Paradoxo: enquanto o sonho ruía para os headbangers que
fizeram a infeliz escolha de ir ao megalomaníaco e malfadado Metal Open Air em São Luiz do Maranhão,
Paulo André, em Olinda, comemorava o recorde de público da noite de sexta, dia
20 de abril de 2012, no Abril pro rock: 15.000 pessoas lotaram o Chevrolet Hall
para ver, principalmente, a volta do Los Hermanos. Para o dia seguinte ele nos disse, resignado,
em um encontro informal na porta da pousada em que estávamos hospedados, que
esperava 5.000 almas no máximo – era a média de público na chamada “noite das
camisas pretas”. Estava enganado. Cerca de 7.000 “rockeros locos” (como diria o
pessoal do Brujeria) compareceram para conferir aquela que foi, provavelmente,
a noite mais pesada e ensandecida de toda a história do evento, que completava
20 anos.
Cheguei cedo porque não queria perder Leptospirose nem Test. Não perdi, e não me arrependi: o Test, uma dupla jazzy/grind de São Paulo que ficou célebre por tocar na rua na porta de shows de bandas como DRI e Slayer, tocou no chão. Ficou difícil de ver, mas deu pra curtir – e muito! Excelente perfomance de João “Kombi” e, principalmente, do baterista, Thiago Barata. Entre caras (feias) e bocas (escancaradas) e descidas de madeira na pele dos bumbos e caixas, um som híbrido, pesado, rápido e alucinante porém com passagens lentas e climáticas, beirando o experimentalismo. O publico reagiu muito bem, agitando ao ponto de quase impossibilitar a apresentação.
Já o Leptospirose tocou bem mais tarde, num dos palcos – na verdade um dividido em dois. Antes deles, Hellbenders, de Goiânia. Fazem aquele “stoner” rock garageiro já característico da capital de Goiás, com bons riffs, ritmo cadenciado (às vezes lembrava o Helmet) e vocais gritados vociferando letras em inglês. Mas mesmo assim ficaram deslocadas naquela noite quase que inteiramente dedicada aos extremos do rock. Não colaborou, também, o visível nervosismo dos caras, que parecem não estar acostumados a encarar públicos daquele tamanho. Se tivesse que dar uma nota de zero a dez, tascava-lhes um 6,5.
Nota 9,9689 (a la Igor Matheus) para o Leptospirose. Hardcore
rápido, curto e grosso, muito original e bem humorado. Quique Brown é uma
figura impar, com seus cabelos encaracolados emoldurados por um boné colorido e
engraçado e seu bigodinho de cafajeste que só não o deixa com cara de cafajeste
porque ele não é um cafajeste. Muito pelo contrário, é um cara muitíssimo gente
boa, e você não precisa conviver com ele pra saber disso, basta observar sua
postura no palco, sempre muito vibrante e comunicativa. Interviu de forma bem
humorada até quando chamou a atenção de um dos seguranças que, segundo ele,
estava agredindo o público. “Amigo, sossega aí, deixa a molecada se divertir.
Os caras trabalharam a semana inteira, isso aqui é a novelinha deles. Aliás,
deixa eu apresentar a banda: eu sou a Eva Wilma, aquela é a Gloria Meneses e lá
atrás, o Tarcisio Meira. Nós somos o Leptospirose” – ele disse (isso ou algo
muito parecido). Antológico.
Mas veja bem: comunicação, no caso, é figura de linguagem. Na verdade Quique parece ter um um olhar bastante próprio e diferenciado sobre o mundo e por isso seu discurso (assim como suas letras) é carregado de nonsense. Ele geralmente fala umas coisas meio sem sentido, aumenta o volume da guitarra para produzir microfonia e, por cima do ruído, anuncia o nome da próxima música, que geralmente não faz sentido também. Foi assim com “Aqua Mad Max”, em que ele lembrou que quando chove em Recife tudo fica alagado (ok, isso faz sentido), "Em maio todo mundo janta pipoca na minha cidade" (essa tem um clipe fantástico, veja aqui), "mula poney" (what?), "Um dia realmente feliz em nossas vidas será aquele em que receberemos uma notificação de nossa empresa favorita nos convidando para ir a um hotel ( com a gente pagando é claro)" e “O instrumental dessa musica vai para o I Shot Cyrus e a letra que se foda pra quem é, nem vale a pena tocar nesse assunto”, dedicada a um cara lá que eu não sei quem é nem entendi a explicação que ele deu, mas segundo relatos de pessoas com o ouvido menos danificdo, foi para o Boka, do Ratos de Porão - e do I Shot Cyrus.
Muito bom o show da Lepto. Mas a verdadeira destruição
sonora da noite viria a seguir, num clima totalmente oposto: sério, pesado e
compenetrado. O olhar do vocalista da Cripple Bastards, Giulio The Bastard, é
assustador, e sua postura de palco, sempre erguendo o microfone com as duas
mãos acima da cabeça, ajuda a criar a impressão de que o mundo está prestes a
desabar a qualquer momento. E desaba, várias vezes. E quando desaba ele apenas
estica um dos braços, torce a cabeça para o lado e vocifera no microfone. O
publico acompanhou de perto a insanidade produzida no palco, o que eu pude
comprovar pessoalmente ao cismar de chegar o mais próximo possível da grade de
proteção e, para isso, ter que atravessar uma roda de pogo bem mais violenta
qua a tradicional “ciranda cirandinha vamos todos cirandar” que costuma vigorar
por lá e ser esmagado contra uma parede humana. Foram os cinco minutos mais
intensos da noite pra mim, que logo em seguida bati em retirada, quase sem ar –
sou asmático.
Me chamou a atenção no show da Cripple Bastards que Giulio apresentou a banda em inglês. Não entendi. Mas entendi quando ele avisou que a próxima seria Ratos de Porão. Eles estavam lá para comemorar os 30 anos da banda e 20 do LP “Anarkophobia” – também não entendi, é de 1990! Mas FODA-SE, vamos nessa! Por conta deste enfoque em seu disco mais “metaleiro”, foi uma apresentação diferente, com musicas que eles não costumam tocar em shows, a exemplo de “Morte ao rei” e “sofrer”, que na época foi “hit” mas hoje em dia está meio esquecida. O Gordo estava, como sempre, com o capeta no corpo, e já foi logo disparando impropérios contra a produção do Metal Open Air do Maranhão, falando que eles “têm que ir pra cadeia, devem ter embolsado a grana e ainda fuderam com a história de 30 anos que nós fizemos com os gringos”. No meio do show, ele reclama por várias vezes de um suposto excesso de reverb que persistia apesar de seus apelos. Quando foi informado que era por conta da acústica da casa falou “que se foda então” e tome mais cacete no pé do ouvido, agora já com músicas mais conhecidas como “Aids, Pop, Repressão”, “Beber Até Morrer” e “Crucificados pelo Sistema”.
Num dado momento, o Gordo pergunta ao público o que eles
queriam ouvir. Não deu pra entender a resposta, mas nem precisava: “Commando”,
do Ramones. Deduzi (e acertei) que a seguinte seria outra que eles tocam
sempre, “Work for never”, do Extreme Noise Terror, mas fui surpreendido com
outra igualmente clássica d“os mais punks do mundo”, segundo o gordo: “Bullshit
propaganda”. Dobradinha do ENT num show do RDP, nada mal. Excelente, eu diria.
Quase tão bom quanto o que eu tinha visto deles dois anos antes, no mesmo Abril
pro rock, que eu considero o melhor show do Ratos que eu já vi na vida – e olha
que vi muitos!
Duas bandas gringas fechariam a noite, mas as cortinas
demoravam a se abrir. Uma voz anuncia nos alto-falantes que, por conta de um
atraso no vôo, Exodus e Brujeria teriam que passar o som lá mesmo, no meio do
evento. E aí foram os chatíssimos sons de baquetas martelando peles de bateria
e irritantes testes de guitarra e microfone. Não demorou muito, no entanto: sem
nenhum aviso (as bandas normalmente eram apresentadas no telão, entre anúncios
dos patrocinadores), as cortinas se abriram e lá estavam eles, os “pendejos
cabrones marijuanos locos de México”, com os braços direitos cruzados acima do
peito e em posição de sentido. Esperava ver a cabeleira de Bozo de Shane
Embury, do Napalm Death, no baixo, mas ele não estava lá. Em seu lugar, um cara
torto, sem camisa, empunhando o instumento numa alça de cinto de balas. Na
guitarra, outro desconhecido – soube disso depois das apresentações, já que
estavam todos usando máscaras, com exceção de Pinche Peache, o gnomo chicano
que é “a cara publica” do Brujeria, segundo o próprio Brujo, um dos vocalistas
– que estavam mais pra MCs do capeta. Completando o trio, “Fantasma”.
O show começa um tanto quanto caótico, com o áudio embolado
e quase inaudível, conseqüência óbvia da falta de tempo para a passagem de som,
mas aos poucos as coisas vão se ajustando e logo já dava pra ouvir melhor,
apesar de ainda um tanto quanto abafada, o som da guitarra, que soava numa
afinação parecida com a dos discos, mas com uma pegada diferente, mais solta –
normal esta diferença, já que nas gravações as seis cordas eram comandadas por
Dino Cazares, do Fear Factory, um mestre na precisão monolítica dos riffs. No
mais, quem esperava alguma explosão de violência e agressividade deve ter se
decepcionado, pois o clima era mais para uma celebração “chapada” regada a
musicas pesadas mas em sua maioria lentas e cadenciadas. “Colas de rata”, uma
das exceções, embalou a parte do publico mais “apressadinha”. Destaque para as
expressões corporais e faciais de Pinche Peache, sempre inquieto. Foi ele quem
trouxe lá de trás do palco o mascote da banda, uma cabeça decepada que foi
devidamente fincada num pedestal ao lado da bateria e lá ficou, impassível.
“Como vão ustedes cabrones locos de Brasil?”, pergunta Brujo
em portunhol impecável. Mesma “língua” usada por Peache para apresentar seus
camaradas, notadamente Fantasma, “compañero de muchas maconhadas, y otras
cositas mas”, e o literalmente pesado Nicholas Barker, considerado um dos
bateristas mais rápidos da cena e que,
além do Brujeria, já tocou com Cradle of Filth, Dimmu Borgir, Old Man's
Child, Lock Up, Monolith e Driven By Suffering.
O show prossegue e em “La migra” chamam o Gordo do Ratos ao
palco. Antológico. A ideologia (se é que ela existe) por trás dos temas das
musicas da banda é, no entanto, meio confusa: ao mesmo tempo em que enaltecem
traficantes sanguinários como o colombiano Pablo Escobar (este, quero crer, por
ironia) e o revolucionário mexicano Emiliano Zapata (aqui falando sério, eu
acho), têm uma musica chamada “Anti Castro”, que defenesta o líder da revolução
cubana. Se dizem, também, anticomunistas, chegando a sentenciar que
“comunismo/satanismo/PRI es lo mismo” – o PRI é o Partido Revolucionário
Institucional, “cria” da mesma revolução mexicana liderada por Zapata e que
esteve no poder por décadas no México. Vai entender ...
Aliás, não, não precisa entender: é porralouquice assumida
mesmo, “duela a quiem duela”. Os caras são malucos. Num dado momento, ensaiam
uma dancinha escrota que beira o ridículo, com um atrás do outro segurando os
microfones como se fossem seus membros genitais; durante a execução de
“División del Norte”, enquanto um mar de sete mil braços se ergue no ar, o
pequerrucho Pinche Peache, sempre inquieto, desce à grade para agitar com o
público, assustando os seguranças; e já perto do final da apresentação, com a
banda executando “Matando Güeros” (quase um hino para eles), Brujo espanca as
caixas de retorno com um facão enquanto Pinche exibe o tal mascote da cabeça
decepada. Daí pra frente, o show vira uma rave ao som de uma versão pervertida
de “Macarena” com o refrão modificado para um enstusiasmado “êêê, Marijuana,
hay!”. Gostei. Foi divertido, e diversão é solução, sim. É solução pra mim.
Por fim, os “headliners” da noite: Exodus! Um dos fundadores
do thrash metal na “Bay Área” de San Francisco dos anos 80. Há quem diga,
inclusive, que eles, e não o Anthrax, deveriam estar na turnê Big 4. Concordo.
São de 1980, os novaiorquinos começaram no ano seguinte. Vai ver não queriam
deixar tudo 100% californiano ...
Mas vamos ao show: Começou muito bem e seguiu num bom ritmo
até o final – que demorou pra cacete! Quase duas horas de porrada no pé do
ouvido! Eu, particularmente, não sou um grande fã da banda, da qual conheço
muito pouca coisa, mas reconheço, evidentemente, seu talento. É uma verdadeira
locomotiva thrash comandada pelo guitarrista Gary Holt e muito bem encarnada no
energético, apesar de fora de forma, vocalista, Rob Dukes, que terminou a
apresentação com a camisa literalmente ensopada de suor – ele a espremia e o
caldo escorria abundante. Não sem antes, ainda no comecinho do show, dar um
senhor esporro em um dos seguranças, que estava, em suas palavras, “beating the
guys” da platéia. Na verdade o cara não sossegou enquanto o espancador não foi
retirado, sob vaias do público e irônicos “bye byes” proferidos por ele ao
microfone. Bela atitude – demonstra respeito pelos fãs.
De minha parte, a festa já estava quase encerrada. Meus
ouvidos, devo confessar, já estavam saturadas de tanta guitarra distorcido. Ta
bom, ok, valeu, Exodus, missão cumprida ... mas que nada, os caras simplesmente
se recusavam a parar de tocar. Os fãs devem ter saído completamente saciados, o
que é justo, pois com isso eles compensaram sua primeira e tumultuada passagem
pelo Recife há algum tempo, num show curtíssimo feito às pressas.
A cereja do bolo foi mais uma apresentação do Test na porta
do Chevrolet Hall no final da noite. Eu havia sido avisado que aconteceria, mas
acabei esquecendo e perdi por ter ficado batendo papo com uns amigos. Nada
demais, especialmente se comparado ao drama de dois "brothers" que
haviam viajado de Aracaju pra lá quase que exclusivamente para ver o Cripple
Bastards mas se atrasaram e perderam o som dos italianos malditos. Era de dar
pena a desolação expressa em suas faces ...
Saldo final pra lá de positivo. De fraco, mesmo, só as duas
bandas pernambucanas que abriram a noite – não são ruins, mas são pouco
criativas. Sinceramente, não dá mais pra agüentar musicas formulaicas recheadas
de clichês, como a pra lá de batida sequencia guitarra numa só caixa, depois
noutra e, por fim, nos demais canais. Isso pra não falar da pose de headbanger
milimetricamente desleixado dos vocalistas, com seus cabelos esvoaçantes e bem
cuidados do tipo que deixa as caçadoras de escalpo com as calcinhas em brasa. Um deles, acho
que do Pandemmy, parecia o vocalista do Capim Cubano, uma banda brega de
pseudocalipso que fez (não sei se ainda faz, espero que não) sucesso por aqui
...
E foi isso. Ano que vem tem mais, se Deus quiser e o capeta
permitir.
Fotos: Snapic e Marcelinho Hora.