Antes da revolução, era rara em Portugal a família que não tivesse alguém combatendo nas guerras das colônias na África. O serviço militar durava quatro anos, opiniões contra o regime e contra a guerra eram severamente reprimidas pela censura e pela polícia.
Antes de abril de 1974, os partidos e movimentos políticos estavam proibidos, as prisões políticas estavam cheias, os líderes oposicionistas estavam exilados, os sindicatos eram fortemente controlados, a greve era proibida, as demissões fáceis e a vida cultural estritamente vigiada.
A liberdade em Portugal começou com a transmissão, pelo rádio, de uma música até então proibida. Os cravos enfiados pela população nas espingardas dos soldados acabaram virando o símbolo da revolução, que encerrou, ao mesmo tempo, 48 anos de ditadura fascista e 13 anos de guerra nas colônias africanas.
Em apenas algumas horas, as Forças Armadas ocuparam locais estratégicos em todo o país. Ao clarear, multidões já cercavam as emissoras de rádio à espera de notícias. A operação, calculada minuciosamente, havia pego o regime de surpresa. Acuado pelo povo e pelos militares, o sucessor de Salazar, Caetano Marcelo, transmitiu sua renúncia por telefone ao líder dos golpistas, general António de Spínola. Transportado de tanque ao aeroporto de Lisboa, Marcelo embarcou para o exílio no Brasil. Em quase 18 horas, havia sido derrubada a mais antiga ditadura fascista no mundo.
Artistas, políticos e desertores começaram a retornar do exílio. As colônias receberam a independência. A caça às bruxas aos responsáveis pela ditadura acabou não acontecendo e as dívidas do governo anterior foram todas pagas. Os únicos a oferecer resistência foram os agentes da polícia política. Três pessoas morreram no conflito pela tomada de seu quartel-general.
Ao voltar do exílio em Paris, Mário Soares, o dissidente mais popular do governo Salazar, foi recebido por milhares de pessoas na estação ferroviária de Lisboa. Cravos vermelhos foram jogados de helicóptero sobre a cidade e só se ouvia a famosa canção Grândola, vila morena, que já havia se tornado o hino da revolução.
Em 1974, Portugal era um país atrasado, isolado na comunidade internacional, embora fizesse parte da ONU e da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Era o último país europeu a manter colônias e vinha travando uma longa guerra contra a libertação de Angola, Moçambique e Guiné. O regime de Salazar, iniciado em 1926, havia conseguido manter-se através da repressão e fora tolerado pelos países vencedores da Segunda Guerra Mundial.
Em 1º de maio a esquerda, fortemente engajada, mostrou sua força em Lisboa, enquanto trabalhadores rurais do Alentejo expulsavam latifundiários e banqueiros eram desapropriados. A esquerda europeia viu em Lisboa um palco ideal para os movimentos frustrados de 68. A pacata e católica população portuguesa, por seu lado, sentiu-se ignorada e, a partir do norte conservador, iniciou um movimento contra os extremistas.
Em 1975, aconteceu a dupla tentativa de golpe, da esquerda e da direita, contra o governo socialista, levando Portugal à beira da guerra civil. A ala militar extremista de esquerda obteve o domínio da situação em novembro de 1975. Após as eleições do ano seguinte, o general António Ramalho Eanes foi eleito presidente.
O Partido Socialista, com Mário Soares, assumiu um governo minoritário. A crise econômica o levou à renúncia em 1978. Entre 1979 e 1980, o país teve cinco primeiros-ministros. Em 1985, o governo foi assumido por Aníbal Cavaco Silva e Mário Soares tornou-se presidente no ano seguinte. Em 1986, Portugal ingressou na então Comunidade Econômica Europeia, hoje União Europeia.
Salazar
Uma série de ditaduras marcou o mundo ocidental a partir dos anos 20 do
século passado. Numa sequência que durou mais de vinte anos, Mussolini
inaugurou o cortejo, ao tomar o poder na Itália, em 1922. Seguiram-se
Salazar em Portugal (1932), Hitler na Alemanha (1933) e o general Franco
na Espanha (1939). Atravessando o Atlântico, o Brasil teve a “glória”
de figurar no cortejo, com o golpe de Getúlio Vargas, implantando o
Estado Novo em novembro de 1937.
Os ditadores chegaram ao poder por diferentes vias, numa conjuntura em
que a democracia liberal se enfraquecera e os regimes chamados fortes
pareciam ser a fórmula regeneradora das nações doentes, corroídas pela
desordem. Benito Mussolini se tornou
Il Duce após um passeio,
mitificado pelos seus seguidores: a marcha triunfal sobre Roma. António
Salazar assumiu o poder sem abalos. Adolf Hitler foi chamado pelo
presidente Hindenburg para salvar a Alemanha. Francisco Franco se
destacou pela via sangrenta da guerra civil, da qual saiu vitorioso.
Nesse cortejo de ditadores da Europa Ocidental, segundo o grau de
sinistra importância, Hitler ficou em primeiro lugar e Salazar na última
posição, embora estivesse longe de ter exercido uma “ditadura branda”.
Não por acaso, Hitler, Mussolini e Franco foram objeto de excelentes
biografias. Salazar, pelo contrário, recebeu poucas atenções fora de
Portugal. E é de um historiador português, Filipe Ribeiro de Meneses,
uma qualificada e minuciosa biografia do ditador português. O livro foi
escrito originalmente em inglês, sob o título de
Salazar: A Political Biographye. Não há nessa edição o subtítulo publicitário “Biografia definitiva”,
que consta da edição brasileira. Traduzido para o português de Portugal,
o livro tem para nós, brasileiros, um sabor especial, pelo palavreado
luso, que lhe dá um curioso gosto de autenticidade.
É de se perguntar: como é possível atravessar as mais de 800 páginas de
uma biografia, cujo personagem central não é uma figura especialmente
atraente? Se a minha receita servir, li o livro com grande interesse,
prestando menos atenção em minúcias que me parecem secundárias para o
leitor brasileiro.
António de Oliveira Salazar, ditador sem brilho, destituído de carisma,
teve, entretanto, uma longa carreira política: comandou Portugal por 36
anos. Seus traços de personalidade, seu percurso na condução de um
pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por muitos abalos, o caráter
sui generis do regime autoritário português são motivos suficientes para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa.
alazar
nasceu numa pequena cidade, com um desses nomes evocativos de uma
aldeia lusa: Santa Comba Dão. Único filho homem da família, viveu a
infância num período em que seu pai, vindo da pobreza, alcançara
condição mediana. Ao chegar à adolescência, abriam-se para ele dois
caminhos numa sociedade que gerava poucas oportunidades econômicas: o
sacerdócio e a carreira militar. Salazar entrou para o seminário de
Viseu e chegou a receber ordens menores, a caminho de tornar-se
sacerdote. Apesar de os padres representarem forte influência na sua
formação católica conservadora e no seu moralismo, não seguiu carreira
eclesiástica. Seguiu um rumo mais prestigioso, ao ingressar na
Universidade de Coimbra em 1910, onde se especializaria em economia e
finanças.
Na vida privada, Salazar foi um solteirão, atendido por uma governanta
cinco anos mais velha do que ele durante todo o tempo em que viveu em
Lisboa. A natureza das relações entre Salazar e Maria de Jesus Caetano
Freire, que o país conhecia como dona Maria, deu margem a muita
especulação, mas nada de certo se sabe a respeito. Em compensação, dois
casos amorosos de Salazar, depois de chegar ao governo, tornaram-se
conhecidos. Ambos envolveram relações complicadas: um deles, com uma
sobrinha casada; o outro, com Maria Emília Vieira, jovem de vida boêmia,
em Paris e na noite lisboeta. Por mais que ele fosse discreto em seus
affaires, não era o “monge castrado” como o chamou num panfleto seu opositor Cunha Leal, banido, aliás, para os Açores.
Os casos de Salazar estão bem longe do ideal de família e do papel da
mulher que pregava em seus escritos. A família, segundo ele, era “a
célula social cuja estabilidade e firmeza são condição essencial do
progresso”. Quanto à mulher, o maior elogio que se poderia fazer-lhe
resumia-se a um epitáfio romano: “Era honesta, dirigia a casa; fiava
lã.”
o
plano das ideias, além da raiz fundamental – o catolicismo conservador
–, ele foi bastante influenciado pela Action Française, movimento de
direita em que figuravam nomes como Charles Maurras, Maurice Barrès e
Gustave Le Bon. Este último impressionou Salazar pela relativização das
instituições políticas existentes e por não acreditar na capacidade
intelectual da grande massa.
A aproximação de Salazar com a política se deu a partir de seus escritos
em jornais católicos de província, que tinha em grande conta porque
considerava “a imprensa católica do país a mais séria, a mais ponderada,
a única decente e limpa, que pode entrar em todas as casas, sem
ministrar à donzela incauta o veneno do romance perigoso e sem tecer,
sob atraentes formas, a apologia dos criminosos”.
A República portuguesa nunca chegou a se estabilizar. Ficou dividida
entre as correntes partidárias, as conspirações monárquicas, a anarquia
administrativa e o desequilíbrio orçamentário – herança maldita dos
tempos da monarquia, derrubada em 1910. Em dezembro de 1917, um golpe de
Estado abriu caminho para a ditadura militar de Sidónio Pais. Figura
extraordinária esse Sidónio Pais! Sempre rodeado de belas mulheres,
charmoso, carismático, populista, era pessoalmente o oposto de Salazar,
que então iniciava seus passos na carreira política. A “República nova”
de Sidónio, porém, durou pouco porque o “presidente-rei” foi morto a
tiros, num atentado nas ruas de Lisboa, em dezembro de 1918.
Portugal voltou a ser uma democracia cuja morte anunciada percorreu os
anos caóticos de 1920 a 1926. Após uma tentativa fracassada, Salazar
elegeu-se deputado por um pequeno partido, o Centro Católico Português.
Mais tarde, manifestaria desprezo por essa breve experiência
parlamentar. Em 1920, oito primeiros-ministros passaram de raspão pelo
poder e os assassinatos políticos se tornaram moeda corrente. Por fim,
em 1928, uma facção militar desfechou um golpe de Estado. A ditadura,
como o regime democrático anterior, seria marcada pela instabilidade não
só política, como também econômica e financeira.
Foi um quadro conhecido: gastos crescentes, arrecadação insuficiente,
déficits orçamentários. Os ministros da área econômica consideravam
essencial obter um empréstimo internacional que ancorasse as finanças
portuguesas e permitisse ao país concentrar investimentos em áreas
estratégicas. Mas, como lembra Ribeiro de Meneses, havia grande
desconfiança de tudo o que fosse português, a ponto de ter-se inventado
um verbo em francês –
portugaliser –,sinônimo de virar tudo pelo avesso.
Nesse quadro, a estrela do professor Salazar subia. Adversário do
empréstimo externo, ele propôs, num relatório amplamente divulgado,
medidas fiscais duras para tirar Portugal de uma situação difícil. Entre
outras vantagens, o relatório o aproximou dos grandes grupos
econômicos, que não eram muitos. Não tardaria a ser chamado para assumir
o Ministério das Finanças, como homem providencial. Na véspera de
completar 39 anos, tomou posse do cargo, em 27 de abril de 1928. Cada
vez mais prestigiado, em meio às divisões no Exército e na sociedade,
Salazar foi nomeado presidente do Conselho de Ministros, em junho de
1932. Na realidade, o cargo de primeiro-ministro era mero formalismo.
Salazar tornou-se um ditador civil que comandou Portugal quase até sua
morte.
Em linhas gerais, as medidas drásticas tomadas por ele, seja como
ministro das Finanças, seja como ditador, surtiram efeito. A obstinação
pelo equilíbrio orçamentário assim como um choque fiscal, suportado
sobretudo pelas camadas pobres, possibilitaram o reequilíbrio econômico
de Portugal. O país atravessou relativamente bem a Grande Depressão
mundial iniciada em 1929, mesmo sofrendo um corte significativo dos
recursos enviados pelos emigrantes portugueses, provenientes
principalmente do Brasil. Ribeiro de Meneses rebate a tese corrente de
que o Estado Novo luso se caracterizasse pelo imobilismo. Ao contrário, o
regime salazarista representaria uma tentativa frustrada, mas nem por
isso menos séria, de permitir a Portugal se desenvolver e se
modernizar, dentro da ordem e do respeito às hierarquias sociais.
Salazar tornou-se ditador de uma forma bem diversa de seus
contemporâneos.Mussolini apelou para a mobilização popular e para o
nacionalismo. Supostamente, a Itália, após a Primeira Guerra Mundial,
fora desprezada por seus parceiros maiores, vencedores da guerra.
Hitler, além de utilizar o terrível ingrediente da conspiração mundial
judaico-comunista, inflamou parte da população alemã, batendo na tecla
do nacionalismo, ao insistir no direito da Alemanha de ocupar um lugar
central na Europa depois de ter sido humilhada pelo Tratado de
Versalhes. Franco subiu ao poder como vitorioso em uma guerra civil
desastrosa, para ele uma cruzada cristã contra ateus e comunistas.
em longe da retórica ribombante dos ditadores de
fascio
e suástica, Salazar notabilizou-se por ter salvado Portugal do caos,
por uma via que se pode chamar de burocrática. Em torno dele, não se
elaborou um culto da personalidade, apesar de seu prestígio na maioria
da população. Tinha aversão a aparições públicas, recusava-se a
participar de comícios e, para completar, era mau orador e não aceitava
baixar o nível dos discursos ou ceder a slogans fáceis de lembrar.
Nem por isso deixou de zelar por sua imagem, a fim de obter ganhos
políticos. Por iniciativa do Secretariado de Propaganda Nacional – órgão
que lembra o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP do Brasil do
Estado Novo – e dele próprio, sempre se apresentou ao público como um
homem humilde, destituído de ambições políticas, que se dispusera a
salvar o país, sem medir sacrifícios pessoais. Não fora essa elevada
missão, permaneceria na cátedra de Coimbra – um remanso diante das
dificuldades de dirigir Portugal. Em maio de 1935, o
Diário da Manhã,
órgão do regime, lançou essa pérola ao comentar um discurso do
ditador: “SALAZAR, ou o ANTIDEMAGOGO: Seria essa a sua melhor
definição. O demagogo dirige-se aos maus instintos... Salazar dirige-se
às consciências bem formadas, aos impulsos de altruísmo e de
equilíbrio, à pequena luz da Graça que dorme, latente, no íntimo de
todas as criaturas.”
O salazarismo enfatizava a religiosidade, o nacionalismo, o
anticomunismo, a crítica a um liberalismo que a modernidade do século XX
não podia contemplar. O nacionalismo era “territorialmente
satisfeito”, não se destacava pelo expansionismo, e sim como um
instrumento para abafar a luta de classes. O importante era se dar bem
com os vizinhos – a Espanha em particular – e manter o
status quo nas “províncias de além-mar”.
O anticomunismo tornou-se virulento quando eclodiu a Guerra Civil
Espanhola, em 1936. Para o regime, os republicanos e os “vermelhos” eram
a mesma coisa, e ambos tinham pretensões negativas em relação a
Portugal. Anos mais tarde, o perigo comunista viria a ser uma das
justificativas de Salazar para tentar manter as colônias da África.
À primeira vista, pareceria que a ditadura salazarista era mais um
regime fascista implantado na Europa Ocidental. A oposição portuguesa,
na sua difícil luta política, tinha razões práticas para não olhar
Portugal como um caso à parte. Mas, na verdade, apesar de seus namoros
com o fascismo, o salazarismo distinguiu-se das correntes totalitárias
tanto internas quanto externas.
omo
nota Ribeiro de Meneses, no início do Estado Novo talvez a principal
ameaça ao regime e a seu líder não viesse da esquerda, mas da
extrema-direita, formada pelos integralistas e pelo Movimento
Nacional-Sindicalista, de Rolão Preto. Os nacional-sindicalistas tendiam
a transformar seu movimento, o dos “Camisas Azuis”, em um partido
único. Insistiam em se constituir uma verdadeira representação
corporativa da sociedade. Atacavam sem tréguas o comunismo e o
capitalismo internacional. Batalhavam pela criação de um clima social
propício ao surgimento de um líder carismático, condição que Salazar,
sabidamente, não reunia.
Salazar preferiu seguir outro caminho – o da implantação de um regime
autoritário, apoiado num setor do Exército. Se a garantia da ordem era
cara aos militares, muitos oficiais, especialmente os fascistas e
integralistas, faziam fortes restrições a Salazar, seja por sua atitude
de transferir a cúpula do poder dos militares para os civis, seja pelos
cortes orçamentários que impuseram restrições ao aparelhamento das
Forças Armadas.
Como reafirmou Salazar nos últimos anos de vida, os limites do Exército
eram claros: a instituição não poderia imiscuir-se nas lutas políticas,
nem constituir um partido político, devendo cingir-se a suas tarefas
específicas. Mais ainda, Salazar nunca pretendeu se apoiar na
mobilização popular, como pretendiam as organizações fascistas, nem na
força de um partido único. A União Nacional, lançada no início da
ditadura, não teria as características de um partido único nos moldes do
fascismo e, principalmente, do nazismo. Uma observação do historiador
António Costa Pinto, citada no livro de Ribeiro de Meneses, lembrando
que a União Nacional foi criada por decreto governamental, destaca com
ironia: “A legislação sobre o partido foi passada do mesmo modo que a
legislação sobre as ferrovias. A administração controlava-o, adormecia-o
ou revitalizava-o de acordo com a situação de momento.”
alazar
se referia a Portugal como país de “elites paupérrimas”. Mas ele pouco
fez para ampliar essas elites. Na linguagem de hoje, o primeiro
escalão do governo e o aparelho administrativo foram recrutados,
essencialmente, nos meios universitários. Além do Exército, apesar das
reticências, o regime contou com o apoio da Igreja Católica. Quem, como
eu, viveu aqueles tempos associou ao salazarismo dois nomes: o do
general Carmona, que foi presidente de Portugal, e o do
cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Cerejeira.
O formato autoritário do regime deveu-se tanto às convicções de Salazar
quanto a seu pragmatismo, na medida em que ele levava em conta as
lentas mudanças da sociedade portuguesa. Comparando o Estado Novo
salazarista com o implantado no Brasil, ao lado de muitas semelhanças
há, pelo menos, uma diferença básica: no âmbito de uma sociedade em
crescimento, na qual a industrialização ganhava ímpeto, Getúlio não
poderia prescindir de uma política para a classe trabalhadora,
configurada no populismo.
No terreno ideológico, se Salazar não se afinava com o fascismo, adotava
alguns de seus modelos. Um bom exemplo é o Estatuto do Trabalho
Nacional, de setembro de 1933, inspirado na Carta del Lavoro de
Mussolini, de 1927. Quase dez anos depois, a Consolidação das Leis do
Trabalho, baixada no Brasil no curso do Estado Novo, teve a mesma
inspiração.
O Estado devia ser o centro da organização política e seu papel seria de
“promover, harmonizar e fiscalizar todas as atividades nacionais”,
tendo como órgão principal o Poder Executivo. Esse Estado forte deveria
intervir em todas as atividades e, decisivamente, no campo econômico,
em face da crise de que padecia o capitalismo. Ao mesmo tempo, era
necessário reconciliar a nação e o Estado, de uma forma nunca conseguida
desde o despontar do liberalismo em Portugal, em 1820. A reconciliação
teria de ser alcançada pela educação, por um lado, e, por outro, pelo
advento de uma nova Constituição, capaz de reavivar o país, ao refletir
realisticamente seus corpos sociais ativos: a família, a paróquia, o
município e a corporação econômica. Nessa reconciliação, o papel
dominante caberia ao Estado, ao qual a nação deveria se integrar.
Entretanto, Salazar insistia que havia limites morais e espirituais à
ação estatal, em áreas que, para além da política, pertenciam à
consciência individual. Essas áreas privadas serviam como baluarte
teórico e prático contra a extrema-direita, e para manter os católicos
em papel relevante. Nesse passo, Salazar se distinguia de seus mestres
da Action Française, ao rejeitar a noção maurrasiana de
la politique d’abord – a política antes de tudo.
ma
expressão muito utilizada na época definiu o regime salazarista como
uma “ditadura constitucional”. A expressão tinha razão de ser. Em abril
de 1933, uma nova Constituição, aprovada por plebiscito, transformou o
Estado numa República unitária e corporativa. A Constituição previa a
eleição de um presidente pelo voto direto, cabendo a ele nomear um
conselho de ministros e o seu presidente. Outros órgãos institucionais
eram a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa.
Teoricamente, a maior soma de poderes cabia ao presidente, mas foi o
primeiro-ministro – Salazar, como é óbvio – quem concentrou as decisões
governamentais. A Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa tinham um
papel secundário. Ambas se reuniam apenas três meses por ano e esta
última desempenhava papel opinativo. A Assembleia Nacional era uma
caricatura de um Parlamento, mesmo porque Salazar – tal como outros
ditadores de seu tempo – considerava o Parlamento uma instituição
caduca, expressão de um liberalismo moribundo e palco para disputas
estéreis dos partidos políticos. O corporativismo era parte de um
programa político católico que Salazar sempre defendera. Na prática,
porém, as organizações corporativas tiveram como funções prioritárias
exercer uma forma de controle social, desenvolver o capitalismo nacional
e reforçar o papel do Estado.
consolidação de Salazar no poder foi rápida. A oposição formava um
arco que ia dos republicanos conservadores, empurrados para fora da
ditadura militar e do Estado Novo, ao Partido Comunista Português, o
PCP, liderado por Álvaro Cunhal. Até o fim da Segunda Guerra Mundial,
os opositores tiveram escassa repercussão. O desinteresse pela
política, a censura aos meios de comunicação, a repressão dos
dissidentes, muitos deles sujeitos a prisões e torturas, foram
elementos inibidores de uma oposição eficaz.
Em um país de reduzidas dimensões, a polícia política – a famosa Polícia
Internacional e de Defesa do Estado, a Pide – estava por toda parte.
Dois estabelecimentos penais eram especialmente temidos: Peniche, uma
fortaleza no alto de um penedo, situado na ponta mais ocidental de
Portugal, e o campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago em
Cabo Verde, onde morreram dezenas de prisioneiros políticos. No verão
de 1937, um atentado a bomba – façanha de uma célula anarquista –
serviu para “justificar” a repressão e para demonstrações de apoio a
Salazar. Em 1945, na onda de democratização que se seguiu ao conflito mundial
(como o fim do Estado Novo no Brasil), Salazar anunciou eleições
legislativas para novembro daquele ano, abertas a todos quantos
quisessem desafiar a lista da União Nacional. Meses antes, chegara a
dizer que “as eleições seriam livres como as da livre Inglaterra”.
Republicanos e comunistas uniram-se no Movimento de Unidade Democrática,
mas a Pide passou a acossar e prender os membros do movimento, que
acabou se retirando do pleito.
Uma variante desse cenário ocorreu nas eleições para presidente da
República, de fevereiro de 1949. A oposição, na qual o PCP tinha grande
influência, lançou o nome de Norton de Mattos, um general de tendências
moderadas. Comícios entusiásticos mostraram que o antissalazarismo
ganhava a opinião pública. Mas, ainda uma vez, a acossada oposição se
complicou e Norton de Matos retirou a candidatura.
Tornou-se cada vez mais claro que as eleições, mesmo em condições
anormais, tinham-se convertido em um problema para o salazarismo. No
pleito de 1958, o país foi tomado por uma febre eleitoral com a
candidatura de outro general, Humberto Delgado, salazarista histórico
que passara para a oposição. Delgado manteve sua candidatura até o fim, e
só a fraude eleitoral permitiu a vitória do almirante Américo Tomás.
A vida do general Delgado e de sua secretária brasileira, Arajaryr
Campos, terminou de forma trágica, em fevereiro de 1965, quando ambos
foram assassinados em território espanhol, ao tentar cruzar a fronteira
para Portugal. As mortes, perpetradas por agentes da Pide com a
autorização de Salazar, tiveram repercussão internacional e quebraram o
prestígio do “manso ditador”. O ex-presidente Jânio Quadros enviou um
telegrama a Salazar, insistindo numa investigação completa do caso pelas
Nações Unidas.
spetacular
foi a façanha do capitão Henrique Galvão, que em janeiro de 1961 fugiu
da prisão em Portugal e, à frente de um grupo rebelde de nome
quixotesco, o Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação, apresou no
Caribe um navio de passageiros – o
Santa Maria. Rumando para o
sul, Galvão enviou uma saudação ao povo brasileiro, à imprensa e ao
recém-eleito presidente brasileiro, Jânio Quadros. Ao que tudo indica,
Galvão esperou a posse de Jânio para desembarcar no Recife, pois JK, seu
antecessor, tinha boas relações com a ditadura portuguesa. O “homem da
vassoura” enviou a Galvão uma mensagem de boas-vindas e lhe concedeu
asilo político. Ele nunca mais voltaria a Portugal e, anos mais tarde,
morreria no Brasil.
o
plano das relações exteriores, Portugal mantinha tradicionalmente
laços estreitos com a Inglaterra, numa posição de inferioridade. Apesar
da oposição das correntes germanófilas, o país entrou na Primeira
Guerra Mundial ao lado dos Aliados e enviou um contingente militar para
lutar nos campos da França. A implantação da ditadura salazarista não
impediu a continuidade das boas relações com a Inglaterra, mas esta nem
sempre apoiou as decisões do governo português. Salazar suscitou
severas críticas dos ingleses, por exemplo, quando, de forma
dissimulada mas significativa, ele apoiou o general Franco durante a
Guerra Civil Espanhola.
Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial, porém, a neutralidade de Portugal
foi apoiada sem ressalvas pela Inglaterra. Salazar manteve essa postura,
mesmo quando a queda da França parecia prenunciar a vitória do
nazifascismo, e procurou influenciar o general Franco para que a Espanha
também se mantivesse neutra. Mas em 1941, quando Hitler invadiu a
União Soviética, Franco se colocou abertamente do lado alemão, enviando
um contingente militar – a Divisão Azul – para lutar, ou melhor, para
ser destroçado, na Frente Oriental.
Salazar nunca se identificou com o regime nazista, embora agentes da
Alemanha, como de outros países, circulassem em Portugal sem serem
incomodados. Numa carta enviada a um de seus confidentes mais próximos,
em setembro de 1941, ele afirmou: “Considero uma desgraça para a Europa
que (...) o nazismo se imponha por toda a parte com a sua violência e
rigidez de alguns de seus princípios. Para os que têm da Civilização
uma noção moral, será um franco retrocesso.”
Salazar não via os Estados Unidos com os mesmos bons olhos com que via a
Inglaterra. Os americanos – segundo ele – eram estranhos aos
princípios europeus. E representavam um capitalismo sem freios, com
pretensões hegemônicas. Alguém perguntaria: que importava, afinal de
contas, para os Estados Unidos, a postura do nanico Portugal? A
resposta pode ser sintetizada na importância estratégica do arquipélago
dos Açores. Em julho de 1941, o presidente Roosevelt enviou uma carta a
Salazar, afirmando que a utilização do arquipélago, e de outras
possessões portuguesas, nada tinha a ver com uma ocupação. Para o
propósito de proteger os Açores, Roosevelt dizia ter todo o gosto em
incluir forças brasileiras, mas não se chegou a tanto. Depois de muitas
pressões e longos entendimentos, Portugal autorizou a utilização dos
Açores, primeiro pelos britânicos e depois, com relutância, pelos
americanos.
No pós-guerra, a insistência de Salazar na manutenção das colônias da
África a qualquer preço acelerou a desagregação do Império português.
Portugal invocava a ameaça da União Soviética no continente africano.
Dizia que não havia racismo, e sim harmonia de raças nas colônias
portuguesas. E lembrava o exemplo maior do Brasil – uma nação
luso-tropical cuja história passava pelo papel desempenhado por
Portugal. O defensor intelectual dessa ideologia foi Gilberto Freyre,
particularmente no livro
O Mundo que o Português Criou. Embora
Salazar e seus acólitos tivessem horror da importância que ele atribuía à
herança africana em Portugal, deixaram o aspecto de lado para utilizar
as ideias de Gilberto Freyre, um intelectual de inegável prestígio.
Alguns livros do sociólogo brasileiro foram publicados em Portugal e ele
visitou o país várias vezes, a convite do governo português.
As colônias portuguesas na Ásia foram caindo, uma a uma: Timor, Goa,
Macau. Mas Salazar não podia admitir o abandono das “províncias
ultramarinas” da África, cada vez mais convencido de que a independência
delas levaria ao domínio da União Soviética ou ao caos generalizado.
Os movimentos de independência estendiam-se da Guiné-Bissau e Cabo
Verde a Angola e Moçambique. Em busca de uma política integradora e
assimilacionista, o governo tentou sem êxito a reforma – uma espécie de
luso-tropicalismo em forma legislativa, na feliz expressão de Ribeiro
de Meneses. Na verdade, a prolongada Guerra da Angola, cada vez mais
impopular em Portugal e na África, a cujo final Salazar não chegou a
assistir, foi um fator dos mais importantesna queda da ditadura.
alazar
não teve a morte violenta de Mussolini e de Hitler. Como o general
Franco, morreu na cama, de morte natural, em julho de 1970. Meses antes,
quando sofrera um acidente cardiovascular, fora substituído no poder,
sem seu conhecimento, por Marcelo Caetano, atitude que lhe causou
profunda amargura. Caetano tentou inutilmente reformar o regime para
garantir sua sobrevivência. A Revolução dos Cravos poria fim à ditadura
em 1974, por iniciativa dos quadros médios do Exército, acolhidos pela
população, num clima de forte emoção. O deus de Salazar poupou-o desse
espetáculo de desordem, como certamente ele o denominaria.
Passadas muitas décadas, a Europa Ocidental de hoje é muito diversa do
que foi dos anos 30 até meados da década seguinte. A era das ditaduras
teve fim, a Alemanha e a França – inimigas mortais em três guerras –
tornaram-se nações amigas, o comunismo deixou de ser um fantasma
perturbador, o sonho da União Europeia converteu-se em realidade.
Não obstante, nos dias de hoje, a União Europeia atravessa ventos e
tempestades, e os temas econômicos e financeiros – déficits
orçamentários, irresponsabilidade fiscal – entraram na ordem do dia.
Tudo isso soaria familiar aos ouvidos do professor Salazar e ele talvez
pensasse que poderia retornar do “assento etéreo” a este mundo, como
homem providencial. Nesse caso, alguém precisaria dizer-lhe que os
tempos são outros, pois estamos em busca de líderes, aliás muito
escassos, e não de homens providenciais.
primeiro texto por Barbara Fischer, em
Deutsche Welle
"Salazar" por Boris Fausto, na
piauí
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