Simbologias podem se tornar instrumentos poderosos
nas mãos de mentes habilidosas. A Foice e o Martelo (em russo, серп и молот,
serp
i molot), quando representados entrelaçados, é um símbolo poderoso. Já foi
mais, mas ainda é. Já fez tremer de terror ou paixão ideológica multidões mundo
afora, especialmente nos tempos da guerra fria, quando simbolizava o poder
comunista, supostamente oriundo da aliança de classes entre o operariado urbano
e o campesinato. Aliança esta que forjou, a ferro, fogo e sangue, uma das
maiores potências que o mundo já viu: A União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas.
O símbolo da foice e do martelo está presente desde
os primórdios da revolução bolchevique de 1917. Foi inicialmente utilizado pelo
Exército Vermelho e no brasão da República Socialista Soviética Federada da
Rússia (RSFSR). Em 1923 foi incorporada à bandeira da União soviética (a
federação russa era apenas uma de suas repúblicas). Antes disso, as bandeiras
das repúblicas soviéticas geralmente eram apenas vermelhas, com o nome da
respectiva república escrito em dourado no canto superior esquerdo, como
estabelecido pelo artigo 90 da Constituição Soviética de 1918. Com o tempo
tornou-se um símbolo do comunismo em si, sendo utilizado mesmo por partidos opostos
às diretrizes de Moscow.
Uma das mais belas representações da Foice e do
Martelo é o monumento “O Operário e a camponesa kolkhoziana" - Kolkhozes eram as fazendas de propriedade coletiva, embora não estatais - estas eram os Sovkhozes. O estado havia empreendido uma campanha feroz contra os proprietários de terras, chamados pejorativamente de "kulaks" (Russo: кула́к,
kulak, "punho", literalmente punho-fechado; Ucraniano: курку́ль,
kurkul) - não confundir com Gulag - talvez por isso a figura feminina não tenha sido chamada apenas de "camponesa" - era preciso evidenciar sua origem de classe. Trata-se de uma obra-prima moldada em
estilo “Art Deco” na era do chamado “realismo socialista”, uma época em que
todas as artes destinavam-se a servir à propaganda do estado totalitário. Para além desta função, no entanto, ainda é possível enxergar, ao se observá-la, a
pureza da idéia que está em sua origem. Uma idéia poderosa, que se espalhou por
todos os continentes e abalou o mundo, seduzindo as classes menos favorecidas
com a promessa de uma espécie de paraíso na terra – ou, pelo menos, da ascensão
de uma sociedade mais justa e igualitária.
O monumento foi esculpido por
Vera Ignatyevna Mukhina, a princípio, com o
objetivo de ornamentar a entrada do Pavilhão Soviético na Exibição
Internacional de Artes, Ofícios e Ciências de Paris, em 1937. Lá, localizados frente
a frente, separados pelo “Trocadéro”, uma passagem para pedestres localizada na
margem norte do Rio Sena, os pavilhões da República Socialista e da Alemanha
nazista concorriam em monumentalidade e força bruta,
antecipando o conflito que dentro em breve viria a envolver os dois países.
Seu transporte de Moscou à capital da França foi
feito através de uma desmontagem em 65 peças, o mesmo acontecendo em sentido
contrário depois de terminada a Exposição. Foi então instalado de forma
definitiva no grandioso Complexo de Exposições das realizações da economia popular,
hoje chamado Parque de Exposições de Toda a Rússia. Em 2003, por determinação
da Câmara de Moscou, a escultura passou por um longo processo de restauração
que durou cerca de 6 anos, sendo novamente assentada num novo pedestal de 60
metros de altura – o anterior tinha apenas 10.
“O Operário e
a Camponesa” ficou também conhecido e ainda é lembrado em todo o mundo por ter
sido o símbolo da “Mosfilm”, o maior estúdio de cinema soviético, onde foram
rodadas obras-primas como “Quando voam as cegonhas”, “Balada do Soldado” e
“Andrei Rublev”. Já sua autora, Vera Mukhina, ganhadora de 5 prêmios “Stalin” e
intitulada oficialmente “Artista do povo”, caiu no esquecimento junto com o
movimento artístico/propagandístico que ajudou a moldar.
por Adelvan Kenobi
Reza uma lenda popular que Vera Mukhina foi também autora de
outra obra, decerto menos monumental, mas inquestionavelmente mais popular: o
copo multifacetado - conhecido no Brasil como "copo americano". Ecos da Guerra Fria ...
“Copos com várias faces sempre existiram. Mas este, este em
concreto e em específico, saiu do punho empenhado da “Artista do Povo”. Há quem
diga que, no desenho das linhas retilíneas do copo de vidro, Vera Mukhina foi
influenciada pelo pintor construtivista Kazimir Malevich. Graças ao sopro
inspirador de Malevich, o copo tinha a dimensão perfeita. Límpido e puro, casto
e sereno, sem arrebiques burgueses. Sendo de uma elegância e de uma
simplicidade extremas, o copo de Mukhina tinha também as proporções exatas para
servir à função a que se destinava: embriagar o povo a goles de vodca,
fazendo-o esquecer que, como destino de férias, o arquipélago Gulag conseguia
ser relativamente pior do que Benidorm e a Quarteira. A tese da influência de
Malevich na criação do copo não é descabida, visto que Mukhina, nos anos vinte,
namorara o cubismo, chegando mesmo a praticá-lo em público. Mas, na década de
trinta, como bela artista que era, virou-se para o que estava a dar na altura,
o realismo socialista. Na criação de O Operário e a Camponesa inspirou-se em
diversas obras clássicas e neoclássicas (desde a Vitória de Samotrácia ao Arco
do Triunfo), com resultados fatídicos: um casalito de assalariados com 24
metros de altura e 75 toneladas de peso.
Aqui, no copo, ao invés da estátua do Operário, não
existe nada de megalómano. Nada de devaneios. O copo tinha uma função: durar.
Durar como o regime que, a partir de 1943, inicia a produção em massa deste
objeto, que deveria servir para brindes viris ao “Pai dos Povos”, mas cujas
dimensões teriam de permitir também a sua limpeza nas máquinas de lavagem
industrial que, na URSS, começaram a ser fabricadas nos anos trinta. Em
comparação com a estátua, o copo era um tudo nada mais pequeno. Mas vencia na
estatística. De fato, nunca um objeto foi produzido em tão grande escala. Vera
Mukhina era mulher de grandes feitos e de grandes números. A estátua colossal
fora a primeira a ser construída em placas soldadas. O copo multifacetado foi
produzido à cadência de 5 a 6 milhões por ano. Grosso e forte, servia para
todas as bebidas: o chá escaldante ou a água cristalina, que ora aqueciam ora
refrescavam o corpo, mas sobretudo o álcool potente, que entorpecia o espírito.
Por causa disso, o copo plurifacetado –
possivelmente, a única coisa plurifacetada que havia na Rússia soviética –
sempre esteve associado ao consumo de álcool. (...)diz-se que o copo de Mukhina
constitui um bom exemplo das relações entre o design industrial e a política. É
que, a dada altura, Nikita Khrushchev – um empedernido abstêmio, como todos
sabemos – tentou combater o endêmico alcoolismo que grassava na sua pátria.
Fê-lo, claro está, à boa maneira soviética: proibiu as garrafas de 250gr e 125gr
de vodca e só autorizando garrafas de 750gr, na convicção de que, desaparecendo
as garrafas-mini, os russos não se abalançariam a vôos mais altos. Mais um erro
da economia planificada. Graças à criação de Vera Mukhina, a litragem de 750gr
vinha mesmo a calhar, pois dava exatamente para encher três copos até à borda,
dado que cada copo tinha capacidade para 250gr (100gr = 0,1 litros). É só fazer
as contas.” - Malomil
Entre a nostalgia soviética e o novo patriotismo
A nostalgia da URSS e sua reavaliação pela população
é um fato, mas numa realidade que não permite mais um retorno ao ’sovietismo’.
A liquidação do sistema social soviético, as privações, o papel do dinheiro e
as pressões do mundo globalizado atingiram um ponto em que não há mais volta.
01 de Abril de 2004, Le Monde Diplomatique
por Jean-Marie Chauvier
Quem nunca viu, mesmo que no cinema, o monumento
assinado por Vera Moukhina representando o operário e a camponesa kolkhoz
lançando-se em direção ao futuro radiante empunhando a foice e o martelo(1)?
Instalado na entrada do parque de exposições em Moscou, ele acaba de ser
desmontado. Talvez, não para ser posto de lado, mas para ser reformado.
Bandeiras vermelhas tremulam novamente no 9 de maio, nas celebrações oficiais
da vitória sobre a Alemanha nazista, como nos desfiles comunistas do 1º de maio
e 7 de novembro(2). O hino da URSS ressoa novamente(3). Adolescentes exibem malhas
com a inscrição "Minha pátria, a URSS". Grupos de rock reciclam os
"sucessos" soviéticos. A faixa de FM, em Moscou, repercute
especialmente canções em língua russa. Cafés da moda e publicidades comerciais
também estão cobertos de símbolos soviéticos, testemunhando assim uma
"nostalgia" pós-moderna.
Essa volta do pêndulo teve início em meados dos anos
1990. Os filmes soviéticos passam novamente na televisão - "a pedido do
público", dizem as emissoras. Um editorialista se inquieta: o "o povo
soviético" está sempre lá, a nostalgia aparece como "a dominante do
humor local(4)". As pesquisas de institutos considerados sérios confirmam:
"57% dos russos querem a volta da URSS" (2001), 45% consideram o
sistema soviético como "melhor" que o atual, 43% desejam mesmo
"uma nova revolução bolchevique" (2003). As opiniões sobre o presente
também se mostram pouco "corretas": descrédito da "revolução
democrática" de agosto de 1991(5) e rejeição em massa (quase 80%) das
grandes privatizações "criminosas". Os democratas vituperam: amnésia
("eles esqueceram o gulag e as penúrias"), o ódio aos ricos
"porque são ricos", mediocridade de descrentes e dos velhos, "a
biologia resolverá o problema". Com Vladimir Putin, os acontecimentos
políticos vieram confortar suas angústias: processos judiciais contra muitos
dos grandes oligarcas por seus amigos e financiadores(6), retomada do controle
das grandes mídias pelo Kremlin, reabilitação da NKVD e da KGB(7), influência
crescente dos "siloviki(8)" e do FSB (Serviço Federal da Segurança),
desejo de restaurar a influência russa no espaço ex-soviético, críticas
oficiais dirigidas aos Estados Unidos e sua penetração nesse espaço, oposição à
guerra do Iraque. E isso, apesar da "aliança estratégica" selada pelo
presidente Putin em Washington no dia seguinte ao 11 de setembro de 2001.
No entanto, esforços não foram poupados para
erradicar o comunismo. Desde 1991, os russos estão submersos em arquivos,
artigos, livros e programas de televisão que denunciam os "crimes
bolcheviques": terror vermelho sob Lênin e Trotski, "Grande
terror" sob Stalin, fome de 1932-1933, gulag, deportação de povos
"punidos" ou "suspeitos" de colaboração com a Alemanha
nazista, repressões sob Brejnev. A "batalha da memória" conjugada com
a promoção dos "valores mercantis democratas" foi levada a termo, com
entusiasmo, por grandes mídias, jornalistas, historiadores, respaldada por uma
vasta rede ocidental e, sobretudo, americana, de instituições, universidades e
fundações - Ford, Soros, Hoover, Heritage, Carnegie, USIS, USAID, sem falar dos
filantropos oligarcas da Rússia(9).
Os debates contraditórios da época Gorbatchev(10)
foram substituídos por acusações contra o "Império do Mal" em todas
as suas encarnações. A virulência desse anticomunismo russo é de dar inveja aos
cruzados ocidentais. É preciso, a cada momento da crise que ameaça o novo
regime, agitar o espantalho do "retorno dos vermelhos" e da guerra
civil. A condenação do "bolchevismo" leva à reabilitação de seus
opositores, principalmente o movimento branco e as dissidências. Até algumas colaborações
com os nazistas são "compreendidas". É assim que o cronista do
Izvestia Maxim Sokolov tenta explicar: "A época era complexa... (o
Terceiro Reich) era o único bastião a proteger a Europa da barbárie
bolchevique. Se tivesse vivido até hoje, o Reichsfüher SS (Himmler) seria
provavelmente honrado como combatente contra o totalitarismo(11)".
Esse revisionismo caricatural - que ignora os
contextos reais, os períodos, os regimes, as sociedades e as culturas muito
diversas da história soviética - é contestado por vários historiadores, mas não
são eles que dão o tom. Muito mais amplamente difundidos são os best-sellers de
Viktor Suvorov(12). O mais recente, lançado no final de 2002, começa com a
seguinte afirmação: "Todos os dirigentes soviéticos, sem exceção, foram
crápulas e não valem nada".
Um dos pioneiros do anticomunismo oficial, Alexandre
Tsipko, considera contraprodutiva essa forma de denegrir. Seus efeitos
desmoralizadores, combinados com as "reformas confiscatórias" que ele
já lamentava em 1995, "prepararam o campo para uma reabilitação da
história soviética" (13). Ele estava certo. Os ataques visam, além do
"sistema", os valores igualitários e coletivistas, comunitários,
tanto russos tradicionais como soviéticos. Eles visam as "pessoas de
baixo", os operários que, ao mesmo que tempo que são desestabilizados na
sua condição de vida, são estigmatizados como "cúmplices" do antigo
regime, "ajudados", "preguiçosos" e "inúteis" ao
progresso industrial(14).
Apesar dessa avalanche, a Rússia ainda escapa do
"pensamento único" sobre a URSS. Há ali experiências vividas em
demasia, heranças culturais, memórias dilaceradas para permitir esse tipo de
uniformidade. Os relatos de vida podem, numa mesma inspiração, trazer ecos
caóticos de tempos extremados em que as fronteiras entre a fé cristalina, as
alegrias positivas, a descida incompreendida e súbita aos infernos de um terror
cego, eram móveis, imprevisíveis.
Uma testemunha maior do universo dos campos de
concentração, Varlam Chalamov(15), evoca sua juventude agitada, a irradiação de
Lênin e dos ideais da revolução ("quantos horizontes, quanta imensidade se
ofereciam ao olhar de cada um, do homem mais comum"), nesse período
soviético muito ambíguo dos anos 20(16). A voz do destino mais comum, ao deixar
perceptíveis as razões da adesão popular àquele socialismo, se faz ouvir
através do relato de Lioudmilla, filha de camponeses brutalizados pela
deskulakização, mas que ultrapassa a fronteira dos mundos para vencer com
esforço, na cidade, o caminho da promoção social(17).
Esse foi, realmente, o caminho de milhões de
habitantes do mundo rural. Entre os camponeses, que viveram a guerra civil e
permaneceram na aldeia depois da "grande ruptura" da coletivização,
outros relatos de vida foram coletados a tempo(18), no início dos anos 1990,
quando a palavra foi liberta antes de ser "reformatada" pela ideologia
anticomunista dominante.
Um dos problemas da memória "reconstruída"
nesse novo contexto é a arregimentação de vítimas e mártires a serviço de uma
ideologia "antitotalitária" formulada a posteriori. Pois, entre eles
havia muitos comunistas e opositores da esquerda trotskista(19) - pessoas que,
voltando ao campo, não deixaram de crer e de servir ao "socialismo"
ao qual, hoje, se pretende que elas reneguem. Quem fala, e com qual direito, em
nome dos mortos?
Mas a maior parte dos ex-soviéticos ainda vivos não
conheceu os tempos piores. Evocam os quarenta anos vividos depois da guerra e
da morte de Stalin. Um artista se lembra da atmosfera doa nos 1960: "Eu
idealizo, talvez, mas havia na época um entusiasmo otimista no país. Não falo
de política, mas do clima moral das pessoas que me cercavam. O impulso dado
pelos Beatles revelou a aspiração ao amor, que teve seu auge com o movimento
hippie. Era um tempo luminoso que me ensinou a viver olhando o futuro com
otimismo". Choque e conivência com referências imprevisíveis: uma em
compasso com os ideais oficiais ("o futuro com otimismo"), a outra
com uma cultura não-conformista (os Beatles).
A confiança nas perspectivas de um país em pleno
arranque, onde ninguém tinha medo do dia seguinte, coexistia com o apoliticismo
e as tentações de uma cultura alternativa. Outros, contestadores do regime de
Brejnev, sentem falta do tempo em que se refazia o mundo nas cozinhas. "O
futuro ainda não tinha acontecido" - e ele seria, sabemos, bem
decepcionante. Quantos dentre eles, depois de 1991, retiraram-se da cena,
doentes, deprimidos ou mortos de tristeza ao ver o que produziu a mudança tão
esperada?
"Os novos chefes não dão crédito aos
chestidisiatniki, as pessoas dos anos 1960", conta Vassili Jouravliov,
"porque esses são para eles uma reprovação viva". Pois foi sobre suas
costas que os oligarcas e outros homens de negócios alçaram-se ao poder(20)". Antigos jovens - que não eram nem militantes, nem contestadores, nem
intelectuais ou quadros do partido, mas simplesmente ávidos de viver plenamente
- haviam deixado o conforto urbano pelas "grandes construções" dos
anos 1950-1980, por romantismo ou atraídos pela recompensa. A construção da
"cidade de sábios" em Novossibirski, as grandes centrais sobre os
rios siberianos, os complexos industriais de Togliatti e em Kama, o segundo
transiberiano, o BAM, deixaram neles, quase sempre, lembranças de uma juventude
intensa, apesar do sentimento comum hoje ser de imenso desperdício.
Outros voltaram marcados de uma aventura abominável:
a guerra do Afeganistão, da qual os mutilados, de mais ou menos 40 anos, falam
nas ruas e no metrô. E a geração jovem "retornada da Chechenia",
outra abominação, já toma o seu lugar. Porém, a maioria não participou de
engajamentos tão fortes. Viveu, simplesmente, imersa em um modo de vida, de
relações sociais, em uma cultura da qual separou-se com dor. Nascido em 1961, o
escritor ucraniano Andreï Kourkov fala, a seu modo, de algo que não era raro:
"Essa sociedade era fundada na amizade. Era possível bater na porta dos
vizinhos, se precisasse de dinheiro, eles o emprestariam. Depois da queda, toda
essa solidariedade ruiu (...) As pessoas que nasceram logo depois da queda, que
têm 20 anos, adaptam-se muito rápido. Para a minha geração, a solidão é a
doença da época. Perdi muitos amigos. Muitos suicidaram-se, outros emigraram(21)".
Lembrança de relações de convivência, ou vivacidade
de uma cultural social ainda perceptível nas resistências à liberalização? A
estudiosa Lioudmila Boulavka relata testemunhos dos meios operários
comprometidos nos recentes movimentos de protesto: os militantes julgam com
severidade suas próprias ilusões dos anos 1989-1991 (o apoio aos democratas),
sentem uma perda dolorosa com o final da URSS, não aceitam que os patrões façam
a lei sem consultá-los, querem crer ainda que "o Estado, somos nós",
permanecem ligados a uma cultura de consenso e de paternalismo social(22).
Todo um continente de conhecimentos falta aos
ocidentais para que eles compreendam o que é essa "perda" tão
sentida: o universo de uma cultura, a densidade de uma vida social que não
podem ser enquadrados com nenhuma ideologia. Onde classificar, nas suas
gavetinhas, tanto a vanguarda quanto a cultura popular de massa que marcou
gerações, as comédias musicais de Alexandrov e o jazz de Utesov, o humor de Ilf
e Petrov, as aventuras do soldado Vassili Tiorkine, os personagens "aos
pares" do cinema de Vassili Choukchine, a arte amadora dos clubes de
fábricas e vasto movimento das canções de compositores, a
"contestação" de massa mais importante nos anos 1960-1980? Onde
situar a recente decisão dos bardos não-conformistas de todas as idades de
consagrarem como "canção do século" a balada "Grenada" de
Mikhaïl Svetlov, "poeta do Komsomol" dos anos 1920? Será possível
transmitir mensagens dessa Atlântida que realmente existiu?
Uma pesquisa realizada com o concurso da fundação
alemã Friedrich Ebert, e dirigida por Mikhail Gorchkov(23), mostra a que ponto a
"reabilitação da URSS" procede de uma reflexão amadurecida, sem
estereótipos. Ela revela o fracasso do poder e das mídias na sua tentativa de
apresentar os setenta anos soviéticos como um "pesadelo", estimando,
até, que a pressão exercida nesse sentido esgotou seus efeitos. As avaliações
diferem, contudo, segundo os períodos propostos e a idade das pessoas que
respondem à pesquisa.
"Os crimes do stalinismo não podem ser de forma
alguma justificados" - é o ponto de vista de 75,6 % entre 16-24 anos; de
73,5% de 25-35 anos; de 74% de 36-45 anos; de 66,8% dos 46-55 anos; de 53,1%
dos 56-65 anos. "As idéias marxistas eram justas": as respostas
positivas variam, dos mais jovens aos mais velhos, de 27,4% a 50,3%. "A
democracia ocidental, o individualismo e o liberalismo são valores que não
convêm aos russos": esta opinião e aprovada por 62,9% dos 56-65 anos, mas
apenas 24,4 % dos 16-24 anos. Entre as "razões de orgulho", cerca de
80 %, em todas as categorias de idade, citam a vitória de 1945. Quem tem mais
de 35 anos escolhe em segundo lugar a reconstrução do pós-guerra, os mais
jovens (16-35) citam "os grandes poetas russos, os escritores, os
compositores". Em média, 60% citam as explorações das viagens espaciais. A
afirmação segundo a qual "a URSS foi o primeiro Estado de toda a história
da Rússia a assegurar a justiça social para as pessoas simples" é
escolhida pela maioria das pessoas com mais de 35 anos, 42,3 % entre 25-35
anos, e apenas 31,3 % entre 16-24 anos.
Entre as características dos diferentes períodos, a
maioria dos participantes designa principalmente: o período do Stalin seria a
era da disciplina e da ordem, do medo, dos ideais, do amor à pátria, de um
desenvolvimento econômico rápido; o período do Brejnev: proteção social,
satisfação, sucesso na ciência e na técnica, ensino, confiança entre as pessoas;
e o período atual: criminalidade, incerteza do futuro, conflitos entre nações,
possibilidade de enriquecer, crise e injustiça social. As pessoas de opinião
liberal concordam com um balanço positivo da era Brejnev (25%), entre os
comunistas (45,9%); com um balanço negativo da era Yeltsin (21%), entre os
comunistas (59%).
Quanto ao futuro, uma ampla maioria pronuncia-se a
favor de uma gestão estatal dos grandes setores da economia, do ensino e da
saúde; só reconhecem o valor da gestão mista (com o setor privado) nos campos
da alimentação, da moradia e das mídias. Uma maioria (54%) "escolheu uma
sociedade de igualdade social" e definiu como o principal caráter da
democracia "a igualdade dos cidadãos diante da lei".
Evolutiva, a visão do passado é, portanto, filtrada
pela experiência de "reformas de mercado", cujo caráter desastroso é,
entretanto, amplamente reconhecido. A primeira inspiradora dessas reformas, a
socióloga Tatiana Zaslavskaïa(24), estima que os trabalhadores são "ainda
mais alienados da propriedade e privados de direitos do que na época soviética.
(...) A produção não está apenas reduzida, mas degradada do ponto de vista
estrutural e tecnológico. (...) Setores que asseguravam as necessidades sociais
na época soviética e aumentavam, ainda que modestamente, a qualidade de vida da
população, hoje se degradam cada vez mais. As conquistas democráticas da época
da perestroïka e da glasnost estão em perigo. (...) A polarização da sociedade
tomou um vulto colossal: de 20 a 30% da população vivem sérias privações,
habitam moradias em ruínas, têm fome, são doentes e morrem
prematuramente".
O economista liberal Grigori Iavlinski fala de
"desmodernização" da Rússia, o ecologista Oleg Ianitskii de
"sociedade de todos os riscos". "Vivíamos atrás da cortina de
ferro", explica o historiador Viktor Danilov. "Ignorando as
realidades exteriores, acreditávamos viver na miséria do nivelamento. Agora que
a cortina de ferro caiu (...) sofremos a provação da verdadeira miséria.
Sabemos, hoje, que na época soviética, não vivíamos na miséria, mas numa
"suficiência" nivelada, ainda que baixa. O sistema de saúde e de
ensino era acessível a todos apesar dos privilégios dos ?servidores do povo? As
filas existiam para que cada um pudesse ter o necessário, o que não é mais
acessível, hoje, para a maioria".
Segundo Danilov, para muitos, "sem dúvida
abriram-se as portas para o mundo externo, mas portas blindadas foram postas
entre as pessoas". Nunca a "atomização" atingira um tal grau.
Além dessas tristes constatações, não faltam, na Rússia, reflexões
interessantes sobre o passado, o futuro e as possibilidades de desenvolvimento.
Mas esse universo muito plural do pensamento russo é ignorado pelo Ocidente,
onde só se repercutem os pontos de vista liberais ocidentalistas.
O patriotismo refigurado nutre-se, no entanto, do
ressentimento da decadência, da miséria, da nova "imagem do inimigo"
- o "terrorista" árabe-muçulmano - criado em conjunto com o Ocidente
civilizado com o qual identifica-se. O clima não é mais de
"anti-imperialismo", mas de xenofobia "petit blanc(25)" em
relação a povos ainda mais desfavorecidos, o Sul ameaçador. É paradoxal: muitos
lamentam, ao mesmo tempo, a falta do espírito de amizade que reinava nas
comunidades multinacionais soviéticas de operários e estudantes e deploram a
criação de novas fronteiras, os entraves políticos e financeiros que afetam a
liberdade de viajar, as famílias e os amigos que se deslocaram. Aceita-se o
massacre dos chechenos ao sabor do filme cult dos anos 1930, Le Cirque, no qual
o ator judeu Salomon Mikhoels, assassinado por Stalin, canta uma canção de
ninar yiddish a uma criança negra arrancada das garras do racismo americano!
A nostalgia da URSS e sua reavaliação pela população
não se confundem com seus diferentes usos políticos. A realidade exclui um
"retorno ao sovietismo": a liquidação do sistema social soviético, as
privações, o papel do dinheiro e as pressões do mundo exterior
"globalizado" atingiram um ponto em que não há mais volta. E, se as
tradições de potência, burocráticas e policiais, foram reativadas por necessidades
internas do poder e do controle do petróleo, o mesmo se dá no contexto
internacional no qual o exemplo da militarização, da cultura securitária é
estadunidense, venerado pelos novos russos.
Entre as "reabilitações", o presidente
Putin não esqueceu Pedro, o Grande, o reformador liberal autoritário Piotr
Stoypine, sob Nicolau II, nem a muito atual Igreja Ortodoxa. O Kremlin tem como
emblema a águia imperial bicéfala coroada. O ídolo da nova burguesia é um veado
de ouro, verde como o dólar.
Quando ao casal de Vera Moukhina, empunhando ainda
as ferramentas do comunismo, a novidade da sua reforma não deve assustar os
liberais: quando eles estiverem novamente em pé, orgulhosos e petrificados no
seu entusiasmo pelo futuro do passado, o operário e a camponesa kolkosiana
deverão ser postos em um pedestal ainda maior, digno dos novos tempos. Diante
de um shopping center.
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 - A imagem do casal comunista aparecia na primeira
tela dos filmes dos estúdios Mosfilm.
2 - Aniversário da "Grande Revolução Socialista
de Outubro de 1917"
3 - Sobre a música de Boris Alexandrov, o hino que
substituiu a Internacional e foi abandonada pela URSS em 1991, foi
restabelecido pelo Duma em 8 de dezembro de 2000, com uma nova letra
"patriótica" composta por Serguei Mikhalkov, que já havia escrito a
do hino soviético.
4 - Andréi Koslesnikov, Izvestia, Moscou, 5 de junho
e 14 de agosto de 2001.
5 - 48% dos russos vêm no fracassado golpe militar
conservador e no golpe de Estado bem-sucedido de Boris Yetsin apenas um
"episódio da luta pelo poder", 31% classificam os fatos
como"acontecimentos trágicos", 10% somente uma "vitória da
democracia". Seu segundo aniversário, em 2001, não foi celebrado.
6 - Os antigos magnatas Vladimir Goussinski
(mídias), refugiado na Espanha, Boris Berezovski (automóvel, petróleo, mídias,
finanças do Kremlin), "refugiado político" na Grã Bretanha, Mikhail
Klodorkovski (petróleo Yukos), preso.
7 - O Comissariado do povo nos Negócios do Interior
(NKVD) era a polícia política no período de Stalin. Foi substituído, em 1954,
pelo Comitê de Segurança do Estado (KGB), e depois, perto do final da URSS,
pelo Serviço Federal da Segurança (FSB).
8 - Esta denominação é dada a grupo de homens das
forças armadas, das polícias e da informação.
9 - O partido liberal União das forças de direita e
a Fundação Soros promoveram uma edição do Livro Negro do Comunismo, do francês
Stéphane Courtois.
10 - Ler , URSS, une société em mouvement, L’Aube,
La-Tour-d’Aigues, 1988.
11 - Izvestia, 26 de março de 2002. Falava da
re-abilitação, na Ucrância, da divisão SS Galitchina
12 - Ten ’Pobedy, Moscou, 2002.
13 - Nezavíssimaïa Gazeta, Moscou, 9 de novembro de
1995
14 - Ler Karine
Clément, Les Ouvriers russes dans la tourmente du marché, Syllepse, Paris,
2000.
15 - Ler Pierre Lepape, " Le goulag selon
Chalamov ", Le Monde diplomatique, dezembro de 2003
16 - Les Années vingt, éditions Verdier (Paris), que
também publicam integralmente os Récits de la Kolyma (2003).
17 - Lioudmila
Boulavka, une Russe dans le siécle, La Dispute, Paris, 1998.. Les
Années vingt, éditions Verdier (Paris), que também publicam integralmente os
Récits de la Kolyma (2003).
18 - Golosa
Krest’ian, Selskaïa Rossia XX veka v krest íanskikh memuarakh, Aspekt Press,
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19 - Ler Pierre
Broué Communistes contre Staline. Massacre d’une génération, Fayard, Paris,
2003.
20 - Litteraturnaüa Gazeta, Moscou, 6-12, março de
2002.
21 - Entrevista sobre seu livro Le Pingouin (Liana
Levi, Paris, 2000), in " Le matricule des anges", www