domingo, 26 de janeiro de 2014

UM BRINDE AO EXCESSO!

Tudo é excesso nessa verdadeira extravagância em forma de filme que é o novo de Martin Scorcese, "O Lobo de Wall Street". O diretor parece realmente ter ligado o bom e velho botão de “foda-se” e filmado à vontade, sem limites, quase sem cortes, sem aparas de arestas. Estava, evidentemente, se divertindo. Praticamente brincando de fazer cinema. O resultado, como não poderia deixar de ser, é irregular – chega uma hora em que você meio que enche o saco ao ver mais uma cena de orgia sexual regada a drogas, ambição e cinismo em doses cavalares – mas, em muitos momentos, brilhante!

A própria estrutura do longa – e bote longa nisso, 3 horas de duração! – parece refletir o estilo de vida dos personagens retratados, operadores do mercado financeiro que não hesitam em passar por cima do que for preciso para obter o que querem: DINHEIRO! Dinheiro, dinheiro, mais e mais dinheiro. MUITO dinheiro. Utilizado única e exclusivamente para satisfazer seus desejos hedonistas, que, tenho que repetir: não têm limites.

A atuação de Leonardo DiCaprio é magistral. São várias cenas e diálogos antológicos com personagens coadjuvantes igualmente excelentes e muito bem interpretados – com evidente destaque para Jonah Hill, não por acaso indicado ao Oscar pelo papel do sócio alucinado fumador de crack! Mas vou destacar uma: aquela na qual ele tem que correr para casa depois de ingerir substâncias “ilícitas” que comprometem sua coordenação motora.

O filme foi, a meu ver, injustamente acusado de “glamourizar” a vida desregrada de seu protagonista. O suposto glamour está, na verdade, apenas retratado. E de forma farsesca, já que se trata, evidentemente, de uma paródia. O julgamento moral do que se vê na tela fica por conta do olhar de quem vê. Eu, por exemplo, fiquei mais com a impressão de que ele romantiza a atuação dos agentes federais, quase sempre mostrados como verdadeiros heróis a serviço bem, na velha escola maniqueísta de ver o mundo. O que não deixa de ser verdade, em determinados momentos, e a depender da situação. Só que nem sempre. Na maioria das vezes eles são apenas cães de guarda incumbidos de inibir os excesssos corrosivos para que o sistema, intrinsicamente injusto, não pare de funcionar.

O que é difícil de acreditar, mesmo, é que haja pessoas que se entreguem dessa maneira a tamanha insanidade. Mas parece ser tudo verdade. Em teoria, é, já que o filme se baseia na autobiografia do corretor da Bolsa de Nova York Jordan Belfort. A caricatura desenhada por Scorsese não é, portanto, tão irreal quanto parece. Não é por acaso que o mundo está do jeito que está, imerso num caos econômico, conceitual e moral. Porque o dinheiro, ao contrário do que diz o “guru” de Jordan no início do filme(Matthew McConaughey, numa participação tão rápida quanto fantástica), não é fictício. Ele existe. E se se concentra estupidamente nas mãos de alguns, é porque falta nos bolsos de muitos e muitos outros.

A

#


Rádio Vermelho, 600 dias de música, trabalho e muito debate

“O Portal Vermelho nasce como uma oficina de si próprio. Irá se fabricando no ar, abrindo seu caminho ao andar (...) é, sobretudo, uma escolha consciente: um portal militante confia seu êxito à contribuição militante”. Essa citação foi tirada no Manifesto Vermelho, base para os bravos companheiros que ao longo destes 12 anos fizeram dessa trincheira uma referência para o embate de ideias. Essa é a inspiração que guia a Rádio Vermelho. 

Joanne Mota, sergipana, a voz da rádio vermelho

Por Joanne Mota, para Portal Vermelho


Embate e verdade, sem perder de vista a luta política, esse é o clima presente nos estúdios da Rádio Vermelho em cada debate ou gravação realizada. Suas primeiras transmissões foram iniciadas em 30 de maio de 2012, durante as comemorações pelos 10 anos do Vermelho. No entanto, ela já vinha sendo gestada desde 6 de janeiro 2012, quando me foi dada a honra de trabalhar em sua concepção.

Neste domingo (26), a Rádio Vermelho completa 600 dias de efetivo trabalho, que geraram mais de 610 entrevistas e debates. Isso, sem contar a sua programação musical, suas colunas semanais e seus boletins noticiosos.

A presente data é festejada não só pelos que acompanharam essa trajetória de busca da informação precisa, do exercício do jornalismo nos termos clássicos, mas também por aqueles que ao longo desdes 600 dias alimentaram a programação dessa emissora que ainda está em sua primeira infância.

É preciso agradecer aqui, primeiro, ao nosso editor José Reinaldo Carvalho, que acreditou ser possível edificar este espaço. Em segundo, agradecer aos jornalistas que bravamente atenderam ao chamado e fizeram da Rádio o que ela é hoje. Aos jornalistas e amigos Toni C, Carla Santos, Deborah Moreira, Erika Ceconi, Mariana Viel (Vermelho/MG), Vanessa Silva, Gustavo Alves (PCdoB/DF), Erikson Walla (Vermelho/BA), Inácio Carvalho (Vermelho/CE), José Carlos Ruy, Eliz Brandão, Letícia Figueiredo, Clécio Almeida, Andocides Bezerra, Cezar Xavier e aos nosso entrevistados e colaboradores a Rádio Vermelho diz muito obrigado.

Uma arena para a luta de ideias


Desde a sua criação a Rádio Vermelho focou sua produção no aprofundamento dos conteúdos já tratados pelo Portal Vermelho, abrindo amplo espaço para a divulgação das ações partidárias, debatendo questões da agenda política e social, ouvindo os movimentos sociais e os trabalhadores e trabalhadoras de todo o Brasil. Ou seja, de forma complementar, buscou contribuir para uma reflexão mais crítica dos assuntos mais candentes de nossa sociedade.

A cultura também teve espeço em nossa programação. Seja no entendimento da cultura como vetor de desenvolvimento, seja como forma de oferecer aos nossos ouvintes o que não é facilmente encontrado em emissoras tradicionais.

Na passagem pelo aniversário de 1 ano da Rádio Vermelho, Renato Rabelo, presidente do PCdoB, falou sobre o papel jogado por esse espaço. "A Rádio Vermelho é um projeto bem-sucedido, que compõe uma estratégia em curso, que é o do fomento da imprensa alternativa no Brasil. Essa mídia alternativa nasce do esforço crescente, e também bem-sucedido, da luta pela democratização da comunicação no Brasil. O PCdoB está nessa luta e o Portal Vermelho, bem como a TV e a Rádio, fazem parte desta trincheira".

Segundo ele, experiências como a da Rádio Vermelho são a forma que os trabalhadores encontram de externar sua posição, de desconstruir o discurso dos setores conservadores do país, de dar vez e voz a quem sempre esteve à margem. "Reconhecemos que esta é uma luta de titãs, pois enquanto essa velha mídia fala para milhões, falamos para milhares, mas mesmo assim conseguimos passar nossa mensagem, conseguimos plantar a semente de uma outra opinião."

Essa opinião é compartilhada por nosso editor José Reinaldo Carvalho. "Entendemos que o Portal Vermelho e todos os seus componentes, entre eles a Rádio Vermelho, é uma trincheira da luta de ideias, e na luta de ideias nós nos confrontamos a cada momento com o que denomino de usina de mentiras, que é a mídia corporativa, monopolista e que está a serviço do imperialismo", destacou ele.

E mais: “A mídia, hoje, é o principal veículo para fabricar um ambiente favorável às guerras de agressão do imperialismo contra os povos. Nesse sentido, o Portal Vermelho busca, diariamente, desconstruir o que é colocado por esta mídia, fomentando o debate e aprofundando questões que não são tratadas a contento pela mídia hegemônica”, externou o Reinaldo, que também é secretário Nacional de Comunicação do PCdoB.

Os passos trilhados até aqui nos apresentam os desafios que teremos pela frente, os quais serão necessários para impulsionar nossa presença na defesa de uma comunicação social clara e crítica, sem perder de vista nossa veia militante.

Que venham os próximos 600!

#

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Não foge à luta ...

Estava de bobeira numa livraria agora há pouco quando me deparo com um emocionante depoimento da presidente Dilma Roussef sobre as torturas que sofreu durante a Ditadura Militar. Está publicado na contracapa do livro "Não passarás o Jordão", de Luiz Fernando Emediato. Me comovo com relatos sobre a tortura. É algo que nem consigo imaginar acontecendo comigo, pois a dor deve ser indescritível. Não sei se suportaria. Considero cada um que tenha passado por isso e sobreviveu para contar a História de forma lúcida, sem perder a sanindade, um herói. Meu eterno respeito.

Na internet achei o interessante artigo abaixo que contém trechos do depoimento que li na contracapa do livro:

Reportagens publicadas nos jornais "Correio Braziliense" e "Estado de Minas" deste domingo (17) e segunda-feira (18) mostram detalhes de sessões de tortura pelas quais passou a presidente da República, Dilma Rousseff, em Minas Gerais, durante a ditadura militar. Segundo os jornais, os detalhes foram revelados pela presidente em outubro de 2001, durante depoimento ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (Conedh-MG), criado para indenizar presos políticos torturados no estado.

Em 2002, ela foi indenizada em R$ 30 mil pela tortura sofrida. Em maio último, foi informado que a presidente seria indenizada também em R$ 20 mil pela tortura sofrida no Rio. A Presidência informou que o valor seria doado ao Grupo Tortura Nunca Mais. Também em maio, a presidente deu posse aos integrantes da Comissão da Verdade, que vai apurar violações aos direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar.

No depoimento dado à comissão mineira, a presidente, que na época era secretária de Minas e Energia no Rio Grande do Sul e filiada ao PDT, contou que levou vários socos no maxilar durante as sessões de tortura em Juiz de Fora no início dos anos 70. Os militares queriam saber detalhes do funcionamento do Comando de Libertação Nacional (Colina), grupo no qual Dilma militava.

"Minha arcada girou para o lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu. [...] Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz (capitão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de São Paulo) completou o serviço com um soco, arrancando o dente", contou Dilma no depoimento.

Àquela epoca, Dilma era conhecida como Estela - ela teve ainda outros codinomes, como Vanda e Luíza. Ela narrou ainda que policiais tinham interesse em saber qual seria o contato dela com Ângelo Pezzuti, dirigente do Colina. "Eu comecei a ser procurada em Minas nos dias seguintes à prisão de Ângelo Pezzuti. Eu morava no Edifício Solar, com meu marido, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, e numa noite, no fim de dezembro de 1968, o apartamento foi cercado e conseguimos fugir, na madrugada. O porteiro disse aos policiais do Dops de Minas que não estávamos em casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua do fundo, a Rua Goiás."

"Fui interrogada dentro da Operação Bandeirantes (Oban) por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Ângelo Pezzuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 69 e isso era no início de 70. Desconhecia as tentativas de fuga de Pezzuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira. Talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata", declarou a presidente ao conselho, de acordo com os jornais.

Dilma relatou ainda sessões de tortura com choque. "Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador ‘experiente’, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em São Paulo usaram pouco esse ‘método’. No fim, quando estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito", relatou.

Em outro momento, ela relata que sofreu hemorragia por conta da tortura. "Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (…) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em Minas, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas."

De acordo com os documentos publicados pelos jornais, a presidente relatou momentos de solidão em que temia a morte. "O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente pelo resto da vida", disse. "Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças. Eles interrogavam assim: ‘Me dá o contato da organização com a polícia?’ Eles queriam o concreto. ‘Você fica aqui pensando, daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura.’ A pior coisa é esperar por tortura."

“Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato.”

"As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim", relatou a presidente.

g1

#



terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O Povo Brasileiro

Nações há no Novo Mundo – Estados Unidos, Canadá, Austrália – que são meros transplantes da Europa para amplos espaços de além-mar. Não apresentam novidade alguma neste mundo. São excedentes que não cabiam mais no Velho Mundo e aqui vieram repetir a Europa, reconstituindo suas paisagens natais para viverem com mais folga e liberdade, sentindo-se em casa. É certo que às vezes se fazem criativos, reinventando a república e a eleição grega. Raramente. São, a rigor, o oposto de nós.

Nosso destino é nos unificarmos com todos os latino-americanos por nossa oposição comum ao mesmo antagonista, que é a América anglo-saxônica, para fundarmos, tal como ocorre na comunidade europeia, a Nação Latino-Americana sonhada por Bolívar. Hoje, somos 500 milhões, amanhã seremos 1 bilhão. Vale dizer, um contingente humano com magnitude suficiente para encarnar a latinidade em face dos blocos chineses, eslavos, árabes e neobritânicos na humanidade futura.

Somos povos novos ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito mais bela e desafiante.

Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidade. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da terra.

Darcy Ribeiro

1995

#

  

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

UTOPIA & BARBÁRIE

“Utopia e Barbárie”, documentário de Silvio Tendler lançado em 2005 e relançado em 2010, é um impressionante painel analítico das idéias e das lutas travadas nos campos político, filosófico e social durante a segunda metade do século vinte, com um pequeno vislumbre de seus desdobramentos no começo do Século XXI. Para tanto, reúne um respeitável acervo de imagens de arquivos e entrevistas exclusivas com gente do porte de Susan Sontag, Eduardo Galeano, Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho (a quem o filme faz uma homenagem, no final), Augusto Boal, Nasaindy Barret, Zé Celso Martinez, o General Giap, herói de guerra vietnamita, e uma Dilma Roussef ainda não-repaginada para enfrentar o desafio de se tornar presidenta de república – no filme ela é creditada como “economista” e discorre sobre os sonhos e a luta por justiça social de sua geração. Narrado em primeira pessoa por Amir Haddad, Chico Diaz e Letícia Spiler, utiliza também trechos de filmes como “Roma, Cidade Aberta”, de Rosselini, “A Greve”, de Eisenstein, e “As Invasões Bárbaras”, de Dennys Arcand, numa edição primorosa que consegue condensar 50 anos de luta intensa em duas horas de cinema de primeira qualidade. A obra-prima de um mestre do cinema documental. Absolutamente indispensável!

Clique AQUI para ver, na íntegra, via youtube.

Ou AQUI para baixar via torrent.


Temas e personagens não faltam: Jango, JK, Carlos Marighella, Josué de Castro, Glauber Rocha... Silvio Tendler é o “documentarista dos vencidos”, o “cineasta dos sonhos interrompidos”, como costuma ser chamado pela crítica. Seus filmes são resgates da memória brasileira que inspiram seus espectadores a refletir sobre os rumos do país. Difícil falar do cinema documentário nacional sem passar pelo seu nome. O gênero não ficcional ganharia com Tendler uma relação de proximidade com a História. E logo em sua trilogia inicial, no começo dos anos 1980, em meio ao processo de democratização, ele inscreveu seu nome na cinematografia brasileira com um sucesso de bilheteria: “Os Anos JK” (1980) conquistou cerca de um milhão de espectadores; “O Mundo Mágico dos Trapalhões” (1981) teve 1,8 milhão de ingressos vendidos, e “Jango” (1982), 800 mil.

Carioca de 1950, hoje Tendler é também professor de Comunicação da PUC-Rio: “Eu diria que despontei para a vida lá pelos meus 14 anos, em plena ditadura militar. E, naquela época, era preciso fazer determinadas escolhas”. Ele fez as dele. Tornou-se cinéfilo, presidente do movimento cineclubista e um apaixonado pela história do país. Nos anos 1970, acabou deixando o Brasil de Médici para viver no Chile de Salvador Allende. Na França, cursou o mestrado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, escreveu sobre o cineasta Joris Ivens, foi aluno do realizador Jean Rouch e assistente de direção de Chris Marker. Aprendeu com os mestres. Em 1981, fundou a Caliban, produtora dedicada a biografias históricas de cunho social. De lá para cá, já fez campanhas políticas, filmes institucionais, e soma na bagagem mais de 40 obras, entre curtas, médias e longas-metragens.

Tendler recebeu a equipe da Revista de História em seu escritório. “Você está vendo aquela frase ali na parede? Ela me guia há muitos anos: ‘Se intimidar frente à propaganda é como se intimidar frente aos fuzis inimigos’”, diz ele, exaltando a frase criada por Fidel Castro. O lema é também usado por Santiago Alvarez, outro documentarista seminal que Tendler teve a oportunidade de conhecer. Nesta entrevista, ele conta com prazer esses muitos “causos”, relembra sua festa de 14 anos, às vésperas do golpe militar de 1964, o sonho socialista no Chile e as dificuldades encontradas para realizar seus primeiros filmes. O cineasta ainda discutiu sobre seu longa mais recente, “Utopia e barbárie”, rebateu as críticas feitas em relação à participação de Dilma Rousseff e revelou suas intenções quanto à sua próxima empreitada, “Muda Brasil”, sobre Tancredo Neves: “É o velho Karl Marx que diz: os fatos e personagens da História acontecem como tragédia e se repetem como farsa”.

REVISTA DE HISTÓRIA “Utopia e barbárie” levou quanto tempo para ser feito?

SILVIO TENDLER Um terço da minha vida. Na verdade, esse documentário deveria ter quatro, seis, oito horas. O problema é que, em primeiro lugar, eu não tenho recursos para finalizar um filme com esse tempo todo. Em segundo, o público não vai assistir a um filme longo. Duas horas já são quase uma ofensa pessoal. Em resumo: eu tive que me submeter à ditadura do tempo, sintetizar a história. Aliás, venho recebendo algumas críticas neste sentido, de que é um período de história muito amplo para narrar em duas horas. Mas essa era a história que eu queria contar e fiz com que ela coubesse naquela duração.

RH O filme foi lançado em ano eleitoral e também acabou sendo criticado por isso.

ST É verdade. Mas acho que isso tem menos a ver com as minhas posições políticas e mais com a minha honestidade intelectual. Trabalhei 19 anos da minha vida para fazer um filme político, de história política. Nunca quis fazer propaganda eleitoral. Não calculei, por todo esse tempo, que o documentário fosse lançado em ano de eleição para apoiar uma determinada candidata. Isto é simplesmente um absurdo. 

RH O que o levou até a Dilma Rousseff?

ST Decidi entrevistá-la movido por um depoimento que ela tinha dado no Senado. Naquela ocasião, a Dilma encarou o senador Agripino Maia quando ele a chamou de mentirosa. Ela respondeu: “Menti, sim, e mentiria de novo, nas mesmas circunstâncias, para salvar a vida de pessoas da tortura”. Eu não a conhecia. Ela não fazia parte da minha rede de relações. No entanto, a Dilma acabou se tornando uma personagem importante para o filme. Ela era militante da esquerda armada, foi presa e torturada durante a ditadura. Quando ela saiu da cadeia, seus amigos estavam presos, exilados ou mortos. Era isso que me interessava. Eu não coloquei nenhuma linha em relação ao fato de ela ser candidata à Presidência. Tampouco perguntei a ela sobre suas ideias a respeito do Brasil de hoje. A Dilma está lá dentro de uma perspectiva histórica.

RH O que não quer dizer que você não tenha suas convicções políticas.

ST Claro. Eu até já trabalhei em campanha eleitoral. Mas você não vai ver nenhum filme meu lançado em cinema como plataforma de apoio de ninguém. Este não é o papel do documentário. Seria uma investida muito burra. Se você tem dinheiro para apoiar a campanha eleitoral de alguém, gaste em mídia, e não em filme. Então, esse tipo de crítica não me intimida. Eu tenho um lema que aprendi com um cineasta cubano chamado Santiago Alvarez. Você está vendo aquela frase ali na parede? Ela me guia há muitos anos: “Se intimidar frente à propaganda é como se intimidar frente aos fuzis inimigos”. Ou seja: peitei, banquei a presença da Dilma no filme e estou sofrendo as consequências, até mesmo certos boicotes. Azar de quem não for ver o documentário.

RH Sua intenção é mostrar a chegada da esquerda ao governo?

ST Sim. Quando resolvi entrevistar pessoas como a Dilma e o Franklin Martins [atual ministro da Comunicação Social], eu não queria mostrar apenas uma esquerda fracassada, aposentada. A ideia era filmar personagens para quem aquele projeto utópico de esquerda vingou. Eu queria mostrar uma esquerda vitoriosa. E por isso estou tomando porrada direto. É claro que essa esquerda vitoriosa se reciclou. Neste sentido, o depoimento do Franklin é fundamental. Ele é um dos caras que explicitam essa coisa de que na nossa utopia também havia muito de barbárie. E a utopia dele hoje é uma utopia democrática.

RH Como era viver no período da ditadura militar?

ST Difícil. Eu diria que despontei para a vida lá pelos meus 14 anos, em plena ditadura militar. E, naquela época, era preciso fazer determinadas escolhas. Tenho uma historinha sobre isso. Em 12 de março de 64 eu estava fazendo 14 anos. O famoso comício da Central do Brasil se deu no dia seguinte, sexta-feira, dia 13 de março. Era feriado, não sei se federal ou estadual, mas não teve aula. Então, pude comemorar meu aniversário com uma festa. Todos os meus amigos foram. No dia seguinte, quase todos aqueles meninos que estavam cantando e brincando lá em casa ao som dos Beatles tinham na janela de seus apartamentos panos pretos e velas. A classe média era completamente arredia a tudo o que vinha do Jango. Uma classe média absolutamente lacerdista; eles eram contra as reformas de base, contrários a tudo aquilo que o Brasil vivia. Meus pais, no entanto, eram liberais. Eu entrei nos meus 14 anos vivendo essa contradição: meus pais eram simpáticos ao Jango, todos os demais pareciam torcer pelo golpe. E aí começou a minha vida de adulto.

RH Onde estava quando ocorreu o golpe?

ST Eu estava dentro do cinema. O clima já era tenso. Em 31 de março, as manifestações militares já haviam começado. Ouvíamos também falar dos revoltosos e não sei o quê. No dia 1º de abril, eu devia ser um dos poucos meninos na rua. E eu fui de tarde ao cinema assistir a um filme inglês. Minha mãe me fez prometer que, se acontecesse alguma coisa, eu deveria voltar para casa. De repente, lá de dentro da sala de cinema, dava para ouvir uma gritaria na rua. Fui até a porta do cinema e vi aqueles carros buzinando e as pessoas comemorando como se fosse vitória na Copa do Mundo. Eles celebravam a partida do Jango para Brasília. Segui a ordem da minha mãe, atravessei discretamente a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Lembro como se fosse ontem. Era impressionante o contraste: a classe média comemorava e os porteiros dos prédios todos de cabeça baixa, ouvindo o radinho de pilha. Ali foi a minha primeira visão da questão de classe. Quem estava ganhando com aquele golpe?

RH Nesse contexto, como foi parar no cinema?

ST A vida política institucional do Brasil tinha ficado completamente tolhida pela estrutura do golpe militar. Então, quem podia resistir? Só restavam os artistas e os intelectuais. Eles começaram a ocupar esse espaço. O Sérgio Porto faz o Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País). O Carlos Heitor Cony escreve O ato e o fato. O pessoal que era do CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE vai se reunir para formar o Teatro Opinião. O Zicartola fazia muito sucesso no Rio, como um templo antiditadura. Isso sem falar no cinema novo, que, do ponto de vista internacional, era o que de mais importante estava acontecendo no país. O Brasil tinha ganhado a Palma de Ouro em Cannes em 62 com “O pagador de promessas”. Poucos anos depois, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos seriam aclamados respectivamente com “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Vidas Secas”. Eu acompanhava esse movimento e já era muito politizado.

RH Era um período de efervescência cultural.
 
ST E, pra mim, era impossível não ser contaminado por aquilo. Eu me fascinei por esse mundo e achei que era por aí. Em 65, montei um cineclube com alguns amigos. Virei cinéfilo e me metia a besta de tentar ler Cahiers du Cinéma em francês. Não entendia uma palavra, uma linha sequer, mas andava com aquilo debaixo do braço. Passei a me vestir igual aos cineastas, aquele falso desleixado, paletó mais largo. Eu não tinha barba, mas, se tivesse, teria deixado crescer. Em 68, tornei-me presidente da Federação de Cineclubes. Naquele momento, já tinha o sonho de fazer cinema.

RH Chegou a pensar em fazer outra coisa?

ST Mais ou menos. Na verdade, minha família de judeus de classe média me via fazendo outra coisa. Minha mãe era médica, mas eu tinha horror a sangue. Sempre fui péssimo em Matemática, jamais poderia ser engenheiro. O que sobrava? Decorar códigos de leis e ser advogado. Estudei alguns períodos do curso de Direito da PUC no final dos anos 60. Mas acabei desistindo. Um dia, li uma notinha de quatro ou cinco linhas dizendo: “Presos os advogados dos presos políticos do Rio de Janeiro”. E eu, olhando o professor Celestino Basílio falando sobre introdução à ciência do Direito, não aguentei: “Espera aí, que ciência é essa? Que Direito é esse em que os advogados estão todos presos? Não estou falando dos políticos, estou falando dos advogados”. Naquele momento mesmo, saí de sala e não voltei mais. Acabei me convencendo de que a minha chance era via arte.

RH E o encontro com a História?

ST Como presidente do movimento cineclubista, eu viajava bastante. Numa dessas viagens, um amigo me falou dos livros de Nelson Werneck Sodré. Fiquei fascinado com aquilo. Era preciso contar outras histórias sobre o Brasil. Foi quando comecei a pensar: por que não falar da História do Brasil? Aliás, a única matéria em que eu tinha notas boas regularmente era História. Em todas as outras eu era um fracasso. Não conseguia decorar os afluentes da margem externa do Amazonas. Era péssimo em Álgebra, Trigonometria, Matemática. Nunca aprendi inglês direito. Tinha tesão pelo francês, mas não era um bom aluno. Talvez isso tenha sido a minha sorte. Meus pais aceitaram o meu destino de artista, com medo de que eu fracassasse em qualquer outra profissão.

RH E com o documentário?

ST
Eu já ruminava o desejo de fazer cinema histórico. Certa vez, na cinemateca do MAM, recebi um panfleto falando sobre um cineasta holandês chamado Joris Ivens. Ele era documentarista, havia filmado o conflito civil espanhol e a Segunda Guerra Mundial. Pensei que seria legal fazer o mesmo. Na mesma época, pude ver um filme do francês Chris Marker chamado “A sexta face do Pentágono”, um documentário contra a guerra do Vietnã. Era aquele tipo de cinema que eu queria fazer. E um dia me cai na mão um contato com o João Cândido, o Almirante Negro. Não podia perder a oportunidade e resolvi filmá-lo. No entanto, a carreira de documentarista teve de esperar um pouco mais.

RH Por quê?

ST Eu estava completamente desajustado no Brasil do Médici. Aí veio a notícia da eleição de Salvador Allende no Chile. Resolvi ir pra lá. E vivi um ano e meio absolutamente feliz. Foi um grande momento da minha vida. Aquela ideia de construir o socialismo de verdade sendo posta em prática. Depois de algum tempo, no entanto, eu tive que pensar na minha formação. O desejo pelo documentário permanecia. Meu pai me apoiou e eu acabei indo para a França em 1972.

RH Foi lá que se deu a sua formação artística?

ST Eu diria que sim. Morei na França durante quatro anos e meio e deslanchei profissionalmente. Fiz um curso de cinema ligado às Ciências Sociais, organizado pelo documentarista Jean Rouch. Também me matriculei na universidade sob a orientação do Marc Ferro. E comecei a apostar na minha formação como cineasta. Frequentei grupos como o Slon (Sociedade para o Lançamento de Obras Novas), do Chris Marker, e conheci muita gente. Em 73, resolvi passar as férias no Chile. Eu não sabia, é claro, mas aquele seria o último mês do governo Allende.

RH Como foi isso?

ST Foi um choque. Aquele mundo de fantasia que eu tinha vivido já não existia. O clima de tensão entre as classes sociais, entre os partidos políticos, entre governo e oposição, era insuportável. O pessoal que apoiava o Allende fez um bando de bobagem e acabou jogando a democracia cristã nos braços da direita. Eu sabia que não poderia ficar muito tempo por lá. Eu deveria ir embora no dia 4 de setembro, quando Allende comemorava três anos no poder, mas não tinha avião. A Lan Chile estava em greve geral. No dia 5 de setembro, a empresa conseguiu formar uma tripulação e levantar voo. Foi um período muito triste.

RH Essa experiência rendeu um filme, não foi?

ST Quando voltei para a França, o grupo de cinema liderado pelo Chris Marker me convidou para fazer um documentário sobre o governo Allende. Eu tinha 23 anos. Foi uma coisa incrível. O Chris Marker é um gênio. Depois, tornei-me mestre em Cinema e História pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS). Minha dissertação tratava da obra do Joris Ivens. Eu tive a felicidade de conviver com ele na França.

RH Como surgiu a ideia de fazer um documentário sobre JK?

ST Quando voltei ao Brasil, em meados dos anos 70, eu já tinha a ideia de fazer filmes sobre a história do país. Eu era muito amigo dos irmãos Buza Ferraz e Antônio Paulo. O Hélio, irmão do meio, que tinha virado empresário, queria investir em cultura. Mas ele não queria jogar dinheiro fora. Eu precisava de um bom tema. E, naquela época, o enterro do JK tinha sido algo marcante. Pensei que aquilo rendia um filme. O Hélio aceitou e me ofereceu o dinheiro. Mas não foi fácil. Não havia nenhuma imagem de arquivo do ex-presidente na cinemateca. Tive que correr atrás para arranjar os arquivos e filmar “Os Anos JK”.

RH Por que foi difícil?

ST As pessoas tinham medo de participar de um filme sobre o Juscelino. Ninguém queria dar arquivo de imagem. Foi difícil. Quando entrevistei a dona Sarah Kubitschek, ela me disse: “Você é um cara muito corajoso”. Isso no começo de 1977. Naquele ano, a família Kubitschek foi pedir ao governo Geisel um terreno em Brasília para construir um memorial. O governo disse não. O Hélio, produtor do filme, sofreu muita pressão para parar as filmagens. “Os Anos JK” nasceu nesse clima de muito medo, muita desconfiança.

RH Em compensação, o filme teve um enorme impacto.

ST É verdade. Eu aprendi isso com o Joris Ivens. Ele dizia que o cinema documentário precisava ter uma empatia com o público. E, para fazê-lo, era preciso ter personagens. Para falar de classes, por exemplo, era necessário filmar pessoas. Foi o que fiz em “Os Anos JK”. Eu queria falar desse presidente que governou em plena democracia, em um momento de exceção na história recente do país. Os militares nos diziam que o desenvolvimento era incompatível com a democracia. Eu queria mostrar que foi no período democrático de JK que o Brasil realmente floresceu. E, assim, o filme teve o efeito que teve. Eu tinha encontrado o meu jeito de fazer cinema. Pude confirmar essa descoberta com “Jango”.

RH Como vê “Jango” hoje?

ST Difícil dizer. Eu faço história voltada para o futuro. Não tenho saudade do passado. Quando o Jango foi deposto, eu tinha apenas 14 anos. Eu não vivi exatamente aquilo. Pra mim, o Jango foi um turbilhão que durou dois anos e sete meses. Então, eu não sei se o que eu queria com esse documentário era contar uma história vivida ou manifestar um desejo de democracia e de justiça social. “Os Anos JK” é um filme sobre a democracia. O “Jango” é sobre justiça social, o voto do analfabeto, o controle da remessa de lucros, as reformas agrária, tributária e urbana. Se o Jango não tivesse sido deposto, o Brasil não estaria hoje nas condições em que está. Hoje, acho que era isso o que eu queria dizer.

RH Seu próximo filme será sobre Tancredo Neves, não é?

ST Sim. Eu tive o prazer de conhecer o Tancredo pessoalmente. Ele era um cara muito inteligente e engraçado. O que eu quero contar nesse filme é como se faz política através das articulações de elites, de formulações palacianas no Congresso. Essa é a história de Tancredo. Como ele consegue montar a equação para se eleger naquele Congresso espúrio? Como se deu legitimidade à sua eleição através do movimento das massas? Isso é o “Muda Brasil”.

RH Como vê a chegada da esquerda ao poder no Brasil?

ST Hoje, a esquerda latino-americana é respeitada no mundo inteiro. A gente aqui se dá ao luxo de ficar rindo do Evo Morales (Bolívia), do Hugo Chávez (Venezuela), do Fernando Lugo (Paraguai)... O nosso riso é uma forma de ação política, muitas vezes conservadora. Os europeus, por exemplo, têm mais respeito e carinho por essas figuras. Um ex-militante tupamaro é presidente do Uruguai. José Alberto Mujica ficou preso 13 anos, em solitária, isolado do mundo, como refém da ditadura militar uruguaia. Hoje ele é presidente da República. Para nós, é bom. A minha geração também coleciona vitórias.

RH E qual é a sua utopia hoje?

ST Eu acho que o mundo hoje é diferente, em especial as formas de ação. Não há grandes movimentos de massa. Estive recentemente em Belo Horizonte, participando de um debate com o pessoal do movimento popular, e um dos participantes falou: “Gente, quando os caras foram fazer comemoração dos 20 anos da greve dos metalúrgicos, eles tiveram a ideia de ocupar, fazer um ato político”. Mas aquilo era impossível. Se há 20 anos o movimento era composto de cerca de 50 a 60 mil metalúrgicos, agora só há cerca de cinco mil. Hoje, as formas de ação são diferentes. É o velho Karl Marx que diz: os fatos e personagens da História acontecem como tragédia e se repetem como farsa.

por Rodrigo Elias

17/06/2010

#

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Zapatismo, vinte anos depois

(***) Em 1º de janeiro de 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) tomou o controle de parte da pobre província mexicana de Chiapas. Formado em sua maior parte por indígenas, o EZLN ocupou cidades, libertou presos e desafiou o poder do Estado na região. Depois de longas disputas com o governo do México, o grupo abaixou as armas e adotou estratégias de resistência civil. Hoje, controla parte de Chiapas.

Quase vinte anos depois do levante, a influência do movimento zapatista ainda pode ser sentida. Não apenas no México. Características do zapatismo puderam ser vistas nas manifestações que tomaram o Brasil em junho de 2013. Estopim dos protestos, o Movimento Passe Livre (MPL) compartilha ideias vindas de Chiapas. O MPL é herdeiro da luta antiglobalização do final dos anos 1990. Naquele momento, o EZLN teve sua maior influência dentro da esquerda política, quando movimentos ao redor do mundo, organizados na Ação Global dos Povos, questionavam as políticas neoliberais em evidência na época.

“O zapatismo conseguiu soprar novos ares sobre os cânones da esquerda tradicional, inspirando-nos a ir além dos caminhos mais defendidos e usuais”, diz um integrante do MPL que preferiu não se identificar. Ele se encontrava em Chiapas, junto a outros militantes do movimento que participavam da Escuelita Zapatista, um encontro de ativistas na região.

Uma das características comuns ao EZLN e ao MPL é a negação de figuras destacadas, em contraposição aos líderes da esquerda organizada em partidos e sindicatos. Alguns porta-vozes em Chiapas atendem pelo nome de “subcomandante”, sendo Marcos o mais conhecido deles. A partir da ideia de que ninguém se destaca, surge a imagem mais familiar dos zapatistas: a dos rostos cobertos por capuzes pretos. A imagem dos “encapuchados”, junto com a estrela vermelha em um fundo preto, se tornaram os ícones mais conhecidos do movimento.

Os integrantes do MPL não chegam a se “encapuchar” da mesma forma que os zapatistas, mas se queixaram do tratamento recebido por parte da imprensa, que caracterizava alguns deles como líderes do movimento, ou divulgavam características e interesses pessoais de militantes. Para eles, a personalização feita pela imprensa é uma “contra-ofensiva”, que procura desvincula-los de uma causa maior. “Costumamos dizer que a horizontalidade é um horizonte, um ideal que devemos perseguir ativamente. A cada vez que relaxamos, facilmente terminamos por reproduzir essas práticas [hierarquizadas]. Por isso, a horizontalidade é algo ativo. É um combate constante contra a hierarquiazação a que nos empurram a todo momento,” diz um militante do MPL.

 Territórios autônomos

Quem chega perto das terras em Chiapas encontra placas com a inscrição: “Esta usted en territorio zapatista em rebeldia, aqui manda el pueblo y el governo obedece.” Lá dentro, os zapatistas mantêm a educação, o judiciário, e tudo o que for possível em seu próprio controle. Os zapatistas não tentam tomar o controle do Estado mexicano e não disputam eleições, tentando manter o poder onde se encontram.

Alguns movimentos urbanos de moradia em São Paulo atuam de forma parecida e buscam ter autonomia em suas áreas. A Rede Extremo Sul diz compartilhar de algumas das características da luta em Chiapas. “Temos referência na ousadia zapatista, na sua postura antidogmática, e sobretudo na percepção de que não basta trocar patrões e governantes, maquiar os regimes políticos", diz o movimento Rede Extremo Sul, em resposta coletiva enviada à reportagem. "Mas [devemos] colocar como tarefa a construção de novas relações sociais, a tomada de controle de maneira ativa, consciente e coletiva das diversas dimensões da vida social.”

Nas ocupações de terrenos feitas pelo movimento, no bairro do Grajaú, os moradores têm diversas funções dentro da ocupação. A intenção é que eles possam participar ao máximo em atividades ligadas à educação, comunicação, cultura e à resolução de conflitos, por exemplo. Nas assembleias, todos têm vez para falar e existe um esforço para que as decisões relevantes sejam tomadas em conjunto. “A experiência da vida coletiva nas ocupações representa certa ruptura com o individualismo da vida cotidiana, de modo que elas se apresentam como espaços propícios a este exercício de autonomia e de mudança de cultura política,” explica a Rede.

 Os Zapatistas mostraram que a história não havia acabado

O levante dos zapatistas aconteceu poucos anos após o fim da União Soviética e a queda do muro de Berlim, em meio à uma globalização sem precedentes do capital financeiro. Na avaliação de Gilmar Mauro, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), estes eventos causaram uma crise nas organizações socialistas do mundo todo. Para o militante, o levante zapatista foi um “contraponto fundamental” a esse quadro: Chiapas mostrava ao mundo que a democracia liberal não era o fim da história, como havia escrito o historiador norte-americano Francis Fukuyama em 1992.

Anterior ao levante zapatista, o MST é uma organização assumidamente hierarquizada. Nela, há direções em diferentes esferas (nacional, estadual e local). Embora não haja a figura de um presidente, há integrantes que se destacam pela sua participação e direção do movimento. Apesar de não ter candidatos próprios, o MST se posiciona e também disputa a política dentro dos meandros do Estado. Faz isso, por exemplo, apoiando determinados candidatos e dialogando mais com o poder público do que os movimentos autonomistas (como o MPL) o fazem.

Mesmo com as diferenças entre os movimentos, Mauro diz que o EZLN e o MST mantêm uma relação de respeito mútuo e solidariedade. “O zapatismo cumpriu um papel de influência na juventude de todo planeta com o discurso que se diferencia da visão clássica da tomada do poder na esquerda. Ou seja, eles mostram a ideia de poder popular,” diz Mauro, que já esteve em Chiapas algumas vezes. “A construção de poder popular é muito importante, ou seja, a ideia de construir novas formas, uma nova metodologia para alterar a ordem do capital e construir outra sociedade. A participação de todos e de todas é muito importante.”

Para Mauro, este outro tipo de organização surge porque sindicatos e partidos foram construídos quando o desenvolvimento do capitalismo permitia ganhos para todos, ao contrário do que acontece hoje, quando os trabalhadores são mais prejudicados. “É preciso construir novas formas organizativas. Mas isso não significa colocar na lata do lixo o que a gente construiu [em sindicatos, partidos, e movimentos sociais], pois estas novas formas não dão conta de organizar o conjunto da classe trabalhadora.” Qual seria essa nova forma? “É a experimentação concreta que vai permitir testar e construir novas formas de luta.”

20 anos do levante de Chiapas


(**) Os 20 anos do levante armado zapatista serão comemorados em Chiapas com uma festa realizada nos cinco caracóis (comunidades zapatistas), “aberto a todos e a todas, menos à imprensa”, conforme informou o Subcomandante Moisés - encarregado de assuntos internacionais do movimento por meio de um comunicado divulgado pela internet.

Os caracóis são as regiões organizativas das comunidades zapatistas, criadas em agosto de 2003, como uma mudança na forma de administrar os municípios ocupados. Anteriormente, estas regiões eram chamadas de Aguascalientes.

Em dezembro de 1994, os zapatistas ocuparam posições em 38 municípios no estado de Chiapas, declarando-os “autônomos e rebeldes”. Destes, 27 permanecem em poder dos zapatistas e são administrados pelas “Juntas de Bom Governo”, formadas por representantes populares.

O Subcomandante Marcos

 "Para as encapuzadas e os encapuzados de cá, a luta que vale não é a que se tem ganhado ou perdido, é a que segue, e para ela se preparam os calendários e as geografias”, anunciou o Subcomandante Marcos por meio de um comunicado divulgado na internet no dia 22 de dezembro. Chefe militar e porta-voz desde o levante de 1994, Marcos se tornou a face pública mais conhecida do movimento zapatista, sem nunca revelar seu rosto, sempre coberto com um gorro negro (o passamontanhas), que caracteriza os zapatistas.

No comunicado, Marcos também teceu críticas ao governador de Chiapas, Manuel Velasco, do Partido Verde Ecologista do México (PVEM) e ao presidente do México, Enrique Peña Nieto, que levou o Partido Revolucionário Institucional (PRI) de volta ao poder do país após 12 anos.

Velasco é citado no comunicado como “autodenominado governador” e “empregado de um negócio que nem é partido, nem é verde, nem é ecologista, nem é do México". E diz que o governador lançou uma campanha para promover o turismo e “põe vendas nos olhos dos turistas para que não vejam os paramilitares, a miséria e o crime das cidades chiapanecas”.

Quanto à política do atual presidente do México, Marcos afirma que ela é baseada na “desapropriação” e critica as reformas anunciadas no país. “A desapropriação disfarçada de reforma constitucional não se iniciou com esse governo, começou com Carlos Salinas de Gortari (presidente do país de 1988 a 1994)”, ressaltou.

Novidades

 Após as comemorações de janeiro de 2014, o EZLN iniciará a terceira etapa de uma nova empreitada que teve início em 2013: a escola zapatista, ou “Escuelita”, como foi anunciada. Entre os dias 3 e 7 de janeiro, 2,25 mil pessoas de todos os lugares do mundo que se inscreveram pela internet participarão do curso “A liberdade segundo os zapatistas”.

O primeiro nível do curso é dividido em quatro temas: "Governo autônomo I, Governo autônomo II, Participação das mulheres no governo autônomo e resistência".
A experiência da escola zapatista foi anunciada pelo Subcomandante Moisés, que assumiu o posto em fevereiro de 2013 em declaração divulgada por Marcos.

“Queremos apresentar-lhes a um dos muitos que somos, nosso companheiro Subcomandante Insurgente Moisés. Ele cuida de nossa porta e em sua palavra também falamos todos e todas que somos. Pedimos que o escutem, é dizer-lhes, que o olhem e assim nos olhem” Foi assim que Marcos anunciou o novo comandante das forças rebeldes.

Retórica e violência


(*) A surpreendente explosão de grandes manifestações populares no Brasil tornou vivo o debate acerca do uso da violência como linguagem de indignação política em uma sociedade democrática. Enquanto um discurso em defesa da ordem pública visa proteger as instituições democráticas vigentes, não se sabe ao certo o que fazer quando a causa dos protestos é uma crise de representatividade dessas mesmas instituições democráticas. Será que é possível questioná-las sem confrontá-las? A violência do confronto justifica a luta por instituições mais democráticas?

Na história temos alguns exemplos de levantes armados que pautaram suas ações na defesa da democracia e na luta pela cidadania de minorias excluídas do cenário político. Um dos mais recentes teve inicio no México na década de 1990 e apresentou a luta do movimento zapatista através de um discurso combativo fundamentado por ideais indigenistas e marxistas. A opção pela violência no caso zapatista não o impediu de ser aclamado por parte da opinião pública mexicana e por outros movimentos sociais, ele é ainda hoje uma importante força política da sociedade civil.

 Nos anos 1960, Hannah Arendt escrevia sobre os perigos do ideal revolucionário marxista que tentava incluir, através da violência, as massas populares nos processos de decisão política. A ideia da violência era debatida sob os aspectos de instrumentalização da transformação política.  Segundo Arendt, as condições socioeconômicas precárias das massas não poderiam influenciar os processos de transformação, pois essas agiriam basicamente pela necessidade justificando o uso da violência revolucionária. No entanto, o zapatismo constrói seu discurso alinhado ao pensamento marxista tentando revelar a violência estrutural do Estado, expressa naturalmente nas relações políticas. O que nos leva não a justificar a violência zapatista, mas sim  a questionar a relação quase que pedagógica entre linguagem de violência  de um sistema político e sua população.

O que foi o zapatismo?

No dia 1 de janeiro de 1994, cerca de três mil pessoas armadas, com os rostos cobertos pelos chamados “pasamontañas”, ocuparam as cidades de San Cristobal de Las Casas, Altamirano, Las Margaritas, Oxchuc, Huixtan, Chanal e Ocosingo no estado de Chiapas. Os revolucionários intitularam-se como o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). No mesmo dia, entrava em vigor no país o Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), estabelecendo um bloco de livre comércio entre EUA, Canada e México. Com ele, as taxas alfandegárias seriam gradativamente eliminadas, mantendo as duras restrições para a circulação de pessoas. A coincidência dos dois eventos poderia ter sido acidental, no entanto, indica um posicionamento crítico importante do movimento zapatismo frente à globalização e ao sistema internacional. Do outro lado estava o PRI (Partido Revolucionário Institucional),  o partido do  governo que abraçava o NAFTA e governava o méxico por 71 anos - e que só iria perder uma eleição em 2000.

A primeira manifestação veio a público sob o nome de “Primeira declaração da selva Lacandona”. Foi nela em que se estruturaram os objetivos centrais do movimento chamando a sociedade para lutar por “trabalho, terra, teto, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz”.

O discurso zapatista centrava seu questionamento no modelo de globalização que se construiu na expansão do neoliberalismo no mundo a partir da década de 1980. Momento em que o continente latino-americano sentiu o efeito das novas doutrinas liberais a partir do chamado Consenso de Washington (1989). O consenso estabeleceu um conjunto de doutrinas econômicas para países em desenvolvimento, idealizadas pelo governo norte-americano em conjunto com algumas instituições financeiras internacionais.

O objetivo era preservar o livre mercado nas relações globais com foco na despolitização da economia através de um enfraquecimento da força do Estado. Os governos que adotaram esse caminho fracassaram em estabelecer políticas eficazes de distribuição de renda, de educação gratuita de qualidade e de promoção de emprego. Ou seja, o processo de empobrecimento da população aumentou. A insatisfação generalizada se expressou nas ruas com dura repressão por parte desses governos, como no caso do “caracazo” da Venezuela em 1989 , e do “panelaço”  de 2001 na Argentina.

Para os zapatistas, o estado de Chiapas tornou-se um microcosmos da experiência neoliberal no mundo: o conhecido grito “Ya Basta!” se posicionou contra as forças da agroindústria. Terra rica em recursos naturais, Chiapas abrigava uma população cada vez mais pobre. Camponeses e indígenas sofriam com a deterioração da garantia de direitos básicos por parte do Estado e tinham suas estruturas sociais e culturais constantemente ameaçadas pelo compromisso de tornar o país atrativo para o livre mercado internacional. A enorme exploração de gás e petróleo em conjunto com o crescente desenvolvimento de atividades agrícolas quase que exclusivas para exportação, como o café e o mel, levavam a região a uma situação social crítica.

Uma questão era preponderante no ideal zapatista é a terra. Historicamente, a luta pela manutenção das terras indígenas nos modelos comunais de posse coletiva vem desde a Revolução Mexicana de 1910. O confronto de Emiliano Zapata e Pancho Villa nessa altura resultou na criação do artigo 27 na constituição de 1917. Ele estabelecia a formação dos chamados ejidos, propriedades coletivas de terra que funcionavam em dinâmicas de cooperativa nas comunidades indígenas, não poderiam ser transformadas em propriedade privada, logo não poderiam ser vendidas. Outra herança importante que o zapatismo expõe é a do cardenismo. Lázaro Cardenas foi o presidente que, na década de 1930, efetivou os anseios da Revolução Mexicana realizando a reforma agrária e estabelecendo os direitos sociais da população como um dever do Estado. Para o discurso zapatista a extinção dos ejidos é o ato mais representativo da capacidade que as doutrinas neoliberais têm em destruir qualquer sentido de colectividade social. A terra como mercadoria se sobrepõe a terra como identidade cultural.

A junção de ideais marxistas e anárquicos com a causa pela cultura indígena tradicional foi resultado do contexto da formação política do zapatismo. Em 1983,  a selva de Chiapas parecia um bom cenário de defesa para um pequeno grupo de guerrilheiros da antiga esquerda mexicana, especificamente alguns membros da Fuerzas de Liberacion Nacional (FLN). Gradativamente começaram a entrar em contato com as comunidades locais, aprender seus idiomas e conhecer as dinâmicas sociais de suas culturas. O contato entre os dois anseios revolucionários estabeleceu elos de solidariedades entre os dois grupos, criando assim novas formas de organização politicas e sociais que o EZLN futuramente se tornaria defensor. Mesmo do lado indígena a convivência apresentou mudanças importantes, e o papel das mulheres em algumas etnias pôde ser reformado com base em uma maior noção de igualdade.

As represálias

Em 12 de janeiro de 1994 acontecem manifestações na capital do país para exigir o imediato cessar-fogo e o reconhecimento do EZLN como força politica legítima. A partir de então, o canal de comunicação entre EZLN e sociedade civil se estreitou e se oficializou na criação dos  chamados “aguacalientes” , lugares permanentes de encontro entre revolucionários e sociedade. A relação entre Estado e zapatistas continuou frágil e até acordos esperançosos, como o de San Andrés em 1996 que estabelecia a promessa de mudanças constitucionais para dar maiores direitos aos indígenas, não foram de fato respeitados a longo prazo. A violência do Estado agora se expressava também não-oficialmente, principalmente no incentivo da ação de grupos paramilitares, como o Movimento Indígena  Revolucionário Antizapatista (MIRA), que tentavam minar a legitimidade popular do EZLN com  frequentes ataques às comunidades, indicando uma possível divisão nos grupos indígenas.

 A liderança do movimento é estampada na figura e nas palavras do subcomandante Marcos. No entanto, ele constantemente recusa a imagem de líder, seu rosto  sempre aparece coberto, sua verdadeira identidade continua em segredo. A ideia de se identificar como um subcomandante tenta desconstruir qualquer sentido de verticalidade do movimento. Nos seus pronunciamentos e entrevistas defende que obedece as decisões tomadas coletivamente pelas comunidades indígenas e que a soberania do movimento está e sempre estará no povo mexicano. Na “Segunda declaração da Selva Lacandona” apresenta à sociedade não-indígena a ideia de “mandar obedecendo”, que seria baseado na experiência de governança das comunidades de Chiapas, em que todas as decisões são tomadas em assembleias. Os representantes da comunidade são voluntários sem qualquer tipo de remuneração, podendo a qualquer momento serem destituídos de acordo com a execução de seu trabalho. Para Marcos, sua responsabilidade se restringe a área militar do movimento.

A trajetória do zapatismo foi muitas vezes pensada na contraposição das duras ações governamentais, as constantes ofensivas militares e o crescente ataque de paramilitares a áreas indígenas. Isso fez com que o movimento decidisse por criar em agosto de 1994 os municípios autónomos - fundamentados na autogestão colectiva, neles distintos povos se unem para gerir coletivamente os recursos da terra, a defesa, a educação e os futuros rumos políticos do zapatismo. A luta indígena pela terra, pela manutenção das relações comunais tradicionais e por uma dignidade humana foi capaz de estabelecer um discurso anticapitalista e um apelo global no movimento. E é nesta última instância que o zapatismo se fortaleceu mais. A capacidade de identificação ao movimento é explícito nas palavras do subcomandante Marcos: "Marcos é gay em São Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa, hispânico em San Isidro, anarquista na Espanha, palestino em Israel, indígena nas ruas de San Cristóbal, roqueiro na cidade universitária, judeu na Alemanha, feminista nos partidos políticos, comunista no pós-guerra fria, pacifista na Bósnia, artista sem galeria e sem portfólio, dona de casa num sábado à tarde, jornalista nas páginas anteriores do jornal, mulher no metropolitano depois das 22h, camponês sem terra, editor marginal, operário sem trabalho, médico sem consultório, escritor sem livros e sem leitores e, sobretudo, zapatista no Sudoeste do México”.

No México, o crescente desenvolvimento de uma agricultura voltada para a exportação redefiniu as relações de trabalho no campo e estabeleceu uma nova geografia da concentração de terras. O final do século XX foi um período de expansão das condições de pobreza e da deterioração das condições de vida do pequeno camponês. O discurso zapatista parece reelaborar as antigas questões que sempre permearam a formação de uma nacionalidade mexicana e as aborda sob um nova concepção ideológica. Ele nega qualquer tentativa de readaptar as relações tradicionais indígenas para um caminho alternativo ao atual modelo de globalização, centrando seu discurso na formação de uma identidade coletiva para fundamentar as bases de um radicalismo democrático pós-moderno. Apesar de não ser unanimidade na sociedade civil mexicana, a violência zapatista foi entendida como linguagem, e dessa forma ouvida e chamada ao diálogo.

Em 2012, o PRI voltou ao poder com o presidente Enrique Peña Nieto, após dois governos consecutivos do conservador Partido Accion Nacional (PAN).  Os programas sociais para as regiões zapatistas confrontaram a autonomia do movimento e reacenderam a tensão verbal entre Estado e EZLN. Os zapatistas seguem lutando pelo cumprimento de acordos políticos anteriores a respeito dos direitos indígenas, PRI e PAN ainda resistem em ceder pelos anseios zapatistas de respeito as demarcações originais das terras indígenas e por maior autonomia politico administrativa. A luta por valores de uma cultura indígena abriram caminho para os sem rosto de Chiapas se transformarem em um ator coletivo político na sociedade mexicana. A resistência a um modelo de modernização capitalista e o grito por uma democracia mais participativa trouxe a solidarização internacional de movimentos antiglobalização pelo mundo. Uma empatia coletiva de resistência que cresce na identidade coletiva da utopia zapatista. O zapatismo expressa um caldeirão de referências simbólicas, dialoga entre o marxismo guevarista, o pensamento de Emiliano Zapata e a cultura maia dos indígenas de Chiapas, elabora um processo de resistência a uma modernidade neoliberal centrado nas míticas relações de solidariedade comunitária.

(**) Vermelho, com informações da EBC
(*) Revista de História da Biblioteca Nacional. Texto de Rafael Betencourt, mestre pelo ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa, e autor da dissertação O Discurso Contra-Hegemônico dos Direitos Humanos na Revolução Bolivariana (ISCTE, 2012).
(***) Carta Capital
Piero Locatelli  

#