E AINDA SONHO QUE ELE PISA O RELVADO, ANDANDO, FANTASMAGÓRICO, PELO ORVALHO, PELO MEU CANTO ALEGRE INTEIRAMENTE PERFURADO.
YEATS
UMA TARTARUGA QUE O EXPLORADOR CAPITÃO COOK DEU AO REI DE TONGA EM 1777 MORREU ONTEM. TINHA QUASE 200 ANOS DE IDADE. O ANIMAL, CHAMADO TU'LMALILA, MORREU EM TERRENOS DO PALÁCIO REAL, EM NUKU, ILHA DE ALOFA, CAPITAL DE TONGA. O POVO DE TONGA CONSIDERAVA O ANIMAL COMO UM CHEFE, E TRATADORES ESPECIAIS FORAM NOMEADOS PARA CUIDAR DELE. FICARA CEGO NUM INCÊNDIO DE MATA, HÁ ALGUNS ANOS. A RÁDIO DE TONGA INFORMOU QUE A CARCAÇA DE TU'IMALILA SERIA ENVIADA PARA O MUSEU DE AUCKLAND, NA NOVA ZELÂNDIA.
UMA PEQUENA e alegre descarga elétrica, transmitida pelo alarme automático do órgão de condicionamento mental, instalado ao lado da cama, acordou Rick Deckard. Surpreso — sempre se surpreendia quando descobria que fora acordado sem aviso prévio — levantou-se, estendeu o corpo todo dentro do pijama multicolorido, e espreguiçou-se. Na cama ao lado, a esposa, Iran, abriu os olhos cinzentos, sérios, pestanejou, gemeu e fechou-os outra vez.
— Você ligou seu Penfield em nível fraco demais — disse ele à mulher. — Vou religá-lo, você vai despertar inteiramente e...
— Não toque em meu aparelho. — Havia seca amargura em sua voz. — Eu não quero acordar.
Rick sentou-se ao lado da esposa, inclinou-se sobre ela e explicou em voz suave: — Se você liga a descarga em nível suficientemente alto, fica satisfeita quando acorda. Esse é todo o princípio por trás do funcionamento desse aparelho. Na marca C, ele vence o bloqueio do patamar da consciência, como faz comigo.
Carinhosamente, porque se sentia bem-disposto para com o mundo, ligara o aparelho em D, acariciou-lhe o pálido ombro nu.
— Tire de cima de mim essas grosseiras mãos de "tira" — disse Iran.
— Eu não sou um tira. — Nesse momento sentiu-se irritado, embora não houvesse discado para essa emoção.
— Você é pior do que isso — respondeu a esposa, os olhos ainda fechados. — É um assassino, contratado pelos tiras.
— Eu nunca matei um ser humano em toda minha vida. — Aumentara sua irritabilidade e se transformara em franca hostilidade.
— Apenas aqueles pobres andros — disse Iran.
— Mas você nunca hesitou, nem por um único minuto, em gastar o dinheiro de prêmio que eu trago para casa, no que quer que logo lhe atraia a atenção. — Levantou-se e foi até seu órgão de condicionamento mental. — Em vez de economizar — continuou — para comprarmos uma ovelha autêntica e substituir aquela, falsa, que nós temos lá em cima. Um mero animal elétrico, e eu, ganhando todo esse dinheiro, pelo qual trabalhei e subi na vida estes anos todos.
Ao consolo do órgão, hesitou entre discar por um supressor talâmico (o que aboliria sua disposição irritadiça) ou um estimulante (o que o tornaria aborrecido o suficiente para ganhar a discussão).
— Se discar para maior malignidade — disse Iran, abrindo os olhos e observando-o — farei o mesmo. Discarei o máximo e você vai ter uma briga que fará todas as discussões que tivemos até agora parecerem brincadeiras de crianças. Disque só, e veja. — Saltou rápida da cama para o consolo de seu próprio órgão e olhou-o zangada, à espera. Ele suspirou, derrotado pela ameaça.
— Vou discar o que há na minha programação de hoje. — Examinando a agenda do dia 3 de janeiro de 1992, observou que era aconselhável uma atitude profissional, prática.
— Se eu discar de acordo com a agenda, você fará o mesmo? — perguntou, cauteloso. Esperou, sabido o bastante para não se comprometer até que a esposa concordasse em agir do mesmo modo.
— Minha agenda de hoje lista um período de depressão auto-acusatória de seis horas — disse Iran.
— O quê? Por que foi que você programou isso? — Uma programação dessa era o contrário do órgão de condicionamento mental. — Eu nem mesmo sabia que se podia ajustá-lo para isso — disse sombrio.
— Uma destas tardes eu estava sentada aqui — disse Iran — e, naturalmente, liguei para Buster Amigão e Seus Amicíssimos Amigos, ele estava falando sobre uma notícia que ia dar logo em seguida e, depois, apareceu aquele horrível comercial, aquele que eu odeio, você sabe, do Protetor Genital de Chumbo Mountibank. Assim, durante um minuto, desliguei o som. E ouvi o edifício, este edifício. Ouvi os... — Fez um gesto vago com a mão.
— Os apartamentos vazios — disse Rick.
Às vezes, ele ouvia-os, também, à noite, quando devia estar dormindo. Ainda assim, para este dia e idade, um prédio de apartamentos ocupado pela metade classificava-se alto no esquema da densidade demográfica. Lá fora, onde antes da guerra se estendiam os subúrbios, podiam-se encontrar prédios inteiramente vazios... ou pelo menos fora isto o que ouvira dizer. Deixara que essa informação permanecesse num segundo plano; como a maioria das pessoas, não queria verificá-la diretamente.
— Naquele momento — continuou Iran —, quando desliguei o som da TV, eu estava num estado de espírito 382. Acabava justamente de discar isso. De modo que, embora intelectualmente eu ouvisse o vazio, não o sentia. Minha primeira reação foi de agradecimento, porque a gente podia comprar um órgão condicionador Penfield. Mas, depois, compreendi como isso era doentio, sentir a ausência de vida, não só neste prédio, mas em toda parte, e não reagir, compreende? Acho que não. Mas isso era, antes, considerado como sintoma de doença mental. Chamavam a isso de "ausência do afeto apropriado". Assim, deixei desligado o som da TV, sentei-me ao meu órgão e fiz uns experimentos. Finalmente, descobri uma combinação para desespero. — Seu rosto moreno, animado, mostrou satisfação, como se ela houvesse realizado alguma coisa de valor. — De modo que coloquei isso em minha programação duas vezes por mês. Acho que é um período razoável de tempo para a gente se sentir impotente a respeito de tudo, de ficar aqui na Terra, depois que toda a gente sabida emigrou. O que é que você acha?
— Mas num estado de espírito desses — disse Rick — a tendência é permanecer nele, não discar para sair. Um desespero como esse, sobre a realidade total, é autoperpetuante.
— Eu programo uma rediscagem automática para três horas depois — disse astuciosamente a esposa. — Uma 481. Percepção das múltiplas possibilidades que estarão abertas para mim no futuro. Nova esperança de que...
— Eu conheço o 481 — interrompeu ele. Discara muitas vezes essa combinação e confiava um bocado nela.
— Escute aqui — continuou, sentando-se em sua própria cama e segurando as mãos da esposa para puxá-la para junto de si —, mesmo com um desligamento automático, é perigoso suportar uma depressão, de qualquer tipo. Esqueça o que você programou e eu farei o mesmo. Discaremos um 104 e nós dois o experimentaremos juntos. Depois, você fica nele enquanto eu remarco o meu para minha habitual atitude prática. Nesse estado, dou um pulo até o telhado para ver como anda a ovelha e, em seguida, vou para o escritório. Enquanto isso, tenho certeza de que você não fica aqui, macambúzia, sem TV.
Soltou-lhe os esguios e longos dedos, e cruzou o espaçoso apartamento até a sala de estar, onde pairava ainda o leve cheiro dos cigarros da noite anterior. Curvou-se para ligar a TV. Do quarto, veio a voz de Iran:
— Eu não suporto TV antes do café da manhã.
— Disque 888 — aconselhou Rick, enquanto o aparelho esquentava. — O desejo de assistir à TV, qualquer que seja o programa.
— Não estou com vontade de discar absolutamente coisa alguma neste momento — respondeu Iran.
— Então, disque 3 — sugeriu ele.
— Não posso discar uma combinação que estimula meu córtex cerebral a querer discar! Se não quero discar, ainda menos quero discar isso, porque, neste caso, vou querer discar, e querer discar é, neste momento, o impulso mais estranho que posso imaginar. — A voz dela se tornara seca, com conotações de desolação, enquanto sua alma congelava; deixava de mover-se quando o grande, instintivo, onipotente véu de um grande peso, de uma inércia quase absoluta, depositou-se sobre ela.
Rick aumentou o som da TV e a voz de Buster Amigão trovejou e encheu a sala: "Ei, vocês aí, pessoal. Hora de uma curta notícia sobre o tempo atmosférico hoje. O satélite Mangusto informa que a precipitação será especialmente forte por volta do meio-dia e que, em seguida, desaparecerá, de modo que vocês, caras, que vão sair de casa hoje...
Aparecendo ao lado dele, sua longa camisola arrastando-se pelo chão como um fogofátuo, Iran desligou o aparelho de TV.
— Muito bem, desisto. Vou discar. Tudo o que você quiser que eu faça, felicidade sexual extática... Eu me sinto tão mal que suporto mesmo isso. Droga. Que diferença isso faz?
— Eu disco para nós dois — ofereceu-se Rick e levou-a para o quarto. Ao consolo da esposa, discou 594, o satisfeito reconhecimento da sabedoria superior do marido em todas as coisas. No seu próprio consolo, discou uma atitude criativa e revigorante em relação ao seu próprio trabalho, embora mal precisasse disso, tal era seu enfoque habitual, inato, sem precisar recorrer ao estímulo cerebral artificial do aparelho Penfield.
Assassinatos, manifestações populares, desordem, a guierra do Vietnam, hippies, drogas, contra-cultura, escândalos e a Guerra Fria, serviram como contexto para o livro que, basicamente, é uma história de um detetive em um futuro sombrio.
Dick era leitor de Dashiell Hammet (um mestre do romance detetivesco) e admirava seu estilo econômico. Embora não seja possível comparar O Caçador de Andróides com O Falcão Maltês (The Maltese Falcon) de Hammet, pois as tramas são diferentes, trata-se do mesmo mundo. Pessoas desaparecidas, um parceiro que é baleado, uma femme fatale, problemas com os policiais locais e um universo de cinismo onde não há esperança para ninguém.
Talvez não seja uma coincidência que, ao ser adaptado para o cinema (Blade Runner, dirigido por Ridley Scott, lançado em 1982 e estrelado por Harrison Ford), as câmeras estavam no mesmo lugar onde quarenta anos antes, foi filmado O Falcão Maltês (No Brasil se chamou Relíquia Macabra, dirigido por John Huston e estrelado por Humphrey Bogart). Ambos os livros se passam nas ruas de San Francisco, ambos os filmes tiveram suas cenas de rua filmadas em New York, nos estúdios da Warner Brothers em Burbank.
O filme Blade Runner (que transcorre no ano de 2019) limita-se a dois aspectos do livro: visões da megalópole do amanhã, com seus edifícios de 400 andares e a perseguição implacável de um caçador profissional a um pequeno grupo de andróides evadidos, "produtos" quase perfeitos, super-homens e super-mulheres que aspiram a um pouco mais de vida (foram programados para morrer em 4 anos).
Já o livro O Caçador de Andróides se passa em 1992 (em edições recentes o ano foi mudado para 2021).
No livro, o governo encoraja a população a emigrar para colônias fora-da-Terra, visando preservar a raça humana dos efeitos nocivos da poeira radioativa (conseqüência da guerra nuclear 'World War Terminus').
A população que permanece no planeta vive enclausurada em cidades decadentes e vazias, envenenada pela radiação que danifica seus genes. A maioria dos animais foi extinta e possuir um deles é uma prova distinta da empatia humana, mas principalmente é um símbolo de status. Quanto mais raro o animal, maior o status do proprietário. Pessoas que não podem pagar por um animal de verdade compram animais sintéticos.
Em uma San Francisco pós-apocalíptica, o caçador de recompensas Rick Deckard (que possuía uma ovelha real que morreu de tétano), tenta enganar a todos, inclusive a si mesmo, de que sua nova ovelha elétrica é igual a uma de verdade, enquanto realiza um trabalho que odeia, e lida com sua esposa viciada em estímulos artificiais.
Quando Deckard aceita perseguir e matar os seis andróides Nexus-6 que fugiram de controle, por uma boa recompensa, o que ele mais sonha é com o dinheiro, poder adquirir um animal de verdade.
Ao fim, Deckard chega à conclusão de que ao resolver o caso ele não terá a felicidade esperada, mas apenas uma enorme crise existencial. Semelhante ao que ocorre com Sam Spade em O Falcão Maltês, não há uma solução satisfatória.
Poucos escritores de ficção científica são, como Philip K. Dick, admirados e elogiados por seus próprios colegas. Poucos atingem um público tão diversificado. Como disse John Brunner: "Ele é o mais invariavelmente brilhante escritor de ficção científica do mundo".
Infelizmente (ao contrário de Hammett) Dick não viveu o bastante para saborear o prestígio que a crítica hoje lhe atribui. Seus últimos anos de vida foram dedicados a uma excêntrica investigação sobre a verdadeira natureza de Deus e do Cosmos.
Dois anos antes de morrer por conta de um acidente vascular cerebral, ele escreveu em seu diário que estava próximo de descobrir os segredos do Universo.
(Trechos do prólogo da edição brasileira e de ‘A Metaphysical Detective Story’ de Adrian Mckinty)
(Em Portugal o livro chamou-se "Perigo Iminente". No Brasil primeiramente foi publicado como “Andróides Sonham Com Carneiros Elétricos?", e mais tarde reeditado com o título "Blade Runner: O Caçador de Andróides" e, posteriormente "O Caçador de Andróides".)
Hoje não se discute o fato de o filme Blade Runner (1982) ser um dos maiores marcos da história da ficção científica. Mas nem sempre foi assim. O filme de Ridley Scott foi uma das grandes expectativas de sucesso de bilheteria de seu ano de lançamento, mas o clima pesado e deprimente do filme, aliado à trama filosófica e hiperrealista, marcasse um enorme ponto de interrogação nas cabeças nos poucos que foram assistir ao filme nos cinemas.
Blade Runner encontrou sobrevida no recém-lançado mercado de video e na TV a cabo dos anos 80, quando, graças à repetição e a seu visual de cair o queixo (além de um elenco formado por grandes promessas da época – Harrison Ford, Sean Young, Rudger Hauer), inaugurou o conceito de “filme de culto”. Graças a esse novo status, Blade Runner ainda pode ser relançado diversas vezes, lançando também o conceito de “versão do diretor”, diferente daquela que foi lançada comercialmente.
Mas se alguém já havia percebido o potencial de Blade Runner, este alguém era o autor da obra que havia inspirado o filme. O livro O Caçador de Andróides (ou, em inglês, Do Android Dream of Electric Sheep? – Andróides sonham com ovelhas elétricas?), de Philip K. Dick, foi a primeira adaptação da obra do clássico autor de ficção científica para o cinema, apresentado pela primeira vez a seu universo de dúvidas existencialistas e questões filosóficas disfarçadas de historinhas de robôs, alienígenas e drogas sintéticas.
Blade Runner é uma história de detetive cujo protagonista, Rick Deckard, é delegado a eliminar andróides (ou “replicantes”, em seu universo) da série Nexus 6, que se infiltraram entre os humanos. O que começa como uma história de gato e rato logo ganha contornos épicos sobre a natureza da consciência e o que faz de cada um de nós humanos. O filme ainda contava com efeitos especiais de ponta, trazendo para a Terra toda uma visão apocalíptica e desoladora de um futuro hipercomercial e sem a menor preocupação com o meio ambiente. K. Dick, que morreria no mesmo ano de estréia do filme, sem conseguir assistir à sua versão final, assistiu a um trecho dos bastidores em um programa de TV e escreveu a seguinte carta ao produtor Jeff Walker, que pode ser encontrada no site que a família do autor mantém sobre sua obra:
Caro Jeff:
Assisti ao programa Hooray for Hollywood, que passou hoje à noite no canal 7, com uma matéria sobre BLADE RUNNER (bem, para ser honesto, eu não assisto a esse programa; alguém me avisou que iriam fazer uma matéria sobre BLADE RUNNER e que seria bom se eu assistisse). Jeff, depois de assistir – e especialmente depois de ouvir Harrison Ford discutir o filme -, cheguei à conclusão que isso não é ficção científica; e que não é fantasia; isso é exatamente aquilo que Harrison disse: futurismo. O impacto de BLADE RUNNER será simplesmente surpreendente, tanto no público quanto nas pessoas criativas – e, eu acredito, na ficção científica como um todo. Desde que comecei a escrever e a vender obras de ficção científica há trinta anos que isso é algo importante para mim. Devo dizer com toda franqueza que esta área gradualmente e permanentemente vem se deteriorando nos últimos anos. Nada que fizemos, individualmente ou coletivamente, chega aos pés de BLADE RUNNER. Não é escapismo; é super-realismo, tão realista e detalhado e autêntico e convicnente que, bem, depois de assistir ao programa eu reencontrei pálida, por comparação, a minha “realidade” atual. O que quero dizer é que todos vocês podem ter criado coletivamente uma forma única de expressão artística e gráfica que nunca foi vista. E, eu acho, BLADE RUNNER pode revolucionar nossos conceitos sobre o que é a ficção científica e, mais, o que ela pode ser.
Deixe-me resumir desta forma. A ficção científica preparou lenta e inevitavelmente uma morte monótona para si mesma: tornou-se senso comum, derivativa, rasa. De repente, vocês aparecem, alguns dos melhores talentos que existem hoje em dia, e agora temos uma nova vida, um novo começo. E sobre o meu papel no projeto BLADE RUNNER, só posso dizer que nunca havia imaginado que um trabalho meu – ou um conjunto de ideias minhas – poderia ser elevado a dimensões tão inacreditáveis. Minha vida e meu trabalho criativo estão justificados e completos graças à BLADE RUNNER. Obrigado… e será um tremendo sucesso comercial. Provará-se invencível.
Cordialmente,
Philip K. Dick