No dia 27 de março de 1964, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda (1914-1977), mandou a família para a casa de amigos e resolveu dormir no Palácio Guanabara. Apelidado de “O Corvo”, por seu nariz adunco e sua participação na crise que levou ao suicídio de Getulio em agosto de 1954, o conspirador via chegada a hora do acerto de contas com seus inimigos políticos. Em sua avaliação, a situação do país tinha atingido o ponto de não retorno. O sinal verde para o golpe abriu-se com a Revolta dos Marinheiros e o discurso radical do presidente João Goulart no Automóvel Clube, no dia 30 de março, para um público de sargentos e suboficiais.
A radicalização de Goulart dava ares de verdade à mensagem de que ele se rendia ao comunismo. No começo de março, com a adesão do sempre cauteloso general Castello Branco ao movimento, a relação de forças no seio das Forças Armadas começara a pender a favor do golpe. Mas ainda pairava no ar o fantasma de um confronto com o “dispositivo militar” do presidente, comandado pelo chefe da Casa Militar, general Assis Brasil. Chegou-se a uma situação na qual o que contava era a capacidade de cada lado de arregimentar legiões.
Respeitado no Exército, Castello Branco sabia que, sem o apoio da maioria dos oficiais, o movimento anti-Goulart fracassaria. No campo civil, as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” tinham feito seu papel, permitindo dizer que o povo brasileiro chamava as Forças Armadas para salvar o país do comunismo.
Na manhã de 31 de março, o general recebeu com irritação a notícia de que a ala mineira da rebelião resolvera precipitar os acontecimentos. Carlos Luiz Guedes, comandante da Infantaria Divisionária 4, e Olympio Mourão Filho, chefe da 4ª Divisão de Infantaria, de Juiz de Fora, agiam em acordo com o governador Magalhães Pinto. Por volta das 7 horas da manhã do dia 31 de março, o general Castello Branco ligou para Magalhães pedindo que convencesse Mourão a não deslocar seus homens para o Rio de Janeiro. Não obteve sucesso. Batizada de “Coluna Tiradentes”, a tropa saiu de Juiz de Fora à tarde, sob o comando do general Antonio Carlos Muricy, atingindo a divisa com o Rio de Janeiro no final do dia.
Na ex-capital do país, o chefe da Casa Militar do governador, coronel Fontenelle, mandou bloquear as ruas de acesso ao palácio com caminhões de lixo, temendo um ataque de tropas legalistas. Na Praia de Botafogo, vista como alvo provável de um desembarque de fuzileiros navais comandados pelo almirante Aragão, inimigo público e visceral de Lacerda e partidário de Goulart, Fontenelle mandou colocar tonéis de petróleo vazios.
Atraída pelos rumores, uma pequena multidão se concentrou nos arredores do Palácio Guanabara. Sarcasticamente, o próprio Lacerda descreveu anos depois a movimentação: “Então apareciam no Guanabara uns velhinhos, uns almirantes reformados, uns generais reformadíssimos, que saíam de casa com a sua pistolinha! Mas apareceu também uma rapaziada enorme, gente para todo lado, gente que ficava nas esquinas atrás de colunas”.
Surgiram boatos de que o Corpo de Fuzileiros Navais estaria se deslocando da Ilha do Governador para atacar Lacerda. As linhas telefônicas do Palácio foram cortadas, com exceção de uma, graças à qual Lacerda conseguiu se comunicar com o governador Ademar de Barros, em São Paulo, e com a UnitedPress, no exterior. O governador de Pernambuco, Miguel Arraes, pronunciou-se em defesa do regime constitucional. No Paraná, seu colega Nei Braga anunciou apoio ao golpe.
No histórico prédio do Ministério da Guerra, no Rio, em seu gabinete da Chefia do Estado-Maior do Exército, o general Castello Branco acompanhava o desenrolar dos fatos. Caberia a ele neutralizar qualquer movimento de tropas a partir do Rio de Janeiro ou de Petrópolis para enfrentar a coluna de Mourão. Em telefonema a Lacerda, Castello procurou explicar que a questão agora era militar: São Paulo, o Nordeste e o Rio Grande do Sul precisavam se definir. Feito isso, as tropas paulistas e mineiras marchariam em diversas colunas para o Rio de Janeiro. Em nenhum outro lugar os acontecimentos foram tão decisivos.
Em São Paulo, às 22 horas, Ademar de Barros declarou apoio ao golpe. Uma hora depois, o general Amaury Kruel, chefe do II Exército, com sede na capital paulista, aderiu ao movimento, após tentar convencer Goulart a demitir ministros “comunistas”. Às 2 horas da manhã, Ademar foi de novo à televisão anunciar que as tropas do general Kruel seguiam pela Via Dutra rumo ao Rio de Janeiro, para se reunir à “Coluna Tiradentes”. Entre os paisanos, os governadores de Goiás, Mato Grosso e dos estados do Sul tinham declarado apoio ao golpe.
Como disse depois o general Cordeiro de Farias, “o Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1º”. A coluna de Minas Gerais defrontou-se, na altura do Rio Paraibuna, com o batalhão de Petrópolis, chefiado por um tenente-coronel de nome Kerensky. Os tenentes de Mourão conversaram diretamente com seus camaradas vindos do estado da Guanabara, conseguindo sua adesão. Às 3h30, o marechal Odílio Denys, ex-ministro da Guerra, visitou a coluna e logrou, por telefone, convencer o coronel comandante do Regimento Sampaio a alinhar-se às legiões em revolta.
Gradualmente, a hipótese de confronto militar se extinguia. Às 7 horas, Mourão e seus comandados puseram-se de novo em movimento. Alguns oficiais da Força Aérea levantaram voo de Pirassununga (SP) com o objetivo de atacar as colunas golpistas, mas não receberam ordens para disparar. Também na Força Aérea, o esforço miúdo de doutrinação do pré-golpe mostrava resultados. Às 12 horas, o Regimento de Artilharia de Costa, ao lado do Forte de Copacabana, foi neutralizado pelo impulsivo general Montagna, que ultrapassou a assustada sentinela dando-lhe um empurrão. Do Recife, o general Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, anunciou seu apoio. Ações isoladas dos fuzileiros navais do almirante Aragão não conseguiram virar o jogo militar. O “almirante vermelho” acabou preso.
Jango resolveu deixar o Rio de Janeiro pouco antes das 13 horas, embarcando para Brasília. O ministro da Justiça, Abelardo Jurema, foi detido no Aeroporto Santos Dumont e levado para a Escola de Comando e Estado Maior do Exército, na Urca, um dos centros nervosos do movimento. No Recife, às 20 horas, tropas do Exército prenderam o governador Miguel Arraes, conduzido a um quartel, de onde seria transferido, no dia 2, para Fernando de Noronha.
Reunidos na Cinelândia, manifestantes pró-Goulart tentaram invadir o Clube Militar, mas foram rechaçados a tiros. Instigados ao vivo pelo apresentador de rádio e de TV Flávio Cavalcanti, bandos anticomunistas atearam fogo à sede da União Nacional dos Estudantes, a UNE, na Praia do Flamengo. Em toda a cidade, tropas policiais e militares começaram a prender líderes políticos ligados a Goulart. A Faculdade Nacional de Filosofia foi atacada a tiros de metralhadora. No Centro da cidade, uma reunião de emergência convocada pelo Comando Geral dos Trabalhadores foi dissolvida, com prisões de alguns líderes importantes. O jornal Última Hora, de Samuel Wainer, foi empastelado. Às 17 horas, oficiais da Marinha conseguiram tomar o prédio de seu ministério. Houve violentos conflitos entre manifestantes e soldados nas ruas da ex-capital, com mortos e feridos.
Às 23h30, Goulart voou para Porto Alegre, onde esperava resistir com apoio do Exército. De madrugada, com o Congresso Nacional cercado por tropas militares e sob protesto de um grupo de parlamentares, seu presidente, o senador Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da Presidência, embora o presidente ainda estivesse em território nacional. Às 11h45 do dia 2 de abril, ele fugiu para São Borja, dali rumando para uma fazenda no Uruguai.
Por alguns dias, para dar uma aparência de legalidade ao golpe, a Presidência da República passou a ser ocupada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. Conduzido ao Planalto “em um carro literalmente coberto por homens armados”, como relatou o terceiro secretário da Embaixada Americana em Brasília, Robert Bentley, Mazzilli tomou o poder na calada da noite. Ainda no dia 2, os Estados Unidos reconheceram o novo regime. Começava o período da oficialmente chamada Revolução Democrática de 1964.
por João Roberto Martins Filho - professor da Universidade Federal de São Carlos e organizador de O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas (Edufscar, 2006)
Fonte: RHBN
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sexta-feira, 28 de março de 2014
CONEXÃO CAVERNA
Zibabu é um grupo de rock da Holanda que está em turnê pelo Brasil e se apresenta hoje no centro da cidade, na Caverna do Jimi Lennon.
Anarquistas de Amsterdã, o guitarrista Berk Uhm, o baterista Kris e o baixista Daan estudaram rotas marítimas, arrumaram um barco emprestado, navegaram pelo litoral africano e atravessaram o Atlântico para aportar no Brasil.
O power trio tem dois álbuns independentes, "Unplug Your Brain" de 2009 e "Monetary Cemetery", lançado ano passado. "Nós estamos em tour desde novembro, primeiro pela Europa - Holanda, Bélgica, França, Espanha, Portugal - e depois fomos para as Ilhas Canárias, próximas à costa do Marrocos. Lá, conseguimos com um casal russo um veleiro de 13 metros, bastante espaço pra nós três", conta Berk.
Passaram mais de um mês em alto-mar. "Partimos via Cabo Verde com destino a Belém, numa viagem que durou 36 dias. Chegamos em 03 de fevereiro e já passamos por Bacabal, São Luís, Fortaleza, Teresina, Mossoró, Natal, Recife, Delmiro Gouveia, Arapiraca e Maceió. Tá demais, o povo é amigável, a cena é forte e nós adoramos arroz com feijão."
Agora é a vez de Sergipe conhecer o "freak punk", rótulo que inventaram para definir seu som experimental, que vai do jazz fusion ao ska suingado e hardcore gritado. São dos países baixos, mas gostam de tocar alto.
Daqui, descem pela costa brasileira até Uruguai, Argentina e Chile. O objetivo final é chegar aos EUA percorrendo toda América Latina. Sem nenhuma gravadora por trás, ganhando apenas o suficiente para cobrir os custos.
"É um processo inverso das antigas colonizações, uma descolonização, estabelecendo relações de ruptura, laços apertados de fraternidade, simplicidade em oposição às instituições", dizem os integrantes do Zibabu.
A banda baiana The Honkers abre a noite, a partir das 22 horas.
por Adolfo Sá
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Anarquistas de Amsterdã, o guitarrista Berk Uhm, o baterista Kris e o baixista Daan estudaram rotas marítimas, arrumaram um barco emprestado, navegaram pelo litoral africano e atravessaram o Atlântico para aportar no Brasil.
O power trio tem dois álbuns independentes, "Unplug Your Brain" de 2009 e "Monetary Cemetery", lançado ano passado. "Nós estamos em tour desde novembro, primeiro pela Europa - Holanda, Bélgica, França, Espanha, Portugal - e depois fomos para as Ilhas Canárias, próximas à costa do Marrocos. Lá, conseguimos com um casal russo um veleiro de 13 metros, bastante espaço pra nós três", conta Berk.
Passaram mais de um mês em alto-mar. "Partimos via Cabo Verde com destino a Belém, numa viagem que durou 36 dias. Chegamos em 03 de fevereiro e já passamos por Bacabal, São Luís, Fortaleza, Teresina, Mossoró, Natal, Recife, Delmiro Gouveia, Arapiraca e Maceió. Tá demais, o povo é amigável, a cena é forte e nós adoramos arroz com feijão."
Agora é a vez de Sergipe conhecer o "freak punk", rótulo que inventaram para definir seu som experimental, que vai do jazz fusion ao ska suingado e hardcore gritado. São dos países baixos, mas gostam de tocar alto.
Daqui, descem pela costa brasileira até Uruguai, Argentina e Chile. O objetivo final é chegar aos EUA percorrendo toda América Latina. Sem nenhuma gravadora por trás, ganhando apenas o suficiente para cobrir os custos.
"É um processo inverso das antigas colonizações, uma descolonização, estabelecendo relações de ruptura, laços apertados de fraternidade, simplicidade em oposição às instituições", dizem os integrantes do Zibabu.
A banda baiana The Honkers abre a noite, a partir das 22 horas.
por Adolfo Sá
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quinta-feira, 27 de março de 2014
João Goulart
(***)Foram duas as vezes que João Goulart morreu. Uma foi a morte física que,
tudo indica, resulta de mais um assassinato perpetrado pela Operação
Condor. Talvez nunca consigamos as provas definitivas de tal
assassinato, mas sabemos muito a respeito da história das ditaduras
latino-americanas para não levarmos a sério essa possibilidade. Matar
ex-presidentes foi uma especialidade dos militares de nossa região, como
mostra a morte até mesmo do democrata-cristão chileno Eduardo Frei.
Difícil é explicar o motivo de termos demorado tanto tempo para admitir a plausibilidade de que ex-presidentes como João Goulart e Juscelino Kubitschek tenham sido assassinados. Durante anos, havia até mesmo declarações detalhadas de um antigo agente secreto do regime militar uruguaio, responsável pela sua morte. Mas nada disso foi realmente levado à sério.
Para além desse descaso calculado que durou praticamente 30 anos, há, entretanto, outra morte, talvez pior, à qual João Goulart foi submetido: a morte simbólica. Jango não foi simplesmente deposto, ele foi assassinado simbolicamente. Era necessário não apenas matá-lo, mas apagá-lo de nossa história, ou melhor, fazê-lo sair da história brasileira pela porta dos fundos.
A morte simbólica é essa que atinge não o corpo, mas o nome. Ela é a eliminação também da memória das ações que tal nome representou. Por isso ela é a pior morte de todas. Nesse sentido, talvez ninguém na história brasileira tenha sido objeto de violência tão grande quanto João Goulart. Pois, para os militares, não bastava alijá-lo do poder. Era necessário criar a imagem de um presidente fraco, impopular, golpista, financiado pelo “ouro de Moscou”. Era necessário apagar os rastros da impressionante intervenção norte-americana na gestão do golpe brasileiro, a fim de dar a impressão de que a “revolução redentora” fora o resultado pura e simples da responsabilidade das Forças Armadas diante do chamado feito pela população brasileira nas ruas em decorrência do medo da ameaça comunista.
Como lembrava Sigmund Freud, nunca se recalca algo completamente. Assim, vimos o corpo de João Goulart voltar à luz. Não por acaso, ele emerge na mesma época em que começamos a descobrir como Jango continuara um presidente popular até o último momento. Um político, indicavam os levantamentos, com uma reeleição assegurada caso lhe fosse permitido se candidatar novamente. Alguém eleito vice-presidente, apesar de integrar uma chapa derrotada na eleição anterior.
A própria esquerda brasileira colaborou para tal esquecimento. Queria
ver em Goulart um líder político incapaz de expressar as reais demandas
daquele tempo de transformações. Ou seja, como se fosse um presidente
fraco, sendo que talvez o verdadeiro defeito de Goulart tenha sido,
simplesmente, a incapacidade de imaginar o pior. Incapacidade de
acreditar que a direita era capaz de dar um golpe que duraria 21 anos,
animada por uma fúria de destruição sem par.
Tudo isso demonstra como o lugar de João Goulart na história brasileira precisa ser urgentemente revisto, assim como devemos rever esse momento fundamental da história do País. Seu programa de reformas de base foi a primeira tentativa séria, no Brasil, de usar a capacidade de planejamento do Estado para iniciar um ciclo de transformações sociais verdadeiramente estruturais. Sua forte popularidade indicava o caráter claramente minoritário dos grupos que lhe faziam oposição. Só por isso ele mereceria um lugar de destaque em nossa história.
Assim, quando seu corpo voltou a Brasília, quase 50 anos depois, para receber as honras de chefe de Estado, era como se, enfim, sua morte simbólica começasse a ser anulada. Um fato que nos obriga a parar de reescrever a nossa história ao sabor do vento. Há muito ainda a se fazer no futuro do Brasil, mas muito há também a se fazer em seu passado. Por exemplo, é preciso parar de matar nossos mortos duas vezes.
(**) Tarefa, no mínimo, complexa, a que o historiador Jorge Ferreira se propôs: descrever o ex-presidente João Belchior Marques Goulart (1919-1976), em toda a sua humanidade. Não queria compactuar com o discurso que repete uma série de injúrias contra o político que foi, ao mesmo tempo, sucessor de Getúlio Vargas, e cunhado de Leonel Brizola, com quem teve uma amizade conturbada. Nem com o tom de vitimização, que o coloca numa posição passiva em relação ao golpe de 1964, que o tirou do poder. O resultado desse trabalho é o livro “João Goulart, uma biografia”, um calhamaço de mais de 700 páginas, que tenta evidenciar um personagem indispensável para um episódio decisivo da história recente do Brasil.
Segundo Ferreira, professor titular de História do Brasil da UFF, foram dez anos de trabalho, em pesquisa ou redação, que não se concentraram apenas no período em que Jango estava em evidência. O livro tenta reconstituir da infância de Janguinho, no Rio Grande do Sul, ao fim de sua vida, no exílio, entre suas fazendas no Uruguai e na Argentina, onde morre, em mais um episódio envolvido em teorias que resvalam na conspiração.
Conspiração, aliás, que Jango enfrentou antes, durante e depois da presidência, vinda de todos os lados ideológicos, por ser, em tempos de radicalizações políticas, um homem que valorizava a democracia, o diálogo e a conciliação. Ferreira se atém aos fatos e tenta mostrar, na medida do possível, o que realmente aconteceu durante o governo Jango, trazendo à luz as ações - e suas consequências - do então presidente que desembocariam numa ditadura de 21 anos. Também apresenta como a figura de Goulart foi avaliada por pesquisadores em seguida: geralmente com um desprezo, além de desumano, desnecessário.
Em entrevista sobre o seu livro e seu biografado, o professor sugere que devemos pensar em Jango, não como um medroso que saiu do governo sem lutar, mas como um homem que evitou uma guerra civil e o derramamento de sangue de irmãos. “Jango, nesse aspecto, não foi covarde. Foi sensato”, opina. Leia o restante da entrevista:
Revista de História - Qual era o objetivo de escrever “João Goulart, uma biografia”?
Jorge Ferreira - O livro tem o objetivo de retirar Jango do limbo do esquecimento em que ele se encontra. Embora tenha sido um personagem importante da vida política do país, as análises sobre ele, quando raramente surgem, via de regra o definem como demagogo, populista e incompetente ou, então, vítima da grande conspiração de empresários brasileiros em conluio com o governo norte-americano. Jango, quando é lembrado, é para ser culpabilizado ou vitimizado. Meu objetivo, no livro, é compreender o personagem. E somente compreendemos quando conhecemos.
RHBN - Como você interpreta essas desqualificações ao ex-presidente João Goulart?
Jorge Ferreira - Desde que Goulart entrou na vida pública, em fins de 1945, e, particularmente, quando foi identificado como pessoa próxima a Vargas, começaram as críticas sobre ele veiculadas na imprensa. Mas sua atuação como ministro do Trabalho desencadeou uma séria de ataques e insultos vindo dos setores conservadores, particularmente da UDN. O que incomodava os conservadores é que Jango, no ministério do Trabalho, aproximou-se do movimento sindical e passou a dialogar com os trabalhadores e líderes sindicais. Para a direita e os udenistas, tratava-se de algo inconcebível para um ministro de Estado. Daí surgiram as críticas: demagogo, manipulador, incompetente, instigador de greves, agitador etc. A estas denúncias de cunho político, juntaram-se outras, de cunho moral: mulherengo, alcoólatra etc. Quando, ao final de sua gestão no ministério, os opositores perceberam que Jango se tornara o herdeiro político de Getúlio Vargas, os ataques aumentaram ainda mais, surgindo a expressão “República sindicalista”
As imagens negativas sobre Goulart tomaram outra dimensão após o golpe militar de 1964. Os golpistas, civis e militares, passaram a desqualificar o regime democrático que derrubaram e a pessoa de Goulart em particular. Dele, os vitoriosos de 1964 retomaram os ataques formulados anteriormente, acrescido de adjetivos como corrupto, irresponsável, despreparado etc. Jango, no exílio, sequer podia se defender das acusações. As esquerdas, por sua vez, também contribuíram para o processo: “populista”, por exemplo, foi conceito criado nas Universidades para desqualificar lideranças anteriores a 1964.
RHBN - Ser um presidente “conciliador” num momento de exacerbações, como no início da década de 1960, foi o maior erro de Jango?
Jorge Ferreira - Em 1961 o país estava à beira da guerra civil. Jango, ao aceitar o parlamentarismo, evitou o conflito de um país dividido e conseguiu, logo a seguir, unir a sociedade em torno da volta ao presidencialismo. Ao longo de seu governo, ele se esforçou para ter maioria parlamentar no Congresso Nacional. Para Jango, assim como para JK, era fundamental unir PSD-PTB para obter maioria parlamentar e isolar a direita, representada pela UDN. A estratégia de Jango era negociar as Reformas de Base via pactos entre pessedistas e trabalhistas. Mas em uma coalizão de centro-esquerda, as reformas não poderiam ser com o programa máximo, como queriam as esquerdas, mas nem também com um programa tímido, como queriam os pessedistas. Nesse sentido, Jango era um conciliador porque buscava o entendimento entre as partes. Seu objetivo era alcançar acordos e compromissos políticos. Ocorre que o PTB se esquerdizava desde os anos 1950 e a conjuntura internacional era marcada pelo contexto maniqueísta da Guerra Fria. Nesse clima, a aprovação das reformas negociadas no Congresso Nacional tornou-se inviável.
Goulart compreendeu o que ocorreu nos dias 31 de março e 1º de abril de 1964. Não eram pequenos grupos civis e militares isolados da sociedade que tentavam golpes. Tratava-se do conjunto das Forças Armadas com o apoio dos principais governadores de estados: Guanabara, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul – com suas polícias militares e civis. Mais ainda, o presidente do Congresso Nacional conclamou os militares a deporem Goulart e o presidente do STF silenciou-se. O golpe também tinha o apoio dos meios de comunicação, do empresariado e de amplas parcelas das classes médias. Jango ainda soube, na manhã de 31 de março, que o governo norte-americano apoiaria em termos financeiros, diplomáticos e militares o governador mineiro Magalhães Pinto. Naquela manhã, ele também tomou conhecimento da chamada Operação Brother Sam.
Jango deve ser valorizado por aquilo que não fez: jogar o país em uma guerra civil que seria agravada com a intervenção militar dos Estados Unidos. É muito fácil acusar Jango de não liderar a guerra civil. Afinal, o sangue que correria seria dos outros, sobretudo da população civil. Jango, nesse aspecto, não foi covarde. Foi sensato. É preciso considerar, também, que os golpistas civis e militares não planejavam implantar uma ditadura de 21 anos. O objetivo era depor Goulart. O presidente acreditou que, em breve, a normalidade democrática retornaria ao país. Não foi o que aconteceu. Mas nós sabemos disso hoje. Os personagens que viveram aqueles acontecimentos não poderiam conhecer o futuro.
RHBN - Afinal: Jango foi assassinado ou teve uma morte “natural”?
Jorge Ferreira - No livro, as considerações sobre a morte de Jango são similares as de Moniz Bandeira na última edição de seu livro. Há o caso do depoimento do uruguaio Mário Barreiro Neira. Preso no Brasil em presídio federal de segurança máxima, ele alegou ter trocado os remédios de Jango por veneno. As investigações da Polícia Federal e do Ministério Público desqualificaram suas afirmações. Ele foi preso no Brasil por vários crimes, mas quer evitar a extradição para o Uruguai, onde também foi condenado por diversos assaltos. O ministro do STF, José Neri da Silveira, julgou que Neira não praticou crime político algum no Uruguai, mas, sim, contra o patrimônio. Pessoalmente, eu não descarto a possibilidade de atentado. Pode ter ocorrido. Mas, até o momento, não há prova alguma de que tenha sido efetivado. Jango, por sua vez, era um cardiopata. Seu primeiro acidente cardiovascular ocorreu ainda em 1962. Sofreu um enfarto em 1969. Além disso, levava uma vida sedentária, fumava, gostava de uísque, era hipertenso e alimentava-se de carnes gordurosas. No exílio, passou a sofrer um processo depressivo. Os remédios que controlavam a pressão arterial prejudicavam a produção de serotonina, deflagrando ou agravando a depressão.
Os boatos sobre o atentado surgiram porque sua morte foi próxima às de Juscelino Kubistchek e de Carlos Lacerda. Mas o historiador lida com provas e indícios. Desse modo, embora não tenha havido autópsia, a hipótese de morte natural é, no momento, a mais plausível.
RHBN - Por que há tantas acusações de corrupção contra Jango?
Jorge Ferreira - No livro, o leitor pode conhecer as qualidades e os defeitos de Jango – como ocorre em qualquer ser humano. Sobretudo, me esforcei para mostrar suas ambigüidades – algo também humano. Mas não encontrará denúncias de corrupção. Goulart era um homem rico. Sua riqueza foi herdada do pai e multiplicada por ele antes de entrar para a vida pública em 1945. Ele não precisava roubar. Depois do golpe militar, Jango e JK sofreram uma série de acusações de práticas de corrupção, todas sem fundamentos, baseadas em calúnias e difamações. Mesmo sem poderem se defender, nenhuma acusação foi comprovada.
RHBN - O quanto Brizola ajudou e o quanto ele atrapalhou Jango na sua carreira política?
Jorge Ferreira - João Goulart e Leonel Brizola mantiveram relações políticas de mútua dependência. Ao longo dos anos, Goulart apoiou politicamente Brizola no Rio Grande do Sul, enquanto Brizola apoiava Goulart no plano nacional. Foi Brizola que lutou, de maneira corajosa, pela posse de Jango na presidência da República durante a Campanha da Legalidade. Nesse episódio, Brizola teve um papel extremamente positivo, defendendo a Constituição e a legalidade democrática. Contudo, durante o mandato de Goulart na presidência da República, Brizola radicalizou à esquerda e tornou-se grande opositor do presidente. Diversos partidos e organizações de esquerda, sob a liderança de Leonel Brizola, fundaram a Frente de Mobilização Popular. Junto com o PCB, a FMP exigia que Goulart rompesse com o PSD e governasse apenas com as esquerdas – mesmo que perdesse a maioria no Congresso Nacional. Jango, nesse sentido, teve que enfrentar as oposições de direita, como Carlos Lacerda e a máquina anticomunista, e as de esquerda, sobretudo lideradas por Leonel Brizola. No conflito entre esquerdas e direitas, o regime da Carta de 1946 se desestabilizou e encontrou seu fim em 1º de abril de 1964.
(*)João Goulart deve ser considerado um “herói”, porque em duas ocasiões “livrou o Brasil de uma guerra civil”, diz o Juremir Machado, autor de Jango. A vida e a morte no exílio, livro lançado em junho deste ano, no qual pretende desconstruir os mitos em torno do ex-presidente brasileiro. Na entrevista a seguir, concedida por telefone, ele comenta o episódio e assinala que Jango “era um sujeito de ponderar, de pesar, de equilibrar” e por isso aceitou a conciliação proposta. “Se Jango quisesse realmente exacerbar as coisas, ele poderia ter levado o país a um conflito que resultaria em milhares de mortes”, pondera.
Por conta de decidir assumir a presidência num sistema parlamentarista, que limitava seus poderes, Jango teve o “primeiro estremecimento” com Brizola, que à época era governador do Rio Grande do Sul. “Brizola nem foi à posse de Jango no dia 7 de setembro de 1961. Eles se estremeceram porque Brizola, cunhado de Jango, queria que ele fosse mais impetuoso, mais agressivo, mais radical e não aceitasse a solução parlamentarista”, menciona.
De acordo com o jornalista, Jango ficou conhecido como um presidente hesitante, covarde, incompetente, corrupto, contudo, “era um homem de convicções, de personalidade; ele não era um radical, ele era um moderado que pesava, que ponderava, que tinha suas ideias, que tomava decisões, não tinha nada de covarde”, assinala. E dispara: “Ele foi uma daquelas pessoas, como o próprio Getúlio, que percebeu que o Brasil era muito desigual, e mesmo eles, que eram ricos, poderiam viver melhor se houvesse uma distribuição de renda, uma reforma no país”.
Escritor, jornalista e historiador, Juremir Machado é doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V: René Descartes. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, além de professor do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social – Famecos e coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUCRS, assina coluna no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre.
IHU On-Line - A partir da sua reconstrução histórica, quem foi João Goulart? Qual sua contribuição para a história política do Brasil?
Juremir Machado - João Goulart foi, a meu ver, antes de tudo, um herói. É exatamente essa a palavra. Por que um herói? Porque em duas ocasiões ele livrou o Brasil de uma guerra civil. A primeira vez foi em 1961, quando Jânio Quadros renunciou e os militares decidiram que o Jango não poderia assumir. Se Jango quisesse realmente exacerbar as coisas, ele poderia ter levado o país a um conflito que resultaria em milhares de mortes. Ao aceitar a conciliação proposta, que foi a saída parlamentarista, ele evitou um conflito militar que estava preparado, conflito que até se justificaria na medida em que ele teve poderes usurpados. Mas ele teve a sabedoria de conciliar para evitar a guerra civil. A segunda vez foi em 1964.
Nessa ocasião, se ele quisesse, teria resistido ao golpe e, a meu ver, a resistência teria sido inútil. Essa era também a avaliação dele, a resistência iria provocar um banho de sangue e os resistentes teriam finalmente vencido. Então, ao ter a sabedoria de evitar por vaidade, por apego ao poder, esses conflitos, ele se apresentou como um herói.
Além disso, Jango foi um presidente generoso, um homem de grande sabedoria, que tentou fazer reformas fundamentais para o Brasil: as reformas de base, em uma época que o Brasil ainda não estava maduro, as reformas agrárias, as reformas bancárias, reformas educacionais. Todas elas eram reformas importantíssimas, altamente necessárias para modernizar o Brasil à época, para tornar o país menos desigual, e para civiliza-lo. É claro que os setores conservadores da época não podiam aceitar e hiperdimencionaram a ameaça comunista com base em propaganda e financiamento americano para impedir que essas reformas fossem feitas.
IHU On-Line – Como ficou a relação de Jango com Leonel Brizola depois que ele aceitou a proposta de governar num sistema parlamentarista, apesar de Brizola ter encabeçado a Campanha da Legalidade para garantir o direito do vice-presidente assumir?
Juremir Machado - Brizola e Jango eram pessoas igualmente interessantes e que representavam aquelas situações extraordinárias em que pessoas com posicionamentos diferentes têm igualmente razão. O Brizola era um espírito impetuoso, um sujeito extremamente ousado, que se definia mais pela busca do conflito. Jango era um sujeito de ponderar, de pesar, de equilibrar. Ambos tinham razão. O Brizola tinha razão em querer que os poderes legítimos do Jango, em 1961, fossem atribuídos a ele, e o Jango tinha razão ao pensar: “Por essa via não vai, melhor conciliar”. Em 1961, a relação teve o primeiro estremecimento, tanto que Brizola nem foi à posse de Jango no dia 7 de setembro de 1961. Eles se estremeceram porque Brizola, cunhado de Jango, queria que ele fosse mais impetuoso, mais agressivo, mais radical e não aceitasse a solução parlamentarista. Mas esse episódio foi superado. Porém, ao longo do governo Jango, Brizola pressionou pela aceleração das reformas. Muitos acham até que isso contribuiu para a queda de Jango. Então, eles tiveram vários momentos de conflitos, de atritos, de estranhamentos, durante o próprio governo de Jango.
Mas a ruptura entre eles aconteceu com o golpe. Eles tiveram uma reunião em Porto Alegre e, nessa reunião com o General Ladário Teles, nomeado Comandante do Terceiro Exército, o Brizola queria ser nomeado Ministro da Justiça, e queria que se organizasse uma resistência armada, porém o Jango não quis. Então, ali eles se estremeceram, e depois ficaram anos e anos no exílio sem qualquer tipo de contato, apesar de serem membros da mesma família. Pouco antes de o Jango morrer, em 1976, eles fizeram as pazes, o que solucionou uma situação que era insustentável, porque no fundo, um gostava do outro. Eles tinham objetivos comuns, tinham o mesmo partido (PTB), tinham uma mesma visão de mundo: a visão do Brizola era um pouco mais exacerbada, mas eles eram do mesmo campo. Eram amigos, cunhados, tinham o mesmo propósito, e se desencontraram pelo caminho, mas felizmente se reencontraram um pouco antes da morte de Jango.
IHU On-Line - Como avalia esses três anos de governo Jango? Ele conseguiu desenvolver algumas de suas propostas? Valeu a pena ele ter evitado o golpe?
Juremir Machado - Acho que valeu a pena. Ele evitou a guerra civil, ele assumiu como presidente do regime parlamentarista, e mais tarde, como era previsto na emenda condicional, se realizou o plebiscito em 6 de janeiro de 1963, e ele recuperou seus plenos poderes, e passou então há tentar aplicar aquilo que achava conveniente para o país. Naquela situação de Guerra Fria, de implantação do socialismo em Cuba, de alta influencia Americana nos países da América Latina, dos Estados Unidos financiando campanhas politicas no Brasil, infiltrando pessoas para ajudar a preparar um golpe, criava uma situação muito difícil. O Jango fez o que deveria ser feito. A conjuntura não era favorável a ele, e o golpe começou a ser preparado desde 1962 e, de certa maneira, desde 1961, quando os militares não conseguiram golpeá-los em 1961. Eles perceberam que deviam se organizar minuciosamente para, na primeira oportunidade, dar um golpe que realmente se efetivasse.
O Jango não caiu por ter feito coisas erradas. O Jango caiu pelos acertos dele, porque ele queria mudar, modernizar, melhorar o país. O grande perigo que o Brasil tinha com o Jango, era de ficar muito melhor prematuramente, tirando parte dos incríveis privilégios que a classe dominante absolutamente minoritária tinha na época.
IHU On-Line - Quais foram às razões que levaram à queda de Jango?
Juremir Machado - O Jango caiu principalmente por causa da reforma agrária, quando propôs a reforma agrária depois do comício de 13 de março, na Central Brasil, e depois de enviar a mensagem ao Congresso, em 15 de março, propondo a reforma agrária e uma alteração na Constituição Federal, porque esse era o grande problema. A reforma agrária, até então, era feita com desapropriação de terras em dinheiro. O Jango, para poder fazer uma reforma agrária consequente, propôs a alteração da Constituição, que permitiria pagar com os papéis do governo, ou seja, não pagar a vista. E isso era terrível para os fazendeiros que não queriam perder suas terras ou então vendê-las caro, e com pagamento a vista.
Jango foi visto além de tudo como um traidor, porque ele era um fazendeiro. A reforma agrária era tão importante num país com alta concentração de terra, que o próprio Getúlio Vargas, que fez toda legislação trabalhista, não atacou a questão da reforma agrária e nem levou a legislação trabalhista para o campo. Foi no governo Jango que, finalmente, se teve a coragem e determinação de propor de fato a reforma agrária. Quando ela caiu na mesa do Congresso, e quando se viu que era para acontecer, aí veio o golpe de 1964.
IHU On-Line – É nesse sentido que o senhor diz que Jango foi um reformista no tempo errado?
Juremir Machado – Sim. Ele queria fazer várias reformas: educacional, tributária, bancária. A reforma educacional começava por alterar o que era chamado de catedravitalisia, e era importante porque o Brasil tinha um índice de alfabetismo estonteante; de 70 bilhões de habitantes, apenas 70 mil pessoas estavam na universidade, e no máximo 2.400 pessoas em pós-graduação. Então, era um país de analfabetos, um país de pouquíssimas pessoas que podiam chegar à universidade, e precisava mudar esse cenário. Precisava criar universidades, alfabetizar as pessoas, colocar mais gente para estudar. E ele estava cercado de grandes conselheiros nesse sentido: Paulo Freire, Darci Ribeiro, Anísio Teixeira, Celso Furtado. As reformas dele iam a todos os sentidos, até mesmo de uma reforma imobiliária, porque havia muitos apartamentos vazios nas grandes cidades, os quais não eram alugados. E ele queria fazer um tipo de reforma que obrigasse a colocar esses imóveis à disposição das pessoas, porque muitas não tinham onde morar.
IHU On-Line - Como foi construído o imaginário favorável ao golpe de 64?
Juremir Machado - Aí entra a imprensa da época. Os Estados Unidos participaram de tudo desde 1962! Eles financiaram campanhas de políticos de oposição ao Jango, depositaram muito dinheiro em propagandas, e ganharam a adesão da mídia. A imprensa brasileira da época era totalmente golpista. Os jornais, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, O Globo, O Dia, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa ajudaram a depor o Jango, eles empurraram o Jango para o exílio, e são corresponsáveis com o que ocorreu com ele. Essa é a verdade. Uma mídia golpista, conservadora, reacionária e que ajudou a construir uma ideia de ameaça comunista, que seria acaçapante, que estaria ali na porta do país, e que era preciso impedir derrubando o Jango.
IHU On-Line – A ameaça comunista não existia?
Juremir Machado - A ameaça comunista existia, mas era muito tênue. Primeiro o Jango não era comunista, e não queria implantar um regime comunista no país. Havia sim pequenos grupos que gostariam de implantar o comunismo no Brasil. Mas eles não tinham força nem no Congresso nem na presidência da República, e não tinham como fazer isso. Alguns gostariam, mas eram só alguns grupos obviamente contestados pelo governo. Não tinha operando nenhum grupo guerrilheiro na época. Então, não tinha nenhuma guerrilha montada atuando no momento do golpe. As guerrilhas só começaram depois que a repressão se alastrou; ela surgiu como reação.
IHU On-Line - Como era a relação pessoal de Jango com Getúlio Vargas?
Juremir Machado - Jango foi o grande aliado e protegido de Getúlio. O Getúlio viu no Jango o talento político que não encontrou nos filhos dele. Ele não encontrou em seus filhos aquele que fosse capaz de dar continuidade ao seu projeto político. Então, quando ele foi ao exilio em São Borja, começou a conviver com Jango, e viu nele um futuro político, um sujeito carismático, fiel a ele. E então, Getúlio praticamente adotou Jango como herdeiro político, formou seu caráter, ensinou, e preparou Jango para a grande aventura política que acabou se consumando.
Quando Getúlio voltou ao poder em 1951, acabou levando o jovem Jango para ser Ministro do Trabalho. Foi um período complicado, Jango passou a ser muito contestado pelos setores conservadores. Quando ele propôs o aumento do salário mínimo de 100%, acabou deflagrando um manifesto de coronéis e a resistência de todo mundo. Acabou até sendo demitido pelo Getúlio, que deu o aumento de 100%, porém o demitiu. Depois Jango passou a ser acusado de ser uma espécie de intermediário do Getúlio em uma negociação com a Argentina, com o Perón, para implantar uma república sindicalista peronista no Brasil. Armações todas da direita para tentar desclassificá-lo. O problema era que ele era bom, era bom de voto, e acabou sendo eleito vice-presidente da República com o Juscelino Kubitschek, vice-presidente da República com o Jânio e, no final, acabou sendo presidente da República, contrariando todo o horror que a direita tinha por ele.
IHU On-Line – Ele também era acusado de ser comunista.
Juremir Machado - Ele era chamado de comunista todo tempo, porém não tinha nada de comunista. Ele era um liberal, fazendeiro, católico. Ele foi uma daquelas pessoas, como o próprio Getúlio, que percebeu que o Brasil era muito desigual, e mesmo eles, que eram ricos, poderiam viver melhor se houvesse uma distribuição de renda, uma reforma no país. Eles poderiam continuar ricos, mas o Brasil poderia ser melhor, ou seja, não valia a pena ser rico daquela maneira. Então, essa sensibilidade social, própria do trabalhismo, foi uma sensibilidade muito forte que caracterizou esses personagens: Getúlio, Jango, Brizola, Fernando Ferrari, Alberto Pasqualini. Todos esses personagens disseram: “Nem deixar o país como ele está nem aderir a uma perspectiva comunista”, mas adotar uma situação intermediaria, ou seja, a adoção de uma política de melhorias, de reformas, uma política inspiradas nas próprias encíclicas papais do século 19, no desenvolvimento social da social democracia Inglesa, coisas assim, que no mundo em desenvolvimento eram absolutamente normais.
IHU On-Line - O senhor apresenta o livro como uma obra de reconstrução e desconstrução para reconstruir o passado e desconstruir os mitos. Que aspectos da historiografia de Jango foram construídos e quais mitos foram desconstruídos?
Juremir Machado - A primeira coisa é reconstruir a imagem de Jango. Ele tem sido apresentado por muitos historiadores e adversários como político hesitante, covarde, incompetente, corrupto, e a pesquisa nos permite mostrar que não foi nada disso. Ele era um homem de convicções, um homem de personalidade; ele não era um radical, ele era um moderado que pesava, que ponderava, que tinha suas ideias, que tomava decisões, não tinha nada de covarde. Mas ele não era evidentemente um sujeito de ir ao conflito simplesmente por apego ao poder. Então, a primeira coisa foi mostrar quem foi, de fato, o Jango, contrariando essa construção de seus opositores, de que ele seria um homem feito só de aspectos negativos.
O segundo aspecto é mostrar que suas reformas eram consequentes e que podiam ser aplicadas trazendo benefícios para o país. E diante da participação maciça dos Estados Unidos no golpe, ele não tinha o que fazer, e só lhe restava se afastar; e foi o que aconteceu.
O terceiro aspecto diz respeito ao enfoque da morte dele, a construção e desconstrução das suspeitas, e como isso se constituiu. É uma tentativa de mostrar, a partir dos dados, o que se pode realmente concluir sobre a morte dele.
IHU On-Line - Quais as novidades em torno da morte de João Goulart?
Juremir Machado - Gostaria de acreditar no assassinato, porque, de alguma maneira, é o que todos esperam, e seria uma espécie de catarse. Pensaríamos assim: “Essa ditadura cretina assassinou o Jango”. Seria uma maneira curiosa de reabilitá-lo, de mitificá-lo. Mas com base na minha pesquisa, não acredito que ele foi assassinado. Havia razões para isso, há indícios, motivos, mas o material examinado linha a linha não indica que ele tenha sido assassinado. É um material enorme e absolutamente contraditório, alicerçado em duas denúncias. Primeiro, na de um uruguaio chamado Henrique Dias, que fez suas denuncias na Justiça argentina e na uruguaia; ele perdeu nos dois casos, e ainda foi processado por calúnia e difamação, e condenado à prisão. Depois, ele ainda escreveu um livro sobre isso, que acabou tirado de circulação. Também tem o Mario Barreiro, um uruguaio que se diz agente secreto durante a ditadura, que agora está no Brasil em liberdade condicional. Ele retomou a história e afirma que ajudou a assassinar Jango, porém não apresenta nenhuma prova disso. O relato dele é tão cheio de contradições, que analisado linha a linha, não acredito. Por exemplo, ele diz em seus depoimentos que a ordem para matar o Jango partiu do Ernesto Geisel. Porém, Geisel estava em conflito com a linha dura do regime militar, que era capitaneada pelo General Sylvio Frota. Quem não queria a volta do Jango para o Brasil era o Sylvio Frota; e o Geisel se opunha ao Sylvio Frota. Se ele se opunha ao Frota, por que mandaria matar o Jango? Se o Sylvio Frota quisesse matar o Jango, eu ate entenderia, mais o Geisel não tem nenhum sentido. Depois são muitos os outros elementos contraditórios. Os indícios existentes são interessantes e deixam uma pulga atrás da orelha, porém, examinados um a um, eles não são tão fortes assim.
Outro exemplo corriqueiro é o atestado de óbito de Jango. Falam que o atestado não aponta a causa de sua morte. Porém, eu fui pesquisar e encontrei o atestado de óbito do Jango, e está lá: infarto do miocárdio. Por que não se fala disso? Por que não se faz um esforço para dizer que ele morreu de infarto do miocárdio? Está lá escrito com a letra do médico que atendeu o Jango no dia de sua morte. Por que não se insiste? A meu ver, porque se quer enfatizar a ideia de assassinato. E dizer que foi infarto do miocárdio elimina um indício. E assim vai, esse é apenas um exemplo!
IHU On-Line – E como foi a vida dele no exílio?
Juremir Machado - O tempo dele no exílio foi muito ruim, porque ele queria voltar, porque sentia saudade. Ele ficou mais rico do que já era. Ele vivia bem, podia viajar, tinha família, amante, fazenda, negócios. Porém queria voltar para o Brasil. Ele tinha uma vida sedentária, não fazia exercícios, estava obeso, bebia, fumava, comia coisas muito gordurosas e estava sempre estressado. Os amigos dele começaram a serem assassinados pelas ditaduras implantadas no Uruguai, na Argentina, na Bolívia. Então, a situação era de profundo stress! Ele queria voltar, começou a fazer questão de voltar, pedindo para amigos servirem de intermediários com os militares brasileiros, porém, não estava autorizado a voltar. Ele estava pensando em uma retirara, quem sabe para a França ou para a Inglaterra, porque não havia mais clima na Argentina devido à ditadura. Possivelmente ele iria embora para a França ou Inglaterra onde viviam seus filhos.
(Por Patricia Fachin)
(***)"As Duas mortes de Jango"
por Vladimir Safatle
Carta Capital
(**)"Jango, o conciliador "
por Ronaldo Pelli
RHBN
(*)IHU
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Difícil é explicar o motivo de termos demorado tanto tempo para admitir a plausibilidade de que ex-presidentes como João Goulart e Juscelino Kubitschek tenham sido assassinados. Durante anos, havia até mesmo declarações detalhadas de um antigo agente secreto do regime militar uruguaio, responsável pela sua morte. Mas nada disso foi realmente levado à sério.
Para além desse descaso calculado que durou praticamente 30 anos, há, entretanto, outra morte, talvez pior, à qual João Goulart foi submetido: a morte simbólica. Jango não foi simplesmente deposto, ele foi assassinado simbolicamente. Era necessário não apenas matá-lo, mas apagá-lo de nossa história, ou melhor, fazê-lo sair da história brasileira pela porta dos fundos.
A morte simbólica é essa que atinge não o corpo, mas o nome. Ela é a eliminação também da memória das ações que tal nome representou. Por isso ela é a pior morte de todas. Nesse sentido, talvez ninguém na história brasileira tenha sido objeto de violência tão grande quanto João Goulart. Pois, para os militares, não bastava alijá-lo do poder. Era necessário criar a imagem de um presidente fraco, impopular, golpista, financiado pelo “ouro de Moscou”. Era necessário apagar os rastros da impressionante intervenção norte-americana na gestão do golpe brasileiro, a fim de dar a impressão de que a “revolução redentora” fora o resultado pura e simples da responsabilidade das Forças Armadas diante do chamado feito pela população brasileira nas ruas em decorrência do medo da ameaça comunista.
Como lembrava Sigmund Freud, nunca se recalca algo completamente. Assim, vimos o corpo de João Goulart voltar à luz. Não por acaso, ele emerge na mesma época em que começamos a descobrir como Jango continuara um presidente popular até o último momento. Um político, indicavam os levantamentos, com uma reeleição assegurada caso lhe fosse permitido se candidatar novamente. Alguém eleito vice-presidente, apesar de integrar uma chapa derrotada na eleição anterior.
Brizola no comício da Central do Brasil |
Tudo isso demonstra como o lugar de João Goulart na história brasileira precisa ser urgentemente revisto, assim como devemos rever esse momento fundamental da história do País. Seu programa de reformas de base foi a primeira tentativa séria, no Brasil, de usar a capacidade de planejamento do Estado para iniciar um ciclo de transformações sociais verdadeiramente estruturais. Sua forte popularidade indicava o caráter claramente minoritário dos grupos que lhe faziam oposição. Só por isso ele mereceria um lugar de destaque em nossa história.
Assim, quando seu corpo voltou a Brasília, quase 50 anos depois, para receber as honras de chefe de Estado, era como se, enfim, sua morte simbólica começasse a ser anulada. Um fato que nos obriga a parar de reescrever a nossa história ao sabor do vento. Há muito ainda a se fazer no futuro do Brasil, mas muito há também a se fazer em seu passado. Por exemplo, é preciso parar de matar nossos mortos duas vezes.
(**) Tarefa, no mínimo, complexa, a que o historiador Jorge Ferreira se propôs: descrever o ex-presidente João Belchior Marques Goulart (1919-1976), em toda a sua humanidade. Não queria compactuar com o discurso que repete uma série de injúrias contra o político que foi, ao mesmo tempo, sucessor de Getúlio Vargas, e cunhado de Leonel Brizola, com quem teve uma amizade conturbada. Nem com o tom de vitimização, que o coloca numa posição passiva em relação ao golpe de 1964, que o tirou do poder. O resultado desse trabalho é o livro “João Goulart, uma biografia”, um calhamaço de mais de 700 páginas, que tenta evidenciar um personagem indispensável para um episódio decisivo da história recente do Brasil.
Segundo Ferreira, professor titular de História do Brasil da UFF, foram dez anos de trabalho, em pesquisa ou redação, que não se concentraram apenas no período em que Jango estava em evidência. O livro tenta reconstituir da infância de Janguinho, no Rio Grande do Sul, ao fim de sua vida, no exílio, entre suas fazendas no Uruguai e na Argentina, onde morre, em mais um episódio envolvido em teorias que resvalam na conspiração.
Conspiração, aliás, que Jango enfrentou antes, durante e depois da presidência, vinda de todos os lados ideológicos, por ser, em tempos de radicalizações políticas, um homem que valorizava a democracia, o diálogo e a conciliação. Ferreira se atém aos fatos e tenta mostrar, na medida do possível, o que realmente aconteceu durante o governo Jango, trazendo à luz as ações - e suas consequências - do então presidente que desembocariam numa ditadura de 21 anos. Também apresenta como a figura de Goulart foi avaliada por pesquisadores em seguida: geralmente com um desprezo, além de desumano, desnecessário.
Em entrevista sobre o seu livro e seu biografado, o professor sugere que devemos pensar em Jango, não como um medroso que saiu do governo sem lutar, mas como um homem que evitou uma guerra civil e o derramamento de sangue de irmãos. “Jango, nesse aspecto, não foi covarde. Foi sensato”, opina. Leia o restante da entrevista:
Revista de História - Qual era o objetivo de escrever “João Goulart, uma biografia”?
Jorge Ferreira - O livro tem o objetivo de retirar Jango do limbo do esquecimento em que ele se encontra. Embora tenha sido um personagem importante da vida política do país, as análises sobre ele, quando raramente surgem, via de regra o definem como demagogo, populista e incompetente ou, então, vítima da grande conspiração de empresários brasileiros em conluio com o governo norte-americano. Jango, quando é lembrado, é para ser culpabilizado ou vitimizado. Meu objetivo, no livro, é compreender o personagem. E somente compreendemos quando conhecemos.
RHBN - Como você interpreta essas desqualificações ao ex-presidente João Goulart?
Jorge Ferreira - Desde que Goulart entrou na vida pública, em fins de 1945, e, particularmente, quando foi identificado como pessoa próxima a Vargas, começaram as críticas sobre ele veiculadas na imprensa. Mas sua atuação como ministro do Trabalho desencadeou uma séria de ataques e insultos vindo dos setores conservadores, particularmente da UDN. O que incomodava os conservadores é que Jango, no ministério do Trabalho, aproximou-se do movimento sindical e passou a dialogar com os trabalhadores e líderes sindicais. Para a direita e os udenistas, tratava-se de algo inconcebível para um ministro de Estado. Daí surgiram as críticas: demagogo, manipulador, incompetente, instigador de greves, agitador etc. A estas denúncias de cunho político, juntaram-se outras, de cunho moral: mulherengo, alcoólatra etc. Quando, ao final de sua gestão no ministério, os opositores perceberam que Jango se tornara o herdeiro político de Getúlio Vargas, os ataques aumentaram ainda mais, surgindo a expressão “República sindicalista”
As imagens negativas sobre Goulart tomaram outra dimensão após o golpe militar de 1964. Os golpistas, civis e militares, passaram a desqualificar o regime democrático que derrubaram e a pessoa de Goulart em particular. Dele, os vitoriosos de 1964 retomaram os ataques formulados anteriormente, acrescido de adjetivos como corrupto, irresponsável, despreparado etc. Jango, no exílio, sequer podia se defender das acusações. As esquerdas, por sua vez, também contribuíram para o processo: “populista”, por exemplo, foi conceito criado nas Universidades para desqualificar lideranças anteriores a 1964.
RHBN - Ser um presidente “conciliador” num momento de exacerbações, como no início da década de 1960, foi o maior erro de Jango?
Jorge Ferreira - Em 1961 o país estava à beira da guerra civil. Jango, ao aceitar o parlamentarismo, evitou o conflito de um país dividido e conseguiu, logo a seguir, unir a sociedade em torno da volta ao presidencialismo. Ao longo de seu governo, ele se esforçou para ter maioria parlamentar no Congresso Nacional. Para Jango, assim como para JK, era fundamental unir PSD-PTB para obter maioria parlamentar e isolar a direita, representada pela UDN. A estratégia de Jango era negociar as Reformas de Base via pactos entre pessedistas e trabalhistas. Mas em uma coalizão de centro-esquerda, as reformas não poderiam ser com o programa máximo, como queriam as esquerdas, mas nem também com um programa tímido, como queriam os pessedistas. Nesse sentido, Jango era um conciliador porque buscava o entendimento entre as partes. Seu objetivo era alcançar acordos e compromissos políticos. Ocorre que o PTB se esquerdizava desde os anos 1950 e a conjuntura internacional era marcada pelo contexto maniqueísta da Guerra Fria. Nesse clima, a aprovação das reformas negociadas no Congresso Nacional tornou-se inviável.
Goulart compreendeu o que ocorreu nos dias 31 de março e 1º de abril de 1964. Não eram pequenos grupos civis e militares isolados da sociedade que tentavam golpes. Tratava-se do conjunto das Forças Armadas com o apoio dos principais governadores de estados: Guanabara, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul – com suas polícias militares e civis. Mais ainda, o presidente do Congresso Nacional conclamou os militares a deporem Goulart e o presidente do STF silenciou-se. O golpe também tinha o apoio dos meios de comunicação, do empresariado e de amplas parcelas das classes médias. Jango ainda soube, na manhã de 31 de março, que o governo norte-americano apoiaria em termos financeiros, diplomáticos e militares o governador mineiro Magalhães Pinto. Naquela manhã, ele também tomou conhecimento da chamada Operação Brother Sam.
Jango deve ser valorizado por aquilo que não fez: jogar o país em uma guerra civil que seria agravada com a intervenção militar dos Estados Unidos. É muito fácil acusar Jango de não liderar a guerra civil. Afinal, o sangue que correria seria dos outros, sobretudo da população civil. Jango, nesse aspecto, não foi covarde. Foi sensato. É preciso considerar, também, que os golpistas civis e militares não planejavam implantar uma ditadura de 21 anos. O objetivo era depor Goulart. O presidente acreditou que, em breve, a normalidade democrática retornaria ao país. Não foi o que aconteceu. Mas nós sabemos disso hoje. Os personagens que viveram aqueles acontecimentos não poderiam conhecer o futuro.
RHBN - Afinal: Jango foi assassinado ou teve uma morte “natural”?
Jorge Ferreira - No livro, as considerações sobre a morte de Jango são similares as de Moniz Bandeira na última edição de seu livro. Há o caso do depoimento do uruguaio Mário Barreiro Neira. Preso no Brasil em presídio federal de segurança máxima, ele alegou ter trocado os remédios de Jango por veneno. As investigações da Polícia Federal e do Ministério Público desqualificaram suas afirmações. Ele foi preso no Brasil por vários crimes, mas quer evitar a extradição para o Uruguai, onde também foi condenado por diversos assaltos. O ministro do STF, José Neri da Silveira, julgou que Neira não praticou crime político algum no Uruguai, mas, sim, contra o patrimônio. Pessoalmente, eu não descarto a possibilidade de atentado. Pode ter ocorrido. Mas, até o momento, não há prova alguma de que tenha sido efetivado. Jango, por sua vez, era um cardiopata. Seu primeiro acidente cardiovascular ocorreu ainda em 1962. Sofreu um enfarto em 1969. Além disso, levava uma vida sedentária, fumava, gostava de uísque, era hipertenso e alimentava-se de carnes gordurosas. No exílio, passou a sofrer um processo depressivo. Os remédios que controlavam a pressão arterial prejudicavam a produção de serotonina, deflagrando ou agravando a depressão.
Os boatos sobre o atentado surgiram porque sua morte foi próxima às de Juscelino Kubistchek e de Carlos Lacerda. Mas o historiador lida com provas e indícios. Desse modo, embora não tenha havido autópsia, a hipótese de morte natural é, no momento, a mais plausível.
RHBN - Por que há tantas acusações de corrupção contra Jango?
Jorge Ferreira - No livro, o leitor pode conhecer as qualidades e os defeitos de Jango – como ocorre em qualquer ser humano. Sobretudo, me esforcei para mostrar suas ambigüidades – algo também humano. Mas não encontrará denúncias de corrupção. Goulart era um homem rico. Sua riqueza foi herdada do pai e multiplicada por ele antes de entrar para a vida pública em 1945. Ele não precisava roubar. Depois do golpe militar, Jango e JK sofreram uma série de acusações de práticas de corrupção, todas sem fundamentos, baseadas em calúnias e difamações. Mesmo sem poderem se defender, nenhuma acusação foi comprovada.
RHBN - O quanto Brizola ajudou e o quanto ele atrapalhou Jango na sua carreira política?
Jorge Ferreira - João Goulart e Leonel Brizola mantiveram relações políticas de mútua dependência. Ao longo dos anos, Goulart apoiou politicamente Brizola no Rio Grande do Sul, enquanto Brizola apoiava Goulart no plano nacional. Foi Brizola que lutou, de maneira corajosa, pela posse de Jango na presidência da República durante a Campanha da Legalidade. Nesse episódio, Brizola teve um papel extremamente positivo, defendendo a Constituição e a legalidade democrática. Contudo, durante o mandato de Goulart na presidência da República, Brizola radicalizou à esquerda e tornou-se grande opositor do presidente. Diversos partidos e organizações de esquerda, sob a liderança de Leonel Brizola, fundaram a Frente de Mobilização Popular. Junto com o PCB, a FMP exigia que Goulart rompesse com o PSD e governasse apenas com as esquerdas – mesmo que perdesse a maioria no Congresso Nacional. Jango, nesse sentido, teve que enfrentar as oposições de direita, como Carlos Lacerda e a máquina anticomunista, e as de esquerda, sobretudo lideradas por Leonel Brizola. No conflito entre esquerdas e direitas, o regime da Carta de 1946 se desestabilizou e encontrou seu fim em 1º de abril de 1964.
(*)João Goulart deve ser considerado um “herói”, porque em duas ocasiões “livrou o Brasil de uma guerra civil”, diz o Juremir Machado, autor de Jango. A vida e a morte no exílio, livro lançado em junho deste ano, no qual pretende desconstruir os mitos em torno do ex-presidente brasileiro. Na entrevista a seguir, concedida por telefone, ele comenta o episódio e assinala que Jango “era um sujeito de ponderar, de pesar, de equilibrar” e por isso aceitou a conciliação proposta. “Se Jango quisesse realmente exacerbar as coisas, ele poderia ter levado o país a um conflito que resultaria em milhares de mortes”, pondera.
Por conta de decidir assumir a presidência num sistema parlamentarista, que limitava seus poderes, Jango teve o “primeiro estremecimento” com Brizola, que à época era governador do Rio Grande do Sul. “Brizola nem foi à posse de Jango no dia 7 de setembro de 1961. Eles se estremeceram porque Brizola, cunhado de Jango, queria que ele fosse mais impetuoso, mais agressivo, mais radical e não aceitasse a solução parlamentarista”, menciona.
De acordo com o jornalista, Jango ficou conhecido como um presidente hesitante, covarde, incompetente, corrupto, contudo, “era um homem de convicções, de personalidade; ele não era um radical, ele era um moderado que pesava, que ponderava, que tinha suas ideias, que tomava decisões, não tinha nada de covarde”, assinala. E dispara: “Ele foi uma daquelas pessoas, como o próprio Getúlio, que percebeu que o Brasil era muito desigual, e mesmo eles, que eram ricos, poderiam viver melhor se houvesse uma distribuição de renda, uma reforma no país”.
Escritor, jornalista e historiador, Juremir Machado é doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V: René Descartes. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, além de professor do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social – Famecos e coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUCRS, assina coluna no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre.
IHU On-Line - A partir da sua reconstrução histórica, quem foi João Goulart? Qual sua contribuição para a história política do Brasil?
Juremir Machado - João Goulart foi, a meu ver, antes de tudo, um herói. É exatamente essa a palavra. Por que um herói? Porque em duas ocasiões ele livrou o Brasil de uma guerra civil. A primeira vez foi em 1961, quando Jânio Quadros renunciou e os militares decidiram que o Jango não poderia assumir. Se Jango quisesse realmente exacerbar as coisas, ele poderia ter levado o país a um conflito que resultaria em milhares de mortes. Ao aceitar a conciliação proposta, que foi a saída parlamentarista, ele evitou um conflito militar que estava preparado, conflito que até se justificaria na medida em que ele teve poderes usurpados. Mas ele teve a sabedoria de conciliar para evitar a guerra civil. A segunda vez foi em 1964.
Nessa ocasião, se ele quisesse, teria resistido ao golpe e, a meu ver, a resistência teria sido inútil. Essa era também a avaliação dele, a resistência iria provocar um banho de sangue e os resistentes teriam finalmente vencido. Então, ao ter a sabedoria de evitar por vaidade, por apego ao poder, esses conflitos, ele se apresentou como um herói.
Além disso, Jango foi um presidente generoso, um homem de grande sabedoria, que tentou fazer reformas fundamentais para o Brasil: as reformas de base, em uma época que o Brasil ainda não estava maduro, as reformas agrárias, as reformas bancárias, reformas educacionais. Todas elas eram reformas importantíssimas, altamente necessárias para modernizar o Brasil à época, para tornar o país menos desigual, e para civiliza-lo. É claro que os setores conservadores da época não podiam aceitar e hiperdimencionaram a ameaça comunista com base em propaganda e financiamento americano para impedir que essas reformas fossem feitas.
IHU On-Line – Como ficou a relação de Jango com Leonel Brizola depois que ele aceitou a proposta de governar num sistema parlamentarista, apesar de Brizola ter encabeçado a Campanha da Legalidade para garantir o direito do vice-presidente assumir?
Juremir Machado - Brizola e Jango eram pessoas igualmente interessantes e que representavam aquelas situações extraordinárias em que pessoas com posicionamentos diferentes têm igualmente razão. O Brizola era um espírito impetuoso, um sujeito extremamente ousado, que se definia mais pela busca do conflito. Jango era um sujeito de ponderar, de pesar, de equilibrar. Ambos tinham razão. O Brizola tinha razão em querer que os poderes legítimos do Jango, em 1961, fossem atribuídos a ele, e o Jango tinha razão ao pensar: “Por essa via não vai, melhor conciliar”. Em 1961, a relação teve o primeiro estremecimento, tanto que Brizola nem foi à posse de Jango no dia 7 de setembro de 1961. Eles se estremeceram porque Brizola, cunhado de Jango, queria que ele fosse mais impetuoso, mais agressivo, mais radical e não aceitasse a solução parlamentarista. Mas esse episódio foi superado. Porém, ao longo do governo Jango, Brizola pressionou pela aceleração das reformas. Muitos acham até que isso contribuiu para a queda de Jango. Então, eles tiveram vários momentos de conflitos, de atritos, de estranhamentos, durante o próprio governo de Jango.
Mas a ruptura entre eles aconteceu com o golpe. Eles tiveram uma reunião em Porto Alegre e, nessa reunião com o General Ladário Teles, nomeado Comandante do Terceiro Exército, o Brizola queria ser nomeado Ministro da Justiça, e queria que se organizasse uma resistência armada, porém o Jango não quis. Então, ali eles se estremeceram, e depois ficaram anos e anos no exílio sem qualquer tipo de contato, apesar de serem membros da mesma família. Pouco antes de o Jango morrer, em 1976, eles fizeram as pazes, o que solucionou uma situação que era insustentável, porque no fundo, um gostava do outro. Eles tinham objetivos comuns, tinham o mesmo partido (PTB), tinham uma mesma visão de mundo: a visão do Brizola era um pouco mais exacerbada, mas eles eram do mesmo campo. Eram amigos, cunhados, tinham o mesmo propósito, e se desencontraram pelo caminho, mas felizmente se reencontraram um pouco antes da morte de Jango.
IHU On-Line - Como avalia esses três anos de governo Jango? Ele conseguiu desenvolver algumas de suas propostas? Valeu a pena ele ter evitado o golpe?
Juremir Machado - Acho que valeu a pena. Ele evitou a guerra civil, ele assumiu como presidente do regime parlamentarista, e mais tarde, como era previsto na emenda condicional, se realizou o plebiscito em 6 de janeiro de 1963, e ele recuperou seus plenos poderes, e passou então há tentar aplicar aquilo que achava conveniente para o país. Naquela situação de Guerra Fria, de implantação do socialismo em Cuba, de alta influencia Americana nos países da América Latina, dos Estados Unidos financiando campanhas politicas no Brasil, infiltrando pessoas para ajudar a preparar um golpe, criava uma situação muito difícil. O Jango fez o que deveria ser feito. A conjuntura não era favorável a ele, e o golpe começou a ser preparado desde 1962 e, de certa maneira, desde 1961, quando os militares não conseguiram golpeá-los em 1961. Eles perceberam que deviam se organizar minuciosamente para, na primeira oportunidade, dar um golpe que realmente se efetivasse.
O Jango não caiu por ter feito coisas erradas. O Jango caiu pelos acertos dele, porque ele queria mudar, modernizar, melhorar o país. O grande perigo que o Brasil tinha com o Jango, era de ficar muito melhor prematuramente, tirando parte dos incríveis privilégios que a classe dominante absolutamente minoritária tinha na época.
IHU On-Line - Quais foram às razões que levaram à queda de Jango?
Juremir Machado - O Jango caiu principalmente por causa da reforma agrária, quando propôs a reforma agrária depois do comício de 13 de março, na Central Brasil, e depois de enviar a mensagem ao Congresso, em 15 de março, propondo a reforma agrária e uma alteração na Constituição Federal, porque esse era o grande problema. A reforma agrária, até então, era feita com desapropriação de terras em dinheiro. O Jango, para poder fazer uma reforma agrária consequente, propôs a alteração da Constituição, que permitiria pagar com os papéis do governo, ou seja, não pagar a vista. E isso era terrível para os fazendeiros que não queriam perder suas terras ou então vendê-las caro, e com pagamento a vista.
Jango foi visto além de tudo como um traidor, porque ele era um fazendeiro. A reforma agrária era tão importante num país com alta concentração de terra, que o próprio Getúlio Vargas, que fez toda legislação trabalhista, não atacou a questão da reforma agrária e nem levou a legislação trabalhista para o campo. Foi no governo Jango que, finalmente, se teve a coragem e determinação de propor de fato a reforma agrária. Quando ela caiu na mesa do Congresso, e quando se viu que era para acontecer, aí veio o golpe de 1964.
IHU On-Line – É nesse sentido que o senhor diz que Jango foi um reformista no tempo errado?
Juremir Machado – Sim. Ele queria fazer várias reformas: educacional, tributária, bancária. A reforma educacional começava por alterar o que era chamado de catedravitalisia, e era importante porque o Brasil tinha um índice de alfabetismo estonteante; de 70 bilhões de habitantes, apenas 70 mil pessoas estavam na universidade, e no máximo 2.400 pessoas em pós-graduação. Então, era um país de analfabetos, um país de pouquíssimas pessoas que podiam chegar à universidade, e precisava mudar esse cenário. Precisava criar universidades, alfabetizar as pessoas, colocar mais gente para estudar. E ele estava cercado de grandes conselheiros nesse sentido: Paulo Freire, Darci Ribeiro, Anísio Teixeira, Celso Furtado. As reformas dele iam a todos os sentidos, até mesmo de uma reforma imobiliária, porque havia muitos apartamentos vazios nas grandes cidades, os quais não eram alugados. E ele queria fazer um tipo de reforma que obrigasse a colocar esses imóveis à disposição das pessoas, porque muitas não tinham onde morar.
IHU On-Line - Como foi construído o imaginário favorável ao golpe de 64?
Juremir Machado - Aí entra a imprensa da época. Os Estados Unidos participaram de tudo desde 1962! Eles financiaram campanhas de políticos de oposição ao Jango, depositaram muito dinheiro em propagandas, e ganharam a adesão da mídia. A imprensa brasileira da época era totalmente golpista. Os jornais, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, O Globo, O Dia, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa ajudaram a depor o Jango, eles empurraram o Jango para o exílio, e são corresponsáveis com o que ocorreu com ele. Essa é a verdade. Uma mídia golpista, conservadora, reacionária e que ajudou a construir uma ideia de ameaça comunista, que seria acaçapante, que estaria ali na porta do país, e que era preciso impedir derrubando o Jango.
IHU On-Line – A ameaça comunista não existia?
Juremir Machado - A ameaça comunista existia, mas era muito tênue. Primeiro o Jango não era comunista, e não queria implantar um regime comunista no país. Havia sim pequenos grupos que gostariam de implantar o comunismo no Brasil. Mas eles não tinham força nem no Congresso nem na presidência da República, e não tinham como fazer isso. Alguns gostariam, mas eram só alguns grupos obviamente contestados pelo governo. Não tinha operando nenhum grupo guerrilheiro na época. Então, não tinha nenhuma guerrilha montada atuando no momento do golpe. As guerrilhas só começaram depois que a repressão se alastrou; ela surgiu como reação.
IHU On-Line - Como era a relação pessoal de Jango com Getúlio Vargas?
Juremir Machado - Jango foi o grande aliado e protegido de Getúlio. O Getúlio viu no Jango o talento político que não encontrou nos filhos dele. Ele não encontrou em seus filhos aquele que fosse capaz de dar continuidade ao seu projeto político. Então, quando ele foi ao exilio em São Borja, começou a conviver com Jango, e viu nele um futuro político, um sujeito carismático, fiel a ele. E então, Getúlio praticamente adotou Jango como herdeiro político, formou seu caráter, ensinou, e preparou Jango para a grande aventura política que acabou se consumando.
Quando Getúlio voltou ao poder em 1951, acabou levando o jovem Jango para ser Ministro do Trabalho. Foi um período complicado, Jango passou a ser muito contestado pelos setores conservadores. Quando ele propôs o aumento do salário mínimo de 100%, acabou deflagrando um manifesto de coronéis e a resistência de todo mundo. Acabou até sendo demitido pelo Getúlio, que deu o aumento de 100%, porém o demitiu. Depois Jango passou a ser acusado de ser uma espécie de intermediário do Getúlio em uma negociação com a Argentina, com o Perón, para implantar uma república sindicalista peronista no Brasil. Armações todas da direita para tentar desclassificá-lo. O problema era que ele era bom, era bom de voto, e acabou sendo eleito vice-presidente da República com o Juscelino Kubitschek, vice-presidente da República com o Jânio e, no final, acabou sendo presidente da República, contrariando todo o horror que a direita tinha por ele.
IHU On-Line – Ele também era acusado de ser comunista.
Juremir Machado - Ele era chamado de comunista todo tempo, porém não tinha nada de comunista. Ele era um liberal, fazendeiro, católico. Ele foi uma daquelas pessoas, como o próprio Getúlio, que percebeu que o Brasil era muito desigual, e mesmo eles, que eram ricos, poderiam viver melhor se houvesse uma distribuição de renda, uma reforma no país. Eles poderiam continuar ricos, mas o Brasil poderia ser melhor, ou seja, não valia a pena ser rico daquela maneira. Então, essa sensibilidade social, própria do trabalhismo, foi uma sensibilidade muito forte que caracterizou esses personagens: Getúlio, Jango, Brizola, Fernando Ferrari, Alberto Pasqualini. Todos esses personagens disseram: “Nem deixar o país como ele está nem aderir a uma perspectiva comunista”, mas adotar uma situação intermediaria, ou seja, a adoção de uma política de melhorias, de reformas, uma política inspiradas nas próprias encíclicas papais do século 19, no desenvolvimento social da social democracia Inglesa, coisas assim, que no mundo em desenvolvimento eram absolutamente normais.
IHU On-Line - O senhor apresenta o livro como uma obra de reconstrução e desconstrução para reconstruir o passado e desconstruir os mitos. Que aspectos da historiografia de Jango foram construídos e quais mitos foram desconstruídos?
Juremir Machado - A primeira coisa é reconstruir a imagem de Jango. Ele tem sido apresentado por muitos historiadores e adversários como político hesitante, covarde, incompetente, corrupto, e a pesquisa nos permite mostrar que não foi nada disso. Ele era um homem de convicções, um homem de personalidade; ele não era um radical, ele era um moderado que pesava, que ponderava, que tinha suas ideias, que tomava decisões, não tinha nada de covarde. Mas ele não era evidentemente um sujeito de ir ao conflito simplesmente por apego ao poder. Então, a primeira coisa foi mostrar quem foi, de fato, o Jango, contrariando essa construção de seus opositores, de que ele seria um homem feito só de aspectos negativos.
O segundo aspecto é mostrar que suas reformas eram consequentes e que podiam ser aplicadas trazendo benefícios para o país. E diante da participação maciça dos Estados Unidos no golpe, ele não tinha o que fazer, e só lhe restava se afastar; e foi o que aconteceu.
O terceiro aspecto diz respeito ao enfoque da morte dele, a construção e desconstrução das suspeitas, e como isso se constituiu. É uma tentativa de mostrar, a partir dos dados, o que se pode realmente concluir sobre a morte dele.
IHU On-Line - Quais as novidades em torno da morte de João Goulart?
Juremir Machado - Gostaria de acreditar no assassinato, porque, de alguma maneira, é o que todos esperam, e seria uma espécie de catarse. Pensaríamos assim: “Essa ditadura cretina assassinou o Jango”. Seria uma maneira curiosa de reabilitá-lo, de mitificá-lo. Mas com base na minha pesquisa, não acredito que ele foi assassinado. Havia razões para isso, há indícios, motivos, mas o material examinado linha a linha não indica que ele tenha sido assassinado. É um material enorme e absolutamente contraditório, alicerçado em duas denúncias. Primeiro, na de um uruguaio chamado Henrique Dias, que fez suas denuncias na Justiça argentina e na uruguaia; ele perdeu nos dois casos, e ainda foi processado por calúnia e difamação, e condenado à prisão. Depois, ele ainda escreveu um livro sobre isso, que acabou tirado de circulação. Também tem o Mario Barreiro, um uruguaio que se diz agente secreto durante a ditadura, que agora está no Brasil em liberdade condicional. Ele retomou a história e afirma que ajudou a assassinar Jango, porém não apresenta nenhuma prova disso. O relato dele é tão cheio de contradições, que analisado linha a linha, não acredito. Por exemplo, ele diz em seus depoimentos que a ordem para matar o Jango partiu do Ernesto Geisel. Porém, Geisel estava em conflito com a linha dura do regime militar, que era capitaneada pelo General Sylvio Frota. Quem não queria a volta do Jango para o Brasil era o Sylvio Frota; e o Geisel se opunha ao Sylvio Frota. Se ele se opunha ao Frota, por que mandaria matar o Jango? Se o Sylvio Frota quisesse matar o Jango, eu ate entenderia, mais o Geisel não tem nenhum sentido. Depois são muitos os outros elementos contraditórios. Os indícios existentes são interessantes e deixam uma pulga atrás da orelha, porém, examinados um a um, eles não são tão fortes assim.
Outro exemplo corriqueiro é o atestado de óbito de Jango. Falam que o atestado não aponta a causa de sua morte. Porém, eu fui pesquisar e encontrei o atestado de óbito do Jango, e está lá: infarto do miocárdio. Por que não se fala disso? Por que não se faz um esforço para dizer que ele morreu de infarto do miocárdio? Está lá escrito com a letra do médico que atendeu o Jango no dia de sua morte. Por que não se insiste? A meu ver, porque se quer enfatizar a ideia de assassinato. E dizer que foi infarto do miocárdio elimina um indício. E assim vai, esse é apenas um exemplo!
IHU On-Line – E como foi a vida dele no exílio?
Juremir Machado - O tempo dele no exílio foi muito ruim, porque ele queria voltar, porque sentia saudade. Ele ficou mais rico do que já era. Ele vivia bem, podia viajar, tinha família, amante, fazenda, negócios. Porém queria voltar para o Brasil. Ele tinha uma vida sedentária, não fazia exercícios, estava obeso, bebia, fumava, comia coisas muito gordurosas e estava sempre estressado. Os amigos dele começaram a serem assassinados pelas ditaduras implantadas no Uruguai, na Argentina, na Bolívia. Então, a situação era de profundo stress! Ele queria voltar, começou a fazer questão de voltar, pedindo para amigos servirem de intermediários com os militares brasileiros, porém, não estava autorizado a voltar. Ele estava pensando em uma retirara, quem sabe para a França ou para a Inglaterra, porque não havia mais clima na Argentina devido à ditadura. Possivelmente ele iria embora para a França ou Inglaterra onde viviam seus filhos.
(Por Patricia Fachin)
(***)"As Duas mortes de Jango"
por Vladimir Safatle
Carta Capital
(**)"Jango, o conciliador "
por Ronaldo Pelli
RHBN
(*)IHU
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domingo, 23 de março de 2014
KARNE KRUA
Karne Krua, de Aracaju, Sergipe, é, muito provavelmente, uma das bandas
punk mais antigas em atividade ininterrupta no norte e nordeste do
Brasil. Nunca pararam! Posso atestar
isso, já que os acompanho desde 1987, quando fui ao meu primeiro show de
rock “underground”. Sobrevive às idas e vindas de componentes graças à
persistência de Silvio, o vocalista e único membro original
remanescente.
Idas e vindas que, felizmente, já cessaram há um bom tempo: a formação mais recente, com Adriano na bateria, Alexandre na guitarra, Ivo Delmondes no baixo e Silvio nos vocais, é uma das mais estáveis e duradouras. E, provavelmente, também a melhor, conseguindo o feito de superar a “clássica”, com Silvio, Marlio, Marcelo e Almada - aquela que definiu a sonoridade da banda e compôs verdadeiros hinos do Hard Core undergound nacional.
A Karne Krua existe desde 1985. Havia na época um cenário “roqueiro” pulsando nos submundos da cidade, herdeiro direto da nova onda do rock nacional que tomava conta do país. Vieram, no entanto, com uma proposta ousada para a provinciana capital do menor estado do país: radicalizar na postura e na sonoridade. Fazer punk rock e Hard Core cru, bruto e engajado. Fizeram barulho e chamaram a atenção, aglutinando ao seu redor toda uma nova cena com nomes como Manicômio, Condenados, Cleptomania, Logorreia, Forcas Armadas e Sublevação. Dessas, algumas tiveram vida curta e sumiram na poeira do tempo, deixando pouco ou nada para trás. Outras sobrevivem até hoje. Mas nenhuma com a força e a capacidade de se renovar e renovar seu público, de geração a geração, que a Karne Krua tem.
Como toda banda que dura tanto, passaram por várias fases e diferentes variações de sonoridade. Tudo devidamente registrado na farta discografia e “demografia”, que começou com a tosca “As Merdas do sistema”, alcançou uma certa maturidade com a clássica – embora ainda tosca – “labor Operário”, experimentou o primeiro gosto do profissionalismo com “Suicídio”, a primeira gravada em estúdio, no Recife, e se “consagrou” – na medida do possível para uma banda totalmente independente – com o primeiro registro em vinil, o LP auto-intitulado, de 1994.
O primeiro disco da Karne Krua está fazendo 20 anos de lançado e, apesar de seus defeitos gritantes – de gravação e mixagem, principalmente – é um clássico. Principalmente porque foi gravado ainda com a formação mais célebre - que logo depois se dissolveu definitivamente – e tem um repertório impecável, fruto da excelente fase pela qual passavam na época e que rendeu pérolas do quilate de “O vinho da História” e “A Noite do Deus morto”. Além disso, havia a bagagem que já vinham acumulando em quase 10 anos de atuação nos porões do punk rock nordestino, período no qual compuseram alguns clássicos que até hoje são cantados em coro nos shows: “America latina now”, “cenas de ódio e revolta” e “Sindicato”, dentre outras. Músicas que, para além da simplicidade dos acordes primários típicos do estilo, carregavam uma poesia improvável em suas letras, como na de “política da seca” - um lamento que, a meu ver, poderia constar tranquilamento ao lado de grandes canções icônicas sobre a tragédia do sofrimento do povo do nordeste, como “Asa Branca” e “A Triste partida”. Seus versos são um verdadeiro soco no estômago do conformismo e não me deixam mentir: falam de “pessoas castigadas pelo sol e pela fome” que “lamentam a dor de mais um ano que passou”. Porque “os miseráveis são fonte de renda, mão de obra barata. Voto Comprado. Essa é a grande armadilha, e deverá ser cultivada”.
O disco foi lançado tardiamente, numa época de transição para a industria da musica, do analógico para o digital. Não teve versão em CD e, muito por conta disso, teve uma repercussão reduzida. Hoje, no entanto, a situação se inverteu: é cultuado justamente por ser, além do primeiro registro “oficial” de uma banda clássica do cenário local e nacional, um dos poucos discos sergipanos a ter tido uma edição em vinil.
Seguiram em frente: ao longo das décadas de 1990 e 2000 foram absorvendo novos membros e novas influências, notadamente do Hard Core novaiorquino - Biohazard, Agnostic Front - e da música regional – o repente e o “aboio”, principalmente. Novas fitas demo foram lançadas – “Máscaras para o caos”, de 1997, e “Instantes Irreversíveis”, de 1999 – e finalmente, em 2002, o segundo disco, agora em CD: “Em Carne viva”. O lançamento aconteceu numa noite inesquecível daquele início de século, quando conseguiram o feito de lotar o Espaço Emes, maior arena de shows local, que já serviu de palco para nomes consagrados da música popular e do rock, como Roberto Carlos, Sepultura e Ana Carolina. Tudo registrado em vídeo e disponível em DVD.
O maior triunfo da banda, no entanto, ainda estava por vir: o álbum “Inanição”, uma verdadeira obra-prima do gênero em terras brasilis. Gravado num momento de transição, ainda com o grande baterista Thiago “Babalu”, que se mudou para São Paulo e hoje toca com Siba, ex-Mestre Ambrosio, e Alexandre, o guitarrista, fazendo também o papel de baixista, demorou uma eternidade para ser lançado. Só veio ao mundo em 2012, exatos dez anos depois do segundo. Mas valeu a pena a espera: trata-se de uma impecável coleção de canções que, alinhadas, traçam um impressionante painel de angustia e revolta diante das injustiças do mundo, do drama dos retirantes ao sofrimento dos animais usados em testes de laboratório. E tem, pelo menos, um novo clássico: a música título, “inanição”. Nele a banda consegue finalmente registrar todo o potencial que, até então, só se revelava em toda a sua plenitude em cima do palco. É um registro que não pode faltar na coleção de ninguém que se diga apreciador do combativo e altivo punk rock nacional.
Hoje, prestes a completar 30 anos de carreira ininterrupta, continuam tocando principalmente em sua cidade e regiões circunvizinhas, porque não têm estrutura nem suporte financeiro para vôos mais altos. Mas seguem vivo e ativos. Acabam de lançar um EP 7 polegadas - formato outrora popularmente conhecido no Brasil como "compacto" - em parceria com o "Besthoven", de Brasília. Trata-se de um verdadeiro soco sonoro em forma de 4 músicas emendadas, uma espécie de "suíte" Hard Core versando sobre os horrores da guerra. A edição é caprichada, com prensagem de qualidade a cargo da renascida polyson, única fábrica de discos de vinil ainda em atividade no país, e uma excelente arte de capa de autoria de Thiago Neumman, o popular "Cachorrão".
Às vezes eu tenho a impressão que a Karne Krua nunca vai acabar. Sei que sim – porque tudo, um dia, acaba. Mas torço para que não.
Que seja eterna enquanto dure, como dizia o poeta.
por Adelvan
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Idas e vindas que, felizmente, já cessaram há um bom tempo: a formação mais recente, com Adriano na bateria, Alexandre na guitarra, Ivo Delmondes no baixo e Silvio nos vocais, é uma das mais estáveis e duradouras. E, provavelmente, também a melhor, conseguindo o feito de superar a “clássica”, com Silvio, Marlio, Marcelo e Almada - aquela que definiu a sonoridade da banda e compôs verdadeiros hinos do Hard Core undergound nacional.
A Karne Krua existe desde 1985. Havia na época um cenário “roqueiro” pulsando nos submundos da cidade, herdeiro direto da nova onda do rock nacional que tomava conta do país. Vieram, no entanto, com uma proposta ousada para a provinciana capital do menor estado do país: radicalizar na postura e na sonoridade. Fazer punk rock e Hard Core cru, bruto e engajado. Fizeram barulho e chamaram a atenção, aglutinando ao seu redor toda uma nova cena com nomes como Manicômio, Condenados, Cleptomania, Logorreia, Forcas Armadas e Sublevação. Dessas, algumas tiveram vida curta e sumiram na poeira do tempo, deixando pouco ou nada para trás. Outras sobrevivem até hoje. Mas nenhuma com a força e a capacidade de se renovar e renovar seu público, de geração a geração, que a Karne Krua tem.
Como toda banda que dura tanto, passaram por várias fases e diferentes variações de sonoridade. Tudo devidamente registrado na farta discografia e “demografia”, que começou com a tosca “As Merdas do sistema”, alcançou uma certa maturidade com a clássica – embora ainda tosca – “labor Operário”, experimentou o primeiro gosto do profissionalismo com “Suicídio”, a primeira gravada em estúdio, no Recife, e se “consagrou” – na medida do possível para uma banda totalmente independente – com o primeiro registro em vinil, o LP auto-intitulado, de 1994.
O primeiro disco da Karne Krua está fazendo 20 anos de lançado e, apesar de seus defeitos gritantes – de gravação e mixagem, principalmente – é um clássico. Principalmente porque foi gravado ainda com a formação mais célebre - que logo depois se dissolveu definitivamente – e tem um repertório impecável, fruto da excelente fase pela qual passavam na época e que rendeu pérolas do quilate de “O vinho da História” e “A Noite do Deus morto”. Além disso, havia a bagagem que já vinham acumulando em quase 10 anos de atuação nos porões do punk rock nordestino, período no qual compuseram alguns clássicos que até hoje são cantados em coro nos shows: “America latina now”, “cenas de ódio e revolta” e “Sindicato”, dentre outras. Músicas que, para além da simplicidade dos acordes primários típicos do estilo, carregavam uma poesia improvável em suas letras, como na de “política da seca” - um lamento que, a meu ver, poderia constar tranquilamento ao lado de grandes canções icônicas sobre a tragédia do sofrimento do povo do nordeste, como “Asa Branca” e “A Triste partida”. Seus versos são um verdadeiro soco no estômago do conformismo e não me deixam mentir: falam de “pessoas castigadas pelo sol e pela fome” que “lamentam a dor de mais um ano que passou”. Porque “os miseráveis são fonte de renda, mão de obra barata. Voto Comprado. Essa é a grande armadilha, e deverá ser cultivada”.
O disco foi lançado tardiamente, numa época de transição para a industria da musica, do analógico para o digital. Não teve versão em CD e, muito por conta disso, teve uma repercussão reduzida. Hoje, no entanto, a situação se inverteu: é cultuado justamente por ser, além do primeiro registro “oficial” de uma banda clássica do cenário local e nacional, um dos poucos discos sergipanos a ter tido uma edição em vinil.
Seguiram em frente: ao longo das décadas de 1990 e 2000 foram absorvendo novos membros e novas influências, notadamente do Hard Core novaiorquino - Biohazard, Agnostic Front - e da música regional – o repente e o “aboio”, principalmente. Novas fitas demo foram lançadas – “Máscaras para o caos”, de 1997, e “Instantes Irreversíveis”, de 1999 – e finalmente, em 2002, o segundo disco, agora em CD: “Em Carne viva”. O lançamento aconteceu numa noite inesquecível daquele início de século, quando conseguiram o feito de lotar o Espaço Emes, maior arena de shows local, que já serviu de palco para nomes consagrados da música popular e do rock, como Roberto Carlos, Sepultura e Ana Carolina. Tudo registrado em vídeo e disponível em DVD.
O maior triunfo da banda, no entanto, ainda estava por vir: o álbum “Inanição”, uma verdadeira obra-prima do gênero em terras brasilis. Gravado num momento de transição, ainda com o grande baterista Thiago “Babalu”, que se mudou para São Paulo e hoje toca com Siba, ex-Mestre Ambrosio, e Alexandre, o guitarrista, fazendo também o papel de baixista, demorou uma eternidade para ser lançado. Só veio ao mundo em 2012, exatos dez anos depois do segundo. Mas valeu a pena a espera: trata-se de uma impecável coleção de canções que, alinhadas, traçam um impressionante painel de angustia e revolta diante das injustiças do mundo, do drama dos retirantes ao sofrimento dos animais usados em testes de laboratório. E tem, pelo menos, um novo clássico: a música título, “inanição”. Nele a banda consegue finalmente registrar todo o potencial que, até então, só se revelava em toda a sua plenitude em cima do palco. É um registro que não pode faltar na coleção de ninguém que se diga apreciador do combativo e altivo punk rock nacional.
Hoje, prestes a completar 30 anos de carreira ininterrupta, continuam tocando principalmente em sua cidade e regiões circunvizinhas, porque não têm estrutura nem suporte financeiro para vôos mais altos. Mas seguem vivo e ativos. Acabam de lançar um EP 7 polegadas - formato outrora popularmente conhecido no Brasil como "compacto" - em parceria com o "Besthoven", de Brasília. Trata-se de um verdadeiro soco sonoro em forma de 4 músicas emendadas, uma espécie de "suíte" Hard Core versando sobre os horrores da guerra. A edição é caprichada, com prensagem de qualidade a cargo da renascida polyson, única fábrica de discos de vinil ainda em atividade no país, e uma excelente arte de capa de autoria de Thiago Neumman, o popular "Cachorrão".
Às vezes eu tenho a impressão que a Karne Krua nunca vai acabar. Sei que sim – porque tudo, um dia, acaba. Mas torço para que não.
Que seja eterna enquanto dure, como dizia o poeta.
por Adelvan
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linhas tortas # 2
Tenho aqui em minhas mãos a cópia número 16/100 da segunda edição do fanzine linhas tortas, editado pelo camarada Aquino Neto
diretamente de seu quartel-general encravado no conjunto Augusto
Franco, este verdadeiro celeiro sergipano de bizarrices musicais. Em
mãos mesmo, de fato. Não é uma metáfora. É um fanzine de papel,
materializado em 5 folhas ofício (ou seriam A4? Nunca consegui
diferenciar) xerocadas, dobradas no meio em sentido vertical e grampeadas, o que dá ao produto final um aspecto charmoso, "fininho".
A capa, ótima, traz um belíssimo desenho de Laura Athayde emcimado pelo título, escrito à mão com caneta azul-piscina de ponta porosa. Na primeira página, um ótimo editorial que resume em poucas (nem tanto, ocupa a página inteira) palavras o significado da obra para o seu autor. Depois temos uma excelente entrevista com o Medialunas, banda gaúcha que tocou recentemente por aqui, muito bem diagramada e enriquecida por belas fotos de Marcelinho Hora. No meio, uma pequena biografia e alguns exemplos da poesia - muito boa - de Miró, um poeta "marginal" (no sentido de à margem) pernambucano que ama São Paulo, apesar de andar sempre de ônibus por lá e de não ter sentido nada quando cruzou a esquina da Ipiranga com a avenida São João - eu também não. Aí temos um artigo chamado "10 películas feministas", bem intencionado porém um tanto quanto superficial - os comentários poderiam passar de duas linhas, parece texto de twitter - e controverso - nesse caso, sem novidade, pois qualquer lista já nasce sob o signo da controvérsia. No caso, eu tiraria um os filmes da Disney apontados, "Valente". É fraquinho demais. O outro, "Mulan", é legal, mas mesmo assim há inúmeras outras obras que mereciam ocupar seu lugar na lista, como "Libertárias", que trata da participação feminina durante a Guerra Civil espanhola. E, por fim, a divulgação de uma dupla de artistas chamada "poro" sem dar nenhuma amostra de sua arte - a não ser que o interessante panfleto que vem reproduzido embaixo, "10 Maneiras incríveis de perder tempo*" seja deles. Não sei, não ficou claro. Tudo isso intercalado por reproduções de trabalhos sempre belos e/ou interessantes assinados por Beatriz Lopes, Matheus xMarrecox, Jarlan Félix, Guilherme C., LoveLove6, Carla e Liz, Márcio Thiago e Mayra Vasconcelos.
Perfeito inclusive em suas imperfeições - quem disse que tudo tem que estar sempre em seu lugar, graças a Deus? Acho que foi Benito Di Paula. Enfim, discordo - o "linhas tortas" é uma pequena grande iniciativa, fruto da inquietação e da sempre saudável necessidade de comunicação de um pequeno grande homem - pequeno porque ele é um cara discreto, na dele, e é fisicamente magrinho, embora não tão baixinho, mas quem o conhece sabe que faz o que faz com dedicação e paixão e, acima de tudo e mais importante, tem um grande coração. Eu te daria o enderêço dele pra correspondência, já que no editorial ele pede: "não me mandem emails, me escrevam(cartas)". Só que ele não colocou o enderêço para correspondência no zine! Te falei: nem tudo, aqui, está no seu lugar. Graças a Deus.
Me despeço reproduzindo dois micropoemas do Miró que gostei muito:
Finalmente onde é que vamos parar?
O policial perguntou:
-tá indo pra onde boy?
-estou voltando, senhor
fui preso por desacato.
Não me contento em ter
um lugar para dormir
Quero ter mil lugares
para sonhar.
A
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A capa, ótima, traz um belíssimo desenho de Laura Athayde emcimado pelo título, escrito à mão com caneta azul-piscina de ponta porosa. Na primeira página, um ótimo editorial que resume em poucas (nem tanto, ocupa a página inteira) palavras o significado da obra para o seu autor. Depois temos uma excelente entrevista com o Medialunas, banda gaúcha que tocou recentemente por aqui, muito bem diagramada e enriquecida por belas fotos de Marcelinho Hora. No meio, uma pequena biografia e alguns exemplos da poesia - muito boa - de Miró, um poeta "marginal" (no sentido de à margem) pernambucano que ama São Paulo, apesar de andar sempre de ônibus por lá e de não ter sentido nada quando cruzou a esquina da Ipiranga com a avenida São João - eu também não. Aí temos um artigo chamado "10 películas feministas", bem intencionado porém um tanto quanto superficial - os comentários poderiam passar de duas linhas, parece texto de twitter - e controverso - nesse caso, sem novidade, pois qualquer lista já nasce sob o signo da controvérsia. No caso, eu tiraria um os filmes da Disney apontados, "Valente". É fraquinho demais. O outro, "Mulan", é legal, mas mesmo assim há inúmeras outras obras que mereciam ocupar seu lugar na lista, como "Libertárias", que trata da participação feminina durante a Guerra Civil espanhola. E, por fim, a divulgação de uma dupla de artistas chamada "poro" sem dar nenhuma amostra de sua arte - a não ser que o interessante panfleto que vem reproduzido embaixo, "10 Maneiras incríveis de perder tempo*" seja deles. Não sei, não ficou claro. Tudo isso intercalado por reproduções de trabalhos sempre belos e/ou interessantes assinados por Beatriz Lopes, Matheus xMarrecox, Jarlan Félix, Guilherme C., LoveLove6, Carla e Liz, Márcio Thiago e Mayra Vasconcelos.
Perfeito inclusive em suas imperfeições - quem disse que tudo tem que estar sempre em seu lugar, graças a Deus? Acho que foi Benito Di Paula. Enfim, discordo - o "linhas tortas" é uma pequena grande iniciativa, fruto da inquietação e da sempre saudável necessidade de comunicação de um pequeno grande homem - pequeno porque ele é um cara discreto, na dele, e é fisicamente magrinho, embora não tão baixinho, mas quem o conhece sabe que faz o que faz com dedicação e paixão e, acima de tudo e mais importante, tem um grande coração. Eu te daria o enderêço dele pra correspondência, já que no editorial ele pede: "não me mandem emails, me escrevam(cartas)". Só que ele não colocou o enderêço para correspondência no zine! Te falei: nem tudo, aqui, está no seu lugar. Graças a Deus.
Me despeço reproduzindo dois micropoemas do Miró que gostei muito:
Finalmente onde é que vamos parar?
O policial perguntou:
-tá indo pra onde boy?
-estou voltando, senhor
fui preso por desacato.
Não me contento em ter
um lugar para dormir
Quero ter mil lugares
para sonhar.
A
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quarta-feira, 19 de março de 2014
ECCE HOMO
Foto por Saulo Coelho Nunes |
Recebi também a visita nos estúdios da Aperipê FM, durante o programa de rock, da equipe do site "Cultura Interativa", para uma entrevista muito bacana que você pode ouvir AQUI. Aproveitei para também entrevistá-los ao vivo durante o programa, mas esta só ouviu quem acompanha nosso humilde programinha de rádio, que vai ao ar todo sábado a partir das 19H pela frequencia 104,9 FM em Aracaju e região, e na net via streaming em www.ideastek.net/aperipefm
Abaixo, a entrevista para o Noisey, na íntegra:
Noisey: É verdade que, quando você começou a fazer o zine Napalm, você nem sabia o que era conceitualmente um fanzine? Como foi que você se deu conta de que estava fanzinando?
Adelvan: Sim, é verdade. Eu nasci e morava em Itabaiana, cidade do interior do estado de Sergipe, e comecei a ser atraído pelo universo do rock através do que via na TV, principalmente - e quando eu falo TV, aqui, falo da TV aberta, pois na época, meados da década de 1980, não existia TV por assinatura. De vez em quando o Fantástico fazia uma matéria sobre o assunto e então subitamente a gente ficava sabendo que existia um bando de malucos autodenominados punks, em São Paulo, que tinham um comportamtento exótico e agressivo, e só. Com o Rock In Rio o estilo ganhou mais evidencia e eu comecei a me identificar com tudo aquilo. Tinha 14, 15 anos. Algumas revistas chegavam por lá, como a Bizz, Roll e Somtrês. Em Aracaju chegava a Rock Brigade, e foi através dessas publicações que eu fui me aprofundando naquele mundo, totalmente novo para mim. O ciúme que eu tinha de minha nascente coleção aliado à vontade de compartilhar as informações me levou a ter a iniciativa de fazer uma "apostilha" - sim, era assim que eu chamava! - xerocada para distribuir entre alguns amigos, na ânsia de que mais pessoas se interessassem também pelo assunto e eu tivesse, finalmente, com quem conversar. Era bem básico, apenas pequenas biografias de bandas clássicas, como Led Zeppelin, AC/DC, Metallica e Venom, mas, por ser feito no interior, algo bastante inusitado para a época, chamou a atenção dos proprietários da primeira loja especializada em rock no estado, a Disturbios Sonoros, que ficava em Aracaju. Eles me disseram que o que eu estava fazendo se chamava fanzine, uma espécie de revista de fã, e ajudaram a fazer uma tiragem maior - 100 cópias - da edição número 5, que passaram a vender na loja. Silvio, vocalista de uma das primeiras bandas punk/Hard Core do estado, a Karne Krua - em atividade até hoje - viu o zine por lá e decidiu me escrever. Ele me mandou uma pacote cheio de publicações, panfletos e informativos ligados à cena punk, e foi assim que eu fiquei sabendo que havia uma verdadeira rede subterrânea fazendo circular informações sobre um cenário do qual eu não fazia idéia da existência.
Noisey: O que rolou nesse hiato entre o Napalm e o Escarro Napalm? Você considera que as duas propostas têm parentesco entre sí?
Adelvan: Sim, O Escarro Napalm foi uma espécie de continuação mais amadurecida, na medida do possível, do meu fanzine anterior - cujo nome eu tirei da célebre casa noturna que havia em São Paulo. Eu cheguei inclusive a manter alguns correspondentes fora do estado, com o Napalm, mas muito poucos, três ou quatro, no máximo. Parei porque entrei na faculdade e não tinha mais tempo nem dinheiro sobrando. Daí, já no início da década seguinte, em 1991, saí da faculdade e me mudei para Aracaju. Fiz minha primeira viagem a São Paulo - e ao Rio, fui a Rock in Rio II, no Maracanã - e fiquei deslumbrado com toda aquela movimentação. Na viagem de volta me lembro bem que observando aquele caos urbano, metrô, marginal, fui me dando conta de que poderia dar minha contribuição daqui mesmo do meu cantinho do mundo, e resolvi me integrar à cena local, ajudando a organizar shows e voltando a fazer um fanzine. Dessa vez com mais cara de "revistinha", algumas folhas de papel A4/oficio dobradas e grampeadas na lombada. O "Napalm" era grandão, pesadão. O Escarro foi melhor planejado, fiz menor e com menos páginas para que pudesse tirar mais cópias. Lembro que tirei cerca de 20 cópias e mandei todas de uma vez para alguns enderêços que me chamaram a atenção na coluna "Run, Xerox", da revista Animal, de quadrinhos, que eu colecionava, e foi assim que tudo (re)começou. A primeira pessoa que respondeu foi o Fellipe CDC, de Brasilia, de quem sou amigo até hoje.
Quando saiu a primeira edição do Escarro Napalm, qual sua periodicidade e quanto tempo durou?
1991. Durou até 1995. Teve 7 edições "regulares" e uma edição especial. Não havia uma periodicidade defininda, mas eu geralmente conseguia fazer um a cada 6 meses, aproximadamente. O número 2 eu fiz numa edição conjunta com o Buracaju, zine que Silvio, da Karne Krua, editava desde os anos 80. Foi bem legal porque foi meio experimental, Silvio tava a fim de fugir um pouco daquela estética punk engajada e então fizemos uma coisa bem livre, com os assuntos que nos viessem à mente. Assinamos, inclusive, alguns textos juntos, como um no qual criamos uma banda fictícia extreamamente radical, satirizando os extremos do underground.
Noisey: A que tipo de música e ideias o Escarro Napalm mais dedicava espaço?
Adelvan: Isso era curioso, porque pelo nome do zine muita gente esperava que focasse apenas em coisas como grindcore ou Hard Core, mas eu sempre fui bastante eclético e curtia muito o que na época chamávamos de "guitar bands", por exemplo. Pixies, Sonic Youth, Nirvana, Dinosaur jr, Pin Ups, Killing chainsaw. Curtia muito rock industrial, também: Ministry, Nine Inch Nails, Laibach, e uma banda gaúcha chmada GDE - Grupo de Extermínio - da qual eu gostava muito. Focava na música independente, "underground", mas num aspecto bastante amplo, diversificado. Numa mesma edição havia uma entrevista com o No Sense, de Santos, pioneiros do grindcore nacional, e uma matéria sobre o Second Come, do Rio. Do nordeste tinha muito contato com a Câmbio Negro HC e o Eddie, de Pernambuco, e a Living In The Shit, de Maceió. Fazia também pequenas biografias das bandas locais que eu mais curtia, como a já citada Karne Krua e o Camboja, uma espécie de projeto industrial lo-fi genial que eu ainda considero, até hoje, umas das bandas mais criativas e interessantes que já tivemos por aqui - e olha que o cenário local hoje é riquissimo e bastante diversificado. Mas o Camboja marcou demais na época. Era diferente de tudo.
Sempre abria espaço também para os quadrinhos. Era muito amigo do Joacy jamys, do Maranhão, grande desenhista. Ele fez uma das melhores capas do Escarro - as duas primeiras, tosquíssimas, eu mesmo desenhei, mas depois recebi excelentes colaborações de verdadeiros artistas talentosíssimos, como o Edgar S. Franco, de Minas, Cláudio MSM, do RS, Henry Jaepelt, de Santa Catarina, Alberto Monteiro, do Rio, e Yury Hermuche, que morava em Brasilia e hoje está radicado em São Paulo. Toca no Firefriend.
Noisey: Houve alguma publicação temática ou especial, com uma história curiosa ou diferente para contar? Como no caso do Esquizofrenia, que fez uma edição inteira dedicada ao Indie Sueco, e o Aaah!!, que chegou a ter mais de 50 páginas em um de seus números?
Adelvan: A última encarnação do Escarro foi uma edição especial gigante e meio megalomaníaca que eu chamei de DELIRIUM. Ficou tão grande que eu não tinha como grampear, então resolvi lançar encadernado em espiral com capa em acrílico! Não deixou de ser uma espécie de retorno às origens das "apostilhas", mas desta vez bem mais caprichada e "charmosa". Desnecessário dizer que ficou também muito caro, e por isso acabou tendo uma tiragem reduzidíssima. Acho que não chegou a 30 exemplares. Mas não tinha nenhum tema específico não, seguiu a linha do fanzine regular mesmo, falando um pouco de tudo - Nietsche, Lampião, pornografia e resenhas do Segundo Juntatribo por Andhye Iore, de Maringá, e do BHRIF - sensacional festival que aconteceu em 1994 em Belo Horizonte e que trouxe o Fugazi ao Brasil pela primeira vez.
Noisey: O que motivou o fim da publicação e com que outros projetos similares você se envolveu depois? Você se empolgaria a voltar a fazer fanzine hoje em dia, nos moldes dos zines atuais, que geralmente se dedicam mais a essa coisa de papéis e impressões híbridas?
Adelvan: Tenho notado isso, que os zines de hoje em dia estão, no geral, bastante elaborados, visualmente e em termos de texturas, com tipos de papel diferenciados. Faz sentido, é uma forma de se ter um "plus" em relação aos arquivos digitais. Mas isso não é exatamente uma novidade, está mais para uma tendência. Haviam zines bastante elaborados e em formatos criativos, com dobras diferenciadas, nos anos 90 também. Uma coisa que muita gente elogiava nos nossos fanzines, tanto os meus quanto os de Silvio, era a qualidade das cópias. Procurávamos sempre as melhores máquinas da cidade para valorizar nosso trabalho - que não era pouco. Tanto que muita gente achava que era impresso em gráfica! Eu ficava puto com o Jamys, por exemplo, que sempre mandava ótimos zines, muito bem desenhados e diagramados, mas em cópias horriveis, às vezes ilegíveis. Então essa preocupação com a estética existia. Nisso fui bastante influenciado por Silvio, ele era especialmente bom em diagramação e vivia experimentando novas técnicas para obter um resultado visual diferenciado, como por exemplo quando começaram a aparecer as xerox coloridas. Lembro que ele lançou alguns fanzines em xerox azul, e eu usei no DELIRIUM uma técnica que aprendi com ele para deixar a capa em duas cores: primeiro imprimia uma parte da imagem numa cor, no caso, preto, e depois outra imagem por cima em outra cor, no caso, vermelho. O resultado ficou bem legal.
O fanzine acabou por puro cansaço. Simplesmente não conseguia mais responder às pilhas de cartas que só faziam crescer e se acumular. Passei uns bons 10 anos, de 1995 a 2005, aproximadamente, trabalhando "nos bastidores", digamos assim. Nunca deixei de frequentar a cena: tive uma loja especializada, ia a shows e apoiava os eventos na medida do que me era possivel, mas não tinha mais um veículo no qual pudesse me expressar. Tudo mudou à medida que a internet foi se popularizando, especialmente com a chegada dos blogs e das redes sociais. A principio exitei, era muita informação e eu me perguntava se o mundo realmente precisava de mais, mas aos poucos fui notando que a cena local, sim, carecia de mais e melhores registros. Então retomei o Escarro em formato de blog. Está lá, no ar. Atualizo sempre que posso. Produzo também um programa de rádio na emissora pública local, a Aperipê FM, que pode ser ouvido ao vivo on line todo sábado a partir das 19H em www.pdrock-sergipe.blogspot.com
Noisey: Qual era o seu envolvimento com a cena underground local à época do lançamento das primeiras edições? Você já tinha bastante acesso a novidades, ou já tinha essa coisa de ser um garimpador de música e uma veia politizada?
Adelvan: Aos poucos eu fui descobrindo a cena "alternativa", frequentando os shows e fazendo novos amigos. Ás vezes ajudava a produzir, mas minha onda era mais a de registrar, mesmo, daí os fanzines. Em todo o caso, já cheguei a fazer parte de uma banda, um dos muitos projetos de Silvio - sempre ele - que se chamava ETC - depois 120 Dias de Sodoma - e era uma espécie de noisecore pornográfico com influencias de todo tipo, do rap aos ritmos regionais - antes do Raimundos e do mangue beat! Foi uma espécie de desabafo esporrento de Silvio contra o patrulhamento ideológico "politicamente incorreto" dos punks, ao qual aderi entusiasticamente.
O acesso às novidades era bastante restrito, pelas próprias limitações tecnológicas da época mesmo. O grande canal era o dos zines, através dos quais a gente ficava conhecendo antes, inclusive, algumas bandas e nomes que posteriormente teriam projeção maior, como o Pato Fu - tinha contato com o guitarrista John via carta - e a Pitty, que eu conheci no Inkoma. Tocava muito aqui naquele velho esquema DIY, "colaborativo". Já os hospedei em minha casa, inclusive. Tudo foi mudando aos poucos, primeiro com a chegada da MTV, depois com a popularização da internet. Vivemos praticamente num mundo diferente, neste sentido, hoje em dia. Admirável mundo novo. Para o "bem" e para o "mal".
Noisey: A distribuição das publicações começou via correio, vendas em lojas/shows? Como era essa parte? A tiragem era grande, costumava esgotar rápido?
Adelvan: A tiragem variava entre 100 e 150 cópias. Geralmente trocadas por outras publicações ou demos de bandas. Quase sempre via correio. Caso a pessoa estivesse interessada e não tivesse nenhuma produção a oferecer, a moeda de troca eram sêlos. Muitas vezes com cola, para que fossem reutilizados - lavava-se os sêlos para que o carimbo dos correios saísse.
Noisey: Se você fosse pontuar os cinco momentos/fatos/bandas/discos mais importantes da música que o Escarro Napalm teve a chance de registrar em suas páginas, quais seriam?
Adelvan: Entrevistei a Gangrena Gasosa - sou fã - e o Patu Fu em início de carreira - pirei quando ouvi o primeiro disco deles, o "rottomusic de liquidificapum", que acabou chegando nas lojas daqui porque foi lançado pela Cogumelo, gravadora especializada em metal. Fui convidado, representando o nordeste, a participar de um seminário sobre fanzines durante o BHRIF, Belo Horizonte Rock Independe Fest, o festival que citei acima. Foram, provavelmente, os melhores dias da minha vida, pois a estrutura do evento era inacreditável. Dentre outras coisas, tomei chá com torradas com Ian McKaye do Fugazi enquanto ele dava uma entrevista para os camaradas Gabriela Dias, do zine/revista Panacea, e Eduardo Abreu, que fazia uma revista chamada 100 Tribos. Inesquecível.
Tenho também orgulho de ter ajudado a divulgar, na medida do possivel, as bandas daqui, como as já citadas Camboja e Karne Krua, e a Snooze. Fiz o primeiro informativo deles, em forma de fanzine.
Noisey: Qual a lição que a cultura dos fanzines dessa época em que o Escarro Napalm foi editado deixa para os veículos especializados em música da atualidade?
Adelvan: O "mal" do "mundo novo" a que me referi antes é justamente o excesso de informação, que deixa tudo confuso e, muitas vezes, nivelado por baixo. Tá tudo junto e misturado e isso, como tudo o mais na vida, traz um bônus e um ônus. O bônus é a democratização do acesso à informação, o ônus é a falta de um filtro. Também não é novidade, vinha muita merda inutil no meio das pilhas de zines que eu recebia mensalmente, atigamente. Mas, por conta do volume praticamente infinito de bytes ao qual temos acesso hoje em dia, fica mais difícil encontrar esse filtro. Mas aos poucos algumas publicações mais bem cuidadas e elaboradas vão se sobressaindo naturalmente, e as coisas tenderão a se normalizar, imagino. É uma luta constante esta, como a homogenização e o nivelamento rasteiro. Contra o "mais do mesmo".
por Eduardo Ribeiro
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quinta-feira, 13 de março de 2014
1964: Sete lições que já deveríamos ter aprendido sobre o golpe ...
Há 50 anos o Brasil foi capturado pela mais longa, mais cruel e mais tacanha ditadura de sua história. Meio século é mais que suficiente tanto para aprendermos quanto para esquecermos muitas coisas. É preciso escolher de que lado estamos diante dessas duas opções.
1ª. LIÇÃO: AQUELA FOI A PIOR DE TODAS AS DITADURAS
No período republicano, o Brasil teve duas ditaduras propriamente ditas. Além da de 1964, a de 1937, imposta por Getúlio Vargas e por ele apelidada de "Estado Novo". A ditadura de Vargas durou oito anos (1937 a 1945). A ditadura que começou em 1964 durou 21 anos. Vargas e seu regime fizeram prender, torturar e desaparecer muita gente, mas não na escala do que ocorreu a partir de 1964. Os torturadores do Estado Novo eram cruéis. Mas nada se compara em intensidade e em profissionalismo sádico ao que se vê nos relatos colhidos pelo projeto "Brasil, nunca mais" ou, mais recentemente, pela Comissão da Verdade.
Em qualquer aspecto, a ditadura de 1964 não tem paralelo.
2ª. lição: QUALIFICAR A DITADURA SÓ COMO “MILITAR” ESCAMOTEIA O PAPEL DOS CIVIS
Foram os militares que deram o golpe, que indicaram os presidentes, que comandaram o aparato repressivo e deram as ordens de caçar e exterminar grupos de esquerda. Mas a ditadura não teria se instalado não fosse o apoio civil e também a ajuda externa do governo Kennedy. O golpismo não tinha só tanques e fuzis. Tinha partidos direitosos; veículos de imprensa agressivos; empresários com ódio de sindicatos; fazendeiros armados contra Ligas Camponesas, religiosos anticomunistas. Todos tão ou mais golpistas que os militares.
Sem os civis, os militares não iriam longe. A ditadura foi tão civil quanto militar. Tinha seu partido da ordem; sua imprensa dócil e colaboradora; seus empresários prediletos; seus cardeais a perdoar pecados.
3ª. LIÇÃO: NÃO HOUVE REVOLUÇÃO, E SIM REAÇÃO, GOLPE E DITADURA
Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979) disse a seu jornalista preferido e confidente, Elio Gaspari, em 1981: "O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução".
Quase ninguém usa mais o eufemismo “revolução” para se referir à ditadura, à exceção de alguns remanescentes da velha guarda golpista, que provavelmente ainda dormem de botinas, e alguns desavisados, como o presidenciável Aécio Neves, que recentemente cometeu a gafe de chamar a ditadura de “revolução” (foi durante o 57º Congresso Estadual de Municípios de São Paulo, em abril de 2013). Questionado depois por um jornal, deu uma aula sobre o uso criterioso de conceitos: “Ditadura, revolução, como quiserem”.
A ditadura foi uma reação ao governo do presidente João Goulart e à sua proposta de reformas de base: reforma agrária, política e fiscal.
4ª. LIÇÃO: A CORRUPÇÃO PROSPEROU MUITO NA DITADURA
Ditaduras são regimes corruptos por excelência. Corrupção acobertada pelo autoritarismo, pela ausência de mecanismos de controle, pela regra de que as autoridades podem tudo. A ditadura foi pródiga em escândalos de corrupção, como o da Capemi, justo a Caixa de Pecúlio dos Militares. As grandes obras, ditas faraônicas, eram o paraíso do superfaturamento.
Também ficaram célebres o caso Lutfalla (envolvendo o ex-governador Paulo Maluf, aliás, ele próprio uma criação da ditadura) e o escândalo da Mandioca.
5ª. LIÇÃO: A DITADURA ACABOU, MAS AINDA TEM MUITO ENTULHO AUTORITÁRIO POR AÍ
O Brasil ainda tem uma polícia militar que segue regulamentos criados pela ditadura. A Polícia Civil de S. Paulo, em outubro de 2013, enquadrou na Lei de Segurança Nacional (LSN) duas pessoas presas durante protestos. A tortura ainda é uma realidade presente, basta lembrar o caso Amarildo. Os corredores do Congresso ainda mostram um desfile de filhotes da ditadura - deputados e senadores que foram da velha Arena (Aliança Renovadora Nacional, que apoiava o regime).
6ª. LIÇÃO: BANALIZAR A DITADURA É ACENDER UMA VELA EM SUA HOMENAGEM
Há duas formas de se banalizar a ditadura. Uma é achar que ela não foi lá tão dura assim. A outra é chamar de ditadura a tudo o que se vê de errado pela frente. O primeiro caso tem seu pior exemplo no uso do termo "ditabranda" no editorial da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009. Para a Folha de S. Paulo, a última ditadura brasileira foi branda, se comparada à da Argentina e à chilena.
A ditadura brasileira de fato foi diferente da chilena e da argentina, mas nunca foi “branda”, como defende o jornal acusado de ter emprestado carros à Operação Bandeirantes, que caçava militantes de grupos de esquerda para serem presos e torturados. Como disse a cientista política Maria Victoria Benevides, que infâmia é essa de chamar de brando um regime que prendeu, torturou, estuprou e assassinou?
A outra maneira de se banalizar a ditadura e de lhe render homenagens é não reconhecer as diferenças entre aquele regime e a atual democracia. Para alguns, qualquer coisa agora parece ditadura. A proposta de lei antiterrorismo foi considerada uma recaída ditatorial do regime dos “comissários petistas” e mais dura que a LSN de 1969. Só que, para ser mais dura que a LSN de 1969, a proposta que tramita no Congresso deveria prever a prisão perpétua e a pena de morte. O diplomata brasileiro que contrabandeou o senador boliviano Roger Pinto Molina para o Brasil comparou as condições da embaixada do Brasil na Bolívia à do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), a casa de tortura da ditadura. Para se parecer com o DOI-CODI, a Embaixada brasileira em La Paz deveria estar aparelhada com pau de arara, latões para afogamento, cadeira do dragão (tipo de cadeira elétrica), palmatória etc.
Banalizar a ditadura é como acender uma vela de aniversário em sua homenagem.
7ª. LIÇÃO: JÁ PASSOU DA HORA DE PARAR COM AS HOMENAGENS OFICIAIS DE COMEMORAÇÃO DO GOLPE
Por muitos e muitos anos, os comandantes militares fizeram discursos no dia 31 de março em comemoração (isso mesmo) à “Revolução” de 1964. A provocação oficial, em plena democracia, levou um cala-a-boca em 2011, primeiro ano da presidência Dilma. Neste mesmo ano também foi instituída a Comissão da Verdade.
A referência ao 31 de março foi inventada para evitar que a data de comemoração do golpe fosse o 1º. de abril – Dia da Mentira. A justificativa é que, no dia 31, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Minas Gerais, começou a movimentar suas tropas em direção ao Rio de Janeiro. Se é assim, a Independência do Brasil doravante deve ser comemorada no dia 14 de agosto, que foi a data em que o príncipe D. Pedro montou em seu cavalo para se deslocar do Rio de Janeiro para as margens do Ipiranga, no estado de São Paulo.
A palavra golpe tem esse nome por indicar a deposição de um governante do poder. No dia 1º. de abril, João Goulart, que estava no Rio de Janeiro, chegou a retornar para Brasília. Em seguida, foi para o Rio Grande do Sul e, depois, exilou-se no Uruguai mas só em 4/4/1964. Que presidente é deposto e viaja para a capital um dia depois do golpe?
O Almanaque da Folha é um dos tantos que insistem na desinformação: “31.mar.64 — O presidente da República, João Goulart, é deposto pelo golpe militar”. Entende-se. Afinal, trata-se do pessoal da ditabranda.
O que continua incompreensível é o livro “Os presidentes e a República”, editado pelo Arquivo Nacional, sob a chancela do Ministério da Justiça, trazer ainda a seguinte frase: “Em 31 de março de 1964, o comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora, Minas Gerais, iniciou a movimentação de tropas em direção ao Rio de Janeiro. A despeito de algumas tentativas de resistência, o presidente Goulart reconheceu a impossibilidade de oposição ao movimento militar que o destituiu”. De novo, o conto da Carochinha do 31 de março. Ainda mais incompreensível é o livro colocar as juntas militares de 1930 e de 1969 na lista dos presidentes da República. A lista (errada) é reproduzida na própria página da Presidência da República como informação sobre os presidentes do Brasil.
Nem os membros das juntas esperavam tanto. A junta governativa de 1930 assinava seus atos riscando a expressão “Presidente da República”. No caso da junta de 1969, o livro do Arquivo Nacional diz (p. 145) que o Ato Institucional nº. 12 (AI-12) "dava posse à junta militar" composta pelos ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Ledo engano.
O AI-12, textualmente: “Confere aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar as funções exercidas pelo Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva, enquanto durar sua enfermidade”. Oficialmente, o presidente continuava sendo Costa e Silva.
Há outro problema. Uma lei da física, o famoso princípio da impenetrabilidade da matéria, diz que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo – que dirá três corpos. Não há como três chefes militares ocuparem o mesmo cargo de presidente da República. Que república no mundo tem três presidentes ao mesmo tempo? O que os membros da Junta de 1969 fizeram foi exercer as funções do presidente, ou seja, tomar o controle do governo. O AI-14/1969 declarou o cargo oficialmente vago, quando a enfermidade de Costa e Silva mostrou-se irreversível.
Os três comandantes militares jamais imaginaram que um dia seriam listados em um capítulo à parte no panteão dos presidentes. A Junta ficaria certamente satisfeita com a homenagem honrosa e, definitivamente, imerecida.
Que história, afinal, estamos contando?
Uma história cujas lições ainda nos resta aprender.
Uma história que ainda não faz sentido.
(*) Antonio Lassance é cientista político.
ACM
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1ª. LIÇÃO: AQUELA FOI A PIOR DE TODAS AS DITADURAS
No período republicano, o Brasil teve duas ditaduras propriamente ditas. Além da de 1964, a de 1937, imposta por Getúlio Vargas e por ele apelidada de "Estado Novo". A ditadura de Vargas durou oito anos (1937 a 1945). A ditadura que começou em 1964 durou 21 anos. Vargas e seu regime fizeram prender, torturar e desaparecer muita gente, mas não na escala do que ocorreu a partir de 1964. Os torturadores do Estado Novo eram cruéis. Mas nada se compara em intensidade e em profissionalismo sádico ao que se vê nos relatos colhidos pelo projeto "Brasil, nunca mais" ou, mais recentemente, pela Comissão da Verdade.
Em qualquer aspecto, a ditadura de 1964 não tem paralelo.
2ª. lição: QUALIFICAR A DITADURA SÓ COMO “MILITAR” ESCAMOTEIA O PAPEL DOS CIVIS
Foram os militares que deram o golpe, que indicaram os presidentes, que comandaram o aparato repressivo e deram as ordens de caçar e exterminar grupos de esquerda. Mas a ditadura não teria se instalado não fosse o apoio civil e também a ajuda externa do governo Kennedy. O golpismo não tinha só tanques e fuzis. Tinha partidos direitosos; veículos de imprensa agressivos; empresários com ódio de sindicatos; fazendeiros armados contra Ligas Camponesas, religiosos anticomunistas. Todos tão ou mais golpistas que os militares.
Sem os civis, os militares não iriam longe. A ditadura foi tão civil quanto militar. Tinha seu partido da ordem; sua imprensa dócil e colaboradora; seus empresários prediletos; seus cardeais a perdoar pecados.
3ª. LIÇÃO: NÃO HOUVE REVOLUÇÃO, E SIM REAÇÃO, GOLPE E DITADURA
Ernesto Geisel (presidente de 1974 a 1979) disse a seu jornalista preferido e confidente, Elio Gaspari, em 1981: "O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução".
Quase ninguém usa mais o eufemismo “revolução” para se referir à ditadura, à exceção de alguns remanescentes da velha guarda golpista, que provavelmente ainda dormem de botinas, e alguns desavisados, como o presidenciável Aécio Neves, que recentemente cometeu a gafe de chamar a ditadura de “revolução” (foi durante o 57º Congresso Estadual de Municípios de São Paulo, em abril de 2013). Questionado depois por um jornal, deu uma aula sobre o uso criterioso de conceitos: “Ditadura, revolução, como quiserem”.
A ditadura foi uma reação ao governo do presidente João Goulart e à sua proposta de reformas de base: reforma agrária, política e fiscal.
4ª. LIÇÃO: A CORRUPÇÃO PROSPEROU MUITO NA DITADURA
Ditaduras são regimes corruptos por excelência. Corrupção acobertada pelo autoritarismo, pela ausência de mecanismos de controle, pela regra de que as autoridades podem tudo. A ditadura foi pródiga em escândalos de corrupção, como o da Capemi, justo a Caixa de Pecúlio dos Militares. As grandes obras, ditas faraônicas, eram o paraíso do superfaturamento.
Também ficaram célebres o caso Lutfalla (envolvendo o ex-governador Paulo Maluf, aliás, ele próprio uma criação da ditadura) e o escândalo da Mandioca.
5ª. LIÇÃO: A DITADURA ACABOU, MAS AINDA TEM MUITO ENTULHO AUTORITÁRIO POR AÍ
O Brasil ainda tem uma polícia militar que segue regulamentos criados pela ditadura. A Polícia Civil de S. Paulo, em outubro de 2013, enquadrou na Lei de Segurança Nacional (LSN) duas pessoas presas durante protestos. A tortura ainda é uma realidade presente, basta lembrar o caso Amarildo. Os corredores do Congresso ainda mostram um desfile de filhotes da ditadura - deputados e senadores que foram da velha Arena (Aliança Renovadora Nacional, que apoiava o regime).
6ª. LIÇÃO: BANALIZAR A DITADURA É ACENDER UMA VELA EM SUA HOMENAGEM
Há duas formas de se banalizar a ditadura. Uma é achar que ela não foi lá tão dura assim. A outra é chamar de ditadura a tudo o que se vê de errado pela frente. O primeiro caso tem seu pior exemplo no uso do termo "ditabranda" no editorial da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009. Para a Folha de S. Paulo, a última ditadura brasileira foi branda, se comparada à da Argentina e à chilena.
A ditadura brasileira de fato foi diferente da chilena e da argentina, mas nunca foi “branda”, como defende o jornal acusado de ter emprestado carros à Operação Bandeirantes, que caçava militantes de grupos de esquerda para serem presos e torturados. Como disse a cientista política Maria Victoria Benevides, que infâmia é essa de chamar de brando um regime que prendeu, torturou, estuprou e assassinou?
A outra maneira de se banalizar a ditadura e de lhe render homenagens é não reconhecer as diferenças entre aquele regime e a atual democracia. Para alguns, qualquer coisa agora parece ditadura. A proposta de lei antiterrorismo foi considerada uma recaída ditatorial do regime dos “comissários petistas” e mais dura que a LSN de 1969. Só que, para ser mais dura que a LSN de 1969, a proposta que tramita no Congresso deveria prever a prisão perpétua e a pena de morte. O diplomata brasileiro que contrabandeou o senador boliviano Roger Pinto Molina para o Brasil comparou as condições da embaixada do Brasil na Bolívia à do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), a casa de tortura da ditadura. Para se parecer com o DOI-CODI, a Embaixada brasileira em La Paz deveria estar aparelhada com pau de arara, latões para afogamento, cadeira do dragão (tipo de cadeira elétrica), palmatória etc.
Banalizar a ditadura é como acender uma vela de aniversário em sua homenagem.
7ª. LIÇÃO: JÁ PASSOU DA HORA DE PARAR COM AS HOMENAGENS OFICIAIS DE COMEMORAÇÃO DO GOLPE
Por muitos e muitos anos, os comandantes militares fizeram discursos no dia 31 de março em comemoração (isso mesmo) à “Revolução” de 1964. A provocação oficial, em plena democracia, levou um cala-a-boca em 2011, primeiro ano da presidência Dilma. Neste mesmo ano também foi instituída a Comissão da Verdade.
A referência ao 31 de março foi inventada para evitar que a data de comemoração do golpe fosse o 1º. de abril – Dia da Mentira. A justificativa é que, no dia 31, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Minas Gerais, começou a movimentar suas tropas em direção ao Rio de Janeiro. Se é assim, a Independência do Brasil doravante deve ser comemorada no dia 14 de agosto, que foi a data em que o príncipe D. Pedro montou em seu cavalo para se deslocar do Rio de Janeiro para as margens do Ipiranga, no estado de São Paulo.
A palavra golpe tem esse nome por indicar a deposição de um governante do poder. No dia 1º. de abril, João Goulart, que estava no Rio de Janeiro, chegou a retornar para Brasília. Em seguida, foi para o Rio Grande do Sul e, depois, exilou-se no Uruguai mas só em 4/4/1964. Que presidente é deposto e viaja para a capital um dia depois do golpe?
O Almanaque da Folha é um dos tantos que insistem na desinformação: “31.mar.64 — O presidente da República, João Goulart, é deposto pelo golpe militar”. Entende-se. Afinal, trata-se do pessoal da ditabranda.
O que continua incompreensível é o livro “Os presidentes e a República”, editado pelo Arquivo Nacional, sob a chancela do Ministério da Justiça, trazer ainda a seguinte frase: “Em 31 de março de 1964, o comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora, Minas Gerais, iniciou a movimentação de tropas em direção ao Rio de Janeiro. A despeito de algumas tentativas de resistência, o presidente Goulart reconheceu a impossibilidade de oposição ao movimento militar que o destituiu”. De novo, o conto da Carochinha do 31 de março. Ainda mais incompreensível é o livro colocar as juntas militares de 1930 e de 1969 na lista dos presidentes da República. A lista (errada) é reproduzida na própria página da Presidência da República como informação sobre os presidentes do Brasil.
Nem os membros das juntas esperavam tanto. A junta governativa de 1930 assinava seus atos riscando a expressão “Presidente da República”. No caso da junta de 1969, o livro do Arquivo Nacional diz (p. 145) que o Ato Institucional nº. 12 (AI-12) "dava posse à junta militar" composta pelos ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Ledo engano.
O AI-12, textualmente: “Confere aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar as funções exercidas pelo Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva, enquanto durar sua enfermidade”. Oficialmente, o presidente continuava sendo Costa e Silva.
Há outro problema. Uma lei da física, o famoso princípio da impenetrabilidade da matéria, diz que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo – que dirá três corpos. Não há como três chefes militares ocuparem o mesmo cargo de presidente da República. Que república no mundo tem três presidentes ao mesmo tempo? O que os membros da Junta de 1969 fizeram foi exercer as funções do presidente, ou seja, tomar o controle do governo. O AI-14/1969 declarou o cargo oficialmente vago, quando a enfermidade de Costa e Silva mostrou-se irreversível.
Os três comandantes militares jamais imaginaram que um dia seriam listados em um capítulo à parte no panteão dos presidentes. A Junta ficaria certamente satisfeita com a homenagem honrosa e, definitivamente, imerecida.
Que história, afinal, estamos contando?
Uma história cujas lições ainda nos resta aprender.
Uma história que ainda não faz sentido.
(*) Antonio Lassance é cientista político.
ACM
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segunda-feira, 10 de março de 2014
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