sábado, 5 de dezembro de 2020

o rock alivia

No último mês de julho, em plena pandemia, os perfis de redes sociais mais ligadas ao “underground” roqueiro foram tomados pela imagem de divulgação de uma megacoletânea que se propunha a mapear o momento atual da cena punk hardcore nordestina. São 101 bandas de todos os estados da região, organizadas em ordem alfabética – começando com o Autopse, de Alagoas, e terminando com a Olho por olho, de Sergipe. Uma verdadeira “tour de force” concebida a partir de Itabuna, no sul da Bahia, através do selo “Tocaia”, mas que chamou mesmo a atenção pela capa, uma recriação da icônica ilustração de HR Giger para o álbum “To Mega Therion”, da banda pioneiora do death metal suíço Celtic Frost. “Satan”, a obra do eterno criador do Alien, mostra o demônio usando uma imagem de Jesus crucificado como estilingue. Na coletânea da Tocaia vemos Lampião fazendo o mesmo com Bolsonaro.  O desenho é de Adilson Lima, ilustrador itabaianense que vem se destacando como um “capista” de mão cheia, a cada dia mais requisitado por bandas de rock “pauleira”.

A provocação serviu como uma luva para os que ainda têm fôlego para o “debate” político polarizado e nivelado por baixo que vemos se arrastar há pelo menos 10 anos e acabou se tornado mais uma evidencia de algo que eu sempre digo: se engana quem acha que o mundo do rock está tomado por hostes reacionárias de extrema direita. É certo que há os que comungam desse anacronismo, tanto no “mainstrean” – Lobão e Roger, do Ultraje a rigor, são os nomes que logo vêm à mente – quanto nos guetos do punk e do metal: Fabio,. Vocalista da icônica Olho Seco, de São Paulo, Digão, do Raimundos, Roosevelt “Bala”, do Stress, de Belém do Pará – a banda que lançou o primeiro disco de Heavy metal brasileiro – foram apenas alguns dos que “saíram do armário” recentemente. Mas isso faz parte de um fenômeno que estamos vendo se espalhar por todo o mundo, impulsionado em grande parte pelas redes sociais. Não é exclusividade do rock, definitivamente.

A mim causa estranheza este tipo de posicionamento, tendo em vista que o rock foi, em sua origem, a música que fez cair as barreiras entre pretos e brancos em plena América ainda dominada pela segragação racial legalizada. Mas a verdade é que sempre existiram roqueiros “de direita”: há, por exemplo, o episódio célebre em que Elvis, “The pelvis”, apareceu de surpresa na Casa Branca ocupada por Richard Nixon oferecendo-se como delator “infiltrado” a serviço do FBI. Temos também Ted Nugent, Dave Mustaine, e mais recentemente John Lydon e Krist Novoselic apoiando atitudes tresloucadas de Donald Trump. Mas eu, particularmente, sempre achei e continuo achando que são exceções. O rock na minha cabeça sempre foi uma subcultura de cunho libertário e progressista. Teve um impacto muito grande na minha vida e na de muita gente que eu conheço: eu tive uma formação católica tradicional e repressora, da qual me libertei, em grande parte, a partir da descoberta de todo aquele universo musical e cultural barulhento e contestador no qual passei a mergulhar a partir da transmissão do primeiro rock in rio pele TV aberta e pela leitura da revista Bizz, que chegava em minha cidade, Itabaiana.

Apesar de reconhecer que o gênero está estagnado, sem produzir nada de realmente novo e arrebatador há pelo menos vinte anos, ainda defendo o rock porque o rock, se não me salvou – porque quem salva é Deus, o rock só alivia, como dizia o Made in Brazil – aliviou bastante boa parte de minhas angustias ao longo dos últimos 35 anos.

Adelvan Kenobi

@pocaolho

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2 comentários:

Unknown disse...

Tenho um exemplar do Escarro em meu acervo....creio que trocamos carta em meados dos anos 90...sou editor do FATHERzine-Um zine dedicado a Jimi Hendrix. Parabéns pelo blog...tá muito massa!! ABS.

Adelvan disse...

Sim, me lembro do FATHERzine. Era massa. Valeu a visita - e as leituras. E o contato.