domingo, 30 de junho de 2013

Jacob Gorender, 90 anos entre livros e lutas

A trajetória de Jacob Gorender se mistura a alguns dos principais acontecimentos do país no século 20. Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) por quase três décadas e criador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Gorender foi muito além da militância prática: tornou-se um dos mais respeitados intelectuais da esquerda brasileira. Em 20 de janeiro deste ano, Gorender completou 90 anos, marcados por estudo, lutas políticas e uma vasta produção acadêmica. Em seus diversos livros, artigos e ensaios, Gorender apresentou ideias até então inéditas sobre o Brasil e sua formação socioeconômica. 

Vida 

Filho de imigrantes russos judeus, Jacob Gorender nasceu em 20 de janeiro de 1923 em Salvador (BA), e sua infância foi marcada por sérias dificuldades econômicas. Começou a trabalhar aos 11 anos, dando aulas particulares e, aos 17, era arquivista em um jornal chamado O Imparcial. Ingressou na faculdade de Direito em 1941 e, em meio a atividades no movimento estudantil, travou contato com Mário Alves, que já militava no Partido Comunista Brasileiro. No início de 1942, Gorender tornou-se o mais novo membro do “Partidão”.

O interesse pela política veio de casa. Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2006(ver abaixo), Gorender contou ter sido influenciado pelas ideias do pai. “Meu pai, particularmente, era um homem com ideias, digamos assim, esquerdistas. Não tinha formação cultural elevada, não freqüentou academias, era um homem muito simples. Mas gostava de ler e, de certo modo, a sua posição influiu muito nas minhas atitudes”, afirmou.

Em 1943, aos 20 anos, outra decisão importante na vida do jovem: alistou-se como voluntário da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para combater o nazi-fascismo na 2ª Guerra Mundial. Ao retornar ao Brasil, em 1945, encontrou o Partido Comunista na legalidade. Instalou-se por um período no Rio de Janeiro, onde conheceu Luís Carlos Prestes. Depois de alguns meses, retornou a Salvador, onde decidiu abandonar de vez a graduação em Direito. Com isso, passou a dedicar-se integralmente à militância política, tornando-se membro do secretariado do Comitê Municipal do PCB, em Salvador.

Em 1946, mudou-se novamente para o Rio de Janeiro, onde integraria a redação do jornal Classe Operária, órgão central do Partido Comunista. Em 1955, outra viagem internacional: Gorender foi à União Soviética para participar de um curso da escola superior do Partido Comunista soviético.
Ali, os estudantes tinham lições de materialismo dialético, economia, política, história do movimento operário mundial, dentre outros pontos. Gorender integrava uma turma com 50 brasileiros, coordenada por Maurício Grabois.

Gorender permaneceu na URSS por dois anos e, ao retornar ao Brasil, seguiu com a militância no Comitê Central do PCB – do qual se tornaria membro efetivo em 1960. Em 1964, com o golpe militar, Gorender passou a atuar na clandestinidade.

Com a solidariedade dos amigos, pode continuar com seus estudos. Valdizar Pinto do Carmo e sua companheira, Sonia Irene do Carmo, haviam conhecido Gorender em 1960, durante um encontro de estudantes militantes do PCB. Alunos da Universidade de São Paulo (USP), o casal facilitava o acesso de Gorender aos livros. “Para dar apoio a ele, levantávamos bibliografia sobre o período estudado e retirávamos das bibliotecas os materiais que ele indicava”, recorda Valdizar.

A esta altura, conta o amigo, Gorender estava interessado sobretudo na história do período colonial do Brasil. O intelectual permaneceu no PCB até 1968, quando saiu da organização para fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), ao lado de Mário Alves, Apolônio de Carvalho e outros comunistas. 

Prisão 

Em 1970, Gorender passou por uma de suas experiências mais marcantes: foi preso em São Paulo por agentes do Esquadrão da Morte, chefiado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, e levado ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde foi torturado. O destino de Gorender foi o presídio Tiradentes.

Nesse momento, tinha 47 anos, muitos a mais que seus colegas de prisão – a maioria na casa dos 20. Ali, passou a dedicar-se ainda mais aos livros. Quem o ajudou na missão foi sua companheira, Idealina, que levava, nos dias de visita, as obras pedidas pelo marido.

Graças a Gorender, a cela tornou-se um ambiente de difusão de conhecimento, como conta o jornalista e escritor Alipio Freire. “O Jacob sempre organizou debates para a gente na cela. Ele começou com o hábito de incentivar os presos que tinham mais informação a expô-la para os outros. Alguns ensinavam francês, outros história, era todo tipo de conhecimento”, salienta.

Gorender em seguida organizou um curso sobre história econômica do Brasil, ministrado todas as segundas-feiras à noite em sua cela. A atividade era “concorrida” na cadeia, como relembra o jornalista e artista plástico Sérgio Sister. “O Jacob era a grande personalidade da cadeia. Nós aprendemos muito com ele”, afirma. O curso sintetizava algumas das ideias que Gorender defenderia em sua tese O Escravismo Colonial, que viria a ser lançado em 1978 pela editora Ática. 

Legado 

Jacob foi libertado da prisão cerca de dois anos depois, quando passou a se dedicar integralmente ao trabalho de tradutor e a investigar a realidade brasileira. Uma das principais qualidades do intelectual, para Sérgio Sister, era o rigor que dedicava aos seus objetos de estudo.

“O Jacob é uma das figuras da esquerda brasileira que sempre exigiu rigor no estudo e na apreciação das questões. Ele tinha muita preocupação com o conhecimento da realidade brasileira, em não deixar a coisa no ‘chute’ ou no romantismo”, destaca.

“O Jacob é um dos caras mais sérios e lúcidos para analisar a realidade brasileira e os nossos problemas como militantes comunistas, o que queremos para nós mesmos e para a sociedade brasileira. Ele foi muito importante para aquela geração, para quebrar alguns mitos da verdade absoluta de sempre”, diz Alipio Freire. 

Autodidata, Jacob Gorender permaneceu à margem do campo acadêmico durante muitas décadas. Somente em 1994, aos 71 anos, seu mérito foi reconhecido com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Jacob Gorender, um dos mais notáveis entre os intelectuais marxistas brasileiros, despediu-se da vida no dia 11 de junho de 2013, em São Paulo.

por Patrícia Benvenuti

Brasil de Fato

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Leia abaixo duas entrevistas de Jacob Gorender. A primeira, concedida a Alípio Freire e Marcelo Ridenti e publicada no 9º número da revista Margem Esquerda (publicada em 2007), disponível para venda aqui. A segunda consta dos arquivos do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo.

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Jacob Gorender nasceu em Salvador, Bahia, em 1923. Filho mais velho de imigrantes judeus russos, bastante pobres, com muito esforço chegou à faculdade de direito, que acabou abandonando para alistarse como voluntário da Força Expedicionária Brasileira, lutando na Itália como soldado na Segunda Guerra Mundial. Militante profissionalizado do Partido Comunista (PCB), exerceu cargos importantes em sua estrutura, atuando em vários estados entre 1942 e 1968, quando saiu para fundar – com Mário Alves, Apolônio de Carvalho e outros – o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Sua atividade na oposição à ditadura o levou a dois anos de prisão em São Paulo. Ao sair da cadeia, deixou a militância partidária e desenvolveu seu veio intelectual, ancorado em base sólida, adquirida como professor em cursos do PCB e jornalista de várias publicações comunistas, além de formulador teórico do partido. Desde os anos 70, tem escrito uma obra consistente sobre a história do Brasil, em livros como O escravismo colonial (1978), Combate nas trevas (1987), A escravidão reabilitada (1990), Marcino e Liberatore (1992), Marxismo sem utopia (1999), todos publicados pela editora Ática, de São Paulo.

A entrevista foi realizada na casa de Gorender. Com a clareza e a verve que o caracterizam, ele conversou durante cerca de quatro horas com Alípio Freire e Marcelo Ridenti. A seguir, seguem os trechos principais da entrevista para a Margem Esquerda, cuja edição coube a Rodrigo Nobile e Marcelo Ridenti, redator também desta breve introdução. Com a palavra nosso pensador das esquerdas e do Brasil, que revisou o texto que segue.

Família e estudos
Nasci em 20 de janeiro de 1923. Éramos cinco irmãos, todos homens. A minha família era paupérrima, por diversas circunstâncias. Cheguei a passar fome, tive alimentação deficiente, que influenciou minha saúde, pois fiquei enfraquecido. Quando meu pai se casou em segundas núpcias com a minha mãe, ele já tinha cinquenta anos e ela uns trinta. Ou seja, ele não tinha mais forças para fazer o trabalho que os judeus faziam, de ir às periferias vender utensílios domésticos. Bolsas, sapatos, cortes de fazenda etc. (um judeu ia à frente, com uma caderneta, e um negro ia atrás, com um baú. Lembro-me de que eles anotavam tudo na caderneta e os negros, pardos e mulatos, seus clientes, eram de uma honestidade absoluta). Assim, meu pai conseguiu um emprego, por meio da comunidade judaica: entregava pães, logo pela manhã.

Estudei em uma escola israelita chamada Jacob Dinenson. Depois, cursei o ginasial clássico, de quatro anos, naquele que veio a se chamar posteriormente Colégio da Bahia. Lembro que tive um tênis que furou e precisei tapar com papelão para continuar calçando. Como era bom aluno, poderia passar no vestibular da faculdade de direito, mas não tínhamos dinheiro nem para pagar a taxa de inscrição. Assim, perdi um ano. Quem me ajudou foi o Ariston Andrade, que trabalhava na Infraero. Ele me arranjou emprego no jornal O imparcial, que circulava em Salvador, pertencente à família de um coronelão do interior chamado Franklin Albuquerque, que comprou o jornal para defender seu monopólio da produção da cera de ouricuri, usada na época para fazer discos de vinil.

Judaísmo
Não posso negar que o fato de ser judeu exerce uma influência sobre meu modo de ver as coisas e a cultura. Além das disciplinas obrigatórias – dadas por um professor negro, aliás –, havia aulas de iídiche, língua não mais falada em Israel, que hoje usa apenas o hebraico modernizado. Na Bahia viviam cerca de mil judeus e a comunidade tinha uma sede em que se celebravam os cultos religiosos, onde curiosamente se separavam os asquenazes, que vinham da Europa, e os sefardim, que vinham de países árabes. Eu frequentava a sinagoga e comemorava as festas judaicas. Mas quando tinha quatorze anos comprei em um sebo, na praça da Sé, A origem das espécies, de Charles Darwin, que prova que a espécie humana não nasceu pronta e acabada, mas é o resultado de um processo de evolução. Por isso me tornei ateu, não fui mais à sinagoga e abandonei a religião.

Pessoalmente, nunca sofri discriminação dentro ou fora do partido pelo fato de ser judeu. Nunca perdi uma promoção, um posto, nunca fui recusado etc.

No Brasil, acho que as pessoas podem ter ideias anti-semitas, mas o antisemitismo como ação prática quase não existe. Getúlio Vargas fechou alguns jornais que eram editados em iídiche e tomou algumas medidas anti-semitas, mas depois teve de entrar na guerra e não pôde continuar com essas ações.

Jornalista e comunista
Comecei como arquivista em O imparcial, trabalhando num setor com um pó tremendo – e eu sofro de rinite… Mas logo o secretário Edgard Curvelo, um típico secretário de jornal que gritava com todo mundo, percebeu minhas potencialidades e me colocou na seção internacional. Recebíamos o noticiário via rádio da Associated Press e eu editava. Depois fui trabalhar no Estado da Bahia, dos Diários Associados, do Assis Chateaubriand.

Outra revista importante dos comunistas baianos era a Seiva, financiada por João Falcão – comunista pertencente a uma das famílias mais ricas da Bahia –, da qual fui redator e diretor. A redação se localizava na rua Chile, uma das mais chiques de Salvador. Tiramos uns vinte números, nos quais publiquei vários artigos. Acho que o fato mais interessante foi causado pela publicação de uma entrevista incisiva com o general Manuel Rabelo, do Superior Tribunal Militar, que tinha uma posição antifascista. Eu o entrevistei em Salvador. Ele disse que o Brasil precisava participar da guerra efetivamente. Isso antes da criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Achava que não valia a pena declarar guerra e não participar; denunciou que os soldados convocados, em vez de serem treinados para a guerra, ficavam limpando latrinas. Isso atraiu uma censura pesada sobre a revista. Eles não podiam punir o general, mas eu e os irmãos João e Wilson Falcão terminamos na prisão, na Guarda Civil de Salvador, onde ficamos uns cinco ou seis meses, acusados de subversão, por termos publicado a entrevista. O general foi de uma dignidade irreprochável, confirmando a entrevista. Só sei que, após essa entrevista, a revista fechou. Mas a polícia não sabia que éramos comunistas.

O fato é que em julho de todos os anos se reunia no Rio de Janeiro o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), que tinha grande repercussão nacional. Eles se reuniam em um edifício na praia do Flamengo que era chamado Germânia, mas o Getúlio mandou nacionalizar todos os nomes estrangeiros. A sede foi doada à UNE pelo Getúlio, que recebia a delegação dos estudantes na época dos congressos – mais tarde, fiz um discurso lá, já como soldado da FEB. Em uma das audiências com os estudantes, eles se queixaram de que havia antifascistas presos e Getúlio mandou nos soltar, anulando o processo.

Tornara-me comunista em 1942. Fui recrutado por Mário Alves, que conhecera na militância estudantil e a quem dediquei meu livro Combate nas trevas. Era a época do Estado Novo, ditadura de Getúlio, os livros antifascistas não circulavam, o comunismo era perseguido. Navios brasileiros foram torpedeados pelos submarinos do Eixo. Muitos civis afogados desses navios vieram parar na costa do Nordeste, inclusive da Bahia, provocando um movimento popular vigoroso com grandes passeatas, o que levou o Brasil a declarar guerra ao Eixo. Eu participei da campanha para o Brasil entrar na guerra, fiz discursos públicos e me tornei conhecido. Nessa época o jornal passou a ter um programa de rádio que era realizado na própria redação, e eu falava por uns quinze minutos sobre a área internacional. Já era 1942, uma fase em que o nazismo estava declinando. Em 1942 se dá a importantíssima batalha de Stalingrado. Em agosto de 1942, o governo brasileiro declarou guerra ao Eixo.

Participação na FEB
Em 1943, o governo de Getúlio, já alinhado aos Estados Unidos, fez um projeto de enviar três divisões brasileiras à Itália. No final só enviou uma divisão, 25 mil soldados. Havia os soldados dos regimentos, mas também se abriu o voluntariado. Nesse ínterim, um general fez uma provocação: “Os estudantes que participaram das manifestações, exigindo que o Brasil participasse ativamente da guerra, têm agora a oportunidade de se apresentar como voluntários”. Assim, eu, o Mário Alves e o Ariston Andrade decidimos nos apresentar voluntariamente, sem passar pela aprovação do Partido Comunista, que na época se encontrava esfacelado, em virtude da repressão. O Mário Alves era muito franzino, portanto não foi aceito. Eu tinha naquele momento uns vinte anos, era franzino e tinha a estatura mínima permitida, mas acabei incorporado ao Exército. Fomos enviados em um pequeno navio a São Paulo, já que na Bahia não havia treinamento apropriado. O naviozinho no qual fomos para o sul era acompanhado por um navio de guerra brasileiro, pois havia o perigo de torpedeamento. As condições eram precárias, dormíamos ao relento, fazendo do nosso capacete o travesseiro. Felizmente não choveu. Serviam carne quase crua, o que causou aos soldados grande descontentamento, e eu pensei que fosse resultar num levante. Seria um pão-de-ló para os nazistas se houvesse esse levante. Então tomei coragem, fui conversar com o capitão do navio e, com diplomacia, alertei-o quanto ao perigo. Ele tomou providências, a comida melhorou e tudo acabou bem. Quando cheguei a Taubaté, onde o treinamento era dado, recebi um fuzil Springfield norte-americano, fizemos exercícios com canhões, mas fui selecionado para o pelotão de transmissões, no setor telegráfico, que exigia certo nível cultural, pois havia a necessidade de aprender o código Morse. Apresentei-me, falando que era terceiranista de direito. Nessa condição, fomos à Itália. Entramos em um navio norte-americano, no Rio de Janeiro, e partimos. Os norte-americanos proibiram todos os pratos da culinária brasileira, como a carne seca, os outros ingredientes da feijoada, só permitindo na Itália o feijão com arroz. Forneceram-nos dois sacos de roupas, um para o inverno e outro para o verão europeu.

Comunistas na FEB
Apesar de estarmos sob o Estado Novo, havia alguma liberdade de imprensa, pois o inimigo era o fascismo. Maurício Grabois, Pedro Pomar e João Amazonas editavam uma revista chamada Continental, que defendia as posições antinazistas. Fui à redação no centro do Rio, onde conheci o Grabois e eles me deram uma senha para contatar alguns comunistas, que também embarcariam comigo. Eram quatro oficiais, entre tenentes e capitães, e alguns sargentos. Nenhum soldado, que eu me lembre, mas pode ser que me engane. Eu estabeleci contato com os oficiais. A importância do grupo era pequena, pois eram poucos, não se pode superestimar. Vou mencionar um nome, pois ele já morreu e isso não interferirá em sua carreira militar: Alberto Firmo de Almeida, do setor de transmissões, o que me possibilitou um contato freqüente sem levantar suspeitas. Outro comunista que gostaria de citar é o Hilton Vasconcelos, combatente na artilharia. O encontro era difícil, pois estávamos em guerra e a frente se estendia por uns vinte quilômetros, mas, como eu trabalhava na transmissão, tinha alguma mobilidade. Ficávamos na estrada 64, sofrendo os bombardeios dos alemães que dominavam o monte Castelo. Durante o inverno, a FEB realizou três tentativas de tomá-lo, que fracassaram porque nevava muito e não havia condições de progredir. Uns vinte soldados, que se aproximaram do comando alemão, morreram ali, e seus cadáveres só foram resgatados quando a neve derreteu. No total, o Brasil perdeu 484 soldados, aos quais se acrescentam cerca de três mil feridos. Alguns amigos morreram, mas nenhum de antes da guerra.

Não me lembro de ter recrutado nenhum soldado para o partido. A FEB editava um jornal, impresso em Florença, que tinha a colaboração do pintor comunista Carlos Scliar. Nesse jornal, publiquei um artigo assinado. Não conhecia o Salomão Malina na época, ele não era da minha unidade. Ele foi condecorado por bravura. Depois da guerra, quando Malina se tornou comunista, o presidente Dutra cassou sua medalha. Não se pode cassar o heroísmo.

Pós-guerra
Quando retornamos ao Brasil, demos baixa. Voltei a Salvador e me integrei ao Partido Comunista (PC), cujo dirigente principal era o Giocondo Dias. Ali passei a dirigir o jornal que o partido editava, chamado O momento, precário graficamente, com uma impressora muito modesta, mas tirávamos entre 1.500 e 2 mil exemplares que circulavam diariamente. Ao mesmo tempo, militava no comitê municipal do PC. Até que os dirigentes nacionais, que ficavam no Rio de Janeiro, me convocaram para trabalhar lá, no Classe operária, o jornal teórico do partido, semanal. Depois, passou a se chamar Novos rumos. Eu aceitei mudar de Salvador, embora soubesse que isso ia magoar meus pais. Foi no final de 1946. Além de Novos rumos, trabalhei para o jornal diário A imprensa popular, até que eles foram fechados e veio a ilegalidade do partido. Mas como eu não havia participado de nenhuma ação direta, vivia legalmente.

No Rio, ajudei a fundar a associação dos ex-combatentes, que se reunia em um edifício de uma entidade chamada Liga de Defesa Nacional. Permaneci no Rio uns seis anos, depois me desloquei para São Paulo, por volta de 1953. O primeiro-secretário do PC em São Paulo era o Carlos Marighella, eu era o segundo-secretário de propaganda. Depois houve a campanha pela paz, o famoso Apelo de Estocolmo, que dizem ter sido redigido por Stalin. Fazíamos
coleta de assinaturas, mas a minha participação não foi relevante.

Eu lia muito, tinha muita curiosidade. Stalin e Lenin, todos éramos obrigados a ler. Depois do Estado Novo, a literatura marxista tornou-se mais disponível. Recebíamos as obras basicamente em castelhano, algumas em francês.

Curso na União Soviética
Já haviam enviado a Moscou uma primeira turma de estudantes, com o Apolônio de Carvalho e outros. Fui na segunda turma, em meados de 1955, verão lá. Em vez de vivermos em Moscou, nos colocaram a 30 quilômetros, em uma mansão gigantesca, que deveria ter pertencido a alguma família da nobreza do tempo de czarismo. Em um pavilhão ficaram uns quarenta homens e em outro cerca de uma dezena de mulheres, entre elas a minha futura companheira, Idealina. Nos enamoramos, mas só nos unimos no Brasil, pois ali não era possível. Ficávamos isolados e só tínhamos contato com professores, seguranças, uma enfermeira e cozinheiros. Apenas quando tínhamos problemas médicos nos levavam a Moscou, e raras vezes para assistir a peças de teatro ou concertos no Teatro Bolshoi. Em seis ou sete meses, eu já podia falar russo. Ali as aulas eram em russo, com tradução para o espanhol, pois não havia tradutor para o português. Mas poucos tinham familiaridade com o espanhol, estes contavam com a ajuda dos colegas.

Nos domingos havia uns bailecos, com vitrola de discos de acetato em 48 rotações. Tocavam-se valsas, sambas, algumas músicas russas que serviam para dançar. Mas tinha umas dez mulheres para quarenta homens, então as coitadas tinham que dançar sempre, revezando os parceiros. Havia uma vigilância moralista, mas ali nasceram namoros, acho que não apenas o meu.

XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética
Não me incluíram na delegação brasileira ao XX Congresso do Partido Comunista soviético, em 1956. Os delegados foram o Diógenes Arruda Câmara, o Mário Alves e o Maurício Grabois, que era o chefão da nossa turma. Também foi delegado o Jover Telles, que mais tarde viria a se tornar um traidor, como se sabe, pois entregou a direção do PCdoB em 1976. Lamento muito o ocorrido.

Aí explode o famoso informe de Kruschev. Primeiramente o Pravda, que eu já lia, publicou uns excertos, afirmando que o congresso havia criticado Stalin; mas o informe não foi publicado. Tive acesso a ele, pois a enfermeira da casa tinha um exemplar em russo. Assim, com a benevolência dela, pude me informar de todos os detalhes e contá-los ao Arruda e ao Grabois, que não dominavam o russo. Eles ficaram alarmados e pensaram: “Vai sobrar para nós”, pois a direção brasileira era de um stalinismo tremendo. E sobrou mesmo. Quando saiu o informe de Kruschev, isso dividiu a nossa turma. Uma parte achou que não era justo e a outra ficou a favor do informe, inclusive eu.

Quando a União Soviética invadiu a Hungria em 1956, isso nos causou uma péssima impressão. Ao menos no pessoal com ideias mais avançadas dentro da nossa turma. Tínhamos um rádio em nosso quarto. Acompanhei as transmissões vindas de Budapeste, em língua russa. Foi emocionante. Eles diziam: “Estão nos cercando”, “Disparam contra nós”, até que a transmissão cessou.

Voltando ao informe, como se sabe, ele vazou no exterior. Acho que o próprio
Kruschev foi responsável pelo vazamento. No Brasil, chegaram informações, uma vez que o informe tinha sido editado pelo New York Times, e reeditado pelo Estado de S. Paulo. A princípio, os comunistas brasileiros acharam o documento apócrifo, mas quando a delegação chegou da União Soviética, o Arruda e o Mário Alves confirmaram que o documento era exato. Foi um deus-nos-acuda, porque as bases se rebelaram. Um intelectual do partido chamado João Batista de Lima e Silva, um sergipano muito inteligente e culto, diretor de Novos rumos naquele momento, abriu um debate nessa publicação e na Imprensa popular. Todos podiam escrever e dar a sua opinião. Assim, diariamente apareciam cartas e artigos de companheiros, dirigentes ou não, que eram publicadas, criticando o partido, a direção etc. Com isso, foram inevitáveis as mudanças na direção. Essas notícias nos chegaram em Moscou. Nós voltamos em 1957, quando soubemos que a luta interna era intensa e que o partido corria o risco de se dividir.

Declaração de março de 1958
Eu participava de um grupo chamado “abridistas”, ou seja, os favoráveis à abertura da discussão. Tornei-me diretor da Imprensa popular, jornal favorável à discussão. Quando voltei ao Brasil, formamos um grupo que se reunia no apartamento de um intelectual do partido, muito culto, chamado Alberto Passos Guimarães. Eu, Mário Alves, Armênio Guedes, Giocondo Dias – que fazia a ligação com Prestes, ainda sob clandestinidade moderada – e o Alberto. O Jorge Amado participou de uma ou duas reuniões, mas depois se afastou. O Apolônio se integrou depois, quando voltou ao Brasil. Nessas reuniões surgiu a idéia de elaborarmos um documento que viria a ser conhecido como Declaração de março de 1958. A declaração teria de romper com a linha do chamado Manifesto de agosto de 1950, que pregava a luta armada, e oficialmente ainda estava em vigor. Nós estávamos no governo de Juscelino, não havia um único preso político, a imprensa era livre, os jornais do partido circulavam abertamente, então a nossa linha estava fora de sintonia. Assim, redigi a declaração, que foi uma obra coletiva proposta por nós e aprovada pelo Prestes. Essa declaração passou a ser a linha do partido. Em 1960 se reuniu o V Congresso do Partido, que corroborou a linha da Declaração de março e ampliou o contexto e abordou outros assuntos, resultando em um livreto. Houve mudanças na direção. Saíram o Amazonas, o Grabois e Pomar, que foram fundar o PCdoB.

A revista Estudos sociais
A revista Estudos sociais foi criada pelo PC para publicarmos os artigos de maior fôlego que sugiram e não cabiam na imprensa diária. Foram dezenove números, até que veio o golpe de 1964. Não tínhamos divisões, apenas discussões. Eu tinha boas relações com o Leandro Konder, o Carlos Nelson Coutinho, o Astrojildo Pereira – que era um patriarca, fundador do partido –, o Jorge Miglioli, entre outros. Não havia veto da direção do partido sobre os artigos. Havia limites, não se podia ir além do que Prestes aceitaria. Ele até abriu
muitas coisas, mas havia um limite.

O pré-64
Não se pensava em luta armada no partido até 1964. Mas havia uma divergência
no Comitê Central sobre o que apoiar e criticar no governo do Jango, e antes no do Juscelino. Em que sentido mobilizar as massas? Era esse o ponto, mas não se falava ainda em luta armada, embora sofrêssemos a influência das revoluções chinesa e cubana.

O Fidel passou aqui no Rio em 1960, voltando de um comício em Buenos Aires, e fez um comício na Esplanada do Castelo para umas 10 mil pessoas, pois não houve tempo para uma grande mobilização. Fidel não falou em socialismo, e não foi tão radical como depois se tornaria. Mas falou em libertação, antiimperialismo, antiamericanismo etc.

Em Combate nas trevas, de fato, afirmo que não preparamos uma resistência ao golpe de 1964 e deveríamos tê-la preparado, uma resistência de massas, mas não quer dizer que hoje eu pense exatamente igual ao que escrevi no Combate. Não advertíamos as massas, não as mobilizamos, estávamos tranquilos, dentro das condições do governo Jango. Quer dizer, não havia nenhuma ideia de que um golpe pudesse ocorrer. Não havia sequer refúgios no caso de um golpe, nem para a própria direção. Eu estava em Goiânia quando ocorreu o golpe, e passei à clandestinidade, não podendo voltar à casa no Leblon onde passei o período mais feliz da minha vida. Nessa condição, passei a atuar em São Paulo e Rio Grande do Sul, já casado com a Idealina.

PCBR

Na clandestinidade, foi fundado o PCBR. Fizemos uma reunião de militantes divergentes em Niterói e ali surgiu a ideia de fundarmos um outro partido. O Marighella não foi, pois já estava atuando por conta própria, com o que viria a se tornar a Ação Libertadora Nacional (ALN). Mas nós queríamos ter um partido, então mantivemos a sigla e agregamos o R – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. O PCB, com o Giocondo e o Prestes, já não nos interessava, e dele fomos expulsos em 1967. O PCBR chegou a fazer algumas ações armadas, no Rio e em Recife. Eu era o responsável pelo PCBR em São Paulo e aqui não permiti nenhuma ação armada. Era um núcleo não muito grande e procurávamos influir por meio da imprensa, da publicação de folhetos, entre outras atividades.

Prisão
Fui preso no dia do meu aniversário, em 20 de janeiro de 1970, e fiquei no antigo presídio Tiradentes. Fui condenado a dois anos, pois não tinha cometido assaltos, me acusaram apenas de atividades subversivas. Meu advogado foi Raimundo Pascoal Barbosa, aqui em São Paulo, na Auditoria Militar. No Rio, no Tribunal Superior Militar, foi o George Tavares, ambos muito eficientes.

Fui torturado, não tanto como o Mário Alves, que foi meu grande amigo, companheiro de estudos, de uma vida inteira. O Mário foi preso, levado ao quartel da Polícia do Exército da rua Barão de Mesquita, no Rio, e foi uma das pessoas mais torturadas do período da ditadura militar. Como sempre, os torturadores queriam primeiramente o local onde a pessoa morava, depois quais eram os seus pontos. Se ele revelasse onde morava, a mulher e a filha seriam estupradas, torturadas e assassinadas. Ele sabia disso e não entregou a casa dele. Ele não é lembrado como devia, mas é um dos grandes heróis do povo brasileiro.

Outro herói é o Apolônio de Carvalho, recentemente falecido. No ano passado, estive no Rio e fui visitar a viúva dele, Renée. Na entrada do edifício do Leblon, havia uma placa com os dizeres “Aqui morou Apolônio de Carvalho, herói do povo brasileiro”. Na França, é comum encontrar isso. Esse fato me deixou muito emocionado.

O escravismo colonial
Ao deixar a cadeia, tive várias fases. A primeira coisa que fiz para ganhar a vida foi tradução, do espanhol e inglês principalmente, para a Editora Ática. Trabalho penoso, nem sempre traduzia o que gostava. Antes da prisão já tinha a idéia de escrever O escravismo colonial, porque, das leituras que eu fazia, não via razão para caracterizar o passado brasileiro como feudal, que era a doutrina oficial do partido, tendo sido o Brasil o maior importador de escravos de toda a América. Na cadeia, dei um curso sobre isso. Pareceu-me que o passado brasileiro nada teve de feudal, mas sim de escravista. Aí percebi que, trabalhando com tradução, não conseguiria fazer um livro. Comecei a contatar algumas pessoas que pudessem me dar uma quantia em dinheiro, que me propiciassem condições de me dedicar em tempo integral ao livro. Assim, pude escrevê-lo em uma velha Olivetti, e foram várias pessoas citadas nos agradecimentos do livro.

Pude freqüentar a Biblioteca Municipal, a biblioteca da Universidade de São Paulo (USP) – da qual não podia retirar livros, mas outros companheiros retiravam e me emprestavam – e frequentar arquivos do Estado. Ou seja, juntar a documentação. Nisso passei uns três ou quatro anos. Com o texto pronto e revisado à mão, precisava editá-lo. Mas como fazer isso? Já tinha uns cinquenta anos ou mais, não era conhecido, pois havia apenas publicado artigos. Aí fui até o José Adolfo Granville, que trabalhava na Ática. Ele tomou os originais e entregou ao consultor da editora, o professor Alfredo Bosi, a quem sou extremamente grato. Ele não me conhecia, pois eu não era universitário, mas recomendou a publicação, que ocorreu em 1978. Depois vieram mais seis edições, às quais fui acrescentando dados, novas entrevistas, e a obra assumiu a forma definitiva. Terminado o livro, fui trabalhar na Editora Abril, e lá fiquei durante oito anos, graças ao Pedro Paulo Poppovic, que era o chefão e grande sujeito.

Combate nas trevas
Depois, nos anos 80, me ocorreu a ideia de escrever sobre o que foi o período militar. Era necessário contar o que houve para fazer a autocrítica da esquerda. Estávamos entrando no período da constituinte de 1986, que culminou com a Constituição de 1988. Tinha que contar o que foi a violência pavorosa da ditadura, com o DOI-Codi, Operação Bandeirante, tortura, assassinatos. Também por parte da esquerda, dos assaltos, dos justiçamentos. Nessa época, eu já tinha o dinheiro, que obtive com amigos, para me dedicar à tarefa integralmente. A primeira edição foi ampliada, pois consegui outras entrevistas que antes, por receio, não eram dadas.

Balanço e projetos de vida
Minha vida poderia ser diferente? Poderia. Muitas coisas que acontecem levam a tal ou qual caminho na vida, mas seria difícil que fosse diferente. Primeiramente, eu venho de uma família muito pobre, o que me empurrava à esquerda, com ódio ao capitalismo. Tornei-me materialista, antes de conhecer o marxismo, através do Darwin. Minhas convicções socialistas anticapitalistas se formaram solidamente nesse período e duram até hoje. É claro que tantas coisas aconteceram, veio o XX Congresso da União Soviética, as revelações do Kruschev, a dissolução da União Soviética, depois voltei em 1991 a São Petersburgo, Hungria e Polônia, onde pude conversar com muitos adeptos dos partidos comunistas daquela época. Eu vi pela televisão, em Varsóvia, o último discurso do Gorbatchev, que já não governava nada, quando baixaram a bandeira de União Soviética e hastearam a da Rússia. E a Rússia se tornou um país entrosado no capitalismo, à sua moda, com grande presença do Estado, sem dúvida, mas capitalista.

Tenho 84 anos completos e boa saúde. Meu pai viveu 90 anos e minha mãe, 85, ou seja, ainda não cheguei à idade deles e tenho mais recursos médicos. Se tiver tempo, inspiração e força, vou escrever um livro sobre Fidel Castro, comparando-o a Stalin, dois governantes inspirados pelo marxismo. Admiro o heroísmo do Fidel, de ter feito de Cuba um baluarte do projeto de socialismo, apesar de ser um país pobre e vizinho dos Estados Unidos. Mas preferiria que em Cuba houvesse uma democracia socialista. Como seria, não sei. É um ideal. Algum dia será realidade.
 


Entrevista para o programa Roda Viva em 16/1/2006

Jacob Gorender, 82 anos, é historiador e é história. Filho de um imigrante judeu ucraniano e socialista, nasceu num bairro pobre de Salvador, onde cresceu e estudou até entrar na Faculdade de Direito e no PCB, o então Partido Comunista do Brasil [O PCB, fundado em 1922]. Como todos os jovens estudantes comunistas, defendia a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Foi além do verbo e alistou-se, com outros companheiros. Na Itália, participou da tomada do Monte Castelo, a mais importante batalha enfrentada pelos pracinhas da FEB, a Força Expedicionária Brasileira. De volta à Bahia, Jacob Gorender retomou o curso de direito que deixou logo adiante para militar profissionalmente no PCB. Chegou a ser membro do Comitê Central do partido que rachou em 1967, quando Jacob Gorender e outros saíram para fundar o PCBR, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário [em 1962, dissidentes do PCB fundaram também o PC do B]. Como jornalista, escreveu e dirigiu as principais publicações comunistas: Classe Operária, Imprensa Popular e Voz Operária. Foi preso e torturado depois do golpe de 1964. Quase quarenta anos de participação e influência no movimento comunista, quase uma dezena de livros publicados. Jacob Gorender, intelectual reconhecido e historiador polêmico, que atuou como professor visitante no Instituto de Estudos Avançados da USP [Universidade de São Paulo], abriu com sua obra novos capítulos na história do Brasil. De um lado, ampliando a análise do passado escravista do Brasil e, de outro, reavaliando a atuação da esquerda e da luta armada no período da ditadura militar. 

Paulo Markun: Para entrevistar o filósofo e professor Jacob Gorender, nós convidamos Beatriz Kushnir, historiadora e diretora do Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro; Alfredo Bosi, vice-diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, professor titular de literatura brasileira e membro da Academia Brasileira de Letras; o escritor Jorge Caldeira; Lúcia Hipólito, cientista política, jornalista e colunista da rádio CBN; Marco Antônio Villa, professor de história da Universidade Federal de São Carlos e Ricardo Maranhão, historiador e cientista político da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Participa também do programa Lincoln Secco, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O programa também tem a presença do cartunista Paulo Caruso, registrando com seus desenhos os momentos mais importantes da entrevista. O programa é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e para Brasília, também. E por estar sendo gravado, não permite hoje a participação dos telespectadores com suas perguntas. Professor Gorender, boa noite. 

Jacob Gorender: Boa noite.
Paulo Markun: Eu queria começar do "começo". Que o senhor contasse onde o senhor nasceu e como foi o começo de sua vida.
Jacob Gorender: Bom, eu nasci na cidade de Salvador, sou soteropolitano. Por que meus pais foram para lá, sendo imigrantes ,e não para o Rio de Janeiro ou São Paulo, eles nunca me explicaram. Porque Salvador era uma cidade bastante atrasada naquela época. Mas, enfim, passei a minha infância em Salvador e também parte da minha juventude. E tenho um grande afeto por essa cidade, pelo seu povo...
Paulo Markun: [interrompendo] Mas o senhor se considera baiano, ou a marca da família de imigrantes pesa mais do que a "baianidade"?
Jacob Gorender: Eu creio que o que pesa mais é a "baianidade". Eu sou filho de imigrantes judeus, mas me considero completamente integrado no espírito brasileiro, na "brasileiridade" e, de certo modo também, na "baianidade", embora viva há muito mais tempo aqui no sul.
Lúcia Hipólito: Professor, havia uma comunidade judaica importante na Bahia nessa época?
Jacob Gorender: Não era muito importante. Em todo caso, havia ali uma comunidade, digamos, com cerca de mil pessoas de várias categorias. Havia uma sociedade israelita, uma sinagoga onde se cumpriam os rituais religiosos e uma escola primária. Foi onde eu me alfabetizei. Nessa escola ensinavam as disciplinas obrigatórias das escolas primárias: português, história, geografia etc, mas também a língua iídiche [o jüdisch-deutsch, ou judeu-alemão, surgiu entre os séculos IX e X, quando judeus da Europa central adotaram o alto-alemão, ao qual misturaram palavras vulgares dos dialetos locais e vocábulos hebraicos eruditos e populares. É uma das três principais línguas literárias da história do judaísmo, junto com o hebraico e o aramaico]. Eram os anos de 1930, e a língua iídiche era ainda muito viva. Havia uma grande comunidade judaica na Polônia e na Rússia que era muito produtiva do ponto de vista literário, enviava revistas e inclusive havia diários em língua iídiche...
Lúcia Hipólito: [interrompendo] O senhor aprendeu iídiche?
Jacob Gorender: Com o [...], que chegavam em minha casa e eu aprendi a ler essa língua. Hoje tudo isso está extinto. Sobretudo depois da catástrofe que atingiu a comunidade judaica da Polônia.
Beatriz Kushnir: Professor Gorender, o senhor foi como soldado voluntário para Segunda Guerra Mundial. Eu queria que o senhor contasse um pouco dessa experiência e o mote que o levou a se alistar na FEB [Força Expedicionária Brasileira].
Jacob Gorender: Isso está vinculado àquela época, às circunstâncias daquela época. Nos anos de 1930 vivíamos na expectativa da guerra que estava por vir e que começou em 1939. Vivíamos isso e, como se sabe, em 1942 o Brasil rompeu relações com o chamado Eixo: a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão. Em conseqüência disso tivemos o torpedeamento de navios brasileiros, 1500 mil brasileiros em navios civis, que não tinham nada de militar, morreram afogados no oceano. Isso provocou grandes manifestações nas principais capitais brasileiras e em Salvador, porque muitos dos atingidos pelos torpedeamentos, os seus cadáveres vinham dar nas praias ali. Então, houve manifestações muito grandes. E eu me manifestei nessas manifestações, nessas expressões, nesses movimentos populares. Então aconteceu o seguinte de interessante. Em 1942, diante dos torpedeamentos, o governo de Getúlio Vargas declarou guerra, em agosto de 1942, ao eixo nazi-fascista. E ,depois disso, abriu-se o voluntariado em várias partes do Brasil, para quem quisesse. Passou-se a tratar praticamente da constituição de uma unidade do exército brasileiro que iria combater na Europa. E o general que comandava a região militar na Bahia, general Demerval Peixoto [assumiu o governo de Pernambuco, como interventor, em 1946], lançou um desafio pela imprensa. Ele disse: “Os estudantes que andaram aí pela rua clamando pela guerra agora têm a oportunidade de se apresentar como voluntários”. Eu considerei esse desafio como uma questão pessoal. Eu, o Mário Alves [(1923-1970), militante comunista desde a juventude, quando, aos 15 anos, na Bahia, em plena ditadura do Estado Novo, ingressou no PCB. Destacou-se como dirigente do partido e estudioso do marxismo-leninismo, e apoiou a participação do Brasil na guerra ao lado das forças aliadas], o Ariston Andrade [Zilteman, na época, estudante de direito] e mais alguns estudantes.
Paulo Markun: Todos comunistas?
Jacob Gorender: Éramos todos nós comunistas. Mas isso não foi ordem do Partido Comunista não. Seria um equívoco, porque o Partido Comunista estava esfacelado nessa época, estava envolvido, tinha sofrido grandes baques da repressão, dirigentes presos, de maneira que não havia uma direção realmente eficiente e nacional.
Paulo Markun: Sim, mas a ideologia do senhor é que o motivou a aceitar o desafio do general.
Jacob Gorender: É. Eu já, naquela época, tinha convicções comunistas. Tinha alguma idéia do marxismo, embora muito superficial. Ainda era muito jovem e a literatura marxista só circulava clandestinamente, era a época do Estado Novo. Mas, enfim, aberto o voluntariado eu me apresentei. E me recordo que, no posto de apresentação, eu fiquei aguardando lá as formalidades, então um sargento apareceu lá e disse: “O que é que o senhor tem com o general? O general ficou possesso quando viu o seu nome”. Quer dizer, o general não esperava que eu me apresentasse como voluntário. E eu me apresentei.
Beatriz Kushnir: Mas ser filho de imigrantes judeus não lhe causava nenhuma questão? O senhor o Salomão Malina [(1922-2002), último secretário geral do Partido Comunista Brasileiro, onde ingressou no início dos anos 1940, passou vários anos preso e 35 anos na clandestinidade. Na Segunda Guerra Mundial combateu como oficial e foi condecorado com a Cruz de Combate de Primeira Classe, a maior condecoração do Exército brasileiro], o Carlos Scliar [(1920-2001), famoso artista plástico, especialista em natureza-morta, em 1944 foi convocado pela Força Expedicionária Brasileira para lutar na Itália, onde permaneceu 11 meses e produziu cerca de 700 desenhos] são judeus que são voluntários na Segunda Guerra. Como era esse dilema: você estar num front quando, para a Alemanha nazista, você era um alvo privilegiado?
Jacob Gorender: Como era esse problema?
Beatriz Kushnir: Isso se apresentava como um problema para vocês ou essa questão judaica não se apresentava?
Jacob Gorender: Não, não era um problema. Nunca me disseram que eu tinha tais ou quais qualidades ou defeitos por ser judeu.
[...]: E se eu apresentar um outro dilema?
Jacob Gorender: Eu nunca tive isso, não passei por esse problema em qualquer parte da minha vida e em qualquer setor profissional por ser judeu. Eu considero que, na prática, não existe anti-semitismo no Brasil. Há anti-semitas, isso há, sobretudo quando houve o integralismo, o Gustavo Barroso [(1888-1959), foi advogado, jornalista, escritor, militante fascista e anti-semita extremado. Foi comandante geral das milícias da  Ação Integralista Brasileira (AIB) e membro de seu Conselho Superior. Apoiou o golpe do Estado Novo (1937)]. Mas uma militância anti-semita não existe. Pelo menos, nunca me atingiu. E, no caso da guerra, sem dúvida alguma, eu tinha plena consciência que se fosse feito prisioneiro, eu estava liquidado. Meu nome é inconfundível. Todos nós tínhamos uma chapa com o nome e número de inscrição para a eventualidade de ferimento ou de morte, aquilo orientava. Então eu não tinha dúvidas a esse respeito. Mas considerei que devia me apresentar voluntário. O Mário Alves não foi aceito porque não tinha condições físicas, ele era muito fraquinho. Mas não sei por quê, me consideravam com condições físicas [risos] de encarar essa tarefa.
Ricardo Maranhão: Jacob, o Leôncio Basbaum [(1902-1969), médico e historiador pernambucano, filho de imigrantes judeus ucranianos, foi militante do Partido Comunista Brasileiro. Sua obra em quatro volumes, intitulada História sincera da República (1957), foi uma das primeiras iniciativas de se pensar a história do Brasil sob uma perspectiva marxista], aquele historiador, diz no livro dele que o partido teria dado a ordem. Não, ordem não, uma orientação, uma sugestão para os militantes todos se alistarem. Isso é um pouco contraditório com o que você está dizendo.
Jacob Gorender: Todos se apresentarem?
Ricardo Maranhão: Para todo pessoal do Partido Comunista se alistar na guerra, na FEB. É uma informação que ele dá, eu não sei até que ponto isso chegou a ser uma diretriz do Partido mesmo ou se foi apenas ele que teve essa... Uma pequena célula lá, um pessoal que teve... Porque, na verdade, grande parte das pessoas que se alistaram ou eram democratas, socialistas, gente que de alguma forma tinha alguma simpatia um pouco mais à esquerda. Porque, inclusive, como você sabe muito bem, o staff getulista de primeiro escalão estava cheio de nazistas; eles mesmos não queriam a guerra. O [Eurico Gaspar] Dutra [ministro da Guerra no governo provisório de Getúlio Vargas (1936)], o Góis [Monteiro, comandante militar da Revolução de 30. Foi ministro da Guerra (1934-1935), chefe do estado maior do Exército Brasileiro (1937-1943), e das Forças Armadas (1951 a 1952). Ele e Dutra foram peças-chave na implantação do Estado Novo] resistiram muito até concordar que o Brasil fosse à guerra. Então, na verdade, a maior parte do pessoal que queria assim, voluntário, não por necessidade, mas por voluntarismo mesmo, tenho a impressão que tinha uma porção de gente que era democrata, socialista, comunista. Então, eu queria só que você comentasse isso.
Jacob Gorender: Não, eu devo dizer que não houve nenhuma ordem que eu soubesse do Partido Comunista. Porque naquele momento, 1942 para 1943, o Partido Comunista, como eu disse, estava esfacelado, tinha sofrido uma repressão muito grande nos anos de 1940 pela polícia de Filinto Müller [(1900-1973), político e militar mato-grossense, foi o chefe de polícia do Distrito Federal (na época, Rio de Janeiro) entre 1937 e 1942, período em que comandou violenta repressão aos opositores do Estado Novo, especialmente aos comunistas, marcada por torturas e assassinatos], de Getúlio Vargas, e não havia uma direção nacional. Tinha se constituído no Rio de Janeiro a chamada CNOP, Comissão Nacional de Organização Provisória. Mas ela não era aceita por todos os militantes no Brasil, havia discordâncias muito grandes quanto à orientação. Então, o que acontece é que nós mesmos, um pequeno grupo que eu já citei, Mário Alves, Ariston Andrade e mais alguns, que éramos já comunistas, resolvemos nos alistar, consideramos que era o nosso dever. E não havia nisso ordem do Rio de Janeiro. Mais tarde viemos a conhecer os militantes do Rio de Janeiro. O Maurício Grabois [(1912-1973), um dos mais destacados marxistas-leninistas brasileiros. Tornou-se militante do Partido Comunista do Brasil em 1932. Eleito deputado em 1945, liderou a bancada comunista no Congresso Nacional até janeiro de 1948, quando os mandatos comunistas foram caçados. Dirigiu o órgão partidário A classe operária e atuou na preparação da luta e  resistência armada do Araguaia, onde comandou as Forças Guerrilheiras e foi assassinado pela repressão] editava uma revista chamada Continental que circulava no Brasil e que, dentro das condições do Estado Novo, era pró-americana, pró-aliados, antifascista, sem avançar muito porque não era possível.
Lúcia Hipólito: O senhor era muito menino. A sua família não se preocupou de o senhor ir pra guerra, essa coisa toda, ou não?
Jacob Gorender: Muito, se preocupou muito, mas muitíssimo mesmo. Até hoje, eu já avançado na idade, não deixo de sentir um mal-estar que causei aos meus pais com a minha vida. [risos] Não só por eu ter ido à guerra, eu imagino o quanto eles se preocuparam. E depois de ter abandonado o curso superior de direito e me tornado um militante profissional do Partido Comunista. Mas enfim, na vida, para realizar alguma coisa de útil, do ponto de vista político e social, a gente sofre e faz outros sofrerem. E no caso, me atinge muito porque se tratava de meus pais.
Alfredo Bosi: Gorender, essa frase última é de uma das cartas que Gramsci escreve para sua mãe...
Jacob Gorender: Quem?
Alfredo Bosi: Gramsci.
Jacob Gorender: Ah, o Gramsci.
Alfredo Bosi: Quando escreve cartas para a sua mãe, ele diz: “Eu sei que eu estou causando tristezas”. Mas quando a gente quer praticar o dever, muitas vezes vai desagradar às mães e aos pais. Mas o que eu gostaria de saber é o seguinte. Os seus contatos, o senhor está falando muito do Partido Comunista nessa situação ainda muito precária em que ele vivia, mas como é que foi a sua iniciação à esquerda, vivendo num lar, pelo que eu saiba, não era um lar de militantes. Ou houve qualquer relação da sua formação familiar com a primeira inclinação para a esquerda? Lembra-se disso?
Jacob Gorender: Sim. Meu pai, particularmente, era um homem com idéias, digamos assim, esquerdistas. Não tinha formação cultural elevada, não freqüentou academias, era um homem muito simples. Mas gostava de ler e, de certo modo, a sua posição influiu muito nas minhas atitudes. Mas a minha trajetória é curiosa. Eu me tornei materialista não com [Karl] Marx [(1818-1883), economista, teórico do socialismo e revolucionário alemão. Autor, entre outras obras, de O capital, sua obra prima e referência até a atualidade. O conjunto de idéias filosóficas, econômicas, políticas e sociais, elaboradas por Karl Marx e Friedrich Engels deu origem ao marxismo], mas com [Charles] Darwin [(1809-1882), biólogo e naturalista britânico que se notabilizou por uma idéia simples e revolucionária: a evolução das espécies por seleção natural]. Aos 13 ou 14 anos, eu encontrei num sebo da Praça da Sé, em Salvador, no Centro Histórico, A origem das espécies [obra publicada em 1859, em que Darwin explica e fundamenta sua teoria]. Eu não me lembro em que língua, mas deu para ler, eu já conhecia a importância desse livro. E, a partir desse livro, eu deixei de freqüentar a sinagoga e me tornei materialista. Só vim a conhecer livros marxistas cinco ou seis anos depois. E isso, é claro, acentuou ainda mais essa minha posição que se mantém até hoje. Apesar de tanta coisa que tem ocorrido.
Paulo Markun: E como é que o senhor entra no Partido Comunista?
Jacob Gorender: Eu entrei no Partido Comunista em 1942. Eu fui recrutado, como se dizia [rindo], pelo meu grande amigo, já falecido, o Mário Alves. Um grande herói do povo brasileiro, que morreu torturado num quartel da polícia do exército no Rio de Janeiro. Mário Alves já tinha contatos com comunistas, inclusive ele vinha aos congressos da UNE [União Nacional dos Estudantes] que, naquela época, tinha muita influência e que hoje não tem. No Rio de Janeiro ele conheceu comunistas, alguns que tinham vindo da Bahia e outros que residiam lá: o Maurício Grabois, Pedro Pomar [(1913-1976), médico e político militante comunista, foi assassinado durante um ataque a tiros no bairro da Lapa, onde o Comitê Central do PCdoB estava reunido, em dezembro de 1976, no episódio conhecido como Chacina da Lapa], João Amazonas [(1912-2002), militante comunista desde os 23 anos, um dos fundadores do PC do B,  deputado, cassado, em janeiro de 1948, teve que atuar na clandestinidade. Dirigiu o PC do B, com Grabois, nos difíceis anos do governo Dutra, no qual dezenas de comunistas foram assassinados], Diógenes Arruda [(1914-1979), militante comunista desde os 20 anos, foi membro da direção central do Partido Comunista e deputado federal por São Paulo. Foi várias vezes preso, torturado e viveu um tempo exilado no Chile]. E ele tinha então informações sobre os comunistas. E era comunista já. Em 1942 ele me convidou pra ser membro do Partido Comunista e eu aceitei. E formamos uma célula em Salvador
Lincoln Secco: Professor, na Itália o senhor conheceu certamente a figura do Palmiro Togliatti, eu me lembro que o senhor já disse também que, pela primeira vez, travou contato com algumas idéias ainda incipientes do Gramsci que depois teriam grande influência no Brasil e até no Partido Comunista. Como se deu isso? O senhor chegou a ver o Palmiro Togliatti, discursos dele? Teve contatos com o Partido Comunista Italiano?
Jacob Gorender: Sim. Isso já depois da guerra, depois que a guerra terminou. A nossa unidade da FEB... Terminou a guerra na cidade de Piacenza que fica a cinqüenta quilômetros de Milão. E, ali, eu pude assistir a um pequeno discurso de Palmiro Togliatti que já era reconhecidamente o líder comunista da Itália. O Partido Comunista circulava abertamente, não havia mais a repressão, [Benito] Mussolini [(1883-1945), ditador italiano que governou a Itália no período de 1922 a 1943, fundou o Partido Fascista] já estava morto e tal. Então eu conheci, pude ver o Palmiro Togliatti, na sede do Partido Comunista de Piacenza, fazendo um pequeno discurso. Ele estava a caminho de Milão, então ele se deteve ali por um pequeno momento para dizer algumas palavras aos comunistas de Piacenza. Eu posso dizer que, nessa minha estada na Itália, conheci duas grandes personalidades da vida italiana daquela época. Uma foi justamente o comunista Palmiro Togliatti e a outra foi o papa Pio XII [(1876-1958), nomeado Papa em 1939. Coerente com a orientação da Igreja, que já condenava o marxismo, em 1947, apoiou o partido da Democracia Cristã que venceu as eleições italianas, e proibiu o clero católico de votar no Partito Comunista. Sua ação durante a Segunda Guerra Mundial tem sido alvo de discussão e polêmica] [risos] Eu estive numa audiência que ele concedia em Roma – eu estava em Roma naquele momento – e num salão suntuoso do Vaticano junto com centenas de soldados, a maioria deles poloneses, mas também americanos etc. E, ali, o papa Pio XII, em certo momento, apareceu na parte do recinto a ele reservado e, pelo que eu me lembro, falou em quatro ou cinco línguas diferentes, inclusive em português. Havia muitos soldados brasileiros e ele sabia disso, e ele fez essa saudação ao Brasil, país católico, cristão. O mais curioso é que nós estávamos separados do recinto dele por uma espécie de gradeado e ele, quando terminou de falar, se aproximou do gradeado e todo mundo, todos os outros soldados, apresentavam a ele crucifixos e rosários para que ele abençoasse. E eu estava na primeira fila, consegui ficar. Então de trás vinham os rosários e os crucifixos, e eu apresentei ao Papa quando ele ficou perto de mim. [risos]
Paulo Markun: Quer dizer, o senhor foi a Roma, viu o Papa e foi abençoado! [risos]
Jacob Gorender: É, fui também. Pio XII, o Papa Pio XII.
[intervalo]
[Comentarista]: Jacob Gorender é autor de um dos mais completos livros sobre a luta armada no período do regime militar. Combate nas trevas trata das motivações teóricas das esquerdas e de suas razões para pegarem em armas e enfrentar a ditadura militar no Brasil pós-golpe de 1964. Ilustrado com várias fotografias, o livro fala de personagens e dos enfrentamentos desse período. Analisa partidos e organizações em que a ação esquerdista se apoiou. Mostra a mudança de concepções que marcaram a busca do socialismo e como, em momentos diferentes, se justificava ou não a luta armada.
Paulo Markun: Jacob Gorender, eu queria dar um salto no tempo e pular para 1964: o golpe militar, quando começa o livro do senhor Combate nas trevas, que cobre esse período da resistência armada que alguns chamam de guerrilha ou terrorismo. Cada um dá um nome para esse processo que o senhor analisou em profundidade. E eu queria que o senhor contasse, que já está no livro, o que é que o senhor estava fazendo no momento do golpe de 1964 e como é que o senhor imaginou que ia ser a reação da sociedade, para a gente começar essa conversa.
Jacob Gorender: Bom, antes do golpe, as nossas esperanças de comunistas eram grandes. O presidente da República, João Goulart, o Jango, tinha encontros freqüentes com Luís Carlos Prestes, o secretário geral do Partido Comunista Brasileiro. E tudo indicava que as chamadas reformas de base iriam pra frente. O comício que ele fez no dia 13 de março na Central do Brasil, diante de trezentas mil pessoas, foi de causar entusiasmo e de aumentar a confiança na realização desse programa das reformas de base: reforma agrária, limitação das remessas de lucro, industrialização do Brasil e assim por diante. Então tínhamos essa confiança. E pouco antes do 31 de março, fui para Goiânia porque naquela fase eu estava fazendo uma série de conferências: em São Paulo, no Rio, em Porto Alegre, sobre o marxismo. Era uma série, eram nove conferências, três por semana, eu ficava um mês quase em cada uma dessas cidades. Então eu fui para Goiânia e lá eu comecei a fazer essa série de conferências. E, a certa altura, isso já era justamente 31 de março, as notícias que vinham do Rio eram já inquietantes. Mas no dia 31 de março eu ouvi pelo rádio o discurso de Jango, que ele fez no Automóvel Clube. E esse discurso me inquietou muito. Embora eu não estivesse no Rio, eu tive um pressentimento de que algo estava para acontecer de muito grave. E, de fato, foi o que ocorreu. Pouco depois, veio a notícia de que o Jango tinha sido deposto. E eu caí na clandestinidade, a partir daí, já em Goiânia.
Paulo Markun: Agora, o senhor achava que era possível - isso está no fim do seu livro, pelo menos foi o que eu entendi - o senhor achava que era possível resistir pelas armas naquele momento?
Jacob Gorender: Não, não tinha essa noção. Antes sim, antes do golpe. Uma vez dado o golpe, eu não tinha muita confiança em que isso reverteria rapidamente.
Paulo Markun: Mas, antes do golpe, o senhor imaginava que era possível chegar ao socialismo, ao comunismo pelas armas?
Jacob Gorender: Não propriamente chegar ao comunismo e ao socialismo, não era esse o problema. Era a realização das reformas de base. Era essa a nossa perspectiva. Isso me parecia viável. E avançar. Porque até então estávamos avançando, tínhamos conseguido ir para frente. O suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, permitiu que durante um decênio o Brasil vivesse um dos melhores momentos da sua história. Esse decênio foi o decênio do Cinema Novo, da bossa nova, de realizações artísticas de primeira ordem, do Grande sertão: veredas, do [João] Guimarães Rosa [considerado, por consenso, o maior escritor brasileiro do século XX, autor de romances, contos, poesias e novelas, em livros em que utiliza com maestria a linguagem e os tipos regionais], de florescimento literário, artístico de toda ordem. E isso nos entusiasmava. Depois havia ainda a circunstância internacional. A revolução tinha sido vitoriosa na China, o país mais populoso do mundo. Mao Tse Tung [(1893-1976), fundador da República Popular da China, em 1949, e criador do marxismo-leninismo-maoismo com idéias sobre revolução e guerrilha que influenciaram marxistas no mundo inteiro, inclusive no Brasil, em particular o PC do B que, na década de 1970, desenvolveu ações inspiradas nessas teorias] dirigia um país que tinha um grande poderio. E tinha sido vitoriosa em Cuba, aqui na América Latina. Cuba, que naquele momento, contava com o apoio da União Soviética. Então, esses fatores nós julgávamos muito positivos, de modo que o golpe, quando veio, nos deixou desorientados com relação ao que poderia acontecer no Brasil.
Marco Antônio Villa: Só uma questão, professor. O golpe de 1964 vai fazer com que o senhor, e grande parte da esquerda brasileira, passe a repensar o seu papel político. O próprio Partido Comunista vai se fracionar em vários grupos. E não só. Há uma grande divisão no interior da esquerda. Quer dizer, como o senhor avalia, e a trajetória do senhor, o golpe de 1964 e depois o senhor partindo para a fundação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário?
Jacob Gorender: Eu creio que uma das debilidades mais graves da esquerda nesse período, que se inicia com o golpe que durou vinte anos, uma ditadura militar, foi essa fragmentação da esquerda. Eu mesmo no Combate nas trevas cito, no glossário, uma série de indicações de organizações que se criaram. Uma parte delas veio do próprio Partido Comunista. Já antes do golpe, havia no comitê central um grupo que se opunha à orientação seguidista da direção de Prestes e de Giocondo Dias [conhecido como Cabo Dias, sucedeu Luís Carlos Prestes como secretário geral do PCB], que estavam indo atrás do Jango sem qualquer espírito crítico. Éramos o Marighella, o Mário Alves, o Apolônio de Carvalho [militante do Partido Comunista Brasileiro e da Aliança Nacional Libertadora (ANL), participou na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa contra o fascismo. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT)], eu próprio, o João Batista Drummond e mais alguns, [Joaquim] Câmara Ferreira [ambos militantes do Partido Comunista, foram presos e torturados no DOI-Codi, e morreram em consequência da violência ali sofrida]. Fazíamos oposição. E, depois do golpe, nós procuramos nos entender. Acontece que chegamos a fazer uma reunião em Niterói de vários agrupamentos, de várias tendências, para unificar a esquerda que saía do PC. Mas isso já não foi possível. Marighella tomou o seu rumo próprio, criou a ALN [Aliança Libertadora Nacional] e iniciou o caminho dos assaltos, depois esteve em Cuba e assim por diante. Câmara Ferreira o acompanhou. Outros fundaram outras organizações. E havia ainda o POC, Partido Operário Comunista que foi matriz também de várias organizações e havia os militares que tinham sido excluídos das Forças Armadas, sobretudo sargentos. Daí surge a VPR [Vanguarda Popular Revolucionária, formada em 1966, a partir da união dos dissidentes da organização Política Operária (Polop) e militares remanescentes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). Com o uso de táticas de guerrilha urbana e de terrorismo, tinha como objetivo a derrubada da ditadura militar e a instalação de uma ditadura operária, segundo o modelo marxista-leninista], depois a VAR-Palmares [a VPR fundiu-se com o Comando de Libertação Nacional (Colina), organização de combate à ditadura formada por militares esquerdistas, dando origem à VAR-Palmares, em homenagem ao Quilombo dos Palmares]. Foi uma tal fragmentação que não pode ser superada. E foi nociva à esquerda.
Jorge Caldeira: Nesse partido pequeno, no PCBR, o senhor logo foi preso. Foi a primeira vez que o senhor foi preso e torturado, não é? Como é que foi essa experiência? [Como foi] Sair dela e o julgamento?
Jacob Gorender: O PCBR foi fundado por Mário Alves, era o dirigente principal, o Apolônio de Carvalho, eu próprio e mais alguns outros companheiros. Por quê? Nós não queríamos acompanhar o Marighella porque ele era contra a existência de partidos. Ele dizia que partido é “reunismo”, “blá blá blá” e, na opinião dele, a direção da luta guerrilheira, da luta anti-ditatorial surgiria na própria ação. A ação iria indicar o caminho e fazer surgir uma direção. Não adiantava pré-figurar isso. Mas nós achávamos que devia haver um partido. E por isso nos reunimos, criamos e adotamos o mesmo nome, PCB, só acrescentando um erre: PCBR, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. E a nossa idéia era que fosse um partido que tivesse contato com as massas, que pudesse realizar as suas ações com apoio popular, o que não aconteceu.
Jorge Caldeira: Em vez das massas, o senhor foi para a cadeia muito rapidamente?
Jacob Gorender: Eu fui preso em janeiro de 1970 pelo Esquadrão da Morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury e fui levado ao Dops, Departamento de Ordem Política e Social, que hoje não existe mais no Brasil, mas naquela época existia. O Dops de São Paulo era o único no Brasil que tinha uma atividade efetiva. Porque, no resto do país eram os DOI–Codi, os departamentos propriamente militares que atuavam. Aqui em São Paulo o Dops tinha força porque o Fleury era ligado ao Cenimar, ao Centro de Informações da Marinha. Com isso, ele tinha grande força, tinha trazido para dentro da polícia todos os assassinos e malfeitores que o acompanhavam Ele próprio era ligado a traficantes de drogas que combatiam os competidores. Era um delinqüente dos piores. Então eu caí nas mãos deles e, é claro, fui torturado.
Jorge Caldeira: Como é que o senhor se defendeu das acusações no tribunal militar?
Jacob Gorender: Das acusações?
Jorge Caldeira: É. Diz que o senhor mesmo fez a sua defesa, é isso?
Paulo Markun: [interrompendo] Se acusando.
Jacob Gorender: Eu não posso me recordar exatamente do teor da minha defesa. Eu tive o meu advogado aqui em São Paulo, foi o Raimundo Pascoal Barbosa, já falecido; e no Rio de Janeiro, no Superior Tribunal Militar, o meu advogado era Jorge Tavares, não sei se ainda vive. Mas eu o aprecio muito pela maneira como ele conduziu a minha defesa. Mas eu sempre me apresentei, quando tive que fazer depoimentos na auditoria, como um patriota, como alguém que estava lutando pelo progresso do Brasil.
Paulo Markun: Mas o senhor assumiu a responsabilidade de ser o fundador do PCBR? Essa culpa?
Jacob Gorender: Assumi, isso eu assumi.
Paulo Markun: E isso criou um problema para o tribunal porque não sabia como fazer com um sujeito que assumia a culpa de um crime que era menor do que outros crimes relacionados. Mas eu queria voltar à questão da tortura. Porque no seu livro, o senhor resume numa frase esse episódio. O senhor conta que um dos policiais disse que o senhor iria sofrer como Jesus Cristo. E aí o senhor diz assim: “Sofri menos, não fui crucificado”. Eu queria saber o que é que o senhor passou.
Jacob Gorender: Contar os detalhes da tortura?
Paulo Markun: Não, não precisa ser detalhes, mas eu acho, até por experiência, que é importante que as novas gerações tenham uma vaga idéia do que é isso.
Jacob Gorender: Bom, tortura continua a existir hoje. Relatos de tortura não são, infelizmente, coisas do passado. É claro que militantes políticos não são mais torturados. Mas os acusados de crimes comuns, acusados verdadeiros ou falsos, continuam a sofrer. Nesse meu último livro, Direitos Humanos, tem um capítulo que é intitulado “Violência policial, um câncer social”. É realmente um câncer social no Brasil. O que a polícia militar, sobretudo, mas também a civil, fazem em nosso país é algo que não acontece em países civilizados. Agora mesmo, a matança de trinta pessoas no Rio de Janeiro a esmo [no dia 30 de março de 2005, trinta pessoas foram assassinadas a tiros em 11 locais das cidades de Nova Iguaçu e Queimados, municípios da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. As mortes, efetuadas com a participação de policiais, vitimaram jovens pobres, em situação de risco social, moradores de rua ou da periferia, muitos deles negros ou mulatos], só como represália aos comandos da Polícia Militar é algo inimaginável. É algo horroroso!
Lincoln Secco: Professor, o senhor considera que essa eliminação física de comunistas durante a ditadura ou a tortura era uma política consciente de Estado ou era uma prática de setores do Estado que saíam do controle do governo central?
Jacob Gorender: Não. Eu creio que era uma política da qual as autoridades superiores tinham plena consciência, tinham conhecimento. Quando começaram os assaltos a bancos e a carros que transportavam valores aqui em São Paulo, o primeiro ocorreu em Santo Amaro, perto daquele monumento dos bandeirantes, de péssimo gosto.
Lincoln Secco: O Borba Gato.
Jacob Gorender: É. Não havia aqui em São Paulo, no Brasil mesmo, uma organização adequada para enfrentar esse novo problema. As polícias, os Dops e a polícia civil não estavam preparados para enfrentar esse problema. Era uma coisa nova para eles. Então o Estado, o governo precisou improvisar. E aí se criou a Operação Bandeirante aqui em são Paulo. Como não havia no orçamento uma previsão de verbas para essa entidade nova, que se instalou numa delegacia de polícia na rua Tutóia, como é sabido, então essa verba foi requisitada de empresários. Isso é sabido. O Elio Gaspari [jornalista e escritor italiano naturalizado brasileiro. Publicou, em quatro volumes, uma extensa pesquisa sobre a ditadura] confirma isso. Esses empresários, é claro, não deixaram os nomes. Eles são suficientemente perspicazes para saber que nessas coisas não se deve deixar rastro. Mas sem esse dinheiro como é que se instalaria essa entidade, Operação Bandeirante, com tiras, oficiais, torturadores, carcereiros, administradores, analistas de interrogatório e tudo mais? Era preciso de dinheiro. E esse dinheiro veio dos empresários. Aí houve um episódio interessante. Um dos empresários que deram dinheiro era o chamado Henning [Albert] Boilesen, de origem dinamarquesa, que era o diretor da Ultragás. E esse Henning Boilesen, por temperamento, devia ser um sádico. Ele ia à Operação Bandeirante para ver a tortura, para ver os presos. Passeava por ali, ia com freqüência. Isso acabou chegando ao conhecimento das organizações clandestinas, dos dirigentes. O nome dele se tornou conhecido, foi identificado; passaram a pesquisar o trajeto que ele costumava fazer e acabaram cometendo um atentado. Ele foi morto num atentado numa rua de São Paulo. [Henning Boilesen foi morto em 1971 e sua história rendeu um documentário, chamado Cidadão Boilesen, lançado em 2009, dirigido por Chaim Litewski e que tem um depoimento de Jacob Gorender].
Ricardo Maranhão: Jacob, olhando pelo outro lado, não do lado da repressão, mas pelo lado da resistência, o caso é o seguinte. Essa resistência armada... Voltando à questão da... Bom, o Marighella, diz você, não queria saber muito de fazer política, criar partido e tal. Agora, é a tal história, naquele momento que tivemos oportunidade de vivenciar, muitos dos militantes desconfiavam um pouco de que não adiantava quase fazer política com a classe operária. Isso acaba levando a uma questão mais geral, inclusive, das discussões sobre o processo revolucionário na contemporaneidade que, inclusive no seu livro Marxismo e utopia, existe essa questão. Mas o operariado dificilmente é revolucionário, o operariado freqüentemente é reformista, sindicalista. Claro, embora nós tenhamos exemplos históricos importantes de movimentos proletários revolucionários, hoje em dia isso é muito mais claro, é muito mais fácil a gente levar em conta hoje, nos últimos vinte ou trinta anos essa sua assertiva. Agora, naquele momento do enfrentamento com a ditadura, com a sociedade amortecida pela teia da repressão, realmente como é que você acha que se colocava essa questão política de fazer mesmo um movimento em direção à classe operária, como alguns setores propunham ,ou era melhor mesmo fazer como o PC do B: “Vamos lá para a guerrilha rural”, ou fazer o foquismo, como se dizia na época, o foco guerrilheiro primeiro para depois ter o movimento de massas. Quer dizer, isso é um problema daquela época, mas é um problema geral da própria questão de como o revolucionário se relaciona com as massas. O que você poderia comentar sobre isso, por favor?
Jacob Gorender: Naquele momento isso era motivo de grandes discussões. A ditadura militar, quando se instalou, fez uma varredura completa nos sindicatos. Toda a liderança sindical de esquerda foi presa ou teve que sair do país, enfim, o movimento sindical foi aniquilado e imobilizado. As greves foram proibidas. Eram toleradas no máximo greves quando as empresas não pagavam o salário. Mas fora daí eram consideradas crime contra a segurança nacional. Essa situação deixou de fato a classe operária por muito tempo inerte ou em movimentos muito localizados e pouco efetivos. Esperava-se que isso revertesse rapidamente, mas não aconteceu. Então, qual era a perspectiva em geral das organizações de esquerda? Era de um movimento guerrilheiro na área rural. O Brasil naquela época tinha uma proporção de população rural bem maior do que agora. E nós tínhamos um exemplo da China e de Cuba, sonhávamos com uma nova Sierra Maestra [região serrana de Cuba de onde Fidel Castro coordenou as ações de guerrilha para o posterior golpe de estado ao governo ditatorial de Fulgêncio Batista], tínhamos essa esperança. E daí nasceu Caparaó. Um grupo de quinze ou vinte ex-militares e também civis que se fixou no alto do monte de Caparaó, lugar muito frio, esperando a hora de começar uma guerrilha. E acabaram sendo presos. Eram ligados ao [Leonel] Brizola [(1922-2004), influente político gaúcho, foi governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro e presidente de honra da Internacional Socialista - ver entrevista com Brizola no Roda Viva]. Depois disso, novas tentativas dessa ordem é claro que não ocorreram. Mas sempre havia essa expectativa de que um dia começaríamos a guerrilha na área rural. Para isso foram compradas fazendas onde se estabeleciam pequenos núcleos que não chegaram a atuar em coisa nenhuma.
[Comentarista]: Mesmo tendo vivido na clandestinidade por longo período, Jacob Gorender tornou-se um estudioso da formação social brasileira. Com três livros dedicados à análise da estrutura escravista colonial, o historiador trouxe novas visões sobre a escravidão e o abolicionismo no Brasil. O escravismo colonial virou obra clássica nessa área. Mas A escravidão reabilitada criou polêmica entre acadêmicos ao questionar algumas teses da historiografia recente que, segundo Gorender, não correspondem à realidade histórica. Uma realidade que fez do país, um Brasil em preto & branco e que se baseia num passado escravista que não passou.
Paulo Markun: Jacob, eu queria entender como é que, no meio dessa ação política toda, dessa militância, da prisão, o senhor consegue escrever um livro que modifica todo o conceito de como era a escravidão no Brasil e contesta inclusive Gilberto Freire? [(1900-1987) antropólogo, sociólogo e historiador brasileiro, sua obra Casa-grande & senzala (1933) é considerada um marco na compreensão do país]
Jacob Gorender: Qual livro?
Paulo Markun: O escravismo colonial.
Jacob Gorender: Ah, sim. O projeto de escrever O escravismo colonial eu já o tinha antes de ser preso e procurava me enfronhar na literatura disponível, embora isso fosse muito difícil na clandestinidade. Tinha um amigo que conseguia retirar livros da biblioteca da USP, em nome dele. Porém a coisa avançava muito precariamente. Mas o projeto estava na minha cabeça, e com as poucas leituras que eu ia fazendo, a convicção aumentava. E qual era a questão que se colocava para mim? É que a tese do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, ao qual eu pertenci durante 25 anos, de 1942 a 1967, era de que o Brasil tinha um passado feudal e que ainda existiam sobrevivências feudais no Brasil. E isso não me parecia correto. Quer dizer, O escravismo colonial foi escrito para contestar essa tese. Eu quis provar, e acredito que o fiz, que o passado do Brasil foi escravocrata. Nós tivemos um regime escravista até o final do século XIX, durante quase trezentos anos. E isso marcou profundamente a sociedade brasileira. E eu cunhei a expressão “escravismo colonial”, que não existia antes. Escravismo colonial é um regime todo especial que fez do Brasil um país marcado pela necessidade de produzir gêneros e artigos para o exterior com uma população de escravos e, depois, de ex-escravos, muito grande, que constitui um problema social até hoje. Então, o livro foi escrito, essa foi a minha idéia, para refutar essa tese. E quando eu consegui a liberdade, depois da prisão, ainda nos anos de 1970, com grande dificuldade, então eu já podia freqüentar bibliotecas e consultar arquivos etc, aí o livro avançou. E tive a sorte de encontrar numa grande editora, a Ática, um grande amigo, o [José] Granville [Ponce, jornalista e escritor], de ter o beneplácito, a aprovação do professor Alfredo Bosi, que está aqui presente, que foi importantíssima. E, com isso, eu, com mais de cinquenta anos, que nunca tinha publicado um livro, de repente apareço com um livro de quase seiscentas páginas e com grandes pretensões.
Jorge Caldeira: Professor Jacob, nesse período do livro nós trabalhávamos na mesma redação, o livro foi escrito quando o senhor trabalhava de dia, como redator da Abril.
Jacob Gorender: [interrompendo] Trabalhava?
Jorge Caldeira: Na Editora Abril, como redator, trabalhávamos na mesma sala, naquela época e, à noite, com ajuda de amigos. Eu queria um pouco entender como foi possível essa passagem, essa produção de alguém que escreveu em condições tão precárias e sem passado. Quer dizer, o senhor tinha já uma disciplina intelectual interna muito grande, acho que vinda do partido, mas eu queria que o senhor contasse um pouco para quem está nos vendo, como foi internamente, depois de 25 anos como militante profissional em partido, se transformar em intelectual?
Jacob Gorender: É uma história, de fato, bem pessoal. Uma vez que eu não tinha graduação, abandonei o curso de direito no terceiro ano; profissionalmente fui jornalista, trabalhei em jornais. Então, como poderia me dedicar a fazer um livro dessa espécie? Durante um certo tempo, eu trabalhei na Abril Cultural, e fui seu colega, tínhamos uma convivência muito amistosa naquela época. Mas naquela época, trabalhando na Abril, eu não podia avançar na feitura do livro, era trabalho em tempo integral, me ocupava muito tempo, não era um trabalho tão fácil assim, era cansativo. O que me possibilitou escrever o meu livro, quando eu tomei a decisão, foi justamente quando eu saí da Abril e aí eu me dirigi a alguns companheiros...
Jorge Caldeira: [interrompendo] Que fizeram uma vaquinha.
Jacob Gorender: ... que eram abonados, expus a eles o plano do livro e pedi um subsídio a eles. Não vou citar um ou outro porque faria uma omissão injusta. Mas agradeço de coração a confiança que eles tiveram em mim e que me forneceu recursos para ficar três anos sem obrigações de emprego e podendo me dedicar totalmente à feitura do livro. A terminar a pesquisa e depois a redigir o livro. Redigi em máquina Olivetti, não tinha computador. [risos]
Jorge Caldeira: Sua vida mudou em função do livro?
Jacob Gorender: Depois que o livro foi publicado? Eu não sei dizer até que ponto ela mudou. Depois disso, o fato é que eu não voltei mais a trabalhar em nenhuma empresa. Eu me dediquei a fazer traduções...
Jorge Caldeira: [interrompendo] E em partidos? O senhor voltou a militar em partidos depois do livro?
Jacob Gorender: Eu estive durante certo tempo na militância do PT. Mas, já há alguns anos atrás, houve um recadastramento e eu não me recadastrei. De modo que não sou mais militante do PT.
Marco Antônio Villa: Professor, o senhor encontrou muita resistência no Escravismo colonial. O senhor teve resistência a uma historiografia conservadora, que o senhor critica no livro, mas encontrou resistência também de uma historiografia acadêmica, que o senhor responde no Escravidão reabilitada, e faz duras críticas. Como o senhor encara essa questão da recepção, tanto do Escravismo colonial, por parte da universidade, por muitos estudantes que ficaram impressionados? Eu, na época, estava entrando no curso de história, fiquei impressionado pelo rigor da pesquisa, pelo cuidado com que o senhor trabalhou conceitualmente, o que não era prática entre os historiadores, vale lembrar, esse rigor. E e a resposta depois, de alguns departamentos, de algumas universidades que criticam violentamente o livro do senhor. E o senhor responde no Escravidão reabilitada. Como o senhor analisa hoje, à distância – afinal já passaram mais de vinte, 25 anos – a recepção que o livro do senhor teve, tanto O escravismo colonial como A escravidão reabilitada?
Jacob Gorender: O que sucede é que O escravismo colonial saiu a público pela Ática, a primeira edição, em 1978, e o marxismo ainda estava em alta, nesse período, pelo menos no Brasil. De certo modo também na Europa. Então o fato de ele ser um livro marxista não causou nenhuma repulsa, e eu passei a ser convidado para conferências, estive inclusive na USP, não houve nenhum problema negativo com relação ao livro, ao contrário, ele me posicionou e me tornou conhecido. A própria Veja publicou uma página sobre a publicação do livro. Mas, pouco depois disso, o marxismo entra em refluxo. Nos anos 1980, isso foi mundial, e no Brasil em particular. No campo da história, da historiografia, surge a chamada “escola da história do cotidiano”, um grupo de historiadores, muitos deles talentosos, passa a dar privilégio à vida cotidiana das pessoas, aos acontecimentos corriqueiros aos quais, em geral, a historiografia não dá grande atenção. E, sob esse aspecto, o meu livro passa a receber uma crítica muito séria. Foi em resposta à posição desses historiadores do cotidiano, dos fatos menores colocados em relevo, que eu escrevi A escravidão reabilitada, como uma resposta a esse posicionamento.
Alfredo Bosi: Professor Gorender, eu queria dar um testemunho que realmente, por volta de 1977, fazíamos parte, vários professores da USP, o saudoso Rui Coelho [antropólogo], o professor Aziz [Ab’Sáber, geógrafo e professor emérito da Universidade de São Paulo - verf entrevista com Ab'Saber no Roda Viva], e o professor [de sociologia] Duglas [Monteiro], quero deixar bem claro, eram professores muito ligados à área de ciências sociais. Eles formavam, junto com outros, um conselho, o conselho da coleção Ensaios, da Editora Ática. Então, normalmente, nós analisávamos teses, porque a coleção tinha essa finalidade de editar teses. E aí, chegaram às nossas mãos uns originais curiosos, porque não era tese universitária, era um livro, que foi encaminhado pelo Maurício Tragtenberg [(1929-1998), filósofo e cientista político, destacou-se como um grande pensador brasileiro], que logo nos pareceu revolucionário, mas ao mesmo tempo, tinha uma cara auto-didática, não era um livro de universidade. É claro que lemos aquilo e logo nos apaixonamos, de fato o livro foi editado. Então continuando um pouco aquilo que o professor Villa disse, eu acho que nesta  sessão aqui o senhor deu uma certa ênfase à idéia de que O escravismo colonial procurava responder a uma tese do Partido Comunista, a uma tese que chega também à idéia da dualidade do Brasil, que é um desdobramento, o Brasil feudal, o Brasil burguês. E essa tese foi de alguma maneira respondida ou criticada no seu texto. Depois a outra tese, que eu gostaria que o senhor falasse alguma coisa, que causou mal-estar na universidade, porque o senhor também nega que o Brasil precocemente, desde o início, tenha sido uma formação capitalista. Essa era outra tese que tinha maior prestígio dentro da USP, com Caio Prado, e ainda tem, podemos dizer. Eu acho que a sua tese hoje briga mais com essa, que foi hegemônica durante tantos anos, e ainda é em grande parte, do que com a tese feudal. O Brasil como modo de formação capitalista. Então, o que o levou a negar tanto um lado como o outro? Porque o outro lado da Universidade de São Paulo era a resposta à primeira tese, já havia essa resposta de alguma maneira, desde Caio Prado. Mas também essa resposta lhe pareceu inadequada. O senhor sustenta essa posição agora, de nem uma nem a outra? Nem a feudal, nem a capitalista?
Jacob Gorender: A minha ênfase foi que o quê prevaleceu até o fim do século XIX foi o escravismo colonial. E cessado esse regime, o Brasil entrou penosamente num caminho de formação de uma sociedade capitalista. Mas entrou penosamente, com dificuldade. Eu creio que Caio Prado, grande historiador brasileiro, deu uma ênfase muito grande às relações comerciais que havia já desde o tempo colonial e posteriormente. Eu procurei mostrar que essas relações comerciais, por si mesmas, não iriam caracterizar um regime capitalista. E que esse regime capitalista se fixaria, se formaria de maneira penosa, vagarosa em nosso país na primeira metade do século XX.
[Comentarista]: Os direitos humanos, no alerta de Jacob Gorender, são notícia todo dia. E a defesa que se faz deles vem exatamente do fato de serem violados a todo instante e de todas as formas. Direitos humanos: o que são - ou devem ser - mostra a evolução do conceito, da Revolução Francesa aos dias de hoje. Analisa guerras, formas de governo e as situações de violência, abuso e desrespeito que ainda ferem direitos fundamentais das pessoas em todo o mundo.
Paulo Markun: Até pelo fato de o último livro do senhor ser sobre direitos humanos, eu queria comentar uma curiosidade que é a seguinte. Qualquer pessoa que pesquise na internet "Jacob Gorender” vai encontrar o nome do senhor em diversos sites de extrema direita. Sites que mencionam as descrições que o senhor fez de justiçamentos e assassinatos – também é um outro caso em que a palavra se encaixa de acordo com a vontade de cada um – de militantes de esquerda, pela esquerda e até de presos que tinham sido detidos, militares detidos pelas organizações de esquerda no período do combate, da luta armada. Como é que o senhor, que escreve um livro sobre direitos humanos, encara esse tipo de atitude dos chamados grupos revolucionários?
Jacob Gorender: No meu livro Combate nas trevas, eu procurei ser fiel aos fatos, mostrar por que a esquerda foi derrotada, porque ela não conseguiu os resultados que esperava e alguns de seus líderes perderam a vida, como foi Marighella, Câmara Ferreira e vários outros. Procurei mostrar isso. E mostrar também os pecados, os crimes da própria esquerda. Mas eu só identifiquei, no caso de militantes da própria esquerda, quatro justiçamentos, não mais do que isso. No caso de militantes da esquerda. Não posso dizer os nomes porque eles estão no livro, não tenho de memória. De adversários é outra coisa. Como o [Charles Rodney] Chandler [capitão do Exército dos EUA, que estava no Brasil com esposa e filhos para estudar na Escola de Sociologia e Política da Fundação Álvares Penteado. Em outubro de 1968, ele foi morto a tiros por militantes da esquerda, que suspeitavam ser ele um agente da CIA], o Boilesen, eu falei aí que também sofreu um atentado, aí são inimigos.
Paulo Markun: O senhor acha que é justificável matar um inimigo?
Jacob Gorender: Acho. Numa luta daquele tipo, sim. Porque os nossos também eram assassinados. Havia a Operação Bandeirante [(Oban) Centro de informações, investigações e de torturas montado pelo exército brasileiro em 1969, e financiado por alguns empresários] transformada depois em DOI-Codi. Então, era uma luta sem trégua. Não direi o mesmo nos dias de hoje, que não teria nenhuma justificativa.
Paulo Markun: Mas esse argumento que o senhor usa não é o mesmo que os militares defendem para dizer que a violência da ditadura contra a esquerda foi uma resposta aos atentados?
Jacob Gorender: É o que eles afirmam. E ainda recentemente em nota oficial do Exército. Mas isso não justifica de maneira nenhuma a tortura de prisioneiros. O DOI-Codi, primeiro a Operação Bandeirante, depois DOI-Codi, não justifica a tortura de prisioneiros e o assassinato de prisioneiros indefesos. Ainda agora nós estamos vendo que militares que combateram os guerrilheiros do Araguaia estão requerendo benefícios dizendo que a luta que eles travaram se equipara a da Força Expedicionária Brasileira. Isso é uma infâmia, porque a Força Expedicionária Brasileira da qual eu fiz parte – estive durante oito meses na linha de frente, na Itália – combateu o exército nazista e fez prisioneiros e nunca torturou prisioneiros. Não há registro dessa espécie. Os prisioneiros alemães e de outras nacionalidades eram interrogados conforme as normas da Convenção de Genebra [Reunião de líderes mundiais em Genebra, na Suíça, onde foi definida uma série de tratados, definindo as normas para as leis internacionais relativas ao direito humanitário internacional. Esses tratados definem os direitos e os deveres de pessoas, combatentes ou não, em tempo de guerra]. Mas tortura jamais. E o que fizeram esses militares no Araguaia? Eles decapitaram guerrilheiros que estavam vivos. Eles fuzilaram guerrilheiros que capturaram vivos. Lançaram no oceano, incineraram, carbonizaram corpos de prisioneiro. Quer dizer, praticaram toda espécie de crueldades e hoje estão reivindicando benefícios comparando-se aos expedicionários da Força Expedicionária. Isso é uma infâmia, que eu repilo aqui neste programa.
Beatriz Kushnir: Professor, em 1998 quando o senhor relança o Combate nas trevas, o senhor diz que a historiografia do pós-1964 só vai avançar quando os arquivos do exército forem abertos. A gente vive neste momento um dilema bastante difícil. Depois das fotos falsas do Vladimir Herzog publicadas o ano passado, o governo fez uma medida provisória que passou no Senado recentemente e se tornou uma lei de que tudo que se vai consultar nos arquivos hoje, da história do contemporâneo, passa por uma comissão interministerial, o que leva muito tempo. Coisas que pesquisadores podiam ver até o ano 2000, 2001 nós não podemos mais ver hoje em dia. A sociedade civil está se mobilizando contra essa medida provisória, e a família dos mortos e desaparecidos fez essa semana, em São Paulo, um movimento chamado Desarquiva Brasil. Eu queria que o senhor comentasse um pouco sobre essa questão dos arquivos do Estado, que este governo também não libera nem a pesquisadores, nem ao cidadão.
Jacob Gorender: É, esse é o grande problema brasileiro. Basta dizer o seguinte: os arquivos, os documentos referentes à Guerra do Paraguai, que estão em poder do Exército, até hoje não foram postos à disposição de pesquisadores. Os pesquisadores brasileiros não têm condições de saber o que está ali, o que foi dito, que registros foram feitos. Isso da Guerra do Paraguai. Eu penso que o governo do presidente Lula marcaria um grande ponto se determinasse, como presidente da República, a abertura desses arquivos. Isso é imprescindível. E se constituísse uma comissão não muito grande, mas idônea, de historiadores e autoridades, enfim, que examinasse o conteúdo desses arquivos, desde a guerra do Paraguai até os mais recentes. Porque o que nós ouvimos sempre do Exército é que não tem arquivo. Em primeiro lugar, o Exército jamais reconheceu oficialmente que houve guerrilha no Araguaia. Isso não foi reconhecido. Com relação, por exemplo, à Aeronáutica, quando apareceram aqueles papéis na base aérea de Salvador, a Aeronáutica declarou que também não tinha arquivo porque tudo queimou no incêndio do aeroporto Santos Dumont onde eles estavam depositados. Quer dizer, é um jogo de esquiva que precisa acabar. E o presidente Lula marcaria um grande ponto se conseguisse determinar a abertura desses arquivos. É claro que há documentos que não podem ser colocados em público. Mas, em grande parte, o que está se fazendo é esconder tudo. E já se estabeleceu que tem documentos que, pela eternidade, ficarão desconhecidos do povo brasileiro. Isso eu acho que deve terminar.
Jorge Caldeira: O senhor, depois de 25 anos, de militância no Partido Comunista Brasileiro, em cargos de direção, pensando o tempo todo em um partido que ia fazer uma revolução. Depois de tentar a luta armada como caminho para a revolução e depois de se fixar como nome de intelectual revolucionário, aos 81 anos o senhor publica um livro chamado Marxismo sem utopia, que é um livro de quem conhece profundamente o marxismo, isso é bom dizer, mas onde tem algumas afirmações que, para muita gente, têm parecido difíceis de digerir. Entre elas, que: "democracia é um valor universal e não uma farsa", uma democracia burguesa, farsa, como já dizia a propaganda durante o século XX. Segundo, que "os direitos humanos são valores universais e fundamentais e não invenção burguesa", como a tradição revolucionária marxista leu essa coisa. Por fim, tem a famosa frase, que acho que vai virar um clássico, de que “o proletariado é uma classe ontologicamente reformista”, que tem dado pano pra manga e muita discussão por aí. Bom, aí são duas coisas. Em primeiro lugar, é preciso muita coragem, para quem fixou o nome como revolucionário, entrar tão fundo nessas questões. A minha pergunta é: isso não abre para trás uma brecha para ler o século XX, ou reler o século XX ,a partir do marxismo da social-democracia – [Eduard] Bernstein, [(1850-1932)], [Karl] Kautsky [(1954-1938)] [teóricos políticos alemães e os dois principais representantes do revisionismo ou social-democracia, que previa uma evolução do capitalismo o qual, gradualmente, através de reformas sociais, daria lugar ao socialismo. O revisionismo também buscava alterar alguns pontos teóricos básicos do marxismo, com base no evolucionismo darwiniano e nas idéias do filósofo Kant], que foram os que propuseram isso na Alemanha, no final do século XIX, e isso gerou a social-democracia? Enfim, onde que vai ficar o limite entre social-democracia e socialismo, se essas afirmações do senhor forem verdadeiras?
Jacob Gorender: São questões que eu precisaria fazer uma conferência para poder responder a elas [risos]. São muito complicadas. Mas eu devo dizer o seguinte: eu não tenho receio de mudar as minhas idéias se eu me convenço de que o que eu pensava anteriormente não estava certo. E, depois, os tempos mudam. Para novos tempos são necessárias novas idéias. Então eu não fico com receio de apresentar essas novas idéias. Eu cheguei a essa conclusão: que o proletariado, ontologicamente, é reformista, não revolucionário. E isso é muita coisa. Se não fosse o reformismo do proletariado, nós estaríamos hoje ainda na época da revolução industrial inglesa. Quer dizer, esse reformismo, essa luta pelos seus direitos, embora não revolucionários, foram muito importantes para nossa sociedade e para as sociedades onde o proletariado pôde atuar. Isso não é pouca coisa, embora não seja revolucionário. Eu me considero marxista hoje, mas como o título desse meu penúltimo livro diz, o marxismo ainda era utópico. Marx e Engels pensaram em se desfazer da utopia, mas não conseguiram isso. Eles continuaram sendo utópicos. E aqui eu quero citar três aspectos da utopia marxista. Em primeiro lugar, o produtivismo infinito. Marx tinha a convicção de que, em condições sociais favoráveis, em que as relações de produção sejam um incentivo ao aumento das forças produtivas, a sociedade atingiria uma produtividade de tal ordem que as coisas perderiam valor. Quer dizer, elas se tornariam extremamente abundantes. E as pessoas poderiam gozar quase de uma situação paradisíaca. Isso é falso. A história mostrou que a produção tem limites que Marx não conheceu. Marx não conheceu a ecologia. Tem limites ecológicos, os recursos naturais são limitados e o abuso deles provoca o efeito-estufa, a poluição e outros problemas graves para a própria sociedade humana. Então, não se pode pensar numa produtividade infinita. Há limites que precisam ser observados, e Marx não conheceu esses limites ecológicos. E daí essa idéia. A segunda questão é o desaparecimento do Estado. Eu considero que o Estado não vai desaparecer. A sociedade moderna é de tal maneira complexa, constituída de segmentos, não só de classes sociais, mas são os idosos, os homens, as mulheres, os profissionais de várias áreas, a diferença entre países. Quer dizer, tudo isso exige uma escala de prioridades. E quem é que vai tomar a iniciativa disso? É necessário um órgão superior que é o Estado. E que seja um Estado democrático, obviamente. Por isso eu falo em democracia. Eu considero que qualquer idéia de socialismo tem que ser democrática. Porque o socialismo autoritário e ditatorial deu no que deu na antiga União Soviética, na criminalidade de um tirano como Stalin. Então, é por isso que eu falo nessa questão. E a existência do Estado pode levar ao estabelecimento dessa escala de prioridades, em benefício de uns, às vezes deixando de beneficiar outros, mas de tal maneira que isso seja feito em prol do bem comum da sociedade, das várias etnias, dos vários países do mundo. Então, esse aspecto, o desaparecimento do Estado e o produtivismo são erros, são utopias dentro do corpus marxista, dentro da obra de Marx e de Engels. E depois, a confiança ilimitada no proletariado, que não se confirmou. Por isso é que eu digo que o proletariado é ontologicamente reformista. Isso é claro que, para um marxista, soa como uma heresia tremenda. Mas eu não tive receio dessa heresia, porque eu considero que é isso o que acontece. O que é o socialismo e como ele virá? Eu penso que o socialismo é um projeto. Não está inscrito na história que o socialismo é inevitável. Eu não considero as coisas assim. Isso seria uma questão de fé. Fé religiosa, transformar o marxismo em religião. Em vez da Bíblia, dos Evangelhos, O Capital. Não pode ser assim. Então, como é que pode vir esse projeto? Nós não temos certeza como ele virá. Mas é um projeto. Eu inseri também nesse livro, isso está feito, a teoria da incerteza e da indeterminação de Heisenberg. Quer dizer, dentro de um sistema, as coisas funcionam de maneira determinista. De outra maneira, o sistema se desagrega, não funciona, seja ele qual for: uma máquina, uma entidade humana e assim por diante. Tudo tem que funcionar, uma peça provocando o movimento da outra e assim por diante. Mas a passagem no plano social, no plano civilizacional, de um sistema para outro tem incertezas, tem indeterminações. Nós não podemos ter certeza de que agora, deste capitalismo, que é planetário hoje, nós passaremos para o socialismo. Esse é um projeto, mas não é uma certeza. Quer dizer, assim como na física, há a incerteza, conforme mostrou Heisenberg, assim também, muito mais, nas questões históricas e sociais.
Paulo Markun: Professor Gorender, o nosso tempo acabou e eu fico pensando que o Papa Pio XII abençoou um herege marxista [risos]. Eu quero agradecer muito a sua entrevista. Lamentar, porque esse é o mais longo espaço que a televisão dá para o debate de idéias, uma hora e meia, e ainda foi insuficiente. Agradeço a sua participação e a dos nossos entrevistadores.