quarta-feira, 28 de agosto de 2013

"Entusiasmo", de Dziga Vertov

Энтузиазм (Симфония Донбаса) ou “Entusiasmo (Sinfonia do Donbass)” – o temo “Donbass” se refere à  bacia do Donets, uma grande região mineradora e industrial localizada entre a Ucrânia e a Rússia - é uma obra-prima do cinema de propaganda soviético dos anos 1930 e, como tal, deve ser entendido no contexto de sua época: A guerra civil havia acabado, Lênin estava morto e a disputa interna no partido havia sido vencida por Stalin. Era o momento de partir finalmente e decisivamente rumo à construção do socialismo – só que num país só, ao contrário da idéia marxista original encampada pelos bolcheviques em outubro de 1917, a da revolução mundial, ou “revolução permanente” , na visão de Trotski.  Para tanto foram implantados os planos qüinqüenais, com o objetivo de construir as bases materiais para o novo regime  – que preconizava a divisão da riqueza, não da miséria – a partir da realidade de uma nação desindustrializada e atrasada economicamente, como era o caso da Russia. O filme retrata tudo isso de forma idealizada, evidentemente – afinal, é propaganda! – mas magistral: fosse eu um cidadão soviético naqueles tempos, sairia do cinema direto para alguma fábrica para trabalhar orgulhosamente pelo futuro da pátria socialista!

Assisti ao filme recentemente no cinema, em Aracaju, o que é sem dúvida uma novidade digna de nota. Foi exibido no Cine Vitória, nova sala dedicada à sétima arte aberta no centro da cidade, na “Rua do turista”, que vem exibindo uma programação alternativa de altíssima qualidade. Nunca havia visto nenhum filme de Dziga Vertov, portanto a expectativa era alta!

No início da projeção, a tela nos  apresenta uma jovem armada com fones de ouvidos, a postos para receber uma mensagem de rádio. Na sequencia vemos imagens da decadência da Russia de antes, com suas igrejas ortodoxas e imagens religiosas reverenciadas pelo povo, dos mais humildes aos mais aristocráticos. E também vagabundos embebedando-se pelas ruas.

A montagem é primorosa: através dela assistimos à chegada da nova ordem, numa sequencia radical que tem o claro objetivo de causar impacto em mentes atrasadas e ainda tomadas pela superstição: a velha ordem é literalmente demolida diante dos olhos da platéia e substituída pelos símbolos do que virá: as palavras de ordem do Partido Comunista, tendo ao fundo as chaminés dos parques industriais. As Igrejas têm suas cúpulas explodidas e seus interiores pilhados, com seus ícones empilhados na rua pelo mesmo povo que pouco antes aparecia adorando-os com um devoção inabalável. Eles agora crêem em si mesmos, na força do esforço coletivo em prol de um ideal igualitário.

Somos então transportados ao esplendor do novo tempo: desfiles do “Konsomol” (a Juventude Comunista) aparecem intercalados com imagens dos trabalhadores exercendo suas atividades com empenho e entusiasmo, sempre incentivados pelos onipresentes propagandistas do partido. A montagem conduz a narrativa de forma a nos mostrar a harmonia da união do homem com a máquina, numa perfeita sinfonia. Sinfonia que se encerra no campo, que começa a ser, também, mecanizado. Tudo filmado com uma fotografia belíssima e ângulos inusitados. Coisa de gênio.

Curioso notar que o culto à personalidade ainda não havia sido implantado em toda a sua plenitude, o que explica a ausência da imagem de Stalin no filme – algo que, alguns anos depois, seria impensável numa peça de propaganda soviética. Em seu lugar, as tradicionais bandeiras vermelhas (subentende-se, já que o filme é em preto e branco) com slogans inscritos, comuns nos primeiros anos da revolução. Em pouco tempo o construtivismo russo, escola sob a qual a película foi concebida, seria banida pelo estado, e o realismo socialista reinaria absoluto como doutrina cultural oficial. Seria a morte da ousadia e da criatividade em nome de um didatismo insosso que engessou, para sempre, a força criativa que eclodiu com a revolução e que, no cinema, teve seu ápice nas obras de Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. Tudo parte de um processo no qual uma idéia generosa se transformou num pesadelo totalitário, onde "todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros".

Abaixo, o filme, na íntegra.

por Adelvan


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O Reino Sangrento do Slayer

Até 1990, ano de "Seasons in the Abyss", a qualidade dos lançamentos fonográficos do Slayer era praticamente irretocável. Eu sei, “Show No Mercy” é mal gravado (para os padrões atuais) e cheio de cacoetes típicos da época, com direito a gritinhos a la King Diamond - influência confessa -, mas é um puta disco! Porque as músicas são muito boas. Simples assim. Eu arriscaria dizer que é um dos melhores discos de estréia de uma banda de Heavy Metal em todos os tempos. Foi seguido pelo EP "Hauting the Chapel", onde eles conseguiram aumentar a agressividade preservando a qualidade das composições, e por "Hell Awaits", onde o peso e a velocidade foram ainda além, só que desta vez em detrimento da música - são muito longas e ligeiramente enfadonhas, dispersivas. Dessa fase, dos anos 80, é o mais fraco - mas ainda assim muito bom. De "Reign in Blood" nem há o que falar, é praticamente uma unanimidade: o melhor disco de música extrema já feito. Nos dois álbuns seguintes eles, espertamente, tiveram o cuidado de não sucumbir às expectativas e pegaram os fãs de surpresa: baixaram a velocidade, criando pérolas de som pesado, cadenciado e climático, como as faixas título dos dois discos, "South of heaven" e "Seasons in the Abyss", mas pontuando-as com outras que preservavam a boa e velha velocidade da luz nas palhetadas, como "silent screan" e "War Ensamble". Não “amoleceram”: amadureceram! Não se repetiram: evoluíram!

Dave Lombardo
Na década de 1990, já sem Dave Lombardo, o melhor baterista de Heavy Metal vivo, ainda lançaram um excelente petardo, "Divine intervention", e um bom disco de covers, "Undisputed Attitude" - no qual dão uma aula de verdadeiro punk rock e Hard Core àquela geração “leitinho com Nescau” que surgia no rastro do Green Day e do Offspring. Somente a partir daí pareceram sucumbir ao cansaço natural do passar do tempo, ora experimentando e errando, como em "Diabolus in musica", ora fazendo discos competentes porém “mornos”, com fórmulas requentadas, como no caso dos três últimos, "God Hate us all" (excelente título), "Christ Illusion" (o mais extremo do período, musical e conceitualmente, com direito inclusive a mais uma capa blasfema do mesmo autor da do clássico "Reign in Blood") e “World painted blood”.

Esta é a minha visão da carreira “discográfica” do Slayer. A de Joel McIver, autor do recém relançado "O Reino Sangrento", é bastante diferente. Pelo que entendi, para ele, os únicos discos realmente bons que a banda lançou foram “Hell Awaits”, “Reign in Blood” e o EP “Hauting the Chappel”. Todos os outros são cheios de músicas chatas pontuadas por alguns poucos momentos inspirados. Além disso, o cara parece querer o tempo inteiro demonstrar ser “adulto” e “maduro” e não se furta a desancar qualquer atitude mais sem noção que a banda tenha tido ao longo de sua longa trajetória. Critica até a clássica foto da contracapa do “Reign in Blood”! Desnecessário dizer que discordo completamente – e a banda também não deve ter concordado, já que na introdução ele menciona que sua intenção era lançar uma biografia “oficial”, o que não aconteceu por uma falta de resposta à sua solicitação. Tudo bem, não precisava – nem deveria – ser uma biografia “chapa branca”, mesmo que eventualmente “oficializada”, mas é igualmente desnecessária e irritante a insistência do autor em expor sua opinião pessoal a todo momento. Que o fizesse pontualmente e se restringisse, na maior parte do tempo, à descrição dos fatos, pura e simplesmente.

Feita esta ressalva, devo dizer que o livro é bom. Muito bom, até. Não é jornalismo “literário”, não há nenhum arroubo de genialidade na pena do escriba, mas é bastante competente. Conta toda a história, desde o início – e não senti, aqui, a suposta pressa que o próprio autor assume ter tido quanto aos primórdios da banda – de forma fluente e prazerosa. Fala o que pode – e deve – ser dito sobre a vida pessoal dos caras e disseca de forma competente todos os discos e turnês que fizeram até 2010, data da última atualização. O que, infelizmente, significa dizer que não são mencionados os momentos dramáticos que eles vêm passando nos últimos tempos, com a doença e posterior falecimento do guitarrista Jeff Hanneman e mais uma “demissão” do baterista Dave Lombardo. Para compensar, há um interessante apêndice exclusivo da edição nacional em que alguns personagens do underground “tupiniquim” prestam sua homenagem ao “galego” falando sobre o impacto do Slayer em suas vidas. Dentre eles, eu – o que muito me orgulha! Sou fã de (quase) primeira hora do Slayer, desde antes do “Reign in Blood”. Detalhe: isso em Itabaiana, interior de Sergipe, na segunda metade dos anos 80. A primeira camiseta com estampa de banda de rock que tive na vida era da capa do “Show No Mercy”. E vi o nascimento de uma obra prima: lembro como hoje o dia em que peguei meu vinil do “Reign in Blood” com aquela capa satânico-blasfêmica, estilosa apesar de meio tosca, em pavoroso papel surrado não-plastificado – era uma época em que vivíamos uma escassez geral de matérias primas, devido aos boicotes dos fornecedores em resistência ao congelamento dos preços do plano real - e nossos ouvidos foram praticamente estuprados pela introdução de “Angel of Death”, que se seguiu a um massacre sonoro ininterrupto que me deliciou, mas que fez alguns de meus amigos “arregar” – um deles “pediu pra sair”, com dor de cabeça. Eu segui “bangueando”, até hoje. Porque Slayer é foda!

Por falar na capa do “Reign in Blood”, ela – e todas as outras – foi dissecada no livro em depoimentos do próprio autor, Larry Carroll, com direito a algumas curiosidades que eu, pelo menos, não havia ainda notado – notadamente que há pelo menos 2 pênis eretos no desenho! Carrol indica onde estão, e é verdade – ok, são pênis, digamos, “estilizados”, mas estão lá.

Por fim, a edição: é primorosa! Excelente diagramação e impressão em fontes elegantes e de fácil leitura, papel de boa qualidade, capa dura e tradução impecável – era o calcanhar de Aquiles da edição anterior, pelo que li a respeito. Fico feliz em ver que as editoras nacionais descobriram, finalmente, este filão: o dos livros sobre rock! E a Edições Ideal está de parabéns: mandou muito bem neste lançamento. Espero que mantenha o padrão.

por Adelvan k.

Autor: Joel Mciver
Editora: EDIÇÕES IDEAL
Ano de Edição: 2013
Nº de Páginas: 368
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quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Antijornalismo

Por Mario Sergio Conti, na revista Piauí

O título do livro de Otávio Cabral é “Dirceu – A Biografia”. O autor poderia ter dispensado o artigo ou posto “uma biografia”. Mas tascou a biografia, o que indica a pretensão de ter feito o relato completo e fidedigno da vida de José Dirceu. Tarefa difícil porque o biografado não quis ser entrevistado pelo biógrafo.

Otávio Cabral diz no prólogo ter contado com a ajuda de dois pesquisadores para “vasculhar nove arquivos públicos”. Três linhas adiante repete o verbo: “Vasculhei os acervos de nove jornais e oito revistas nacionais, além de quatro publicações estrangeiras”, se bem que a BBC não seja uma publicação, e sim uma emissora e um site. Ele fez mais que pesquisar arquivos e órgão de imprensa: vasculhou-os, que os dicionários definem como investigar e esquadrinhar com minúcia.

O livro começa em 1968, com os pais de José Dirceu assistindo pela televisão à sua prisão no Congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna. Informa que a notícia da prisão de José Dirceu foi “transmitida em rede nacional de televisão”. Mas o Brasil só teria rede nacional de tevê no ano seguinte.

Antes do golpe de 1964, segundo a biografia, José Dirceu conheceu o autor de novelas Vicente Sesso, “com quem foi trabalhar na TV Tupi, ajudando a redigir roteiros”. Sesso “acabara de escrever Minha Doce Namorada, que deu à atriz Regina Duarte o apelido de ‘a namoradinha do Brasil’”. E José Dirceu “foi praticamente adotado por Sesso, que o levou para morar na sua casa, no mesmo quarto de seu filho adotivo, o ator Marcos Paulo”.

José Dirceu não trabalhou na TV Tupi nem fez roteiros. Foi datilógrafo de Sesso. Nunca morou na casa do escritor. Sesso, isso sim, lhe emprestou uma casa que tinha na rua Treze de Maio. Ele só veio a escrever Minha Doce Namorada em 1971, às pressas, para substituir uma novela que obtivera pouca audiência. Essas informações foram dadas pelo próprio José Dirceu numa entrevista a Marília Gabriela que se encontra transcrita na internet. A data e a composição deMinha Doce Namorada podem ser achadas em histórias da teledramaturgia.

São erros tolos? Sem dúvida. Para a caracterização de José Dirceu, interessa pouco saber que em 1968 não havia rede nacional de televisão. Que estudou em tal rua, e não em outra. Que São Paulo era tantas vezes maior que Passa Quatro. Que não escreveu roteiros para a tv Tupi. Mas todos esses equívocos estão nas seis primeiras páginas do capítulo inicial. E a sexta página se encerra com um abuso: Otávio Cabral afirma que José Dirceu apoiava Jango “mais para se opor ao pai do que por ideologia”. Nada autoriza o biógrafo a insinuar o melodrama edipiano. Ainda mais porque, dois parágrafos adiante, é transcrita uma declaração na qual José Dirceu afirma que, no dia mesmo do golpe, se opôs à ditadura por “um problema de classe”.

O livro realça aspectos pessoais em detrimento dos políticos. Ele repete cinco vezes que nos anos 60 Dirceu tinha cabelos compridos, outras quatro que era cabeludo, e duas dizendo que deixava a “barba por fazer”. Caso o leitor não tenha percebido, o livro estampa ainda catorze fotos de Jose Dirceu de cabelos longos e a barba nascendo. A aparência não é anômala nem define o biografado. Muitíssimos jovens eram assim naquela época.

Em contrapartida, o biógrafo não analisa se nos anos 60 José Dirceu era reformista ou revolucionário. Se queria o socialismo ou não. Se considerava a luta de classes o motor da história. Não explica se acreditava mais na guerrilha, no terror ou na legalidade institucional. Ao “vasculhar” a vida de José Dirceu, Cabral se ateve a uma ideia prévia, que ele enuncia assim: “Encontrava na atividade política um prazer e vislumbrava nela uma chance de ascensão social e profissional.”

A afirmação, caída do céu, é oca e insensata. Oca porque não há nada de mais em se ter prazer fazendo política – ou medicina, malabarismo, jornalismo, o que for. Insensata porque, por dez anos, José Dirceu correu perigo real de ser preso (o que lhe aconteceu), torturado e assassinado (o que ocorreu com centenas de outros). Gramou dez anos de exílio e clandestinidade. Não queria subir na vida e sequer tinha profissão. Fazia política em tempo integral.

Com a anistia de 1979, ajudou a construir um partido, o PT, que não lhe garantia “ascensão” alguma. Como dezenas de outros políticos surgidos nos anos 60, poderia ter aderido ao PMDB, ao PDT ou ao PSDB, que logo chegaram ao poder. Dirceu e o PT fizeram política mais de duas décadas antes de entrar no Planalto. Por que não foi pragmático, imediatista? Talvez porque tivesse convicções, as quais Otávio Cabral despreza. O autor prefere se perder em minudências.

Vejamos como ele se perde. O biógrafo diz que Rui Falcão, hoje presidente do PT, foi colega de José Dirceu na Pontifícia Universidade Católica, onde estudou jornalismo. A PUC sequer tinha curso de jornalismo na época e Rui Falcão estudou direito, mas na Universidade de São Paulo. Relata que 5 mil estudantes se reuniram “nas arcadas do Grupo Escolar Caetano de Campos”, que não se chamava “Grupo Escolar” e não tem arcadas. Afirma que a Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia, tem cinco andares, um a mais do que se vê em qualquer foto. Sustenta que uma das “ações ousadas” de José Dirceu foi a destruição do palanque do governador paulista, Abreu Sodré, no 1º de maio de 1968, na Praça da Sé. O ataque a Sodré foi feito por me-talúrgicos de Osasco, liderados por José Ibrahim. É isso que está dito na entrevista de Ibrahim a José Dirceu, no blog deste último. No Congresso da UNE em Ibiúna, José Dirceu ora é colocado num ônibus, ora num camburão, mas aparece numa foto numa Rural Willys. Depois de uma semana, é levado “para a Fortaleza de Itaipu, em São Vicente” – e a fortaleza fica no município de Praia Grande.

O autor não fica só nos erros menores. Escreve que em 1968 “a Guerra Fria encontrava-se no auge e a invasão dos Estados Unidos a Cuba era iminente”. A invasão de Cuba fora eminente em 1961, quando a CIA organizou o desembarque na Baía dos Porcos, e no ano seguinte, durante a crise dos mísseis, e não seis anos depois.

E 1968 não foi o ano do auge da Guerra Fria, e sim o da sua grande crise, que levou o capitalismo e o stalinismo a se darem as mãos. Em janeiro, na Ofensiva do Tet, os vietcongues chegaram aos jardins da embaixada americana em Saigon sem a ajuda de tropas da China e da União Soviética. Em maio, a greve geral na França foi deflagrada apesar da oposição frontal do gaullismo e do Partido Comunista, que seguia ordens de Moscou. Em agosto, a invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, para massacrar uma experiência de socialismo democrático, mostrou que o apoio dos Estados Unidos à Primavera de Praga não passava de retórica.

Em meio a esses três fatos turbulentos, que insuflaram as mobilizações brasileiras daquele ano, José Dirceu cresceu como liderança política. Seria interessante saber o que pensava a respeito deles. É obrigação de um biógrafo analisar o mundo no qual o seu biografado vive, e contar como ele reage a grandes mudanças. Otávio Cabral preferiu fofocar sobre os namoricos do líder estudantil, que ele trata como um fauno.

Dirceu foi um dos presos políticos trocados pelo embaixador americano Charles Burke Elbrick, sequestrado no Rio, em 1969, por grupos esquerdistas. No México, onde desembarcou, segundo Cabral ele era “um dos mais paranoicos, tinha certeza de que era vigiado pela CIA”. Se há documentos americanos comprovando que a CIA espionou os brasileiros exilados em Cuba, por meio de um agente duplo cubano, por que não os investigaria no México? Não havia paranoia nos cuidados de José Dirceu. O que há é a tentativa de Cabral em pintá-lo como um homem irracional e doente. Faz o mesmo com o PT e as alas à esquerda do partido, que ele qualifica de “raivosos”.

Uma das fontes dos capítulos sobre a estadia de Dirceu em Havana é O Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil, de Denise Rollemberg, que é apresentada como historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas a historiadora se formou, fez mestrado, doutorado e é professora na Universidade Federal Fluminense. É compreensível, pois, que Dirceu tenha bobagens como a de dizer que ele foi instalado em “uma casa na periferia de Havana, a Casa do Protocolo, hoje um centro cultural”. Havia dezenas de “casas de protocolo” em Cuba, e não uma determinada.

José Dirceu passou um tempo clandestino no Brasil no início dos anos 70. Otávio Cabral se fia em papéis da ditadura para apontá-lo como um dos responsáveis pelo assassinato de um sargento da PM, em janeiro de 1972, “na rua Colina da Glória, no Cambuci”. Uma testemunha teria reconhecido Dirceu como participante no crime. Há três elementos que abalam a credibilidade dos documentos militares. O reconhecimento da testemunha foi feito com base numa foto antiga de Dirceu, antes de ele ter feito uma cirurgia plástica no rosto em Cuba. A morte do sargento não gerou inquérito nem processo. A rua Colina da Glória não existe no Cambuci nem em bairro nenhum de São Paulo. Otávio Cabral também leva em conta o depoimento de um sargento, integrante do Centro de Informações do Exército, que acusou José Dirceu de ter sido agente duplo e delator.

As acusações de assassinato e delação são graves. Mereceriam investigação profunda, ponderação e exposição demorada. Seria preciso sobretudo ter boa-fé. Foi o que fez Elio Gaspari ao analisar casos semelhantes na série de quatro livros monumentais sobre a ditadura. Foi também o que fez o jornalista Vicente Vilardaga no recém-lançado À Queima-Roupa – O Caso Pimenta Neves, livro no qual relata o assassinato da repórter Sandra Gomide pelo diretor de redação de O Estado de S. Paulo. Vilardaga busca entender um assassino, Pimenta Neves, cujo crime lhe é repulsivo. À Queima-Roupa é sólido justamente pelo seu empenho em compreender o que pensou e como agiu o homicida, situando o seu crime no contexto da imprensa paulista.

Já Otávio Cabral envolve José Dirceu numa névoa de insinuações para melhor denegri-lo. Em títulos de capítulos, chama-o de “camaleão”, “bedel de luxo”, “o maior lobista do Brasil” e “o maior vilão do Brasil”. Como Dirceu foi condenado e aguarda a prisão, o que Cabral faz é chutar um homem caído no chão.

Mas comete tantos erros que acaba chutando a sua própria reputação profissional. Em 1978, diz ele, José Dirceu participou de um grupo que ajudou a financiar candidatos do “MDB simpáticos à luta armada, como Anísio Batista de Oliveira e Djalma Bom”. Que surpresa. Anizio (com “z”) Batista e Djalma Bom eram sindicalistas no final dos anos 70. O primeiro era metalúrgico e integrava o grupo de Lula em São Bernardo. O outro estava na Pastoral Operária e militava na oposição metalúrgica de São Paulo. Ambos discordavam da luta armada e do MDB. Candidataram-se a deputados na década seguinte, e foram eleitos pelo PT.

Desconhecendo fatos comezinhos como esses, Otávio Cabral decreta logo em seguida: “Foram as mulheres, e não a política, o que mais atraiu Dirceu de volta a São Paulo.” Como ele pode ter tanta certeza? Apaixonar-se, meter-se em namoros tumultuados, praticar adultério, gostar de amor e sexo, ter filhas fora do casamento – tudo isso ocorreu com José Dirceu. E também com muita gente da esquerda e da direita, com pobres e ricos das mais diferentes atividades.

Achar que isso define alguém é ingenuidade, clichê reducionista. Para ficar em três exemplos da esquerda (que não têm nada a ver com José Dirceu, diga-se): Marx teve um filho com a empregada Helena Demuth, Lênin foi amante da comunista francesa Inessa Armand, Trotsky teve um caso com a pintora Frida Khalo. As traições amorosas explicam o que fizeram na política?

É torpe a maneira como Otávio Cabral trata as namoradas e esposas de José Dirceu. Ele escreve vulgaridades machistas como “loira alta e voluptuosa”, “encontrou a inesquecível lembrança deitada na cama”, “formas avantajadas”, “a bunduda do sindicato”. Dá nome, sobrenome e profissão de algumas das mulheres que amaram Dirceu. De outras, o primeiro nome ou só a ocupação. “Empresária”, por exemplo. Por quê? Talvez por incerteza. Talvez por covardia. O que sobressai é a alusão melíflua, e não a afirmação direta.

Em compensação, eis uma afirmação direta de Otávio Cabral sobre profissionais de sua área, o jornalismo: “Antigos companheiros de Ibiúna e de clandestinidade tinham posições de destaque na imprensa em meados dos anos 80, como Rui Falcão, que comandava a revista Exame, e Eugênio Bucci,diretor da Playboy.” Nem Falcão nem Bucci participaram do Congresso da UNE em Ibiúna. O primeiro porque não era mais estudante e o outro por ser criança. Eugênio Bucci jamais esteve na clandestinidade. Rui Falcão, sim, mas não foi “companheiro” de Dirceu: clandestino, militava em outra organização e noutra cidade. Bucci nunca foi diretor da Playboy. São cinco erros factuais numa frase. Algum recorde foi batido.

A Biografia tem dezenas de barbaridades semelhantes. Uma das melhores: Fernando Collor, na tentativa de se manter no Planalto durante a campanha pela sua destituição, conclamou o povo a ir às ruas com roupas pretas para defendê-lo, e todos foram de verde-amarelo. Como todo mundo sabe, ocorreu o contrário. Collor incitou a população a se vestir de verde-amarelo e o Brasil foi tomado por manifestantes de preto.

Otávio Cabral tem mania de comidas e bebidas. Seguem-se exemplos do livro. “Frango ao molho pardo brasileiro, cozido e com um saboroso molho à base de sangue da própria ave.” “Molho ultrapicante, com pimentas, amendoim, canela e amêndoa.” “Os melhores runs.” “Coxinha, feijoada e doce de jaca com canela.” “Moqueca de peixe, cerveja e cachaça dominaram a noite.” “Cálices de vinho de sobremesa italiano.” “Coelho a Los Fubangos.” “Bacalhau assado à moda do Minho, arroz de marisco e chanfrana de cabrito.” “O refrescante vinho verde português Alavarinho Deu la Deu, escolhido a dedo para aplacar o calor.” “Toucinho do céu, tradicional doce português à base de gemas de ovos.” “Comeram pato laqueado, tomaram vinho e deram boas risadas.” “Cachaça Havana e champanhe Dom Pérignon.” “Filé com creme de mostarda, cebola, ervilha, presunto e batata palha.” “Vinho Romanée-Conti, safra de 1997.” “Comeu galeto e bebeu o vinho tinto italiano Brunello di Montalcino.” Chega?

Tem mais. “Risoto de carne-seca na moranga, acompanhado de um Chardonnay brasileiro.” “De sobremesa, goiabada com queijo e champanhe.” “Vinhos renomados, como o Almaviva chileno.” “Bufê com uísque e champanhe.” “Mal tocou no salmão grelhado.” “Pegou uma garrafa de rum cubano.” “O vinho melhoraria seu humor.” “Duas doses de bourbon antes de dormir.” “Algumas garrafas de vinho mais tarde.” “Ravióli de foie gras, coquilles Saint-Jacques com trufas e endívias caramelizadas e lombo de javali com risoto de aspargos.” “As taças abastecidas sem intervalo com os melhores espumantes brancos e tintos da região.” “O compromisso teve cordeiro patagônico e um excelente Malbec no restaurante Barricas de Enopio.” Basta?

Pois ainda tem cupim, salada de batata, Cabernet Sauvignon chileno, paella, presunto de Parma etc. etc. etc. Mas é melhor parar porque esse cordeiro patagônico desceu mal. O Barricas de Enopio não é mais o mesmo.

Em menor grau, o livro é obcecado por novelas e futebol. São inúmeras as referências a tramas e atores do horário nobre. Todas descabidas, porque José Dirceu não acompanha novelas. Ele gosta de futebol, mas não mais que um torcedor típico. Apenas uma das referências futebolísticas tem sentido político, o jogo da Seleção Brasileira contra a do Haiti, em Porto Príncipe, em 2004. De fato, Dirceu – com Ricardo Teixeira e o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, apelidado de Kakay – pelejou pela organização do chamado Jogo pela Paz.

Se não discute o apoio de Dirceu à intervenção brasileira no Haiti (uma posição contrária à da esquerda ortodoxa), Cabral descreve com detalhes a viagem da “comitiva liderada por Lula e Dirceu”. Fala que os dois foram ao Estádio Nacional “num caminhão de bombeiros, junto com astros do futebol brasileiro como Roberto Carlos, Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo Fenômeno. Dirceu tirou fotos com todos antes de entrar no veículo”. Conta que “às quatro da tarde, o Hino Nacional Brasileiro foi tocado e Dirceu chorou”. No segundo tempo, o goleiro Fernando Henrique substituiu o titular e, prossegue Cabral, “assim que viu o homônimo do ex-presidente entrando em campo, Dirceu virou-se para Kakay e ironizou: ‘Bem que esse Fernando Henrique podia tomar um gol. Aí a festa vai ser perfeita.’” É um belo relato.

Exceto pelo seguinte: José Dirceu não foi ao Haiti ver a partida.

Não era necessário entrevistar o biografado para saber que ele não assistiu ao Jogo pela Paz (procurado, Dirceu não deu nenhuma informação para esta resenha). Não há referências ao então chefe da Casa Civil nas copiosas reportagens sobre Lula e sua comitiva no Haiti. Foi feito um documentário sobre a partida, O Dia em que o Brasil Esteve Aqui, com mais de uma hora de duração, no qual Dirceu está ausente do jogo. Poder-se-ia perguntar a Lula, a Ricardo Teixeira, a Kakay, aos jogadores, às pessoas da comitiva, a todos que lá estiveram, se José Dirceu compareceu. E eles diriam: não, José Dirceu não foi ao Haiti. Em vez de trabalhar, Otávio Cabral preferiu a invencionice delirante.
O autor diz e rediz que Passa Quatro, onde José Dirceu nasceu, tinha 11 mil habitantes. São Paulo contava com 4 milhões de moradores quando ele se mudou para lá. O autor faz o cálculo e conclui que a capital era “trezentas vezes maior do que a sua Passa Quatro natal”. Cálculo errado: São Paulo era 363 vezes maior. Dirceu estudou no Colégio Paulistano, “na rua Avanhandava, próximo à praça da Sé”. Não, a escola ficava na rua Taguá, na Liberdade. Preparou-se para o vestibular no curso “Di Túlio”, que se grafava “Di Tullio”.

NOTA DO BLOG (ADELVAN): E esse lixo está aí, nas livrarias, sendo vendido como o supra-sumo do jornalismo investigativo ...

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Ñasaindy

Nesta foto havia um pai.
Ñasaindy em guarani significa “luz da Lua”. Ñasaindy Barrett de Araújo recebeu o exótico nome dos pais, Soledad Barrett Viedma e José Maria Ferreira de Araújo. Hoje resplandecente, ela passou boa parte da vida em fase de Lua Nova, aquela em que o satélite não reflete a luz do Sol nem pode ser visto da Terra. De seus 44 anos, Ñasaindy viveu mais de 16 na clandestinidade. Ela tinha apenas 1 ano e 8 meses quando foi deixada em Havana, aos cuidados da operária e ativista política brasileira Damaris Lucena, que estava exilada na ilha com três filhos – Denise, Adilson e Telma. O tempo passou e os pais de Ñasaindy jamais voltaram do Brasil. Em momentos diferentes, ambos foram mortos pela repressão à luta armada, assim como havia sido o marido de Damaris. Com a Anistia, a operária custou para arquitetar um retorno ao País que incluísse Ñasaindy. A solução possível envolveu documentos falsos. Assim, a filha de Soledad e José Maria desembarcou com outro sobrenome em 25 de abril de 1980, no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Tinha 11 anos e não passou despercebida pela polícia política que monitorava Damaris.

No sofá da ditadura
De plantão em Congonhas, o delegado José Ricardo Soares despachou no mesmo dia um telex para Romeu Tuma, diretor do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS). O delegado avisou que a operária tinha chegado no voo RG 871 da Varig em companhia de quatro filhos, a começar por Nasandy de Oliveira Lucena (com grafia errada do nome e o sobrenome de Damaris). Os dados foram transcritos em uma ficha remissiva da polícia. No telex, o delegado deu mais detalhes. “Informo que os referidos passageiros trouxeram quatro caixas com livros ideológicos e foram recebidos por grande comitiva, inclusive Ariston de Oliveira Lucena”, escreveu, referindo-se ao filho mais velho de Damaris, que tivera uma pena de morte comutada para prisão e passara na cadeia quase todos os anos que a mãe e os irmãos estiveram em Cuba. Para Ñasaindy, Ariston era o irmão que faltava conhecer, pois considerava – e ainda considera – Damaris como mãe. Só dois anos depois ela conheceu a família paterna de sangue. E passaram-se outros 14 para que começasse a existir legalmente no Brasil.

A mãe (à esquerda, de óculos)
Dos tempos de bebê, Ñasaindy só tem uma fotografia com o pai. Na imagem, aparecem parte do rosto de José Maria e suas mãos enlaçando a filha. “A Soledad rasgou a foto, por uma questão de segurança”, diz Ñasaindy. “Mesmo em Cuba, já se desconfiava que existiam infiltrados entre os brasileiros.” Junto com Soledad, Ñasaindy não tem nenhuma fotografia. De origem distinta, mas unidos por ideais comuns, Soledad e José Maria se conheceram na ilha, onde Ñasaindy nasceu, em 4 de abril de 1969. Em junho do ano seguinte, José Maria decidiu voltar para o Brasil, para se alinhar à guerrilha contra o regime militar. Antes, ele telefonou para se despedir de Damaris, que conhecia de reuniões em São Paulo. “Nesse telefonema, ele pediu que a Damaris olhasse por mim”, conta Ñasaindy.

Naquela altura, José Maria era considerado pela Marinha como um “ex-militar”. Seus vínculos com a Força começaram ainda nos tempos de criança, quando ele morava com os pais e dez irmãos na cidade de Santa Luzia (PB). “Ele era um entusiasta pelo mar. Entrar para a Marinha sempre foi o sonho dele. Assim que terminou o antigo grupo primário, começou a estudar na Escola de Aprendizes-Marinheiros do Ceará. Em seguida, foi para o Rio de Janeiro”, lembra um de seus irmãos mais novos, Paulo Maria Ferreira de Araújo, professor da Universidade de Campinas (Unicamp). Incorporado, José Maria vivia em um navio. Não demorou a engrossar a fileira dos marinheiros que reivindicavam o direito de se reunir, morar fora de navios e poder contrair matrimônio. Em 1962, José Maria estava entre os fundadores da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, entidade considerada ilegal pelas Forças Armadas.

O pai.
Dois anos mais tarde, de fevereiro para março de 1964, visitou pela última vez a casa dos pais, onde posou para uma fotografia em uma Lambretta. “Ele estudava muito. Aliás, a maior parte da bagagem dele era de livros. Eu era sete anos mais novo. Fiquei fascinado”, conta Paulo. “Pelas restrições da época, também fiquei curioso em relação aos livros. Morava em uma cidade pequena, onde ler Marx e Hegel era como comer criancinha.” Nas conversas com a família, o futuro pai de Ñasaindy falou sobre a noiva, Iracema, que morava no Rio. No dia 20 de março, o marinheiro foi chamado por companheiros da associação que ajudara a fundar e se reunia na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio.

Anistiado por Goulart

Cinco dias depois, aconteceu a Revolta dos Marinheiros, como ficou conhecida a resistência a uma ordem de prisão determinada pelo ministro da Marinha, Sílvio Mota. Mesmo proibidos de comemorar o aniversário de dois anos da associação, mais de dois mil marinheiros e fuzileiros navais tinham se reunido na sede do Sindicato dos Metalúrgicos. O destacamento de fuzileiros navais enviado para prender os organizadores do encontro acabou aderindo ao movimento, com o apoio de seu comandante, o contra-almirante Cândido Aragão.

Na sequência, o presidente João Goulart proibiu a invasão do sindicato, o que fez o ministro da Marinha se demitir. Os manifestantes passaram por uma detenção simbólica, de poucas horas, e foram anistiados por Goulart. O episódio ajudou a aprofundar a crise entre as Forças Armadas e o governo federal, além de dar projeção a uma figura que mais tarde marcaria a vida de Ñasaindy: o Cabo Anselmo, como ficou conhecido o líder do movimento, José Anselmo dos Santos, que jamais passou de marinheiro.

Ñasaindy
José Maria escapou da prisão na revolta militar, mas acabou atrás das grades 15 dias depois do Golpe de 1964. Com um processo em andamento, foi libertado após sete meses, chegou a trabalhar como metalúrgico, mas acabou partindo para a clandestinidade. Entre março e abril de 1966, mandou uma carta para a família. “Dizia que não escreveria mais, para a segurança de todos, e que teria de sumir, de sair do País. Nesta carta, a última que recebemos, ele assinava como Miguel”, recorda seu irmão Paulo. “A noiva do José Maria, que se correspondia com minha mãe, não tinha notícias dele havia meses.” Julgado à revelia por ter ajudado a fundar a associação, José Maria foi condenado a cinco anos e um mês de prisão em junho de 1966. De acordo com documentos do Exército localizados pela Brasileiros no Arquivo Público do Estado de São Paulo, José Maria, assim como Cabo Anselmo, fizeram um curso de guerrilha em Cuba, em maio e junho do ano seguinte.

Ñasaindy acredita que Soledad e José Maria se conheceram em Santiago de Cuba, cidade da parte leste da ilha: “Um dos meus tios maternos, Alberto, me contou que eles estavam lá com outras pessoas da família. Soledad ensinava o idioma guarani para alguns camponeses e retornava sozinha à noite, pela mata. Meu pai então se ofereceu para acompanhá-la e, nesse processo, eles se apaixonaram”. Na época, Cuba era o destino de latino-americanos fugindo de perseguição política em seus países. Como José Maria, muitos brasileiros chegavam à ilha para participar de treinamentos de guerrilha. Predominava entre parte da esquerda brasileira a teoria do foquismo, inspirada no argentino Ernesto Che Guevara e desenvolvida pelo teórico francês Régis Debray. A ideia era criar focos de revolução no País, por meio de ações armadas, até que o movimento se alastrasse, provocando a derrocada do regime. Nesse contexto, e sabendo que o serviço de inteligência americano, a CIA, ainda operava na ilha, havia muitos subterfúgios. Tanto que, além da certidão de nascimento original, Soledad providenciou um documento falso para a bebê, com o nome Ñasaindy Sosa Del Sol. A trajetória de Soledad – e de sua família – também ajudam a explicar este tipo de medida.

Neta do escritor e filósofo espanhol Rafael Barrett (1876-1910), Soledad nasceu no Paraguai, onde o avô desenvolveu parte essencial de sua produção literária. As posições anarquistas de Rafael Barrett eram conhecidas, mas ele estava morto havia muito tempo quando o general Alfredo Stroessner inaugurou uma ditadura de 35 anos no Paraguai. Os pais de Soledad, por sua vez, eram militantes políticos antes mesmo de Stroessner tomar o poder, em 1954. Com frequência, mudavam de um país a outro para escapar de problemas políticos. Onde chegavam, a pequena Soledad se destacava. “Ela era uma criatura formosa, de cabelos cor de ouro, macios e longos, pele branca e sobrancelhas de cor castanha escuro quase negra”, registrou em depoimento sua irmã Nanny, já falecida. À medida que crescia, Soledad também passou a se destacar em manifestações políticas

Suástica

Aos 17 anos, ela se tornou alvo de um atentado quando a família morava em Montevidéu, no Uruguai governado por um Conselho Nacional que abolira o cargo de presidente. Na noite de 1o de julho de 1962, no auge de uma série de atentados a comunistas e judeus, Soledad foi sequestrada por quatro homens. Enquanto circulavam de carro pela cidade, os sequestradores não pouparam golpes na tentativa de obrigá-la a repetir frases de louvor a Adolf Hitler. Antes de libertá-la, um último ataque: com canivete, gravaram duas suásticas nazistas nas pernas de Soledad. Fotografias das marcas hoje integram o acervo do Museu da Memória do Uruguai. Damaris, a operária brasileira que anos depois assumiria Ñasaindy como filha, lembra que Soledad não costumava exibir as suásticas: “Eu nunca vi, mas sabia que existiam”.

Depois que José Maria deixou Cuba para voltar ao Brasil, Soledad e Ñasaindy foram morar com Damaris. a menina passava a maior parte do tempo com Damaris. “Soledad trabalhava na rádio Habana Cuba. Além disso, era militante, participava de reuniões, de congressos”, explica Ñasaindy. “Damaris tinha chegado havia menos de um ano, passado por várias cirurgias para se recuperar da tortura. Estava em estado de repouso, embora com três filhos pequenos e uma agregada. Tinha ainda o Ariston, o filho mais velho, preso no Brasil. Ela se preocupava com o destino dele.” Para os filhos menores de Damaris, a chegada de Ñasaindy foi uma festa. “Ela era uma boneca. A gente adorava brincar com ela”, diz Telma.

Damaris também se apegou à menina que mal andava, mas já batia na porta de seu quarto, pedindo para entrar, mesmo quando Soledad estava em casa. E, como lembrou Ñasaindy, a operária se recuperava de uma sucessão de tragédias. Militante política experimentada, junto com o marido, Antônio Raymundo Lucena, Damaris havia trocado o Partido Comunista Brasileiro (PCB) pela luta armada. O casal integrava a linha de frente da organização clandestina Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). No meio de uma tarde de fevereiro de 1970, ela estava com a caçula Telma no colo, alfabetizando os gêmeos Denise e Adilson na sala, quando sua casa no Jardim das Cerejeiras, na cidade paulista de Atibaia, foi cercada pela polícia. Lucena abriu a porta e saiu. Estava armado.

Ninguém sabe ao certo o número de disparos feitos. “Fui o primeiro a sair para o quintal. Meu pai estava deitado ao lado do tanque, todo ensanguentado. Um miliciano chegou e deu um tiro de misericórdia na cabeça dele”, conta Adilson. “Depois, eles encurralaram a gente dentro de casa e ficaram discutindo se matavam ou não. Mais tarde chegou o capitão Mauricio Lopes Lima, da Operação Bandeirantes. Minha mãe começou a ser torturada ali mesmo, na frente da gente. Já era noite quando fomos para a delegacia. Estava tudo cercado pelo Exército. Levaram a Damaris embora e deixaram meus irmãos e eu num orfanato de Atibaia chamado Lar das Mariquinhas.” Nos dias seguintes, Adilson foi tirado duas vezes do orfanato e levado à casa onde morara: “Estava tudo revirado. Eles cismaram com um buraco que tinha no quintal, onde a gente queimava o lixo. Queriam saber para que servia”.

No sofá do DEOPS

A casa do Jardim das Cerejeiras, na verdade, funcionava como um depósito da VPR. Afinal, Lucena era o armeiro da organização. Sob sua guarda a polícia encontrou um arsenal pesado, com 52 armas de fogo, entre elas dez fuzis FAL calibre 7,62 e quatro metralhadoras INA. Encontrou também grande quantidade de equipamentos médico-cirúrgicos, que seriam usados na montagem de uma unidade médica. O material apreendido foi descrito em minúcia nos autos policiais, exceto os valores em papel moeda. “Tinha uma sacola com muito dinheiro da organização”, lembra até hoje Damaris. O certo é que a operária estava sem nenhum tostão quando foi banida do País com os três filhos, em troca do cônsul do Japão em São Paulo, Nobuo Okuchi, que havia sido sequestrado.

Como tinha ficado menstruada na sede da OBAN, a roupa de Damaris estava imunda. No sábado 14 de março de 1970, ao se preparar para embarcar em um Caravelle da Cruzeiro do Sul em direção ao México, ela ganhou roupas da socióloga Eliana Rollemberg, com quem dividia cela. Seus três filhos menores tinham sido levados para a sede do DEOPS, onde foram fotografados em um sofá do andar da diretoria. A imagem encontra-se no acervo da polícia, no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Telma, a filha mais nova de Damaris, se recorda bem da situação, pois ganhou um boneco do capitão Mauricio, que integra a relação de torturadores do projeto Brasil: Nunca Mais. “O boneco que ele me deu era cor de rosa, de plástico, cheio de balinhas. Denise, minha irmã mais velha, jogou todas as balas fora, com medo de que estivessem envenenadas”, lembra Telma.

Após serem fotografadas, as crianças foram reunidas à mãe, pela primeira vez depois do cerco à casa de Atibaia. Damaris ainda trazia marcas da tortura. Seu filho Adilson conta que as roupas de Damaris eram mais curtas do que as habituais: “E ela estava sem calcinha. A dela tinha ficado imprestável. Passou a viagem inteira preocupada, segurando a saia”. Poucos dias depois de desembarcar no México, eles seguiram para Cuba. Na ilha, Damaris reencontrou José Maria, soube que ele era pai de Ñasaindy, e prometeu cuidar da menina quando o marinheiro apostou na volta ao Brasil, em junho daquele mesmo ano.

Segredos no porão

José Maria foi preso três meses depois em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Entre os presos políticos que o viram sob tortura nas dependências de um órgão vinculado ao Exército, o DOI-CODI de São Paulo, estava Ariston, o filho mais velho que Damaris deixara no Brasil. Ariston, que faleceu de problemas cardíacos agora em maio de 2013, costumava relatar que o marinheiro chegou a conversar com ele, mas não comentou nada sobre a filha deixada em Cuba. Nos porões do regime, ninguém falava sobre a vida pessoal. E aqueles dois tinham motivos de sobra para guardar seus segredos. A prisão de José Maria não estava legalizada. Ariston, com apenas 17 anos, tinha escapado de um centro de treinamento no Vale do Ribeira com Carlos Lamarca, o capitão que desertou do Exército para aderir à luta armada. Na fuga, os guerrilheiros mataram um tenente da Polícia Militar, o que acabou valendo a Ariston uma sentença de morte, mais tarde comutada para prisão.

Enquanto isso, em Cuba, a pequena Ñasaindy continuava cada vez mais sob os cuidados de Damaris. “Não sei se é lembrança ou uma cena imaginada, mas me recordo de estar no colo da Damaris, olhando para a Soledad. Mesmo muito pequena, talvez eu tenha percebido que ela estava indo embora”, diz Ñasaindy. A decisão de Soledad de viajar para o Brasil estava associada ao Cabo Anselmo, o líder da Revolta dos Marinheiros da qual José Maria participara em 1964.

Carteira Preta

No papel de agente infiltrado da polícia, Cabo Anselmo convocara militantes em Cuba para retomar ações guerrilheiras no Brasil. Soledad aderiu ao chamado Grupo Primavera, que deveria estabelecer um núcleo da VPR no Nordeste. Era uma armadilha preparada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, que decidira exterminar de vez com a guerrilha urbana. Depois de passar pelo Chile e Uruguai, Soledad chegou ao Brasil, onde acabou se envolvendo amorosamente com Cabo Anselmo. Estaria grávida dele quando se tornou uma das vítimas do esquema, no começo de janeiro de 1973.

Há duas versões para a morte da mãe de Ñasaindy. Pela versão oficial, Soledad estava entre os seis “terroristas” mortos durante um tiroteio na Chácara São Bento, em Recife. É o que afirma o delegado Carlos Alberto Augusto, conhecido como Carteira Preta, hoje lotado na cidade paulista de Itatiba, que atuava como agente policial infiltrado na célula da VPR, ao lado de Cabo Anselmo: “Eu usava o codinome Cesar, porque todos os terroristas, por motivo de segurança, tinham de adotar outros nomes. Fui designado por meus superiores, que cumpriam ordens do governo do Estado, a fazer essa investigação de repressão e combate a terroristas”. O delegado garante que não participou diretamente do episódio: “Eu e o Anselmo não estávamos no local dos fatos. Pelo que fui informado depois, houve um cerco na área de guerrilha e reação na hora da prisão. Os órgãos de repressão tinham interesse em pegá-los vivos, para obter informações. Quando os policiais entraram na área, foram atacados por um cachorro. Um dos policiais disparou um tiro e os terroristas reagiram. Eles sabiam os riscos de morte, sabiam que estavam traindo a pátria”.

A versão oficial foi contestada ainda em janeiro de 1973 por duas testemunhas. Dona da butique Chica Boa, em Recife, a comerciante Sonja Maria Cavalcanti de França Lócio denunciou que Soledad foi presa na sua frente, junto com Pauline Reichstul, irmã do ex-presidente da Petrobras Henri Philippe Reichstul. Soledad estava na butique, onde costumava deixar bordados em consignação, quando ela e Pauline foram levadas por cinco homens armados, à paisana. O marido de Sonja tentou registrar o sequestro à polícia, mas foi aconselhado a esquecer o assunto. No dia seguinte, o casal, que não tinha nenhuma atuação política, viu no jornal as fotos de Soledad e Pauline entre os “terroristas mortos em tiroteio”. Sonja procurou então a Ordem dos Advogados do Brasil. Seu depoimento só começou a ficar conhecido após a redemocratização do País.

Advogada de um dos mortos na chácara, Mércia de Albuquerque Ferreira é a outra testemunha que contestou a versão oficial. Ela faleceu há dez anos, mas, em 1995, gravou em vídeo, na presença do então secretário de Segurança de Pernambuco, o relato que repetia desde janeiro de 1973. A advogada afirmava que, ao saber das mortes, conseguiu licença para entrar no necrotério. Lá, encontrou os seis corpos, todos inchados, “muito estragados”, com cortes e marcas de pancadas: “Em um barril estava Soledad Barrett Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas, e, no fundo do barril onde se encontrava, também havia um feto. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. Era uma mulher muito bonita”.

Ñasaindy tinha quase 4 anos quando Soledad foi morta. “Até uma certa idade, eu era muito chorosa. Depois, criei algumas doenças. Meu pescoço ficava cheio de bolinhas com pus”, conta. Ela estava um pouco mais velha quando assimilou a morte dos pais, mas ainda é marcada pela ausência, principalmente da mãe. “O que me faz sentir muito mal é o abandono. A Soledad fez uma escolha. Naquele momento, a luta era muito importante para ela”, diz Ñasaindy. “Para mim, era difícil juntar a imagem de deusa que me passavam dela com o abandono.”

Sem RG
Quanto à sua trajetória, Ñasaindy comenta que fez pesquisa a vida toda, “para juntar os caquinhos” da própria identidade. Não gostou nem um pouco de entrar com documentos falsos no Brasil: “Tudo o que não era verdade me incomodava”. Estava há quase dois anos em São Paulo quando chegou à casa em que morava e encontrou duas pessoas que não conhecia: “Eu logo vi que aquilo tinha a ver comigo”. Eram sua avó paterna e seu tio Paulo. A família de José Maria esperava por ele desde 1966, quando recebera sua última carta. “Meu pai morreu em 1973, na ilusão de que a qualquer hora ele voltaria”, diz Paulo.

Quatro anos antes da morte do pai, quando foi estudar Farmácia e Bioquímica em Fortaleza, Paulo tinha começado a procurar pelo irmão. Durante uma viagem ao Rio, em 1970, se deu conta de que existiam muitos desaparecidos no País. Intensificou seus contatos com familiares de presos políticos quando começou a fazer pós-graduação na Unicamp. Com a volta dos exilados, a partir de 1979, ele conseguiu reconstituir parte da trajetória do irmão. Só teve certeza de que o José Maria não voltaria quando o escritor Paulo Conserva publicou um artigo no jornal A União, de João Pessoa (PB), relatando que ele havia sido assassinado no DOI-CODI de São Paulo. Ao procurar o escritor, Paulo soube que José Maria tinha uma filha em Havana: “Era uma época difícil. Ninguém abria nada para mim. Todos estavam com receio do Cabo Anselmo. Em 1982, quando eu organizava a viagem para buscar a filha de José Maria em Cuba, soube que Ñasaindy vivia em São Paulo.”

Para chegar à casa de Damaris, Paulo teve de acionar os contatos que cultivara no decorrer dos anos. Só encontrou Ñasaindy depois de se reunir com Ariston, o filho mais velho de Damaris, no escritório de um advogado: “Até hoje me dói muito lembrar a situação precária em que viviam. A Damaris foi ser doméstica e todos os filhos trabalhavam e estudavam à noite. Quando conheci a Ñasaindy, ela vendia balas numa galeria, na região da Avenida Paulista”. Pouco tempo depois, quando terminou a oitava série, Ñasaindy parou de estudar, por causa de sua condição de clandestina: “Na escola, viviam me pedindo o RG, que eu não tinha como tirar. Chegou uma hora que não deu mais para fazer matrícula”.

Nome inspirador

Nessa época, Ñasaindy também já tinha começado a manter contatos com a família de Soledad. Com o passar do tempo, ela estreitou os vínculos com Paulo, o tio paterno. “Ele fez a diferença na minha vida. É o pai que eu não tive”, diz Ñasaindy. Paulo, por sua vez, esperou anos para “assumir” integralmente a sobrinha: “Criada em Cuba, com outra mentalidade, ela era muito independente, desenvolta”. Quando Ñasaindy estava com 27 anos, Paulo contratou um advogado para regularizar a situação da sobrinha. Ñasaindy passou por momentos de crise. “Eu tinha medo de que a minha mãe fosse penalizada de alguma maneira”, afirma, referindo-se a Damaris.

Hoje naturalizada brasileira e formada em Pedagogia, Ñasaindy faz um curso de extensão na Unicamp, onde foi fotografada para esta reportagem, e analisou a vida em retrospectiva: “Eu não sou frágil. Sou muito mais resistente do que imaginava. Esses processos foram duros, mas me fortaleceram muito”. Embora tenha se aliado a Paulo na busca pelos restos mortais dos pais, jamais os encontrou. Ambos constam da lista de desaparecidos políticos do Brasil. Mãe de quatro filhos, Ñasaindy mora em Campinas com os dois mais novos, Habel e Dina. A segunda filha, Ivich, cursa Cinema na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, em Foz do Iguaçu (PR). A mais velha, Yalis, estuda Rádio e TV em São Paulo. Nascida nos tempos em que Ñasaindy vivia com documentação falsa, Yalis assina Lucena, como Damaris. O nome da Ñasaindy, por sua vez, inspirou Samuel Ferreira, que também passou parte da infância exilado em Cuba, na hora de batizar a própria filha. Assim, orgulhosa de carregar um nome “com um significado muito bonito”, vive em São João de Meriti (RJ), a estudante Ñasaindy Ferreira, de 18 anos. Detalhe: as duas Ñasaindys ainda não se conhecem.

por Luiza Villaméa

Brasileiros

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