segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Circo Voador: A Nave de Maria Juçá

“Que merda é essa que você está fazendo? Esses imbecis não sabem tocar, não sabem cantar e essa p* de guitarra distorcida de uma nota só está destruindo meus tímpanos. Você está de sacanagem comigo. Estou com os ouvidos desatarrachados”

A bronca de Tim Maia era endereçada a Maria Juçá, produtora e programadora do “Rock Voador”, o espaço do Circo – sim, aquele mesmo, que nasceu no Arpoador e cresceu e na Lapa – que, todos os sábados, abria suas portas para o nascente novo rock nacional, sempre cuidando de evitar purismos e puritanismos e caprichar na mistura. Naquela noite trazia, ao lado do “síndico”, a banda pioneira do punk rock carioca Coquetel Molotov. E terminou bem, com um verdadeiro congraçamento nos camarins, para onde os punks se dirigiram depois de terem sido conquistados pelo carisma do maior soulman brasileiro – que se dizia, também, o primeiro “punk” do Brasil.

Arpoador, nos primórdios ...
Juçá não aprendia: quando promoveu o primeiro Festival punk do Rio de Janeiro, convidou os nomes mais representativos da nascente e incipiente cena local para tocar ao lado dos já consagrados – no underground, pelo menos – paulistanos do Ratos de Porão, Inocentes e Cólera. Mas convidou também, para abrir a noite, o Paralamas do Sucesso! E mais: com uma participação especial, em uma das músicas, de Paula Toller, do kid Abelha!!! A mistura, pra lá de heterodoxa – e indigesta, para os puristas – só deu certo porque Herbert Vianna era – é – muito gente fina e tinha bom transito entre todas as tribos.

Esta é apenas uma das muitas – muitas MESMO – histórias vividas ao longo do tempo – três décadas, e contando - sob a lona da Lapa. Histórias como a da apresentação do Titãs no início da carreira para apenas 13 pagantes; da noite em que Celso Blues Boy quase matou Serguei, usando-o como suporte para seu pedal de whah whah; do primeiro encontro de Raul Seixas com Marcelo Nova num show do Camisa de Vênus, em pleno palco; da primeira vez das bandas de Brasília, antes da fama, na Cidade Maravilhosa; do “Queremos”, um grupo de amigos “indie” que usou o Circo como suporte para fazer com que as bandas que só tocavam em São Paulo voltassem a se apresentar no Rio; dos sem noção que vira e mexe aprontam algo, como no episódio em que uma lata de cerveja foi arremessada na testa do inofensivo James Taylor; da dor de cabeça da produtora ao “peitar” Tim Maia quando ele(sempre ele!), às voltas com duas prostitutas, deixou de fazer o show programado para agosto de 1984 - Tim chegou a ficar “de mal” de Juçá, injuriado com a faixa em que estava escrito “Tim Maia está rouco, Tim Maia está louco” que ela colocou na porta do Circo; ou as lembranças dos bicões que infestavam os camarins para disputar com os artistas cervejas bebidas em copos plásticos - estratégia para fazer a loura render mais. Copos de plástico que, vejam só, foram usados, também, para servir champagne a Madonna – sim, ela mesmo! A diva-mor!

Juçá
Tudo isso e os já célebres “pitis” dos rockstars, do pop ao punk: de Lulu Santos, que se indignou ao saber que teria que dividir a mesma porta de entrada com o público – depois o Circo cedeu à pressão e criou uma entrada exclusiva para os artistas, devidamente batizada, claro, de “portão Lulu Santos” - a Jello Biafra, que exigiu um banho de Jacuzzi antes de subir ao palco – esta última tem uma explicação: Jello ficou “puto” porque havia pedido que seu nome não fosse associado ao dos Dead Kennedys, que já havia acabado, no material de divulgação. Como não foi atendido, fez a birra de propósito, como vingança, e acabou conseguindo o tal banho. Na banheira de Dado Villa Lobos ...

Na verdade sempre soube que tinha sido na casa do Renato Russo, mas segundo o relato de Alexandre Rossi, o “Rolinha”, no livro, foi na do Dado. Bom, ele deve saber mais do que eu, já que foi ele que levou o Jello lá. Ou não! Não há um compromisso rigoroso com a apuração dos fatos nos relatos, é tudo dito de acordo com o que vem à memória e transcrito, aparentemente, da forma em que foi dito. E muita coisa foi dita, por muita gente: mais uma vez a generosidade de Juçá se faz presente e ela praticamente se torna uma editora de seu próprio livro, cuja narrativa é entremeada de relatos de terceiros – muitas vezes com relatos “terceirizados” dentro dos próprios relatos “de terceiros”! O formato, não muito comum, poderia ter prejudicado a fluência do texto, mas não foi o caso, felizmente ...

É uma trajetória acidentada, cheia de altos e baixos, triunfos e “perrengues”. O pior deles foi, provavelmente, quando o Circo foi arbitrariamente fechado pelo prefeito César Maia, a pedido de seu sucessor/apadrinhado Luiz Paulo Conde, em represália à expulsão pelo público de sua comitiva, que insistia em comemorar lá a vitória na eleição, mesmo sem ter sido convidado. Detalhe: era dia de show punk, com Garotos Podres e Ratos de Porão. Juçá ficou na pior, psicológica e financeiramente – afinal, o Circo era, também, seu “ganha pão” – e chegou a fazer greve de fome na tentativa de ser pelo menos atendida em seu gabinete por “sua excelência” – acaba de falecer, o canalha. Espero que esteja devidamente instalado no inferno, no colo do capeta! Ela conta como foi: “Durante a minha luta pela volta do Circo, uma “brincadeira” que durou 8 anos, eu fiquei totalmente sem grana. Cheguei a vender sapato para poder me sustentar. Até morar com o ex-marido e a nova esposa dele eu fui… Foram momentos realmente difíceis. E nesse período eu entendi muito o que significa a fome, o você passar fome, o você não ter o que comer. Por isso, depois de tudo o que passei, eu tenho o hábito de dividir tudo. Todo dia, de alguma forma, eu divido algo com alguém. Uma comida, um dinheiro, alguma coisa”.

O filme
Não parece haver limites para o poder de barganha, jogo de cintura a energia criativa de Maria Juçá. Algo que você pode facilmente comprovar devorando o calhamaço de quase 700 páginas – 666, se descontados os índices e apêndices - que ela lançou ano passado de forma independente, sem editora – mas com apoios importantes, do Governo do Estado e da Ambev. Não é uma obra perfeita: faltou edição, o que se reflete em alguns erros de ortografia e no ritmo da leitura, muitas vezes prejudicado por uma certa desorganização na ordem em que os capítulos são apresentados. Há também um excesso de informação - tipo, enumeração de todos os membros de quase todas as bandas - que deixa a leitura chata, com cara de release. em determinados momentos. Mas nada que comprometa a obra como um todo.

“Circo Voador: A Nave” – o livro, é o relato de uma guerreira da cultura, querida e amada por todos que a conhecem e também pelos que, como eu, acompanham seu trabalho à distancia. Desde 1982.

Só fui conhecer o Circo Voador “in loco”, em carne e osso, recentemente. E vejam só: calhou de ter sido na noite do dia 20 de junho de 2013, no auge das manifestações de rua que tomaram o Brasil de assalto – e de surpresa. Fui para ver finalmente, também pela primeira vez, uma de minhas bandas favoritas, a Gangrena Gasosa, abrindo para o Cannibal Corpse. Em meio ao caos! Literalmente! A policia caçava os mascarados pelas ruas da Lapa, com a utilização, inclusive, de carros blindados, os famigerados “caveirões”. Bombas de gás lacrimogênico explodiam por todos os lados e a nuvem tóxica invadia o espaço do circo, que é aberto, o tempo inteiro, fazendo com que os shows tivessem que ser interrompidos inúmeras vezes para que os presentes pudessem se recuperar dos efeitos. Foi assustador, mas sensacional! Um verdadeiro Batismo de fogo.

Você, que nunca foi lá, precisa ir também! Pelo menos uma vez na vida! Encare isso como uma missão, como uma tarefa religiosa, igual à recomendação aos muçulmanos para que visitem Meca. Se não puder procure, pelo menos, ver o filme: “Circo Voador: A Nave” acaba de estrear em formato de documentário para o cinema. Não vi ainda, mas vou seguir o exemplo da Juçá e colocar aqui as impressões de quem sabe e viu, tanto o filme quanto incontáveis noites sob aquela lona mágica, devidamente relatadas em seu ofício de jornalista. Com apalavra, Marcos Braggato:

Era para ser um documentário, mas bem que tem roteiro de drama. Para ser levada às telas, a história da casa de shows que foi o embrião do rock brasileiro dos anos 1980 (e que recebeu todas as cenas dali pra frente) tem tantas idas e vindas, fins e recomeços, paixões e emoções que fica difícil de ser contada somente sob a ótica remissiva. Mesmo porque, no fundo, no fundo, o Circo Voador não é exatamente uma casa de shows - embora seja -, mas, como costuma se referir a ele a boss Maria Juçá, trata-se de um conceito, um projeto, agora convertido em uma saga cinematográfica intitulada “Circo Voador – A Nave”.

O doc cobre toda a história do Circo, desde a versão meteórica que tomou de assalto a Arpoador, durante o verão de 1982 e sua posterior “desautorização”, passando pelo pouso na Lapa e pela interrupção de oito anos, por conta de desmandos de políticos, até a estrutura definitiva que se tem nos dias de hoje. A diretora Tainá Menezes se valeu de um extenso trabalho de pesquisa, o que realça no filme a quantidade de imagens de shows da cada época abordada, e, diferentemente do usual em documentários dos novos tempos, não economiza com cortes abruptos, a pretexto de dar “dinâmica jovem” ou algo que o valha à narrativa.

Assim, é possível se deliciar com trechos longos como o da Blitz tocando no Circo do Arpoador ainda com um imberbe Lobão como baterista; uma performance de Luiz Melodia como dançarino, no meio de “Estácio, Holly Estácio”; Tim Maia usando a verve genial para reclamar dos “bicões” que invadiam seu camarim, verdadeira instituição da lona voadora; Barão Vermelho cantando “Eclipse Oculto” com Caetano Veloso, com direito a beijo em Cazuza no final; e o emocionante discurso de despedida de Rita Lee, entre outros. Depoimentos muito loucos como os de Tom Zé, que ainda aparece na inefável “noite das calcinhas”, em que colheu várias peças da plateia, tentam explicar o que, no fim das contas, é o Circo Voador. Tarefa realmente impossível, e que não é a intenção da produção.

Marcelo D2, malandro da Lapa nato e ex-vendedor de camisetas ali pelo Centro, conta como fazia pala pular a grade do Circo para participar do movimento, já que os tempos ainda eram de dureza. Marcelo Yuka, muito antes de ter banda, se virava no mesmo quesito, e por pouco não deu o primeiro mosh de cadeirante em show do Bad Brains. Ambos hoje têm o olhar diferenciado sobre a lona, o mesmo que o filme tenta mostrar, mais com a bem sacada edição de imagens, que de certa forma se completam por si só, do que com discursos por vezes obtusos. Acertadamente, não há narração no filme, só os depoimentos e a sucessão de registros de artistas sob a lona.

Pólo aglutinador da revolução do rock nacional nos anos 80, junto com a Fluminense FM, o Circo Voador, contudo, tem seu trecho mais prolífico abreviado no filme. Não são muitos os atores desse processo inseridos na história, sobretudo de outros estados. Para estes, destaque para as falas de Marcelo Nova, do Camisa de Vênus, e de Clemente, do Inocentes, que, porém, abordam mais o ecletismo da programação, provavelmente estimulados pelo roteiro, do que da importância da Circo Voador para o alavancar de suas carreiras. Temas como as famosas desavenças entre produtores e a criação da vizinha Fundição Progresso também ficaram de fora, mesmo porque a produção, toda independente, foi bancada pelo próprio Circo Voador - ressalte-se.

João Gordo aparece em destaque por ter sido escolhido para Cristo no episódio do fechamento ilegal do Circo, na noite em que os punks entusiastas de Ratos de Porão e Garotos Podres, aos gritos, expulsaram espetacularmente um grupo de políticos do Circo Voador. O então prefeito César Maia exorbitou do poder que tinha, atendeu a um capricho de seu sucessor eleito, Luiz Paulo Conde, falecido este ano, e mandou fechar o Circo. O próprio Maia aparece no filme se gabando do contrário, de ter reaberto o Circo Voador oito anos mais tarde, o que de fato aconteceu, mas só depois de muita luta da produtora Maria Juçá, que ganhou uma ação contra a prefeitura na justiça e só conseguiu a construção do Circo como é hoje depois de meticulosa costura política. Toda a questão é bem esclarecida em “A Nave”.

Regulado por questões de orçamento e disponibilidade de verbas, o documentário levou cerca de cinco anos para ser concluído, e - repita-se – não contou com o apoio de leis de incentivo á cultura, como é comum em produções cinematográficas no Brasil. Mais que a história sendo contada e registrada para todo o sempre, o filme é precisa oportunidade para as novas gerações perceberem como as coisas podem ser feitas do nada, desde que sejam simplesmente iniciadas. Assim como foi o rock brasileiro dos anos 80. E assim como foi e continua sendo com o Circo Voador. Para ver o trailer do filme, clique aqui.

Por fim, um “Bônus text”: Um relato saboroso – e recente, publicado originalmente no Blog do André Bracinsky – de Alexandre Rossi, o “Rolinha”, sobre sua visita à Disneylândia distópica de Banksy, em Londres. Para que você tenha uma idéia da verve do cara – tem muito texto dele no livro da Juçá. Na verdade ele é, praticamente, um co-autor do livro ...

“O Mais Despontador Parque Temático do Mundo. Quando descobri que Banksy, o cara que redefiniu o conceito de arte pra toda uma geração, havia montado uma subversão bizarra da Disneylândia, tive que ir lá ver qual era. E qual não foi minha surpresa quando descobri que ele não tava de sacanagem quando sugeriu que seria uma experiência tão desoladora em tantos sentidos.
Como se a superdesvalorização do real não bastasse pra te desanimar, conseguir uma entrada para o Parque de Depressão do Banksy era uma martírio indigno: os ingressos só eram liberados poucos dias antes, e gente do mundo todo disputava uma entrada pro Bemusement Park. Isso significa que, se eu quisesse pagar um preço minimamente razoável na passagem e hospedagem, comprando tudo com antecedência, teria que arriscar sem saber se iria conseguir entrar.

Penei por dias, acordando de madrugada pra ficar dando refresh a cada dois segundos no site pra conseguir comprar um ingresso, sem sucesso. A cada mudança de planos de viagem, eu entrava mais no vermelho, ou melhor, o vermelho entrava em mim. Comecei a achar que era mais uma formidável conspiração do Banksy pra esfregar o quão capitalista e otário estava sendo. E quase tive certeza disso quando os últimos ingressos acabaram. Se ele queria me desapontar, havia conseguido.

Por sorte havia gente muito mais capitalista do que eu. Os cambistas virtuais estavam vendendo ingressos a 400 libras, mas eu milagrosamente consegui um a 40. Quando o ingresso chegou, mais um desgosto: era pessoal e intransferível. Existia uma enorme probabilidade de me mandarem voltar da porta, o que seria realmente deprimente. Daí me lembrei de uma frase que estava estampada no material promocional do “parque”: “Não é arte se não tem o potencial de ser um desastre”. Ok, ao menos poderia emoldurar minha miséria e leiloar na Sotheby’s.

O parque ficava em Weston Super Mare, um balneário britânico que faz Cabo Frio parecer Sanit-Tropez. A pessoa mais jovem com a qual eu cruzei nas primeiras horas parecia o avô do John Cleese. O que eles entendiam como praia era uma lodaçal com uns quatro quilômetros do início do calçadão até o “mar”. Era uma espécie de Iguabinha britânica. O taxista falou que vários turistas ficam presos com lama até o joelho tentando dar um mergulho. É ali, naquele cenário desolador, que fica o que um dia foi o Tropicana - que chegou a ter uma das maiores piscinas da Europa - onde Banksy passava as férias com a a família e que agora estendia sua decadência por vários metros de orla, assombrando os passantes. Me lembrou o Albanoel, aquele parque temático que o Papai Noel de Quintino ergueu no caminho pra Angra e hoje ainda pode ser visto, abandonado, por quem passa na estrada.

Quando cheguei descobri, com espanto, que estavam vendendo ingressos na porta! VENDENDO INGRESSSOS! Pra que eu tinha me empenhado tanto? Foda-se: a três libras, valia a pena comprar um novo ingresso pra garantir que eu não tivesse que passar pelo aperto de ficar sofrendo na fila sem saber se ia conseguir entrar ou não.

Ao tentar entrar na fila, um típico lad, sentado na cerca, me barrou com um guarda-chuva como se fosse o pinguim do Batman, perguntando se eu sabia o que estava fazendo. Respondi que ia comprar ingressos e ele retrucou do jeito mais cínico: “E você acha que vai conseguir?” Já despido de toda a perspectiva, retruquei: “E o que eu tenho a perder?”. Ele só levantou o guarda-chuva complementando: “Não se anime, entrar na fila não significa que você vai conseguir. Provavelmente não vai”.

Não vou falar que os ingressos acabaram bem na minha hora pra não parecer que era pessoal. Eles acabaram bem na vez das minas que estavam na minha frente. Os Dislamalanders fecharam o guichê na cara delas, lamentando a falta de sorte, e saíram sem olhar pra trás. Eu saí da fila resignado, portando meu desonesto passe pro mundo da desanimação e da injustiça.
Já estava preparado pra não entrar, quando cheguei na porta, uma instalação do Americano Bill Barmisnki que parecia uma versão suecada – como no “Rebobine Por Favor” – de uma entrada de aeroporto com versões de papelão de um aparelho de raios-X. Tenho que dizer que fiquei desapontado quando a luz verde do scanner acendeu e o guardinha com chapéu de Mickey, com a feição mais apática que eu já vi, me mandou entrar. Mas eu nem tinha noção do quão desoladora ainda seria aquela experiência.

Dizer que o aquele lugar era deprimente configurava uma injustiça. A visão daquele castelo da Cinderela semidestruído – ou semiconstruído, sei lá - do coletivo inglês Block9, com um camburão no meio do chafariz, cercado pelos lambe-lambes com mensagens demotivacionais da ídola do Instagram Wasted Rita e dos sinais de trânsito da Jenny Holzer, faria aquele Gari Sorriso do carnaval carioca chorar copiosamente e o Solzinho feliz dos Teletubbies se pôr e nunca mais sair. E a trilha sonora expelida por aqueles alto-falantes em forma de corneta? Imagino que tenha sido o que aquele quarteto de cordas tocava enquanto o Titanic afundava. A chuva e o frio que castigavam aquela noite deixavam tudo ainda mais sorumbático. E pensar que eu havia empenhado até a última prega para chegar ali.

Logo fui procurar um lugar quente e seco e fugi pra galeria. Ao adentrar aquele galpão, que porrada! Foi como estar nadando no Tâmisa e ser abalroado pelo barco que os Sex Pistols alugaram pra tocar na comemoração do Jubileu da Rainha em 77. Me senti como o Alex de “Laranja Mecânica”, com aquela traquitana que mantinha os olhos abertos sendo submetido a um tratamento de choque ao som da Nona Sinfonia. Cada jato de spray, cada pincelada, cada pedaço de ferro retorcido estava ali com o intuito de te tirar do torpor consumista, te deixar desconfortável na condição de espectador, te dar um sacode existencial.

De cara, você era recepcionado pelo cogumelo atômico que era tipo uma casinha na árvore, criado pelo australiano Dietrich Wegner, também responsável por um feto exposto numa vending machine. Obras do espanhol Paco Pomet, do californiano Jeff Gillete e do palestino Sami Musa não nos deixavam esquecer do caos que assola o mundo hoje em dia. Uns quadros da série “Making Something Cool Every Day” do Brock Davis, do Josh Keyes e as colagens pop do Jani Lenonen davam um descanso colorido ao clima de ruína imperante. De vez em quando, alguém tentava interagir com as esculturas, como com a cadeira medieval do canadense Maskull Lassere, que parecia uma armadilha de urso, e com os padrões florais da lituana Severija Incirauskaité–Kriauneviciené aplicados a um carro que deu PT. Eis que, no meio daquele bruhahá, ouve-se uma versão esquizóide de “Staying Alive”. Seguindo a música, dou de cara com um daqueles carrinhos de bate-bate sendo guiado por um esqueleto com roupa de ceifador, obra do Banksy que ainda foi responsável por uma das esculturas mais fofas dali: uma sucuri com um Mickey sendo digerido no seu interior.

O último pavimento reservava o que havia de mais legal: Uma megamaquete mostrando uma cidade sitiada com nada menos que três mil micropoliciais montada por Jimmy Cauty, o cara que tacou fogo em um milhão de libras em uma performance no deserto. Na saída, ainda tinha umas três obras do Lu$h, um porralouca australiano que fez tanta merda que foi proibido de entrar na Inglaterra.

Ainda deu tempo de visitar o acidente com a carruagem de abóbora da Cinderela com uns paparazzi urubuzando o cadáver – que a inglesada olhava como se testemunhasse a morte da Lady Di - dar um rolê no Austronaut’s Caravan - um claustrofóbico trailer que emulava a gravidade zero criados pelos retardados Tim Hunkin e seu amigo Andy Plant - e vomitar um falafel sem glutén antes de ser enxotado por um cosplay do vocalista do Gossip com o humor pior que o daqueles garçons do Bar Lagoa.

Ainda sob o efeito de ter tido o que restava da minha inocência vandalizada por aquela holocáustica experiência, parti pra Veneza pra dar um confere na Bienal. Percorrer a pomposidade e suntuosidade do Arsenale e do Giardinno foi como padecer em um show de oito horas e meia do Emerson Lake and Palmer depois de ter visto os Ramones tocando no CBGB. Aquela ida ao Dismaland me deixou com a certeza que, como profetizou Gil Scott-Heron, a revolução não foi mesmo televisionada, mas grafitada, hypada e regurgitada na nossa cara.

E que cada geração tem a Disney que merece.

por Adelvan “Kenobi”
Marcos Braggatto
Alexandre Rossi

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