em fariseu e teólogo! Por outro lado, a selvagem veneração dessas almas completamente desequilibradas não podia mais suportar a doutrina do Evangelho, ensinada por Jesus, sobre os direitos iguais entre todos os homens à filiação divina: sua vingança consistiu em elevar Jesus de modo extravagante, destarte separando-o deles: exatamente como, em tempos anteriores, os judeus, para vingarem-se de seus inimigos, se separaram de seu Deus e o elevaram às alturas. Este Deus único e este filho único de Deus: ambos foram produtos do ressentimento...
XLI
– E a partir desse momento surgiu um problema absurdo: “Como pôde Deus permiti-lo?” Para o qual a perturbada lógica da pequena comunidade formulou uma resposta assustadoramente absurda: Deus deu seu filho em sacrifício para a remissão dos pecados. De uma só vez acabaram com o Evangelho! O sacrifício pelos pecados, e em sua forma mais obnóxia e bárbara: o sacrifício do inocente pelo pecado dos culpados! Que paganismo apavorante! – O próprio Jesus havia suprimido o conceito de “culpa”, negava a existência de um abismo entre Deus e o homem; ele viveu essa unidade entre Deus e o homem, que era precisamente a sua “boa-nova”... E não como um privilégio! – Desde então o tipo do Salvador foi sendo corrompido, pouco a pouco, pela doutrina do julgamento e da segunda vinda, a doutrina da morte como sacrifício, a doutrina da ressurreição, através da qual toda a noção de “bem-aventurança”, a inteira e única realidade dos Evangelhos é escamoteada – em favor de um estado existencial pós-morte!... Paulo, com aquela insolência rabínica que permeia todos seus atos, deu um caráter lógico a essa concepção indecente deste modo: “Se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, então é vã toda a nossa fé” – E de súbito converteu-se o Evangelho na mais desprezível e irrealizável das promessas, a petulante doutrina da imortalidade do indivíduo... E Paulo a pregava como uma recompensa!...
XLII
Agora se começa a ver justamente o que terminava com a morte na cruz: um esforço novo e totalmente original para fundar um movimento de pacifismo budístico, e assim estabelecer a felicidade na Terra – real, não meramente prometida. Pois esta é – como já demonstrei – a diferença essencial entre as duas religiões da decadência: o budismo não promete, mas de fato cumpre; o cristianismo promete tudo, masnão cumpre nada. – A “boa nova” foi seguida rente aos calcanhares pela “péssima nova”: a de Paulo. Paulo encarna exatamente o tipo oposto ao “portador da boa nova”; representa o gênio do ódio, a visão do ódio, a inexorável lógica do ódio. Oque esse disangelista(1) não ofereceu em sacrifício ao ódio! Acima de tudo, o Salvador: ele pregou-o em sua própria cruz. A vida, o exemplo, o ensinamento, a morte de Cristo, o significado e a lei de todo o Evangelho – nada disso restou após esse falsário, com seu ódio, ter reduzido tudo ao que lhe tivesse utilidade. Certamente não a realidade, certamente não a verdade histórica!... E uma vez mais o instinto sacerdotal do judeu perpetrou o mesmo grande crime contra a História – simplesmente extirpou o ontem e o anteontem do cristianismo e inventou sua própria história das origens do cristianismo. Ainda mais, fez da história de Israel outra falsificação, para que assim se tornasse uma mera pré-história de seus feitos: todos os profetas falavam de seu “Salvador”... Mais adiante a Igreja falsificou até a história da humanidade para transformá-la em uma pré-história do cristianismo... A figura do Salvador, seus ensinamentos, seu estilo de vida, sua morte, o significado de sua morte, mesmo as conseqüências de sua morte – nada permaneceu intocado, nada permaneceu sequer semelhante à realidade. Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade daquela vida inteira para um local detrás desta existência – na mentira do Jesus “ressuscitado”. No fundo, a vida do salvador não lhe tinha qualquer utilidade – o que necessitava era de uma morte na cruz e de algo mais. Ver qualquer coisa honesta em Paulo, cuja casa estava no centro da ilustração estóica, quando converteu uma alucinação em uma prova da ressurreição do Salvador, ou mesmo acreditar na narrativa de que ele próprio sofreu essa alucinação – isso seria uma genuína niaiserie(2) da parte de um psicólogo. Paulo desejava o fim; logo, também desejava os meios. – Aquilo que ele próprio não acreditava foi prontamente engolido por suficientes idiotas entre os quais disseminou seu ensinamento. – Seu desejo era o poder; em Paulo o padre novamente quis chegar ao poder – só podia servir-se de conceitos, ensinamentos e símbolos que tiranizam as massas e formam rebanhos. Qual parte do cristianismo Maomé tomou emprestada mais tarde? A invenção de Paulo, sua técnica para estabelecer a tirania sacerdotal e organizar rebanhos: a crença na imortalidade da alma – isto é, a doutrina do “julgamento”.
1 – “Portador da má notícia”
2 – Parvoíce, tolice.
LXIII
Quando centro de gravidade da vida é colocado, não nela mesma, mas no “além” – no nada –, então se retirou da vida o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão, todo instinto natural – tudo que há nos instintos que seja benéfico, vivificante, que assegure o futuro, agora é causa de desconfiança. Viver de modo que a vida não tenha sentido: agora esse é o “sentido” da vida... Para que o espírito público? Para que se orgulhar pela origem e antepassados? Para que cooperar, confiar, preocupar-se com o bem-estar geral e servir a ele?... Outras tantas “tentações”, outros tantos desvios do “bom caminho”. – “Somente uma coisa é necessária”... Que todo homem, por possuir uma “alma imortal”, tenha tanto valor quanto qualquer outro homem; que na totalidade dos seres a “salvação” de todo indivíduo um possa reivindicar uma importância eterna; que beatos insignificantes e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu favor – não há como expressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie de egoísmos ad infinitum, até a insolência. E, contudo, o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorável bajulação de vaidade pessoal – foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogrados, os insatisfeitos, os vencidos, todo o refugo e vômito da humanidade. A “salvação da alma” – em outras palavras: “o mundo gira ao meu redor”... A venenosa doutrina dos “direitos iguais para todos” foi propagada como um princípio cristão: a partir dos recônditos mais secretos dos maus instintos o cristianismo travou uma guerra de morte contra todos os sentimentos de reverência e distância entre os homens, ou seja, contra o primeiro pré-requisito de toda evolução, de todo desenvolvimento da civilização – do ressentimento das massas forjou sua principal arma contra nós, contra tudo que é nobre, alegre, magnânimo sobre a terra, contra nossa felicidade na Terra... Conceder a “imortalidade” a qualquer Pedro e Paulo foi a maior e mais viciosa afronta à humanidade nobre já perpetrada. – E não subestimemos a funesta influência que o cristianismo exerceu mesmo na política! Atualmente ninguém mais possui coragem para os privilégios, para o direito de dominar, para os sentimentos de veneração por si e seus iguais – para o pathos da distância... Nossa política está debilitada por essa falta de coragem! – Os sentimentos aristocráticos foram subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade das almas; e se a crença nos “privilégios da maioria” faz e continuará a fazer revoluções – é o cristianismo, não duvidemos disso, são as valorações cristãs que convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime! O cristianismo é uma revolta de todas as criaturas rastejantes contra tudo que é elevado: o Evangelho dos “baixos” rebaixa...
XLIV
– Os Evangelhos são inestimáveis como evidência da corrupção já arraigada dentro da comunidade cristã primitiva. O que Paulo, com a cínica lógica de um rabino, posteriormente levou a cabo era no fundo apenas um processo de degradação que se iniciou com a morte do Salvador. – Nenhum esmero é demais na leitura dos Evangelhos; dificuldades se ocultam por detrás de cada palavra. Eu confesso – espero que ninguém me leve a mal – que precisamente por essa razão oferecem um deleite de primeira ordem a um psicólogo – como o oposto de toda corrupção ingênua, como um refinamento par excellence, como uma arte da corrupção psicológica. Os Evangelhos, de fato, estão à parte. A Bíblia em geral não deve ser comparada a eles. Estamos entre judeus: essa é a primeira coisa que devemos ter em mente se não quisermos perder o fio do assunto. A genialidade empregada para criar a ilusão de “santidade” pessoal permanece sem paralelos, tanto nos livros quanto nos homens; essa elevação da falsidade na palavra e nos gestos ao nível de arte – isso tudo não se deve ao acaso de um talento individual, de alguma natureza excepcional. O necessário aqui é a raça. Todo o judaísmo manifesta-se no cristianismo como a arte de forjar mentiras sagradas, como a técnica judaica que após muitos séculos de aprendizado e treinamento sério chegou à sua mais alta maestria. O cristão, essa ultima ratio(1) da mentira, é o judeu mais uma vez – é triplicemente judeu... A vontade subjacente de utilizar somente conceitos, símbolos e atitudes que convém à práxis sacerdotal, o repúdio instintivo a qualquer outra perspectiva e a qualquer outro método para estimar valor e utilidade – isso não é somente uma tradição, é uma herança: apenas como uma herança é capaz de operar com força natural. Toda a humanidade, mesmo as maiores mentes das maiores épocas (com uma exceção que, talvez, mal fosse humana –), deixou-se enganar. O Evangelho foi lido como um livro da inocência... certamente nenhuma modesta indicação do alto grau de perícia com que o truque foi feito. – É claro, se pudéssemos de fato ver esses carolas e santos falsos, mesmo que apenas por um instante, a farsa seria posta a fim – e precisamente porque não consigo ler suas palavras sem também ver seus gestos que acabei com eles... Simplesmente não consigo suportar a maneira com que levantam os olhos. – Para a maioria, felizmente, livros não passam de literatura. – Que não nos deixemos induzir em erro: eles dizem “não julgueis”, mas condenam ao inferno tudo que fica em seu caminho. Ao deixarem Deus julgar, são eles próprios que julgam; ao glorificarem Deus, glorificam a si mesmos; ao exigirem que todos manifestem as virtudes para as quais são aptos – mais ainda, das quais precisam para permanecer no topo –, assumem o aspecto de homens em uma luta pela virtude, de homens engajados numa guerra para que a virtude prevaleça. “Nós vivemos, morremos, sacrificamo-nos pelo bem” (– “a verdade”, “a luz”, “o reino de Deus”): na realidade, simplesmente fazem o que não podem deixar de fazer. Forçados, como hipócritas, a serem furtivos, se esconderem nos cantos, se esquivarem pelas sombras, convertem sua necessidade em dever: é como um dever que surge sua vida humilde, e tal humildade converte-se em mais uma prova de devoção... Ah, essa humilde, casta e misericordiosa fraude! “A própria virtude deve testemunhar em nosso favor”... Leiam-se os Evangelhos como livros de sedução moral: essa gentinha insignificante se atrela à moral – conhecem perfeitamente suas utilidades! A moral é o melhor meio para conduzir a humanidade pelo nariz! – A verdade é que a mais consciente presunçãodos eleitos disfarça-se de modéstia: desse modo colocaram a si próprios, a “comunidade”, os “bons e justos”, de uma vez por todas, de um lado, do lado da “verdade” – e o resto da humanidade, “o mundo”, do outro... Nisto observamos a espécie mais fatal de megalomania que a Terra já testemunhou: pequenos abortos de beatos e mentirosos começam a reivindicar direitos exclusivos sobre os conceitos de “Deus”, “verdade”, “luz”, “espírito”, “amor”, “sabedoria”, “vida”, como se fossem sinônimos deles próprios, e através disso buscaram estabelecer o limite entre si e o “mundo”; pequenos superjudeus, maduros para todo tipo de manicômio, viraram os valores de cabeça para baixo para satisfazerem suas noções, como se somente o cristão fosse o significado, o sal, a medida e também o juízo final de todo o resto... Todo esse desastre só foi possível porque no mundo já existia uma megalomania similar, de mesma raça, a saber, a judaica: uma vez que se abriu o abismo entre judeus e judeus-cristãos, a estes já não havia escolha senão empregar os mesmos procedimentos de autoconservação que o instinto judaico lhes aconselhava, mesmo contra os próprios judeus, ainda que judeus somente os tivessem empregado contra não-judeus. O cristão é simplesmente um judeu de confissão “reformada”. –
1 – Última razão. Argumento decisivo.
XLV
– Ofereço alguns exemplos do tipo de coisa que essa gente insignificante tinha dentro de suas cabeças – do que colocaram na boca do Mestre: a cândida crença de “belas almas”. –
“E tantos quantos vos não receberem, nem vos ouvirem, saindo dali, sacudi o pó que estiver debaixo dos vossos pés, em testemunho contra eles. Em verdade vos digo que haverá mais tolerância no dia do juízo para Sodoma e Gomorra, do que para os daquela cidade” (Marcos, 6:11). – Quão evangélico!
“E qualquer que escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que lhe pusessem ao pescoço uma mó de atafona, e que fosse lançado no mar” (Marcos, 9:42). – Quão evangélico!
“E, se o teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de Deus com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno, onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga” (Marcos, 9:47-48). – Não é exatamente do olho que se trata...
“Dizia-lhes também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder” (Marcos 9:1). – Bem mentido, leão!...(1)
“Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me. Porque...” (Nota de um psicólogo: a moral cristã é refutada pelos seus porquês: suas razões a contrariam – isso a faz cristã) (Marcos, 8:34). –
“Não julgueis, para que não sejais julgados ...com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós” (Mateus 7:1-2). – Que noção de justiça, que juiz “justo”!...
“Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também
assim?” (Mateus 5:46-47). – Princípio do “amor cristão”: no fim das contas quer ser bempago...
“Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas” (Mateus 6:15). – Muito comprometedor para o assim chamado “pai”.
“Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6:33). – Todas estas coisas: isto é, alimento, vestuário, todas necessidades da vida. Um erro, para ser eufêmico... Um pouco antes esse Deus apareceu como um alfaiate, pelo menos em certos casos.
“Folgai nesse dia, exultai; porque eis que é grande o vosso galardão no céu, pois assim faziam os seus pais aos profetas” (Lucas 6:23). – Canalha indecente! Já se compara aos profetas...
“Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém violar o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo” (I Paulo aos coríntios, 3:16-17). – Para coisas assim não há desprezo suficiente...
“Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser julgado por vós, sois porventura indignos de julgar as coisas mínimas?” (I Paulo aos coríntios, 6:2). – Infelizmente, não é apenas o discurso de um lunático... Esse espantoso impostor assim prossegue: “Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a esta vida?”...
“Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação... Não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que nada são, para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele” (I Paulo aos coríntios, 1:20 e adiante(2)). – Para compreender esta passagem, um exemplo de primeira linha da psicologia da moral de chandala, deve-se ler a primeira parte de minha “Genealogia da Moral”: nela, pela primeira vez, foi evidenciado o antagonismo entre a moral nobre e a moral de chandala, nascida do ressentimento e da vingança impotente. Paulo foi o maior dos apóstolos da vingança...
1 – Paráfrase de Demétrio. “Bem rugido, leão!”, ato V, cena I de “Sonho de uma Noite de Verão”, por William Shakespeare. O leão, obviamente, é o símbolo cristão para Marcos. (H. L. Mencken)
2 – 20, 21, 26, 27, 28, 29.
XLVI
– Que se infere disso? Que convém vestir luvas antes de ler o Novo Testamento. A presença de tanta sujeira faz disso algo muito aconselhável. Tão pouco escolheríamos como companheiros os “primeiros cristãos” quanto os judeus poloneses: não que tenhamos a necessidade de lhes fazer objeções... Ambos cheiram mal. – Em vão procurei no Novo Testamento por um único traço de simpatia; nele não há nada que seja livre, bondoso, sincero ou leal. Nele a humanidade nem mesmo dá seu primeiro passo ascendente – o instinto de limpeza está ausente... Apenas maus instintos estão presentes, e tais instintos nem ao menos são dotados de coragem. Nele tudo é covardia; tudo é um fechar os olhos, um auto-engano. Após ler o Novo Testamento qualquer outro livro parece limpo: por exemplo, imediatamente após Paulo, li com arrebatamento o mais encantador e insolente zombeteiro, Petrônio, do qual poder-se-ia dizer o mesmo que Domenico Boccaccio escreveu sobre César Bórgia ao Duque de Parma: “é tutto festo” – imortalmente saudável, imortalmente alegre e são... Estes santarrões miseráveis erram no essencial. Atacam, mas tudo que atacam torna-se distinto. Quem é atacado por um “primeiro cristão” certamente não é denegrido... Pelo contrário, é uma honra possuir um “primeiro cristão” como oponente. Não se pode ler o Novo Testamento sem adquirir uma predileção por tudo que nele é maltatrado – para não falar da “sabedoria deste mundo”, que um insolente fanfarrão tenta reduzir a nada com a “loucura da pregação”... Mesmo os escribas e fariseus são beneficiados por tal oposição: certamente deviam ter algum valor para merecerem ser odiados de maneira tão indecente. Hipocrisia – como se essa fosse uma acusação que os “primeiros cristãos” ousassem fazer! – Afinal, eles eram os privilegiados, e isso era suficiente: o ódio dos chandala não precisa de qualquer outro pretexto. O “primeiro cristão” – e também, receio, o “último cristão”, que eu talvez viva tempo suficiente para ver – é um rebelde por profundo instinto contra tudo que é privilégio – vive e guerreia sempre pela “igualdade de direitos”... Estritamente falando, ele não tem escolha. Quando alguém pretende representar, ele próprio, o “eleito de Deus” – ou “templo de Deus”, ou “juiz dos anjos” –, então qualquer outro critério de eleição, quer seja baseado na honestidade, no intelecto, na virilidade e no orgulho, ou na beleza e liberdade de coração, torna-se simplesmente “mundano” – o mal em si... Moral: toda palavra pronunciada por um “primeiro cristão” é uma mentira, todos seus atos são instintivamente desonestos – todos seus valores, todos seus fins são nocivos, mas todos que odeia, tudo que odeia, tem valor verdadeiro... O cristão, e particularmente o padre cristão, é um critério de valores.
– Preciso acrescentar que, em todo o Novo Testamento, não aparece senão uma única figura merecedora de honra: Pilatos, o governador romano. Levar assuntos judaicos a sério – ele estava muito acima disso. Um judeu a mais ou a menos – que isso importa?... A nobre ironia do romano ante o qual a palavra “verdade” foi cinicamente abusada enriqueceu o Novo Testamento com a única passagem que tem qualquer valor – que é sua crítica e sua destruição: “Que é a verdade?”...
XLVII
– O que nos distingue não é nossa incapacidade de encontrar Deus, nem na história, nem na natureza, nem por detrás da natureza – mas que consideramos tudo que foi honrado como sendo Deus, não como algo “divino”, mas lastimável, absurdo, nocivo; não como um simples erro, mas como um crime contra a vida... Negamos que esse Deus seja Deus... E se alguém nos mostrasse esse Deus cristão, ficaríamos ainda menos inclinamos a crer nele. – Numa fórmula: Deus, qualem Paulus creavit, Dei negatio.(1) – Uma religião como o cristianismo, que não possui um único ponto de contato com a realidade, que se esfacela no momento em que a realidade impõe seus direitos, inevitavelmente será a inimiga mortal da “sabedoria deste mundo”, ou seja, da ciência – nomeará bom tudo que serve para envenenar, caluniar e depreciar toda disciplina intelectual, toda lucidez e retidão em matéria de consciência intelectual, toda frieza nobre e liberdade de espírito. A “fé”, como um imperativo, veta a ciência – in praxi(2), mentir a todo custo... Paulo compreendeu muito bem que a mentira – que a “fé” – era necessária; e posteriormente a Igreja compreendeu Paulo. – O Deus que Paulo inventou, um Deus que “reduz ao absurdo” a “sabedoria deste mundo” (especialmente as duas grandes inimigas da superstição, a filologia e a medicina), é em verdade uma indicação da firme determinação de Paulo para realizar isto: dar o nome de Deus à sua própria vontade, thora(3) – isso é essencialmente judaico. Paulo quer desvalorizar a “sabedoria deste mundo”: seus inimigos são os bons filólogos e médicos da escola alexandrina – a guerra é feita contra eles. De fato, nenhum homem pode ser filólogo e médico sem ao mesmo tempo ser anticristo. O filólogo vê por detrás dos “livros sagrados”, o médico vê por detrás da degeneração fisiológica do cristão típico. O médico diz “incurável”; o filólogo diz “fraude”...
1 – Deus, tal como Paulo o criou, é a negação de Deus.
2 – Na prática.
3 – Lei.
XLVIII
– Será que alguém já compreendeu claramente a célebre história que se encontra no início da Bíblia – a do pavor mortal de Deus ante a ciência? Ninguém, de fato, a compreendeu. Este livro de padres par excellence começa, como convém, com a grande dificuldade interior do padre: ele enfrenta um único grande perigo, ergo, “Deus” enfrenta um único grande perigo. –
O velho Deus, todo “espírito”, todo grão-padre, todo perfeição, passeia pelo seu jardim: está entediado e tentando matar tempo. Contra o enfado até os Deuses lutam em vão(1). O que ele faz? Cria o homem – o homem é divertido... Mas então percebe que o homem também está entediado. A piedade de Deus para a única forma da aflição presente em todos os paraísos desconhece limites: então em seguida criou outros animais. Primeiro erro de Deus: para o homem esses animais não representavam diversão – ele buscava dominá-los; não queria ser um “animal”. – Então Deus criou a mulher. Com isso erradicou enfado – e muitas outras coisas também! A mulher foi o segundo erro de Deus. – “A mulher, por natureza, é uma serpente: Eva” – todo padre sabe disso; “da mulher vem todo o mal do mundo” – todo padre sabe disso também. Logo, igualmente cabe a ela a culpa pela ciência... Foi devido à mulher que o homem provou da árvore do conhecimento. – Que sucedeu? O velho Deus foi acometido por um pavor mortal. O próprio homem havia sido seu maior erro; criou para si um rival; a ciência torna os homens divinos – tudo se arruína para padres e deuses quando o homem torna-se científico! – Moral: a ciência é proibida per se; somente ela é proibida. A ciência é o primeiro dos pecados, o germe de todos os pecados, o pecado original. Toda a moral é apenas isto: “Tu não conhecerás” – o resto é deduz-se disso. – O pavor de Deus, entretanto, não o impediu de ser astuto. Como se proteger contra a ciência? Por longo tempo esse foi o problema capital. Resposta: expulsando o homem do paraíso! A felicidade e a ociosidade evocam o pensar – e todos pensamentos são maus pensamentos! – O homem não deve pensar. – Então o “padre” inventa a angústia, a morte, os perigos mortais do parto, toda a espécie de misérias, a decrepitude e, acima de tudo, a enfermidade – nada senão armas para alimentar a guerra contra a ciência! Os problemas não permitem que o homem pense... Apesar disso – que terrível! – o edifício do conhecimento começa a elevar-se, invadindo os céus, obscurecendo os Deuses – que fazer? – O velho Deus inventa a guerra; separa os povos; faz com que se destruam uns aos outros (– os padres sempre necessitaram de guerras...). Guerra – entre outras coisas, um grande estorvo à ciência! – Inacreditável! O conhecimento, a emancipação do domínio sacerdotal prosperam apesar da guerra! – Então o velho Deus chega à sua resolução final: “O homem tornou-se científico – não existe outra solução: ele precisa ser afogado”...
1 – Paráfrase de Schiller, “Contra a estupidez até os Deuses lutam em vão.” (H. L. Mencken)
XLIX
– Fui compreendido. No início da Bíblia está toda a psicologia do padre. – O padre conhece apenas um grande perigo: a ciência – o conceito sadio de causa e efeito. Mas a ciência apenas floresce totalmente sob condições favoráveis – um homem precisa de tempo, precisa possuir um intelecto transbordante para poder “conhecer”... “Logo, é preciso tornar o homem infeliz” – essa foi, em todas as épocas, a lógica do padre. – É fácil ver o que, a partir dessa lógica, surgiu no mundo: – o “pecado”... O conceito de culpa e punição, toda a “ordem moral do mundo” foram direcionados contra a ciência – contra a emancipação do homem do jugo sacerdotal... O homem não deve olhar para seu exterior; deve olhar apenas para o interior.
Não deve olhar as coisas com acuidade e prudência, não deve aprender sobre elas; não deve olhar para nada; deve apenas sofrer... E sofrer tanto que sempre esteja precisando de um padre. – Fora os médicos! O necessário é um Salvador. – O conceito de culpa e punição, incluindo as doutrinas da “graça”, da “salvação”, do “perdão” – mentiras sem qualquer realidade psicológica – foram inventadas para destruir o senso de causalidade do homem: são um ataque contra o conceito de causa e efeito! – E não um ataque com punho, com faca, com honestidade no amor e no ódio! Longe disso, foi inspirado pelo mais covarde, mais velhaco, mais ignóbil dos instintos! Um ataque de padres! Um ataque de parasitas! O vampirismo de sanguessugas pálidas e subterrâneas!... Quando as conseqüências naturais de um ato já não são mais “naturais”, mas vistas como obras de fantasmas da superstição – “Deus”, “espíritos”, “almas” –, como conseqüências “morais”, recompensas, punições, sinais, lições, então torna-se estéril todo o solo para o conhecimento – e com isso perpetrou-se o maior dos crimes contra a humanidade. – Repito que o pecado, essa autoprofanação par excellence, foi inventado para tornar impossível ao homem a ciência, a cultura, toda a elevação e todo o enobrecimento; o padre reina graças à invenção do pecado. –
L
– Não posso, aqui, prescindir de uma psicologia da “fé”, do “crente”, em proveito, como é justo, dos próprios “crentes”. Se hoje há alguns que ainda não sabem quão indecente é ser “crente” – ou quanto isso indica decadência, falta de vontade de viver –, amanhã eles o saberão. Minha voz alcança até os surdos. – Parece-me que entre cristãos, se não compreendi mal, prevalece uma espécie de critério da verdade chamado “prova de força”. A fé beatifica: logo, é verdadeira”. – Poderia-se objetar que a beatitude não é demonstrada, mas apenas prometida: sustenta-se na “fé” enquanto condição – será beatificado porque crê... Mas e aquilo que o padre promete ao crente, aquele “além” transcendental – como isso pode ser demonstrado? – A “prova de força”, no fundo, não passa da crença de que os efeitos prometidos pela fé se realizarão. – Numa fórmula: “Creio que a fé beatifica – logo, ela é verdadeira”... Mas não podemos ir além disso. Esse “logo” já é o próprio absurdum transformado em critério da verdade. – Contudo, por cortesia, admitamos que a beatificação através da fé tenha sido demonstrada (– não meramente desejada, não meramente prometida pela suspeita boca de um padre): mesmo assim, poderia a beatitude – dito em forma técnica, o prazer – ser uma prova da verdade? Dista tanto de sê-lo que a influência das sensações de prazer sobre a resposta à questão “Que é a verdade?” praticamente constitui uma objeção à verdade, ou, em todo caso, é suficiente para torná-la altamente suspeita. A prova do “prazer” prova o “prazer” – nada mais; por que se deveria admitir que juízos verdadeiros geram mais prazer que os falsos e que, em conformidade a alguma harmonia preestabelecida, necessariamente trariam consigo sensações de prazer? – A experiência de todas as mentes profundas e disciplinadas ensina o contrário. O homem teve de lutar bravamente por cada migalha da verdade; teve de sacrificar quase tudo aquilo em que se agarra o coração humano, o amor humano, a confiança humana na vida. Para isso é necessário possuir grandeza de alma: o serviço da verdade é o mais duro dos serviços. – O que significa, então, a integridade intelectual?
Significa ser severo com seu próprio coração, desprezar os “belos sentimentos” e fazer de cada Sim e de cada Não uma questão de consciência! – A fé beatifica: logo, ela mente...
LI
Que em certas circunstâncias a fé promove a bem-aventurança, que a bem-aventurança não faz de uma idee fixe(1) uma idéia verdadeira, que a fé na realidade não move montanhas, mas as constrói onde antes não existiam: tudo isso fica bastante evidente após uma breve visita a um hospício. Mas não, é claro, para um padre: pois seus instintos o induzem a dizer que a doença não é doença e que hospícios não são hospícios. O cristianismo necessita da doença, assim como o espírito grego necessitava de uma saúde superabundante – o verdadeiro objetivo de todo o sistema de salvação da Igreja é tornar as pessoas enfermas. E a própria Igreja – não considera ela um manicômio católico como o ideal último? – Toda a Terra, um manicômio? – O tipo de homem religioso que a Igreja deseja é o típico decadente; a época em que uma crise religiosa se apodera de um povo é sempre marcada por epidemias de desordem nervosa; o “mundo interior” de um homem religioso assemelha-se tanto ao “mundo interior” de um homem sobreexcitado e exausto que é difícil distinguir entre os dois; os estados mais “elevados”, que o cristianismo colocou sobre a humanidade como valores supremos, são formas epileptóides – a Igreja concedeu nomes sagrados apenas para lunáticos ou grandes impostores in majorem Dei honorem(2)... Uma vez me aventurei a considerar todo o sistema cristão de training em penitência e salvação (atualmente melhor estudado na Inglaterra) como um método para produzir uma folie circulaire(3) sobre um solo já preparado, ou seja, um solo absolutamente insalubre. Nem todos podem ser cristãos: não se é “convertido” ao cristianismo – antes é necessário estar suficientemente doente... Nós outros, nós que temos coragem para a saúde e para o desprezo – temos o direito de desprezar uma religião que prega a incompreensão do corpo! Que se recusa a dispensar a superstição da alma! Que da insuficiência alimentar faz “virtude”! Que combate a saúde como alguma espécie de inimigo, de demônio, de tentação! Que se convenceu de que é possível trazer uma “alma perfeita” em um corpo cadavérico, e que, para isso, inventou um novo conceito de “perfeição”, um estado existencial pálido, doentio, fanático até a estupidez, a chamada “santidade” – uma santidade que não passa de uma série de sintomas de um corpo empobrecido, enervado e incuravelmente corrompido!... O movimento cristão, enquanto movimento Europeu, desde o começo não foi mais que uma sublevação de toda espécie de elementos desterrados e refugados (– que agora, sob a máscara do cristianismo, aspiram ao poder). – Não representa a degeneração de uma raça; representa, pelo contrário, uma conglomeração de produtos da decadência vindos de todas as direções, amontoando-se e buscando-se reciprocamente. Não foi, como se pensa, a corrupção da Antigüidade, da Antigüidade nobre, que tornou o cristianismo possível; nunca será possível combater com violência suficiente a imbecilidade erudita que atualmente sustém tal teoria. Quando as enfermas e podres classes chandala de todo o imperium foram cristianizadas, o tipo oposto, a nobreza, alcançou seu estágio de desenvolvimento mais belo e amadurecido. A maioria subiu ao poder; a democracia, com seus instintos cristãos, triunfou... O cristianismo não era “nacional”, não estava baseado em raça – apelou a todas as variedades de homens deserdados pela vida, tinha aliados em toda parte. O cristianismo possui em seu âmago o rancor dos doentes – o instinto contra os sãos, contra a saúde. Tudo que é bem-constituído, orgulhoso, galante e, acima de tudo, belo é uma ofensa aos seus olhos e ouvidos. Novamente recordo as inestimáveis palavras de Paulo: “Deus escolheu as coisas fracas deste mundo, as coisas loucas deste mundo, as coisas ignóbeis e as desprezadas”(4): essa era a fórmula; in hoc signo(5) a décadence triunfou. – Deus na cruz – o homem nunca compreenderá o assustador significado que esse símbolo encerra? – Tudo que sofre, tudo que está crucificado é divino... Nós todos estamos suspensos na cruz, conseqüentemente somos divinos... Apenas nós somos divinos!... Neste sentido o cristianismo foi uma vitória: uma mentalidade mais nobre pereceu por ele – o cristianismo continua sendo a maior desgraça da humanidade. –
1 – Idéia fixa.
2 – Para maior honra de Deus.
3 – Loucura circular.
4 – I Coríntios 1:27-28.
5 – Com este sinal.
LII
O cristianismo também se encontra em oposição a toda boa constituição intelectual – somente a razão enferma pode ser usada como razão cristã; toma o partido de tudo que é idiota; lança sua maldição contra o “intelecto”, contra a soberba do intelecto são. Visto que a doença é inerente ao cristianismo, segue-se disso que o estado típico do cristão, “a fé”, também é necessariamente uma forma de doença; todos os caminhos retos, legítimos e científicos devem ser banidos pela Igreja como sendo caminhos proibidos. A própria dúvida é um pecado... A completa ausência de limpeza psicológica no padre – identificada por um simples olhar – é um fenômeno resultante da decadência – observando-se mulheres histéricas e crianças raquíticas notar-se-á regularmente que a falsificação dos instintos, o prazer de mentir por mentir e a incapacidade de olhar e caminhar direito são sintomas da decadência. “Fé” significa não querer saber o que é a verdade. O padre, o devoto de ambos os sexos, é uma fraude porque é doente: seus instintos exigem que a verdade jamais tenha direito em qualquer ponto. “Tudo que torna doente é bom; tudo que surge da plenitude, da superabundância, do poder, é mau”: assim pensa o crente. Uma compulsão para
mentir – é através disso que reconheço todo teólogo predestinado. – Outra característica do teólogo é sua incapacidade filológica. O que quero dizer com filologia é, de modo geral, a arte de ler bem – a capacidade de absorver fatos sem interpretá-los falsamente, sem perder, na ânsia de compreendê-los, a cautela, a paciência e a sutileza. Filologia como ephexis(1) na interpretação: trate-se de livros, de notícias de jornal, dos mais funestos eventos ou de estatísticas meteorológicas – para não mencionar a “salvação da alma”... A maneira como um teólogo, seja de Berlim ou Roma, explica, digamos, uma “passagem bíblica”, ou um acontecimento, por exemplo, a vitória do exército nacional, sob a sublime luz dos Salmos de Davi, é sempre tão ousada que faz um filólogo subir pelas paredes. E o que dizer quando devotos e outras vacas da Suábia(2) usam o “dedo de Deus” para converter sua miserável existência cotidiana e sedentária em um milagre da “graça”, da “providência”, em uma “experiência divina”? O mais modesto exercício de intelecto, para não dizer de decência, deveria de certo ser suficiente para convencer esses intérpretes da perfeita infantilidade e indignidade de tal abuso da destreza digital de Deus. Apesar de sermos poucos compassivos, caso encontrássemos um Deus que curasse oportunamente um constipado, ou que nos colocasse em uma carruagem no instante em que começasse a chover, ele nos pareceria um Deus tão absurdo que, mesmo existindo, teríamos de aboli-lo. Deus como empregado doméstico, como carteiro, como mensageiro – no fundo, Deus é simplesmente um nome dado para a mais imbecil espécie de acaso... A “Divina Providência”, na qual terça parte da “Alemanha culta” ainda acredita, é um argumento tão forte contra Deus que em vão se procuraria por um melhor. E em todo caso é um argumento contra os alemães!...
1 – Ceticismo.
2 – Uma referência à Universidade de Tübingen e sua famosa escola de crítica Bíblica. O líder da escola era F. C. Baur, e um dos homens que ele mais fortemente influenciou era uma abominação de Nietzsche, David F. Strauss, ele próprio, um suábio. (H. L. Mencken)
LIII
– É tão pouco verdadeiro que mártires oferecem qualquer verossimilhança a uma causa que me sinto inclinado a negar que qualquer mártir já teve alguma coisa a ver com a verdade. No tom com que um mártir lança sua convicção à cara do mundo revela-se um grau tão baixo de probidade intelectual, tamanha insensibilidade ao problema da “verdade”, que nunca chega a ser necessário refutá-lo. A verdade não é algo que alguns homens têm e outros não: na melhor das hipóteses, só há camponeses e apóstolos de camponeses, da classe de Lutero, que possam pensar assim da verdade. Pode-se ter certeza de que, quanto maior for o grau de consciência intelectual de um homem, maior será sua modéstia, sua discrição neste ponto. Ser competente em cinco ou seis coisas e se recusar, com delicadeza, a saber algo mais... O entendimento que todos profetas, sectários, livres-pensadores, socialistas e homens de igreja têm da palavra “verdade” é simplesmente uma prova cabal de que nem sequer foi dado o primeiro passo em direção à disciplina intelectual e ao autocontrole necessários à descoberta da menor das verdades. – Os mártires, diga-se de passagem, foram uma grande desgraça na história: seduziram... A conclusão a que todos idiotas, mulheres e plebeus chegam é que deve haver algum valor em uma causa pela qual alguém afronta a morte (ou que, como o cristianismo primitivo, engendra uma epidemia de gente à procura da morte) – essa conclusão impede o exame os fatos, tolhe por inteiro o espírito investigativo e circunspeto. Os mártires danificaram a verdade... Mesmo hoje, basta uma certa dose de crueldade na perseguição para proporcionar uma honrável reputação ao mais vazio tipo de sectarismo. – Como? O valor de uma causa é alterado pelo fato alguém ter se sacrificado por ela? – Um erro que se torna honroso é simplesmente um erro que possui um encanto sedutor: julgais, senhores teólogos, que vos daremos a chance de serdes martirizados por vossas mentiras? – Melhor se refuta uma causa colocando-a, respeitosamente, no gelo – esse também é o melhor meio para refutar os teólogos... Foi precisamente esta a estupidez histórico-mundial de todos os perseguidores: deram uma aparência honrosa à causa a que se opuseram – deram-lhe de presente a fascinação do martírio... Mulheres ainda se ajoelham ante um erro porque lhes disseram que um indivíduo morreu na cruz por ele. A cruz, então, é um argumento? – Mas sobre todas essas coisas um, e somente um, disse aquilo de que há milhares de anos se tinha necessidade – Zaratustra:
Traçaram sinais de sangue pelo caminho que percorreram, e sua loucura ensinava que a verdade se prova através do sangue.
Mas o sangue é, de todas, a pior testemunha da verdade; sangue envenena até a doutrina mais pura e a converte em insânia e ódio do coração.
E quando alguém atravessa o fogo por sua doutrina – que isso prova? Mais vale, em verdade, que do nosso próprio incêndio venha a nossa doutrina!(1)
1 – “Assim falou Zaratustra”, parte II, “Dos Sacerdotes”.
LIV
Não nos enganemos: grandes intelectos são céticos. Zaratustra é um cético. A força e a liberdade que surgem do vigor e da plenitude intelectual se manifestam através do ceticismo. Homens de convicção estática não são levados em consideração quando se pretende determinar o que é fundamental em matéria de valor e desvalor. Homens de convicção são prisioneiros. Não vêem longe o bastante, não vêem abaixo de si: para um homem poder falar de valor e desvalor é necessário que veja quinhentas convicções abaixo de si – atrás de si... Uma mente que aspira a algo grande, e que também deseja os meios para isso, é necessariamente cética. A liberdade de qualquer tipo de convicção constitui parte da força, da capacidade de possuir um ponto de vista independente... A grande paixão do cético, o fundamento e a potência do seu ser, é mais esclarecida e mais despótica que ele próprio, coloca toda sua inteligência a seu serviço; lhe torna inescrupuloso; lhe concede a coragem para empregar até meios ímpios; sob certas circunstâncias, lhe permite convicções. A convicção enquanto um meio: muito só pode ser alcançado por meio de uma convicção. A grande paixão usa, consome convicções, mas não se submete a elas – sabe-se a soberana. – Pelo contrário, a necessidade de fé, de uma coisa não subordinada ao sim e não, de carlylismo, se me permitem a expressão, é a necessidade da fraqueza. O homem de fé, o “crente” de toda espécie, é necessariamente dependente – tal homem é incapaz de colocar-se a si mesmo como objetivo, e tampouco é capaz determinar ele próprio seus objetivos. O “crente” não se pertence; apenas pode ser o meio para um fim; precisa ser consumido; precisa de alguém que o consuma. Seus instintos atribuem suprema honra à moral da despersonalização; tudo o persuade a abraçar essa moral: sua prudência, sua experiência, sua vaidade. Todo tipo de fé é em si mesma a expressão de uma despersonalização, de um alheamento de si... Após se ponderar sobre quão necessários à maioria são os regulamentos restringentes; sobre quão necessária é a opressão, ou, em um sentido mais elevado, a escravidão, para possibilitar o bem-estar ao homem de vontade fraca, e especialmente à mulher, então finalmente se compreende o significado da convicção e da “fé”. Para o homem de convicção a fé representa sua espinha dorsal. Deixar de ver muitas coisas, não possuir imparcialidade alguma, ser sempre de um partido, estimar todos os valores com uma ótica severa e infalível – essas são as condições necessárias à existência desse tipo de homem. Mas isso faz deles antagonistas do homem veraz – da verdade... O crente não é livre pra responder à questão do “verdadeiro” e do “falso”; segundo os ditames de sua consciência: a integridade, neste ponto, seria sua própria ruína. A limitação patológica de sua ótica faz do homem convicto um fanático – Savonarola, Lutero, Rousseau, Robespierre, Saint-Simon – o tipo desses encontra-se em oposição ao espírito forte, emancipado. Mas as grandiosas atitudes desses intelectos doentes, desses epiléticos das idéias, exercem influência sobre as grandes massas – os fanáticos são pitorescos, e a humanidade prefere observar poses a ouvir razões...
LV
– Um passo adiante na psicologia da convicção, da “fé”. Agora já faz bastante tempo desde que propus a questão de talvez as convicções serem inimigas mais perigosas à verdade que as mentiras (“Humano, Demasiado Humano”, Aforismo 483(1)). Desta vez pretendo colocar a questão definitiva: existe, de modo geral, alguma diferença entre uma mentira e uma convicção? – Todo o mundo acredita que sim; mas no que esse mundo não acredita! – Toda convicção tem sua história, suas formas primitivas, seus estágios de tentativa e erro: somente se transforma em convicção após não ter sido, por um longo tempo, uma convicção, e, depois disso, por um tempo ainda mais longo, sofrivelmente uma convicção. Não poderia também haver a falsidade nessas formas embrionárias de convicção? – Às vezes apenas é necessária uma
mudança de pessoas: o que era uma mentira para o pai torna-se uma convicção para o filho. – Chamo de mentira o recusar-se a ver uma coisa que se vê, recusar-se a ver algo como de fato é: se a mentira foi proferida perante testemunhas ou não, isso não possui relevância. A espécie mais comum de mentira é aquela com a qual nos enganamos a nós mesmos: mentir aos outros é algo relativamente raro. – Agora, este não querer ver o que se vê, este não querer ver como de fato é, praticamente constitui o primeiro requisito para todos que pertencem a alguma espécie de partido: o homem de partido inevitavelmente torna-se um mentiroso. Por exemplo, os historiadores alemães estão convictos de que Roma era sinônimo de despotismo e que os povos germânicos trouxeram o espírito da liberdade ao mundo: qual a diferença entre essa convicção e uma mentira? Pode alguém ainda se admirar de que todos os partidos, incluindo os historiadores alemães, instintivamente se sirvam de frases morais – que a moral quase deva sua sobrevivência ao fato de toda espécie de homem de partido necessitar dela a cada instante? – “Esta é nossa convicção: proclamamo-la perante todo o mundo; vivemos e morremos por ela – que sejam respeitados todos aqueles que possuem convicções!” – De fato, ouvi isso da boca dos anti-semitas. Pelo contrário, senhores! Mentir por princípio certamente não torna um anti-semita mais respeitável... Os padres, que possuem mais sutileza em tais questões, e que compreendem bem a objeção existente contra a idéia de convicção, ou seja, de uma mentira que se transforma em princípio porque serve a um propósito, tomaram emprestado dos judeus o artifício de introduzir nesses casos os conceitos “Deus”, “vontade de Deus” e “revelação Divina”. Kant, com seu imperativo categórico, também estava no mesmo caminho: isso era sua razão prática(2). Há questões relativas à verdade e à inverdade que o homem não pode decidir; todas as questões capitais, todos problemas capitais de valoração estão acima da razão humana... Conhecer os limites da razão – somente isso é filosofia genuína. Que finalidade teve a revelação divina ao homem? Deus faria algo supérfluo? O homem não pode descobrir por si mesmo o que é bom e o é ruim, então Deus lhe ensinou sua vontade... Moral: o padre não mente – não existe a questão da “verdade” ou da “inverdade” entre as coisas de que falam os padres. É impossível mentir a respeito de tais coisas, pois para mentir primeiramente seria necessário saber o que é verdade. Mas isso está além do que o homem pode saber; logo, o padre é simplesmente um porta-voz de Deus. – Tal silogismo de padre não é de modo algum somente judaico e cristão; o direito à mentira e à astuciosa evasiva da “revelação” pertence ao tipo do padre em geral – tanto aos padres da decadência quanto aos padres dos tempos pagãos (– pagãos são todos aqueles que dizem sim à vida, e para os quais “Deus” é uma palavra que significa um sim a todas as coisas). – A “lei”, a “vontade de Deus”, o “livro sagrado”, a “inspiração” – são todas palavras que designam as condições sob as quais o padre adquire e mantém o poder – esses conceitos se encontram no fundo de todas organizações sacerdotais, de todos governos eclesiásticos ou filosófico-eclesiásticos. A “santa mentira” – comum a Confúcio, ao código de Manu, a Maomé e à Igreja cristã – não falta em Platão. “A verdade está aqui”: essas palavras significam, onde quer que sejam pronunciadas, o padre mente...
1 – “Inimigos da verdade. – Convicções são inimigos da verdade mais perigosos que as mentiras.”
2 – Uma referência, é claro, à “Kritik der praktischen Vernunft” de Kant (Crítica da Razão Prática).(H. L. Mencken)
LVI
– Em última análise, chega-se a isto: qual a finalidade da mentira? O fato de que, no cristianismo, os fins “sagrados” não são visíveis é minha objeção aos seus meios. Só existem maus fins: o envenenamento, a calúnia, a negação da vida, o desprezo pelo corpo, a degradação e envilecimento do homem através do conceito de pecado – logo, seus meios também são maus. – Tenho o sentimento oposto quando leio o código de Manu, uma obra incomparavelmente mais intelectual e superior; seria um pecado contra a inteligência simplesmente nomeá-lo juntamente com a Bíblia. É fácil ver o porquê: há uma filosofia genuína por detrás dele, nele próprio, e não apenas uma mixórdia fétida de rabinismo judaico e superstição – oferece, mesmo aos psicólogos mais delicados, algo saboroso. E não nos esqueçamos do mais importante, ele difere fundamentalmente de toda espécie de Bíblia: através dele os nobres, os filósofos e guerreiros preservam o domínio sobre a maioria; está cheio de valores nobres, denota um sentimento de perfeição, de aceitação da vida, um ar triunfante em relação a si e à vida – o sol brilha sobre o livro todo. – Todas as coisas sobre as quais o cristianismo descarrega sua inexaurível vulgaridade – por exemplo, a procriação, as mulheres e o casamento – nele são tratadas seriamente, com respeito, amor e confiança. Como alguém pode colocar nas mãos de crianças e mulheres um livro contentor de palavras tão abjetas: “Para evitar a impudicícia, que cada homem tenha sua própria esposa e que cada mulher tenha seu próprio marido; ...pois é melhor casar-se que queimar-se(1)”? E será possível ser um cristão enquanto a origem do homem estiver cristianizada, isto é, maculada pela doutrina da immaculata conceptio?... Não conheço qualquer outro livro em que sejam ditas tantas coisas boas e ternas sobre a mulher quanto no código de Manu; aqueles velhos e santos possuíam um modo tão amável de ser com as mulheres que talvez seja impossível superá-los. “A boca de uma mulher”, diz um trecho, “o seio de uma donzela, a oração de uma criança e a fumaça de um sacrifício são sempre puros”. Noutro trecho: “Não há nada mais puro que a luz do sol, a sombra de uma vaca, o ar, a água, o fogo e a respiração de uma donzela”. Finalmente, esta última passagem – que talvez também seja uma mentira sagrada –: “todos orifícios do corpo acima do umbigo são puros, todos os abaixo são impuros. Apenas na donzela o corpo todo é puro”.
1 – I Coríntios 7:2 e 7:9.
LVII
Pega-se a irreligiosidade dos meios cristãos in flagranti simplesmente colocando os fins tencionados pelo
cristianismo ao lado dos tencionados pelo código de Manu – pondo essas duas finalidades monstruosamente antitéticas sob uma forte luz. O crítico do cristianismo não pode evitar a necessidade de torná-lo desprezível. – O código de Manu tem a mesma origem que todo bom livro de leis: sumariza a prática, a sagacidade e a experimentação ética de longos séculos; chega às suas conclusões, e então não cria mais nada. O pré-requisito para uma codificação dessa espécie é reconhecer que os meios usados para estabelecer a autoridade de uma verdade adquirida dura e lentamente diferem fundamentalmente dos que seriam utilizados para demonstrá-la. Um livro de leis nunca relata a utilidade, as razões, a casuística de suas leis: com isso perderia o tom imperativo, o “tu deves”, no qual a obediência se fundamenta. O problema encontra-se exatamente aqui. – Em um certo ponto da evolução de um povo, sua classe mais judiciosa, ou seja, com melhor percepção do passado e do futuro, declara que as séries experiências usadas para determinar como todos devem viver – ou podem viver – chegaram ao fim. O objetivo agora é colher os frutos mais ricos possíveis desses dias de experimentação e experiências difíceis. Em conseqüência, o que se deve evitar acima de tudo é o prolongamento da experimentação – a continuação do estado no qual os valores são volúveis, sendo testados, escolhidos e criticados ad infinitum. Contra isso se levantam duas paredes: de um lado, a revelação, isto é, a assunção de que as razões subjacentes às leis não possuem origem humana, que não foram buscadas e encontradas por um lento processo e após muitos erros, mas que possuem uma origem divina, foram feitas completas, perfeitas, sem uma história, como um presente, um milagre...; do outro lado, a tradição, isto é, a afirmação de que as leis permaneceram inalteradas desde tempos imemoriais, e que seria um crime contra os antepassados colocá-las em dúvida. A autoridade da lei assenta-se sobre estas duas teses: Deus a deu e os antepassados a viveram. – A razão superior desse procedimento está na intenção de distrair a consciência, passo a passo, de suas preocupações sobre os modos corretos de viver (isto é, aqueles que foram provados por uma vasta e minuciosamente considerada experiência), para que o instinto atinja um automatismo perfeito – um pressuposto essencial a toda espécie de mestria, toda perfeição na arte da vida. Confeccionar um código como o de Manu significa oferecer a um povo a chance de ser mestre, de chegar à perfeição – de aspirar ao mais sublime na arte da vida. Para tal fim deve-se torná-lo inconsciente: esse é o objetivo de toda mentira sagrada. – A ordem das castas, a lei suma e dominante, é meramente uma ratificação de uma ordem natural, de uma lei natural de primeira ordem, sobre a qual nenhum arbítrio, nenhuma “idéia moderna” exerce qualquer influência. Em toda sociedade saudável há três tipos fisiológicos que gravitam à diferenciação, mas que se condicionam mutuamente; cada qual tem sua própria higiene, sua própria esfera de trabalho, seu próprio sentimento de perfeição e maestria. Não é manu, mas a natureza que separa em uma classe aqueles que preponderam intelectualmente, em outra aqueles que são notáveis pela força muscular e temperamento, e numa terceira aqueles que não se distinguem, que somente demonstram mediocridade – esta última representa a grande maioria, as duas primeiras são a elite. A casta superior – que denomino a dos pouquíssimos – tem, sendo a mais perfeita, privilégios correspondentes: representa a felicidade, a beleza e tudo de bom sobre a Terra. Apenas os homens mais intelectuais têm direito à beleza, ao belo; apenas entre eles a bondade não significa fraqueza. Pulchrum est paucorum hominum(1): ser bom é privilégio. Nada lhes é mais impróprio que a rudeza, o olhar pessimista, os olhos afinados com a fealdade – ou a indignação por causa do aspecto geral das coisas. A indignação é um privilégio dos chandala; assim como o pessimismo. “O mundo é perfeito” – assim fala o instinto dos mais intelectuais, o instinto do homem que diz sim à vida. “A imperfeição, tudo que é inferior a nós, a distância, o pathos da distância, os próprios chandala, são parte dessa perfeição”. Os homens mais inteligentes, sendo os mais fortes, encontram sua felicidade onde outros encontrariam apenas desastre: no labirinto, na dureza para
consigo e para com os outros, no esforço; seu prazer está na auto-superação; neles o ascetismo torna-se uma segunda natureza, uma necessidade, um instinto. Consideram tarefas difíceis como um privilégio; para eles é um entretenimento lidar com fardos que esmagariam todos os outros... Conhecimento – uma forma de ascetismo. – Representam o tipo mais honroso de homens: mas isso não impede que também sejam os mais amáveis e mais alegres. Dominam não porque querem, mas porque são; não possuem a liberdade de ser os segundos. – A segundacasta: a esta pertencem os guardiões da lei, os mantenedores da ordem e da segurança, os guerreiros mais nobres e, acima de tudo, o rei, como a mais elevada forma de guerreiro, juiz e defensor da lei. Os segundos constituem o elemento executivo dos intelectuais; são aqueles que lhes estão mais próximos, os aliviando de tudo que há de grosseiro no trabalho de liderar – são seu séqüito, sua mão direita, os seus melhores discípulos. Nisso tudo, repito, nada é arbitrário, nada é “artificial”; apenas o contrário é artificial – ele destrói a natureza... A ordem das castas, a hierarquia simplesmente formula a lei suprema própria vida; a separação dos três tipos é necessária para conservar a sociedade, para possibilitar o surgimento dos tipos mais elevados, mais sublimes – a desigualdade de direitos é condição primordial para a existência de quaisquer direitos. – Um direito é um privilégio. Cada qual tem seus privilégios de acordo com seu modo de ser. Não subestimemos os privilégios dos medíocres. Quanto mais elevada, mais dura torna-se a vida – o frio aumenta, a responsabilidade aumenta. Uma civilização elevada é uma pirâmide: somente subsiste com uma base larga; seu pré-requisito é uma mediocridade sã e fortemente consolidada. O ofício, o comércio, a agricultura, a ciência, grande parte da arte, em suma, toda a gama de atividades ocupacionais, são apenas compatíveis com a mediocridade no poder e no querer; tais coisas estariam fora de seu lugar entre homens excepcionais; o instinto necessário encontrar-se-ia em contradição tanto com a aristocracia como com o anarquismo. O fato de o homem ser publicamente útil, uma engrenagem, uma função, é evidência de uma predisposição natural; não é a sociedade, mas o único tipo de felicidade de que são capazes, que faz deles máquinas inteligentes. Para os medíocres a felicidade é a mediocridade; possuem um instinto natural para dominar apenas uma coisa, para a especialização. Seria profundamente indigno da parte de um intelecto profundo ver algo de condenável na mediocridade em si. Ela é, de fato, o primeiro pré-requisito ao surgimento das exceções: é uma condição necessária a toda civilização elevada. Quando o homem excepcional trata o homem medíocre com mais delicadeza que si próprio ou seus iguais, isso não se trata de uma gentileza – é simplesmente seu dever... A quem odeio mais entre a ralé de hoje? A escumalha socialista, aos apóstolos de chandala que minam o instinto do trabalhador, seu prazer, seu sentimento de contentamento com uma existência pequena – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça nunca está desigualdade de direitos, mas na exigência de direitos “iguais”... O que é mau? Mas essa questão foi respondida: tudo que se origina da fraqueza, da inveja, da vingança. – O anarquista e o cristão têm a mesma origem...
1 – A beleza é para poucos.
LVIII
Em verdade, o fim pelo qual se mente faz uma grande diferença: se com isso preserva ou destrói. Há uma perfeita consonância entre o cristão e o anarquista: seus objetivos, seus instintos, direcionam-se somente à destruição. Basta voltarmo-nos à história para encontrar a prova disso: ela aparece com precisão espantosa. Já estudamos um código religioso cujo objetivo era converter as condições sob as quais a vida prospera numa organização social “eterna” – a missão que o cristianismo encontrou foi justamente destruir tal organização, porque com ela a vida prospera. Naquele, os benefícios que a razão produziu durante longos períodos de experimentação e incerteza foram aplicados nos aspectos mais remotos, fazia-se o todo esforço possível para colher os maiores, mais ricos e mais completos frutos; aqui, pelo contrário, os frutos são envenenados durante a noite... Aquilo que se erigia aere perennius(1), o imperium Romanum, a mais magnificente forma de organização sob condições adversas jamais alcançada, em comparação com a qual todo o anterior e o posterior assemelham-se a uma grosseria, uma imperfeição, um diletantismo – esses anarquistas santos fizeram da destruição do “mundo”, ou seja, do imperium Romanum, uma questão de “devoção”, até que não restasse pedra sobre pedra – até ao ponto em que os germanos e outros rústicos foram capazes de dominá-lo... O cristão e o anarquista: ambos são decadentes; ambos são incapazes de qualquer ato que não seja dissolvente, venenoso, degenerativo, hematófago; ambos têm por instinto um ódio mortal contra tudo que esta em pé, tudo que é grande, tudo que é durável, tudo que promete futuro à vida... O cristianismo foi o vampiro do imperium Romanum – destruiu do dia para a noite a vasta obra dos romanos: a conquista do solo para uma grande cultura que poderia aguardar por sua hora. Será possível que isso ainda não foi compreendido? O imperium Romanum que conhecemos, e que a história da província romana nos ensina a conhecer cada vez melhor – essa admirável obra de arte em grande estilo, era apenas um começo, sua construção estava calculada para provar seu valor por milhares de anos. Até hoje nada em escala semelhante sub specie aeterni(2) foi construído, ou sequer sonhado! – Essa organização era forte o suficiente para resistir a maus imperadores: o acaso da personalidade não pode fazer nada em tais coisas – primeiro princípio de toda arquitetura genuinamente grande. Mas não era forte o suficiente para resistir contra a mais corrupta das corrupções – contra cristãos... Esses vermes furtivos que, sob a proteção da noite, da névoa e da duplicidade rastejam sobre todo indivíduo, sugando-lhe todo o interesse sério pelas coisas reais, todo o instinto para a realidade – essa turba covarde, efeminada e melíflua gradualmente alienou todas as “almas” desse edifício colossal – aquelas naturezas preciosas, virilmente nobres, que haviam encontrado em Roma sua própria causa, sua própria seriedade, seu próprio orgulho. A dissimulação dos hipócritas, o mistério dos conventículos, conceitos tão sombrios quanto o inferno, como o sacrifício do inocente, a unio mystica(3) no beber sangue, e acima de tudo o fogo lentamente reavivado da vingança, da vingança de chandala – isso dominou Roma: o mesmo tipo de religião que, numa forma preexistente, Epicuro combateu. Leia-se Lucrécio para entender contra oque Epicuro fez guerra – não contra o paganismo, mas contra o “cristianismo”, isto é, a corrupção das almas através dos conceitos de culpa, punição e imortalidade. – Combateu os cultos subterrâneos, todo o cristianismo latente – naquele tempo negar a imortalidade já era uma verdadeira salvação. – E Epicuro havia triunfado, todo intelecto respeitável em Roma era epicúreo – foi quando Paulo apareceu... Paulo, o ódio de chandala encarnado, inspirado pelo gênio, contra Roma, contra “o mundo” – o judeu, o judeu eternopar excellence... O que ele percebeu foi como, com a ajuda de um pequeno movimento sectário cristão, à parte do judaísmo, uma “conflagração mundial” poderia ser acesa; percebeu como, com o símbolo do “Deus na cruz”, poderia condensar todas as sedições secretas,
todos os frutos das intrigas anárquicas, em um imenso poder. “A salvação vem dos judeus” – cristianismo é a fórmula para sobrepor e agregar os cultos subterrâneos de todas variedades, por exemplo, o de Osíris, da Grande Mãe, de Mitra: era nisso que consistia o gênio de Paulo. Seu instinto estava tão seguro disso que, com ousada violência contra a verdade, colocou as idéias que fascinavam toda espécie de chandala na boca de sua invenção, do “salvador”, e não apenas na boca – fez dele algo que até os sacerdotes de Mitra podiam entender... Foi esta sua revelação em Damasco: compreendeu que precisava da crença na imortalidade para despojar o valor do “mundo”, que a idéia de “inferno” dominaria Roma – que a noção de um “além” significa a morte da vida. Niilista e cristão: são coisas que rimam(4), e não somente rimam...
1 – Mais duradouro que o bronze.
2 – Sob o aspecto do eterno.
3 – União sagrada ou mística.
4 – Rimam em alemão: “Nihilist und Christ”. (N. do T.)
LIX
Todo o esforço do mundo antigo em vão: não tenho palavras para descrever meu sentimento ante tal monstruosidade. – E, considerando o fato de que esse era um trabalho meramente preparatório, que com granítica autoconsciência lançou os fundamentos para um trabalho de milhares de anos, todo o significado da antiguidade desaparece!... Para que serviram os gregos? Para que serviram os romanos? – Todos os pré-requisitos para uma cultura sábia, todos métodos científicos já existiam; o homem já havia aperfeiçoado a grande e incomparável arte de ler bem – essa é a primeira necessidade para a tradição da cultura, para a unidade das ciências; as ciências naturais, aliadas às matemáticas e à mecânica, palmilhavam o caminho certo – o sentido dos fatos, o último e mais precioso de todos os sentidos, tinha suas escolas, e suas tradições possuíam séculos! Compreende-se isso? Tudo que era essencial ao começo do trabalho estava pronto; – e o mais essencial, nunca será demais repeti-lo, são os métodos, que também são o mais difícil de desenvolver e o que há mais tempo têm contra si os costumes e a indolência. O que hoje reconquistamos com uma inexprimível vitória sobre nós mesmos – pois certos maus instintos, certos instintos cristãos ainda habitam nossos corpos –, ou seja, o olhar afiado ante a realidade, a mão prudente, a paciência e a seriedade nas menores coisas, toda a integridade no conhecimento – tudo isso já existia há mais de dois mil anos! E mais, havia também bom gosto, um excelente e refinado tato! Não como um adestramento de cérebros! Não como a cultura “alemã”, com seus modos grosseiros! Mas como corpo, como gesto, como instinto – em suma, como realidade... Tudo em vão! Do dia para a noite tornou-se memória! – Os gregos! Os romanos! A nobreza do instinto, o gosto, a investigação metódica, o gênio para a organização e administração, a fé e a vontade para assegurar futuro do homem, um grandioso sim a todas as coisas, visível sob a forma de imperium romanum e palpável a todos os sentidos, um grande estilo que não era simplesmente arte, mas que havia se transformado em realidade, verdade, vida... – Tudo destruído de um dia para outro, e não por uma convulsão da natureza! Não pisoteado até a morte por teutônicos e outros búfalos! Mas vencido por vampiros velhacos, furtivos, invisíveis e anêmicos! Não conquistado – apenas consumido!... A vingança oculta, a inveja mesquinha, agora dominam! Tudo que é miserável, intrinsecamente doente, tomado por maus sentimentos, todo o mundo de gueto da alma estava subitamente no topo! – Leia-se qualquer agitador cristão, por exemplo, Santo Agostinho, para entender, para sentir o cheiro daquela gente imunda que subiu ao poder. – Seria um erro, entretanto, presumir que havia falta de compreensão por parte dos líderes do movimento cristão: – ah, eles eram espertos, espertos até à santidade, esses pais da Igreja! O que lhes faltava era algo bastante diferente. A natureza deixou – talvez esqueceu-se – de dotá-los, ao menos modestamente, de instintos respeitáveis, íntegros, limpos... Dito entre nós, eles não são sequer homens... Se o islamismo despreza o cristianismo, tem mil razões para fazê-lo: o islamismo pressupõe homens...
LX
O cristianismo nos fez perder todos os frutos da civilização antiga, e mais tarde nos fez perder os frutos da civilização islâmica. A maravilhosa cultura dos mouros na Espanha, que era fundamentalmente mais próxima aos nossos sentidos e gostos que Roma e Grécia, foi pisoteada (– não digo por que tipo de pés –). Por quê? Porque devia sua origem aos instintos nobres e viris – porque dizia sim à vida, e a com a rara e refinada luxuosidade da vida mourisca!... Mais tarde os cruzados combateram algo ante o qual seria mais apropriado que rastejassem – uma civilização que faria mesmo o nosso século XIX parecer muito pobre e “atrasado”. – O que queriam, obviamente, era saquear: o Oriente era rico... Coloquemos à parte os preconceitos! As cruzadas: pirataria em grande escala, nada mais! A nobreza alemã, que no fundo é uma nobreza de viking, estava em seu elemento com as cruzadas: a Igreja sabia muito bem como ganhar a nobreza alemã.... A nobreza alemã, sempre a “guarda suíça” da Igreja, estava ao serviço de todos maus instintos da Igreja – mas bem paga... Foi precisamente a ajuda das espadas, do sangue e do valor alemães que permitiu à Igreja fazer sua guerra de morte contra tudo que é nobre sobre a Terra! Aqui poderiam ser feitas perguntas bastante dolorosas. A nobreza alemã encontra-se fora da história das civilizações elevadas: a razão é óbvia... Cristianismo, álcool – os dois grandes meios de corrupção... Em suma, não havia mais escolha entre o islamismo e o cristianismo que há entre um árabe e um judeu. A decisão já foi tomada; não há mais liberdade de escolha aqui. Ou bem se é chandala ou bem se não é... “Guerra de morte a Roma! Paz e amizade com o islamismo!”: esse foi o sentimento, essa foi a ação do grande espírito livre, do gênio entre os imperadores alemães, Frederico II. Como? Será preciso que um alemão seja gênio, espírito livre, para possuir sentimentos decentes? Não consigo imaginar como um alemão poderia sentir-se cristão...
LXI
Neste momento faz-se mister evocar uma memória cem vezes mais dolorosa aos alemães. Os alemães impediram a Europa de colher os últimos grandes frutos de cultura – a Renascença. Compreende-se finalmente, será que por fim compreende-se o que era a Renascença? A transmutação dos valores cristãos – uma tentativa com todos os meios, todos os instintos e todos os recursos do gênio para fazer triunfarem os valores opostos, os valores mais nobres... Até ao presente essa foi a única grande guerra; nunca houve uma questão mais crítica que a da Renascença – que é minha questão também –; nunca houve uma forma de ataque mais fundamental, mais direta, mais violentamente desferida por toda uma frente contra o centro do inimigo! Atacar no lugar decisivo, no próprio assento do cristianismo, e lá entronar os valores nobres – isto é, introduzi-los nos instintos, nas necessidades e desejos mais fundamentais dos que ocupavam o poder... Vejo diante de mim a possibilidade de um encantamento supraterreno: – parece-me que cintila com todas vibrações de uma beleza sutil e refinada, dentro da qual há uma arte tão divina, tão diabolicamente divina, que em vão se procuraria através dos milênios por semelhante possibilidade; vejo um espetáculo tão rico em significância e ao mesmo tempo tão maravilhosamente paradoxal que daria a todas as divindades do Olimpo o ensejo de irromper numa imortal gargalhada – César Bórgia como Papa!... Compreendem-me?... Pois bem, essa teria o sido a espécie de vitória que hoje somente eu desejo –: com ela o cristianismo teria sido abolido! – Que sucedeu? Um monge alemão, Lutero, chegou a Roma. Esse monge, com todos os instintos vingativos de um padre malogrado no corpo, levantou uma rebelião contra a Renascença em Roma... Em vez de compreender, com profundo reconhecimento, o milagre que havia ocorrido: a conquista do cristianismo em sua sede – usou o espetáculo apenas para alimentar seu próprio ódio. O homem religioso pensa apenas em si mesmo. – Lutero viu apenas a corrupção do papado, enquanto exatamente o oposto estava tornando-se visível: a velha corrupção, o peccatum originale, o cristianismo já não ocupava mais o trono papal! Em seu lugar havia vida! Havia o triunfo da vida! Havia um grande sim a tudo que é grande, belo e audaz!... E Lutero restabeleceu a Igreja: a atacou... A Renascença – um evento sem sentido, uma grande futilidade! – Ah, esses alemães, quanto já nos custaram! Tornar todas as coisas vãs – sempre foi esse o trabalho dos alemães. – A Reforma; Leibniz; Kant e a assim chamada filosofia alemã; as guerras de “independência”; o Império – sempre um substituto fútil para algo que existia, para algo irrecuperável... Estes alemães, eu confesso, são meus inimigos: desprezo neles toda a sujidade nos valores e nos conceitos, a covardia perante todo sim e não sinceros. Há quase mil anos embaraçam e confundem tudo que seus dedos tocam; têm sobre suas consciências todas as coisas feitas pela metade, feitas nas suas três oitavas partes, de que a Europa está doente – e também pesa sobre suas consciências a mais imunda, incurável e indestrutível espécie de cristianismo – protestantismo... Se a humanidade nunca conseguir livrar-se do cristianismo, os culpados serão os alemães...
LXII
– Com isto concluo e pronuncio meu julgamento: eu condeno o cristianismo; lanço contra a Igreja cristã a mais terrível acusação que um acusador já teve em sua boca. Para mim ela é a maior corrupção imaginável; busca perpetrar a última, a pior espécie de corrupção. A Igreja cristã não deixou nada intocado pela sua depravação; transformou todo valor em indignidade, toda verdade em mentira e toda integridade em baixeza de alma. Que se atrevam a me falar sobre seus benefícios “humanitários”! Suas necessidades mais profundas a impedem de suprimir qualquer miséria; ela vive da miséria; criou a miséria para fazer-se imortal... Por exemplo, o verme do pecado: foi a Igreja que enriqueceu a humanidade com esta desgraça! – A “igualdade das almas perante Deus” – essa fraude, esse pretexto para o rancor de todos espíritos baixos – essa idéia explosiva terminou por converter-se em revolução, idéia moderna e princípio de decadência de toda ordem social – isso é dinamite cristã... Os “humanitários” benefícios do cristianismo! Fazer da humanitas(1) uma autocontradição, uma arte da autopoluição, um desejo de mentir a todo custo, uma aversão e desprezo por todos instintos bons e honestos! Para mim são esses os “benefícios” do cristianismo! – O parasitismo como única prática da Igreja; com seus ideais “sagrados” e anêmicos, sugando da vida todo o sangue, todo o amor, toda a esperança; o além como vontade de negação de toda a realidade; a cruz como símbolo representante da conspiração mais subterrânea que jamais existiu – contra a saúde, a beleza, o bem-estar, o intelecto, a bondade da alma – contra a própria vida...
Escreverei esta acusação eterna contra o cristianismo em todas as paredes, em toda parte onde houver paredes – tenho letras que até os cegos poderão ler... Denomino o cristianismo a grande maldição, a grande corrupção interior, o grande instinto de vingança, para o qual nenhum meio é suficientemente venenoso, secreto, subterrâneo ou baixo – chamo-lhe a imortal vergonha da humanidade...
E conta-se o tempo a partir do dies nefastus(2) em que essa fatalidade começou – o primeiro dia do cristianismo! – Por que não contá-lo a partir do seu último dia? – A partir de hoje? – Transmutação de todos os valores!...
1 – Caráter humano, sentimento humano.
2 – Dia nefasto.
Lei contra o cristianismo
Datada do dia da Salvação: primeiro dia do ano Um (em 30 de Setembro de 1888, pelo falso calendário).
Guerra de morte contra o vício: o vício é o cristianismo
Artigo Primeiro – Qualquer espécie de antinatureza é vício. O tipo de homem mais vicioso é o padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não há razões: há cadeia.
Artigo Segundo – Qualquer tipo de colaboração a um ofício divino é um atentado contra a moral pública. Seremos mais ríspidos com protestantes que com católicos, e mais ríspidos com os protestantes liberais que com os ortodoxos. Quanto mais próximo se está da ciência, maior o crime de ser cristão. Conseqüentemente, o maior dos criminosos é filósofo.
Artigo Terceiro – O local amaldiçoado onde o cristianismo chocou seus ovos de basilisco deve ser demolido e transformado no lugar mais infame da Terra, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Lá devem ser criadas cobras venenosas.
Artigo Quarto – Pregar a castidade é uma incitação pública à antinatureza. Qualquer desprezo à vida sexual, qualquer tentativa de maculá-la através do conceito de “impureza” é o maior pecado contra o Espírito Santo da Vida.
Artigo Quinto – Comer na mesma mesa que um padre é proibido: quem o fizer será excomungado da sociedade honesta. O padre é o nosso chandala – ele será proscrito, lhe deixaremos morrer de fome, jogá-lo-emos em qualquer espécie de deserto.
Artigo Sexto – A história “sagrada” será chamada pelo nome que merece: história maldita; as palavras “Deus”, “salvador”, “redentor”, “santo” serão usadas como insultos, como alcunhas para criminosos.
Artigo Sétimo – O resto nasce a partir daqui.

Tradução: André Díspore Cancian