terça-feira, 30 de abril de 2013

25 Anos de "fanzinagem"

"Flyer" divulgando o Escarro Napalm
Há uns 3, 4 anos, eu estava na casa de meu amigo Lenaldo, em Itabaiana, quando apareceu por lá um camarada de quem eu, confesso, não lembrava mais. Seu nome era Aldo e ele havia sido, veja só, o “feliz ganhador” de uma fita cassete (OH!!!) que eu havia sorteado entre os leitores de meu primeiro fanzine, o NAPALM – o nome foi inspirada na célebre casa noturna paulistana do início dos anos 80. Isso havia sido há mais de 20 anos e, para minha extrema surpresa, o cara ainda tinha a tal fita! Intacta, em perfeito estado! Nela, uma compilação com o “supra-sumo” do Heavy Metal da época – Iron Maiden, Ozzy Osbourne, Megadeth e Metallica. Confesso que fiquei emocionado em ver aquela sementinha que eu havia plantado lá atrás ainda germinando e reverberando, tanto tempo depois. Pena que não havia nenhum tape deck funcionando, seria interessante ouvir de novo a fitinha ...

Ano I – No. 01 – Abril de 1988. 25 Anos, portanto. Está lá na capa da primeira edição do NAPALM. Uma produção da FUCK YOU PROMOÇÕES ARTÍSTICAS. Mas não havia “equipe”. Havia apenas minha vontade de divulgar o mundo do rock, que eu estava descobrindo lá no meu cantinho do mundo, em Itabaiana, Sergipe. Eu, apenas eu e só eu, com toda a minha verborragia “aborrescente” (tinha 17 anos) e aquele linguajar arrogante de quem não sabe de nada mas acha que já sabe tudo – "Fuck or get fucker", que porra eu queria dizer com isso?!!!! Com o tempo e o passar das edições fui cedendo e aceitando colaborações, especialmente as de um amigo que era fanático por cinema, o que diversificou o conteúdo mas desvirtuou um pouco a proposta original – o cara fez uma matéria enorme com uma biografia de Marilyn Monroe!

“Fanzine”, entre aspas, porque eu nem sabia que estava fazendo um fanzine – isso já virou até folclore, mas é verdade. Chamava de “apostilha”. Só depois, quando a noticia de que havia uma publicação independente dedicada ao rock circulando pelo interior do estado chegou à capital, mais precisamente aos olhos e ouvidos de Silvio, vocalista da Karne Krua, e de Antonio Passos, um dos proprietários da Distúrbios Sonoros – a primeira loja especializada em rock da cidade – e produtor do programa “Rock Revolution”, que ia ao ar aos sábados pela Atalaia FM, eu fui saber o nome do que estava fazendo. Uma revista de (e para) fãs. Um fanzine.

Passos me conseguiu, gratuitamente (a distribuição também era gratuita) uma tiragem de 100 exemplares para uma das edições através da repartição pública onde trabalhava, e com isso minha “obra” passou a ter um alcance maior. Silvio me mandou uma carta, na verdade um pacotão cheio de materiais impressos e xerocados, saudando minha iniciativa e me convidando a se juntar a uma verdadeira rede de comunicação que eu não fazia a mínima idéia de que existia, através de flyers – papeizinhos que divulgavam outras publicações – panfletos – quase todos dedicados aos ideais punks e anarquistas – e outros fanzines, de todo o Brasil.

Fiquei maravilhado. Tanto que dediquei uma edição inteira à divulgação daquele material. Na verdade eu já tinha algum contato com um pessoal “de fora”, mas de forma ainda bastante tímida. Não me lembro como cheguei até eles, mas muito provavelmente foi através da sessão “Headbanges Voice”, da revista Rock Brigade. Lembro apenas que eram dois correspondentes – um de Teresina, Piauí, outro de Belém do Pará. Um deles me mandou inclusive uma fitinha gravada com a Dorsal Atlântica (acho que “Antes do fim”) de um lado e uma banda local, provavelmente o Megahertz, do outro. Mas aquilo que Silvio me mostrava era algo muito além do que eu imaginava. Era uma verdadeira corrente militante, muito rica e ativa e com ideais mais ousados que a simples busca por diversão descompromissada que parecia ser mais a onda do pessoal do metal.

Não me transformei em nenhum punk, no entanto. Na verdade houve uma quebra de continuidade no meu trabalho logo no ano seguinte, 1989. Entrei para a Universidade – UFS, Federal de Sergipe – e o ambiente acadêmico, associado à descoberta do marxismo, me dominou. Parei de publicar o Napalm. Na faculdade, ajudei a criar uma outra publicação, desta vez de forma mais coletiva e colaborativa. Se chamava “Anti-Tese”, era cheio de teses pouco amadurecidas e confusas e, por isso mesmo, teve apenas duas edições. Mas chegou a chamar a atenção no campus, provavelmente por ser uma iniciativa independente, desvinculada da luta partidária que dominava o movimento estudantil – nosso grupo oscilava entre o anarquismo, o comunismo – do “partidão”, o “Brizolismo” e o “petismo”. E o Nacional Socialismo! Havia um entre nós que se autointitulava “skinhead” – ou “careca do Brasil”, apesar de ser negro (!!!) e vivia para cima e para baixo com um livro chamado “Holocausto, judeu ou alemão”, de um tal S. E. Castan, um nazista gaúcho que se dedicava a negar o holocausto e pregar que o nazismo não era racista, mas nacionalista. Por aí dá pra se ter uma idéia do nível da confusão mental em que estive mergulhado ...

Mas o tal livro reverbera até hoje, via internet, como eu pude constatar agora mesmo numa rápida pesquisa. Veja aqui. Enfim, o que importa é que as idéias fluíam, e a vontade de aprender e participar de algo continuava existindo.

Em 1990 deixei a faculdade e fui trabalhar nas empresas de minha família. Voltei ao mundo do rock “underground” e, em 1991, lancei um novo fanzine, o “Escarro Napalm”. Com este fui mais persistente: publiquei-o por cinco anos ininterruptos, com tiragem e periodicidade variável – de 100 a 150 exemplares que saiam a cada seis meses, aproximadamente – e consegui bem mais do que esperava conquistar.

Conquistei principalmente amigos por todo o Brasil – o primeiro deles foi Fellipe CDC, do Distrito Federal. Foi dele a primeira carta que recebi em resposta ao envio do numero 1 do escarro. Nunca vou esquecer.

E conquistei um convite para participar, como “palestrante”, de um grande festival de rock independente, o BHRIF – saiba mais aqui.

O Blog que você está lendo é a continuação dessa História.

Espero que estejam acompanhando – e gostando.

A.

#

segunda-feira, 29 de abril de 2013

ABRIL PRO ROCK 2013

punk´s not dead
A edição de 2013 do já tradicional festival Abril pro rock aconteceu nos dias 19 e 20 últimos, sexta e sábado, no palco do Chevrolet Hall, simpática casa de espetáculos localizada exatamente na divisa entre os municípios vizinhos de Recife e Olinda. E eu, como faço todos os anos, fui lá conferir. É minha “peregrinação roqueira a Meca” particular. Porque é, geralmente, a única oportunidade que temos de ver por aqui, na região nordeste, grandes nomes, bandas clássicas e revelações da música independente dividindo o mesmo palco. E, nos últimos tempos, sempre com algumas atrações internacionais de peso.

Fui na sexta quase que exclusivamente para ver o legendário Television, que nasceu na efervescente  cena novaiorquina do final da década de 1970 – a mesma que nos legou nomes como Ramones, Blondie e Talking Heads - e já era pós-punk antes mesmo do punk existir como movimento. O “quase”, no caso, ficou por conta de Siba, de quem sempre gostei, seja no Mestre Ambrosio, na “Fuloresta” ou agora em carreira solo, mesmo que com ressalvas – achei o disco “avante” apenas mediano. Não de todo ruim, mas certamente irregular. Chatinho, para ser bem claro.

Não me arrependi. Até porque num Festival como o Abril pro rock as atrações não se limitam aos shows: há também as barraquinhas de souvenirs e a oportunidade de rever amigos que moram longe. Foi o que fiz, logo que cheguei – tarde, já que havia um temporal infernal no meio do caminho: percorri as barracas e comecei a colocar a conversa em dia, já que o que rolava no palco, naquele momento, não era nem um pouco atrativo para mim. Só depois de um bom tempo com aquela chatice como musica de fundo fui me interessar em perguntar a alguém de que se tratava. Era o Volver, uma espécie de Los Hermanos local. Já conhecia de outras edições. Nunca gostei. Na real, nunca consegui prestar atenção.

Television
Na sequencia veio o Television. Ótimo, não seria preciso esperar até o final. Palco reduzido -  tudo na frente - iluminação simples e direta. Sem muito papo, nem mesmo um educado e de bom tom “Boa noite”. Tomaram seus lugares e começaram a mandar brasa em seu som “anguloso” e cheios de improvisos, com as guitarras passeando pelas melodias, ora se encontrando e conversando, ora tomando rumos diferentes. Tudo devidamente marcado pela cozinha “jazzística” de Fred Smith, no contrabaixo, e Billy Ficca, o baterista - ambos egressos dos primórdios ao lado do guitarrista, vocalista e líder informal Tom Verlaine.  O outro “guitar hero”, Richard Lloyd, não está mais na banda. Em seu lugar, de chapéu coco e cavanhaque grisalho, temos Jimmy Rip – de quem nunca tinha ouvido falar mas que, soube depois, já trabalhou com muita gente grande e boa, tendo sido, inclusive, guitarrista e produtor do disco de duetos lançado em 2006 por Jerry Lee Lewis, “Last man standing”. Segura bem a onda, fazendo a cama para o “virtuosismo discreto” e refinado de Verlaine.

Television
Eu sei, é contraditório, mas é por aí. O Television é uma puta banda, mas sempre foi para poucos. É “Cult”. Não é música para grandes estádios, para levantar a “massa”. Tanto que a impressão que tive é de que o show caberia muito bem num teatro, com o público sentado. E, de preferência, calado – o que não aconteceu naquela noite. Sem conseguir assimilar a proposta sonora que emanava dos auto falantes, as pessoas pareciam aproveitar para tagarelar, o que atrapalhou um pouco nos momentos mais “intimistas”. Mas nada de mais. Nada poderia estragar aquele momento único. Nem os objetos jogados no palco, que provocaram alguns sorrisos irônicos em Verlaine e uma reação mais exaltada de Rip, que foi à beira do palco com o dedo em riste tentando encontrar o autor da afronta.

Billy Ficca
Entre uma musica e outra Verlaine mandava uns “obrigado”, em português, e era isso. Foi assim até o final apoteótico, com a faixa título de seu disco mais clássico, “Marquee Moon”, em versão estendida – sendo que a original de estúdio, quem conhece sabe, já é bem grande. E acabou. Menos de uma hora de show. (Quase) ninguém pediu mais, e eles não pareciam dispostos a voltar, em todo caso. Ficou um gostinho de quero mais, de “coito interrompido”, mas ok, tranqüilo. Já posso dizer que vi um show do Television.

De volta ao fundão, assisti de longe e desatento às demais apresentações. Posso no entanto afirmar, mesmo que superficialmente, que Marcelo Jeneci fez uma apresentação interessante, com arranjos “ousados” e um excelente acompanhamento de Laura Lavieri – aliás não entendo porque eles não se apresentam como dupla, já que a cantora participa de igual para igual em praticamente todas as canções, sendo solista em pelo menos uma, “Astronauta”, versão de uma musica de Roberto Carlos. Própria, mesmo que em parceria com Chico César, o paulistano tem pelo menos uma excelente composição: “Felicidade”, à qual já havia sido apresentado por Bela Raposo na programação da Aperipê FM.

Siba - e Thiago Babalu
E então veio Siba. Apesar da formação sui generis, com uma tuba fazendo as vezes de contrabaixo, e de algumas boas canções como “Ariana” e “Avante”, apenas confirmou a impressão que eu tive ao ouvir o disco: faltou inspiração nas composições. E, por conseqüência, faltou repertório para segurar um show inteiro, mesmo que em formato reduzido, com foram os do Abril pro rock. Foi chato, dispersivo. Só não fui embora porque fiquei hipnotizado pela perfomance de meu amigo de longa data, o sergipano Thiago “Babalu”, hoje radicado em São Paulo e membro efetivo da banda de apoio do pernambucano.

Retirei-me depois, aos primeiros acordes do Móveis Coloniais de Acaju. Não curto – e não agüento mais ouvir essa porra, já que o último disco deles, em dobradinha com o do Pata de Elefante (aí sim!), virou trilha sonora do Cinemark antes do início da exibição dos filmes. Tortura Chinesa perde.

Sodom
Voltei na noite seguinte, claro. A já tradicional “Noite das camisas pretas”, quando o capeta se torna Rei Momo e a capital do frevo e do maracatu se transforma numa espécie de sucursal do inferno! “Hellcife” virou de cabeça pra baixo, numa curiosa “inversão de valores”: enquanto as hordas de punks e Headbangers “from Hell” tomavam conta do nobre espaço do Chevrolet Hall, o Só Pra Contrariar, numa turnê de 25 anos com a volta de Alexandre Pires, teve que se contentar com o Centro de Convenções, que já abrigou várias edições do Abril pro rock. Uma “vingança maligrina”, como diria Bento Carneiro, o vampiro brasileiro.

(Uma curiosidade: segundo o Jornal Folha de São Paulo, os integrantes do Dead Kennedys, ao ficarem sabendo que havia um grande espetáculo de samba logo ali ao lado, fizeram questão de ir lá dar uma conferida, apesar da advertência do produtor Paulo André de que aquele não era exatamente um tipo de samba, digamos, tradicional. Se decepcionaram com o som pasteurizado dos pagodeiros românticos e foram embora depois de cerca de dez minutos.)

Vocífera
Muita gente na porta, filas enormes para comprar ingresso. Mas entrei a tempo de ver o final da apresentação da primeira entre as 10 (isso mesmo, dez !!!) atrações da noite. Era a Vocífera, banda local, de Pernambuco, composta só de meninas. Meninas mesmo – a baixista, que tinha pinta de ser menor de idade, quase some por trás do instrumento. Estão no caminho certo, mas “it´s a long way to the top/IF you wanna rock and roll”: ainda estão verdes, e deixaram transparecer a inexperiência no palco. Em todo caso, reafirmo: promete. Espero vê-las maiores e melhores daqui a alguns anos ...

Vocífera
Na sequencia entrou um daqueles Heavy Metal´s genéricos com um vocalista meio abobalhado forçando a barra na perfomance e eu fui visitar os amigos do fundão. Sempre muito bom rever camaradas como George Frizzo, de Fortaleza, Fernando Castelo Branco, de Teresina, Rogerio Big Brother e os Pastéis de Miolos, de Salvador, LA Nino, baterista do Câmbio Negro HC, lá mesmo do Hellcife, Pedro De Luna, do Rio de Janeiro, Evandro “Cigano Igor” e o grande Tulio DFC, que eu não via há pelo menos uma década. E conhecer, inclusive, alguns ouvintes do programa de rock, como o brother do Picos e Pistas skateborad. E, por fim, ficar babando nos discos de vinil que eu não estava em condições de adquirir – dentre eles um Neubaten em capa dupla que quase me fez cair em tentação – para minha sorte a banquinha do Big foi desmontada antes do final da noite e livrou-me do mal do consumismo. Amém.

No palco, uma banda chamava a atenção: Kataphero, do Rio Grande do Norte. Pesadão, meio industrial, meio Rammstein, inclusive no visual. Legal. Na sequencia, Fang, a primeira atração internacional da noite. Estão acompanhando o Dead Kennedys, por isso foram incluídos no pacote. Boa banda, Hard Core correto e energético made in California. Não conhecia, mas consta que são bem conceituados, tendo entre seu roll de admirados personalidades do quilate de Mark Arm, do Mudhoney, e o falecido Kurt Cobain, de vocês sabem qual banda.

DFC
E então veio o DFC. Tulio havia me dito que Paulo André confessou que os chamou de volta 18 anos depois para se ver livre da molecada que insistia em pedir a presença dos candangos bastardos. E eles vieram com tudo, cuspindo fogo e metendo o “pau no cu do capitalismo em posições obscenas” – singelo nome da primeira canção. Quase destruíram o palco e os tímpanos dos incautos, fazendo a alegria da “molecada 666” que abriu a primeira e maior roda de pogo da noite, transformada pela energia emanada dos alto falantes num verdadeiro “clube da luta”, para além da tradicional “ciranda cirandinha” sem muito confronto individual que costuma ser da tradição local. Estava mais para uma roda de punk baiano – na Soterópolis o bicho pega, sempre. Sei por experiência própria.

DFC
O show foi insano. Tulio é um grande frontman, e conduzia a massaroca (bem definida, o som estava bom) crossover com saltos quase ornamentais e saudações “maloqueiras”. Destaque para a homenagem a Brasilia em “Cidade de merda”, que eles compuseram durante as comemorações dos 50 anos de nossa distópica capital. No final, “Molecada meia meia meia” – “porque o capeta vai te pegar e vai te comer”. Foram cerca de 30 faixas extraídas de todos os (muitos) discos, que sempre têm títulos excelentes: “Igreja quadrangular do triângulo redondo”, “O mal que vem para pior”, “O massacre da guitarra elétrica” e “sob o signo de satã”. O próximo sairá em breve em vinil pela Laja Records e se chamará “Sequência Animalesca de Bicudas e Giratórias”.

Devotos
Depois foram os Devotos, que também estavam há um tempão longe da escalação do Abril – 12 anos, se não me engano. Dizem todas as línguas, boas e más, que por conta de uma antiga briga com a produção – o que se confirmou de maneira bastante contundente no palco, quando Canibal incluiu Paulo André no roll de execáveis da letra de “Devotos do Ódio”. “O que nós temos por Paulo André: ódio” foi uma afirmação, no mínimo, forte. Confesso que fiquei “de cara”.  Me deu a impressão de que algo ruim aconteceu nos bastidores específicamente naquela noite, pois havia um clima tenso no ar ...

Fizeram um bom show, mas ficaram um tanto quanto ofuscados pelo rolo compressor (DFC) que havia passado por cima da platéia. Platéia que, no entanto, não deixou de prestigiar um dos mais queridos representantes da cena local. Tiveram, também, a melhor produção de palco no quesito visual, com uma belíssima projeção de imagens que iam de colagens de matérias de jornal sobre os 25 anos da banda a esboços de desenhos, provavelmente do guitarrista e artista plástico Neilton. O som, no entanto, deixou a desejar – especialmente a guitarra, um tanto quanto “saturada” e sem peso.

Dead Kennedys
A sequencia “3D” terminou com a mais que lendária Dead Kennedys. Foi legal ver os caras que construíram um dos capítulos mais marcantes da história do punk rock e do rock and roll em geral ao vivo e a cores e em alto (nem tanto) e bom (também não, estava apenas razoável) som. Mas a verdade é que eu não consegui superar a falta de Jello Biafra. E olha que nem foi culpa do competente e esforçado vocalista Ron “Skip” Greer. Foi muito acusado de tentar imitar os trejeitos de Jello, mas acho injusto. Creio que qualquer um naquela posição, a não ser que se comporte como uma estátua inanimada – como HR nos últimos shows do Bad Brains – sofreria com a comparação. É que Biafra é daqueles que simplesmente não dá para substituir, mesmo que tenhamos por trás aquela mesma banda que gravou clássicos absolutos como “Frankenchrist”, “Plastic Surgery disaster” e “Bed time for democracy”.

Dead Kennedys
Pra piorar a situação, os caras pareciam estar na base do “qualquer nota”, meio desleixados na execução do repertório que, eu sei porque já vi em muitos vídeos, costumava ser, além de extremamente energética, também precisa. O baixista, Klaus Flouride, foi quem mais deixou a desejar. Como falou o camarada Marcos Braggato em seu Rock Em Geral, “com todo o respeito, está mais para a fila de benefícios do INSS do que para comandar uma horda de desajustados como a do Recife e arredores.” East Bay Ray também parecia estar ali apenas para cumprir tabela. Lamentável.

Mas o show não foi exatamente ruim. Foi apenas “fraco” – ou muito aquém do que se esperaria de uma banda deste porte. Em todo o caso, estavam lá os clássicos, tocados por East Bay, Flouride e DH Peligro – este último visivelmente empolgado e ainda bastante em forma, se comparado aos companheiros – e entoadas em uníssono pela platéia. Mas era foda: você olhava pro palco e queria ver Jello Biafra. Era inevitável. Sem ele, os Dead Kennedys não conseguem deixar de ser apenas uma banda cover de si mesmos – e nem chega a ser das mais competentes, diga-se de passagem.  

Krisiun
Fim de papo para os punks. Chegou a vez das Hordas do metal saírem dos fundos e se posicionarem na frente do palco. Porque o Krisiun estava ali. E fez aquele que foi, tecnicamente, o melhor show da noite – em minha humilde opinião, claro. E olha que eu nem sou um grande fã do estilo ou da banda em especial, apesar de ter gostado bastante de seus dois últimos discos. O som estava simplesmente perfeito. Inacreditavelmente perfeito. Certamente o melhor equalizado: tudo em seu lugar, perfeitamente audível e, agora sim, em alto (MUITO ALTO) e bom som. O trio infernal não deixou por menos: fez uma apresentação matadora, precisa. Não deixou pedra sobre pedra. Sua cover para “No Class”, do Motorhead, foi, pra mim, o ponto alto não apenas daquela noite, mas de todo o festival. Antológico.

Krisiun
O Sodom também foi muito bom. Trata-se de outro trio, só que alemão (O Krisiun é brasileiro, do Rio Grande do Sul). Formado em 1981, é uma daquelas verdadeiras instituição do metal, venerada por um seleto porém fiel séquito de admiradores ao redor do mundo. Nunca ouvi direito, confesso, mas ouço falar deles desde os meus primeiros passos na seara do rock “do mal”. E eles realmente não decepcionaram. Para que se tenha uma idéia da importância e do pioneirismo dos caras, foi abrindo para eles que o nosso Sepultura começou a se destacar mundo afora, na turnê de divulgação de “Beneath the Remains”.

Depois de cerca de 20 minutos de espera – foram os únicos a se atrasar – Tom Angelripper se posiciona no centro do palco em frente a um ventilador que deixa seus cabelos esvoaçantes – efeito que dura até que o suor começa a tomar conta das abundantes madeixas. Escudado pelo guitarrista Bernd Bernemann Kost e conduzido por um baterista cujo visual, de cabelos curtos e boné com a aba invertida, destoava do figurino metálico, passou a enfileirar clássicos da porradaria sonora que combinam execução simples porém precisa, agressividade e boas mudanças de andamento.  

Sodom
Ao som de clássicos como “Agent Orange” e “Remember the fallem”, seguiram o roteiro “maléfico” à risca até que, num dos momentos mais inusitados de todo o festival, para minha surpresa, o alemão começa a tirar no baixo uma melodia conhecida que não tem, a principio, nada a ver com o som que fazem usualmente. Custei a acreditar, mas quando ele começa a cantar não resta dúvida: O Sodom estava fazendo um cover de “Surfin´Bird”, dos Trashmen, imortalizada pelos Ramones! Por esta eu, realmente, não esperava! Conquistou minha admiração, definitivamente.

Encerrando a apresentação, “Angelripper” tira a suada camiseta do Tankard – outra cultuada banda de thrash metal alemã – que usou durante todo o show, joga-a para a platéia e se retira, com cara de satisfação e dando tapinhas na pança saliente.

E foi isso, senhoras e senhores. Ops! Não, ainda teve André Matos, encerrando a noite. Mas não pra mim. FUI!

Para finalizar, duas observações: A organização do evento foi impecável, fornecendo iluminação de muito bom gosto e som de qualidade para todas as bandas. Ou quase todas. Da luz não há do que reclamar, foi sempre perfeita, mas o som variou um pouco de um show para outro – nada que estragasse o espetáculo, mas é lamentável, em todo o caso. Não sei o que houve, se foram falhas técnicas do festival ou culpa das bandas, que teriam se atrapalhado com a equalização ou coisa do tipo. Não sei, não frequentei os bastidores. Sou público pagante. Nunca viajei credenciado nem “a convite da produção”.

E, por fim, tem a maldita BR 101, que continua praticamente intransitável em alguns trechos, com um fluxo pesado de caminhões em marcha lenta emperrando tudo. Fatura a ser cobrada de Dona Dilma, já que as obras de duplicação, que ironicamente fazem parte do PAC – Plano de Aceleração (???) do Crescimento – e resolveriam o problema continuam se arrastando a passos de tartaruga há já quase uma década, calculo eu. Isso porque Juscelino, o principal responsável por nos legar como herança este equivocado modelo de desenvolvimento baseado no transporte de passageiros e cargas em rodovias em detrimento das ferrovias, infinitamente mais apropriadas para países de dimensões continentais como o nosso, já morreu.

por Adelvan Kenobi

fotos: apr 2013 © Rafael Passos

mais tarde

 

terça-feira, 16 de abril de 2013

O Operário e a camponesa da fazenda coletiva

Simbologias podem se tornar instrumentos poderosos nas mãos de mentes habilidosas. A Foice e o Martelo (em russo, серп и молот, serp i molot), quando representados entrelaçados, é um símbolo poderoso. Já foi mais, mas ainda é. Já fez tremer de terror ou paixão ideológica multidões mundo afora, especialmente nos tempos da guerra fria, quando simbolizava o poder comunista, supostamente oriundo da aliança de classes entre o operariado urbano e o campesinato. Aliança esta que forjou, a ferro, fogo e sangue, uma das maiores potências que o mundo já viu: A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

O símbolo da foice e do martelo está presente desde os primórdios da revolução bolchevique de 1917. Foi inicialmente utilizado pelo Exército Vermelho e no brasão da República Socialista Soviética Federada da Rússia (RSFSR). Em 1923 foi incorporada à bandeira da União soviética (a federação russa era apenas uma de suas repúblicas). Antes disso, as bandeiras das repúblicas soviéticas geralmente eram apenas vermelhas, com o nome da respectiva república escrito em dourado no canto superior esquerdo, como estabelecido pelo artigo 90 da Constituição Soviética de 1918. Com o tempo tornou-se um símbolo do comunismo em si, sendo utilizado mesmo por partidos opostos às diretrizes de Moscow.

Uma das mais belas representações da Foice e do Martelo é o monumento “O Operário e a camponesa kolkhoziana" - Kolkhozes eram as fazendas de propriedade coletiva, embora não estatais - estas eram os Sovkhozes. O estado havia empreendido uma campanha feroz contra os proprietários de terras, chamados pejorativamente de "kulaks" (Russo: кула́к, kulak, "punho", literalmente punho-fechado; Ucraniano: курку́ль, kurkul) - não confundir com Gulag - talvez por isso a figura feminina não tenha sido chamada apenas de "camponesa" - era preciso evidenciar sua origem de classe. Trata-se de uma obra-prima moldada em estilo “Art Deco” na era do chamado “realismo socialista”, uma época em que todas as artes destinavam-se a servir à propaganda do estado totalitário. Para além desta função, no entanto, ainda é possível enxergar, ao se observá-la, a pureza da idéia que está em sua origem. Uma idéia poderosa, que se espalhou por todos os continentes e abalou o mundo, seduzindo as classes menos favorecidas com a promessa de uma espécie de paraíso na terra – ou, pelo menos, da ascensão de uma sociedade mais justa e igualitária.

O monumento foi esculpido por Vera Ignatyevna Mukhina, a princípio, com o objetivo de ornamentar a entrada do Pavilhão Soviético na Exibição Internacional de Artes, Ofícios e Ciências de Paris, em 1937. Lá, localizados frente a frente, separados pelo “Trocadéro”, uma passagem para pedestres localizada na margem norte do Rio Sena, os pavilhões da República Socialista e da Alemanha nazista concorriam em monumentalidade e força bruta, antecipando o conflito que dentro em breve viria a envolver os dois países.

Seu transporte de Moscou à capital da França foi feito através de uma desmontagem em 65 peças, o mesmo acontecendo em sentido contrário depois de terminada a Exposição. Foi então instalado de forma definitiva no grandioso Complexo de Exposições das realizações da economia popular, hoje chamado Parque de Exposições de Toda a Rússia. Em 2003, por determinação da Câmara de Moscou, a escultura passou por um longo processo de restauração que durou cerca de 6 anos, sendo novamente assentada num novo pedestal de 60 metros de altura – o anterior tinha apenas 10.

“O Operário e a Camponesa” ficou também conhecido e ainda é lembrado em todo o mundo por ter sido o símbolo da “Mosfilm”, o maior estúdio de cinema soviético, onde foram rodadas obras-primas como “Quando voam as cegonhas”, “Balada do Soldado” e “Andrei Rublev”. Já sua autora, Vera Mukhina, ganhadora de 5 prêmios “Stalin” e intitulada oficialmente “Artista do povo”, caiu no esquecimento junto com o movimento artístico/propagandístico que ajudou a moldar.

por Adelvan Kenobi

Reza uma lenda popular que Vera Mukhina foi também autora de outra obra, decerto menos monumental, mas inquestionavelmente mais popular: o copo multifacetado - conhecido no Brasil como "copo americano". Ecos da Guerra Fria ...

“Copos com várias faces sempre existiram. Mas este, este em concreto e em específico, saiu do punho empenhado da “Artista do Povo”. Há quem diga que, no desenho das linhas retilíneas do copo de vidro, Vera Mukhina foi influenciada pelo pintor construtivista Kazimir Malevich. Graças ao sopro inspirador de Malevich, o copo tinha a dimensão perfeita. Límpido e puro, casto e sereno, sem arrebiques burgueses. Sendo de uma elegância e de uma simplicidade extremas, o copo de Mukhina tinha também as proporções exatas para servir à função a que se destinava: embriagar o povo a goles de vodca, fazendo-o esquecer que, como destino de férias, o arquipélago Gulag conseguia ser relativamente pior do que Benidorm e a Quarteira. A tese da influência de Malevich na criação do copo não é descabida, visto que Mukhina, nos anos vinte, namorara o cubismo, chegando mesmo a praticá-lo em público. Mas, na década de trinta, como bela artista que era, virou-se para o que estava a dar na altura, o realismo socialista. Na criação de O Operário e a Camponesa inspirou-se em diversas obras clássicas e neoclássicas (desde a Vitória de Samotrácia ao Arco do Triunfo), com resultados fatídicos: um casalito de assalariados com 24 metros de altura e 75 toneladas de peso.

Aqui, no copo, ao invés da estátua do Operário, não existe nada de megalómano. Nada de devaneios. O copo tinha uma função: durar. Durar como o regime que, a partir de 1943, inicia a produção em massa deste objeto, que deveria servir para brindes viris ao “Pai dos Povos”, mas cujas dimensões teriam de permitir também a sua limpeza nas máquinas de lavagem industrial que, na URSS, começaram a ser fabricadas nos anos trinta. Em comparação com a estátua, o copo era um tudo nada mais pequeno. Mas vencia na estatística. De fato, nunca um objeto foi produzido em tão grande escala. Vera Mukhina era mulher de grandes feitos e de grandes números. A estátua colossal fora a primeira a ser construída em placas soldadas. O copo multifacetado foi produzido à cadência de 5 a 6 milhões por ano. Grosso e forte, servia para todas as bebidas: o chá escaldante ou a água cristalina, que ora aqueciam ora refrescavam o corpo, mas sobretudo o álcool potente, que entorpecia o espírito.

Por causa disso, o copo plurifacetado – possivelmente, a única coisa plurifacetada que havia na Rússia soviética – sempre esteve associado ao consumo de álcool. (...)diz-se que o copo de Mukhina constitui um bom exemplo das relações entre o design industrial e a política. É que, a dada altura, Nikita Khrushchev – um empedernido abstêmio, como todos sabemos – tentou combater o endêmico alcoolismo que grassava na sua pátria. Fê-lo, claro está, à boa maneira soviética: proibiu as garrafas de 250gr e 125gr de vodca e só autorizando garrafas de 750gr, na convicção de que, desaparecendo as garrafas-mini, os russos não se abalançariam a vôos mais altos. Mais um erro da economia planificada. Graças à criação de Vera Mukhina, a litragem de 750gr vinha mesmo a calhar, pois dava exatamente para encher três copos até à borda, dado que cada copo tinha capacidade para 250gr (100gr = 0,1 litros). É só fazer as contas.” - Malomil

Entre a nostalgia soviética e o novo patriotismo

A nostalgia da URSS e sua reavaliação pela população é um fato, mas numa realidade que não permite mais um retorno ao ’sovietismo’. A liquidação do sistema social soviético, as privações, o papel do dinheiro e as pressões do mundo globalizado atingiram um ponto em que não há mais volta. 

01 de Abril de 2004, Le Monde Diplomatique
por Jean-Marie Chauvier

Quem nunca viu, mesmo que no cinema, o monumento assinado por Vera Moukhina representando o operário e a camponesa kolkhoz lançando-se em direção ao futuro radiante empunhando a foice e o martelo(1)? Instalado na entrada do parque de exposições em Moscou, ele acaba de ser desmontado. Talvez, não para ser posto de lado, mas para ser reformado. Bandeiras vermelhas tremulam novamente no 9 de maio, nas celebrações oficiais da vitória sobre a Alemanha nazista, como nos desfiles comunistas do 1º de maio e 7 de novembro(2). O hino da URSS ressoa novamente(3). Adolescentes exibem malhas com a inscrição "Minha pátria, a URSS". Grupos de rock reciclam os "sucessos" soviéticos. A faixa de FM, em Moscou, repercute especialmente canções em língua russa. Cafés da moda e publicidades comerciais também estão cobertos de símbolos soviéticos, testemunhando assim uma "nostalgia" pós-moderna.

Essa volta do pêndulo teve início em meados dos anos 1990. Os filmes soviéticos passam novamente na televisão - "a pedido do público", dizem as emissoras. Um editorialista se inquieta: o "o povo soviético" está sempre lá, a nostalgia aparece como "a dominante do humor local(4)". As pesquisas de institutos considerados sérios confirmam: "57% dos russos querem a volta da URSS" (2001), 45% consideram o sistema soviético como "melhor" que o atual, 43% desejam mesmo "uma nova revolução bolchevique" (2003). As opiniões sobre o presente também se mostram pouco "corretas": descrédito da "revolução democrática" de agosto de 1991(5) e rejeição em massa (quase 80%) das grandes privatizações "criminosas". Os democratas vituperam: amnésia ("eles esqueceram o gulag e as penúrias"), o ódio aos ricos "porque são ricos", mediocridade de descrentes e dos velhos, "a biologia resolverá o problema". Com Vladimir Putin, os acontecimentos políticos vieram confortar suas angústias: processos judiciais contra muitos dos grandes oligarcas por seus amigos e financiadores(6), retomada do controle das grandes mídias pelo Kremlin, reabilitação da NKVD e da KGB(7), influência crescente dos "siloviki(8)" e do FSB (Serviço Federal da Segurança), desejo de restaurar a influência russa no espaço ex-soviético, críticas oficiais dirigidas aos Estados Unidos e sua penetração nesse espaço, oposição à guerra do Iraque. E isso, apesar da "aliança estratégica" selada pelo presidente Putin em Washington no dia seguinte ao 11 de setembro de 2001.

No entanto, esforços não foram poupados para erradicar o comunismo. Desde 1991, os russos estão submersos em arquivos, artigos, livros e programas de televisão que denunciam os "crimes bolcheviques": terror vermelho sob Lênin e Trotski, "Grande terror" sob Stalin, fome de 1932-1933, gulag, deportação de povos "punidos" ou "suspeitos" de colaboração com a Alemanha nazista, repressões sob Brejnev. A "batalha da memória" conjugada com a promoção dos "valores mercantis democratas" foi levada a termo, com entusiasmo, por grandes mídias, jornalistas, historiadores, respaldada por uma vasta rede ocidental e, sobretudo, americana, de instituições, universidades e fundações - Ford, Soros, Hoover, Heritage, Carnegie, USIS, USAID, sem falar dos filantropos oligarcas da Rússia(9).

Os debates contraditórios da época Gorbatchev(10) foram substituídos por acusações contra o "Império do Mal" em todas as suas encarnações. A virulência desse anticomunismo russo é de dar inveja aos cruzados ocidentais. É preciso, a cada momento da crise que ameaça o novo regime, agitar o espantalho do "retorno dos vermelhos" e da guerra civil. A condenação do "bolchevismo" leva à reabilitação de seus opositores, principalmente o movimento branco e as dissidências. Até algumas colaborações com os nazistas são "compreendidas". É assim que o cronista do Izvestia Maxim Sokolov tenta explicar: "A época era complexa... (o Terceiro Reich) era o único bastião a proteger a Europa da barbárie bolchevique. Se tivesse vivido até hoje, o Reichsfüher SS (Himmler) seria provavelmente honrado como combatente contra o totalitarismo(11)".

Esse revisionismo caricatural - que ignora os contextos reais, os períodos, os regimes, as sociedades e as culturas muito diversas da história soviética - é contestado por vários historiadores, mas não são eles que dão o tom. Muito mais amplamente difundidos são os best-sellers de Viktor Suvorov(12). O mais recente, lançado no final de 2002, começa com a seguinte afirmação: "Todos os dirigentes soviéticos, sem exceção, foram crápulas e não valem nada".

Um dos pioneiros do anticomunismo oficial, Alexandre Tsipko, considera contraprodutiva essa forma de denegrir. Seus efeitos desmoralizadores, combinados com as "reformas confiscatórias" que ele já lamentava em 1995, "prepararam o campo para uma reabilitação da história soviética" (13). Ele estava certo. Os ataques visam, além do "sistema", os valores igualitários e coletivistas, comunitários, tanto russos tradicionais como soviéticos. Eles visam as "pessoas de baixo", os operários que, ao mesmo que tempo que são desestabilizados na sua condição de vida, são estigmatizados como "cúmplices" do antigo regime, "ajudados", "preguiçosos" e "inúteis" ao progresso industrial(14).

Apesar dessa avalanche, a Rússia ainda escapa do "pensamento único" sobre a URSS. Há ali experiências vividas em demasia, heranças culturais, memórias dilaceradas para permitir esse tipo de uniformidade. Os relatos de vida podem, numa mesma inspiração, trazer ecos caóticos de tempos extremados em que as fronteiras entre a fé cristalina, as alegrias positivas, a descida incompreendida e súbita aos infernos de um terror cego, eram móveis, imprevisíveis.

Uma testemunha maior do universo dos campos de concentração, Varlam Chalamov(15), evoca sua juventude agitada, a irradiação de Lênin e dos ideais da revolução ("quantos horizontes, quanta imensidade se ofereciam ao olhar de cada um, do homem mais comum"), nesse período soviético muito ambíguo dos anos 20(16). A voz do destino mais comum, ao deixar perceptíveis as razões da adesão popular àquele socialismo, se faz ouvir através do relato de Lioudmilla, filha de camponeses brutalizados pela deskulakização, mas que ultrapassa a fronteira dos mundos para vencer com esforço, na cidade, o caminho da promoção social(17).

Esse foi, realmente, o caminho de milhões de habitantes do mundo rural. Entre os camponeses, que viveram a guerra civil e permaneceram na aldeia depois da "grande ruptura" da coletivização, outros relatos de vida foram coletados a tempo(18), no início dos anos 1990, quando a palavra foi liberta antes de ser "reformatada" pela ideologia anticomunista dominante.

Um dos problemas da memória "reconstruída" nesse novo contexto é a arregimentação de vítimas e mártires a serviço de uma ideologia "antitotalitária" formulada a posteriori. Pois, entre eles havia muitos comunistas e opositores da esquerda trotskista(19) - pessoas que, voltando ao campo, não deixaram de crer e de servir ao "socialismo" ao qual, hoje, se pretende que elas reneguem. Quem fala, e com qual direito, em nome dos mortos?

Mas a maior parte dos ex-soviéticos ainda vivos não conheceu os tempos piores. Evocam os quarenta anos vividos depois da guerra e da morte de Stalin. Um artista se lembra da atmosfera doa nos 1960: "Eu idealizo, talvez, mas havia na época um entusiasmo otimista no país. Não falo de política, mas do clima moral das pessoas que me cercavam. O impulso dado pelos Beatles revelou a aspiração ao amor, que teve seu auge com o movimento hippie. Era um tempo luminoso que me ensinou a viver olhando o futuro com otimismo". Choque e conivência com referências imprevisíveis: uma em compasso com os ideais oficiais ("o futuro com otimismo"), a outra com uma cultura não-conformista (os Beatles).

A confiança nas perspectivas de um país em pleno arranque, onde ninguém tinha medo do dia seguinte, coexistia com o apoliticismo e as tentações de uma cultura alternativa. Outros, contestadores do regime de Brejnev, sentem falta do tempo em que se refazia o mundo nas cozinhas. "O futuro ainda não tinha acontecido" - e ele seria, sabemos, bem decepcionante. Quantos dentre eles, depois de 1991, retiraram-se da cena, doentes, deprimidos ou mortos de tristeza ao ver o que produziu a mudança tão esperada?

"Os novos chefes não dão crédito aos chestidisiatniki, as pessoas dos anos 1960", conta Vassili Jouravliov, "porque esses são para eles uma reprovação viva". Pois foi sobre suas costas que os oligarcas e outros homens de negócios alçaram-se ao poder(20)". Antigos jovens - que não eram nem militantes, nem contestadores, nem intelectuais ou quadros do partido, mas simplesmente ávidos de viver plenamente - haviam deixado o conforto urbano pelas "grandes construções" dos anos 1950-1980, por romantismo ou atraídos pela recompensa. A construção da "cidade de sábios" em Novossibirski, as grandes centrais sobre os rios siberianos, os complexos industriais de Togliatti e em Kama, o segundo transiberiano, o BAM, deixaram neles, quase sempre, lembranças de uma juventude intensa, apesar do sentimento comum hoje ser de imenso desperdício.

Outros voltaram marcados de uma aventura abominável: a guerra do Afeganistão, da qual os mutilados, de mais ou menos 40 anos, falam nas ruas e no metrô. E a geração jovem "retornada da Chechenia", outra abominação, já toma o seu lugar. Porém, a maioria não participou de engajamentos tão fortes. Viveu, simplesmente, imersa em um modo de vida, de relações sociais, em uma cultura da qual separou-se com dor. Nascido em 1961, o escritor ucraniano Andreï Kourkov fala, a seu modo, de algo que não era raro: "Essa sociedade era fundada na amizade. Era possível bater na porta dos vizinhos, se precisasse de dinheiro, eles o emprestariam. Depois da queda, toda essa solidariedade ruiu (...) As pessoas que nasceram logo depois da queda, que têm 20 anos, adaptam-se muito rápido. Para a minha geração, a solidão é a doença da época. Perdi muitos amigos. Muitos suicidaram-se, outros emigraram(21)".

Lembrança de relações de convivência, ou vivacidade de uma cultural social ainda perceptível nas resistências à liberalização? A estudiosa Lioudmila Boulavka relata testemunhos dos meios operários comprometidos nos recentes movimentos de protesto: os militantes julgam com severidade suas próprias ilusões dos anos 1989-1991 (o apoio aos democratas), sentem uma perda dolorosa com o final da URSS, não aceitam que os patrões façam a lei sem consultá-los, querem crer ainda que "o Estado, somos nós", permanecem ligados a uma cultura de consenso e de paternalismo social(22).

Todo um continente de conhecimentos falta aos ocidentais para que eles compreendam o que é essa "perda" tão sentida: o universo de uma cultura, a densidade de uma vida social que não podem ser enquadrados com nenhuma ideologia. Onde classificar, nas suas gavetinhas, tanto a vanguarda quanto a cultura popular de massa que marcou gerações, as comédias musicais de Alexandrov e o jazz de Utesov, o humor de Ilf e Petrov, as aventuras do soldado Vassili Tiorkine, os personagens "aos pares" do cinema de Vassili Choukchine, a arte amadora dos clubes de fábricas e vasto movimento das canções de compositores, a "contestação" de massa mais importante nos anos 1960-1980? Onde situar a recente decisão dos bardos não-conformistas de todas as idades de consagrarem como "canção do século" a balada "Grenada" de Mikhaïl Svetlov, "poeta do Komsomol" dos anos 1920? Será possível transmitir mensagens dessa Atlântida que realmente existiu?

Uma pesquisa realizada com o concurso da fundação alemã Friedrich Ebert, e dirigida por Mikhail Gorchkov(23), mostra a que ponto a "reabilitação da URSS" procede de uma reflexão amadurecida, sem estereótipos. Ela revela o fracasso do poder e das mídias na sua tentativa de apresentar os setenta anos soviéticos como um "pesadelo", estimando, até, que a pressão exercida nesse sentido esgotou seus efeitos. As avaliações diferem, contudo, segundo os períodos propostos e a idade das pessoas que respondem à pesquisa.

"Os crimes do stalinismo não podem ser de forma alguma justificados" - é o ponto de vista de 75,6 % entre 16-24 anos; de 73,5% de 25-35 anos; de 74% de 36-45 anos; de 66,8% dos 46-55 anos; de 53,1% dos 56-65 anos. "As idéias marxistas eram justas": as respostas positivas variam, dos mais jovens aos mais velhos, de 27,4% a 50,3%. "A democracia ocidental, o individualismo e o liberalismo são valores que não convêm aos russos": esta opinião e aprovada por 62,9% dos 56-65 anos, mas apenas 24,4 % dos 16-24 anos. Entre as "razões de orgulho", cerca de 80 %, em todas as categorias de idade, citam a vitória de 1945. Quem tem mais de 35 anos escolhe em segundo lugar a reconstrução do pós-guerra, os mais jovens (16-35) citam "os grandes poetas russos, os escritores, os compositores". Em média, 60% citam as explorações das viagens espaciais. A afirmação segundo a qual "a URSS foi o primeiro Estado de toda a história da Rússia a assegurar a justiça social para as pessoas simples" é escolhida pela maioria das pessoas com mais de 35 anos, 42,3 % entre 25-35 anos, e apenas 31,3 % entre 16-24 anos.

Entre as características dos diferentes períodos, a maioria dos participantes designa principalmente: o período do Stalin seria a era da disciplina e da ordem, do medo, dos ideais, do amor à pátria, de um desenvolvimento econômico rápido; o período do Brejnev: proteção social, satisfação, sucesso na ciência e na técnica, ensino, confiança entre as pessoas; e o período atual: criminalidade, incerteza do futuro, conflitos entre nações, possibilidade de enriquecer, crise e injustiça social. As pessoas de opinião liberal concordam com um balanço positivo da era Brejnev (25%), entre os comunistas (45,9%); com um balanço negativo da era Yeltsin (21%), entre os comunistas (59%).

Quanto ao futuro, uma ampla maioria pronuncia-se a favor de uma gestão estatal dos grandes setores da economia, do ensino e da saúde; só reconhecem o valor da gestão mista (com o setor privado) nos campos da alimentação, da moradia e das mídias. Uma maioria (54%) "escolheu uma sociedade de igualdade social" e definiu como o principal caráter da democracia "a igualdade dos cidadãos diante da lei".

Evolutiva, a visão do passado é, portanto, filtrada pela experiência de "reformas de mercado", cujo caráter desastroso é, entretanto, amplamente reconhecido. A primeira inspiradora dessas reformas, a socióloga Tatiana Zaslavskaïa(24), estima que os trabalhadores são "ainda mais alienados da propriedade e privados de direitos do que na época soviética. (...) A produção não está apenas reduzida, mas degradada do ponto de vista estrutural e tecnológico. (...) Setores que asseguravam as necessidades sociais na época soviética e aumentavam, ainda que modestamente, a qualidade de vida da população, hoje se degradam cada vez mais. As conquistas democráticas da época da perestroïka e da glasnost estão em perigo. (...) A polarização da sociedade tomou um vulto colossal: de 20 a 30% da população vivem sérias privações, habitam moradias em ruínas, têm fome, são doentes e morrem prematuramente".

O economista liberal Grigori Iavlinski fala de "desmodernização" da Rússia, o ecologista Oleg Ianitskii de "sociedade de todos os riscos". "Vivíamos atrás da cortina de ferro", explica o historiador Viktor Danilov. "Ignorando as realidades exteriores, acreditávamos viver na miséria do nivelamento. Agora que a cortina de ferro caiu (...) sofremos a provação da verdadeira miséria. Sabemos, hoje, que na época soviética, não vivíamos na miséria, mas numa "suficiência" nivelada, ainda que baixa. O sistema de saúde e de ensino era acessível a todos apesar dos privilégios dos ?servidores do povo? As filas existiam para que cada um pudesse ter o necessário, o que não é mais acessível, hoje, para a maioria".

Segundo Danilov, para muitos, "sem dúvida abriram-se as portas para o mundo externo, mas portas blindadas foram postas entre as pessoas". Nunca a "atomização" atingira um tal grau. Além dessas tristes constatações, não faltam, na Rússia, reflexões interessantes sobre o passado, o futuro e as possibilidades de desenvolvimento. Mas esse universo muito plural do pensamento russo é ignorado pelo Ocidente, onde só se repercutem os pontos de vista liberais ocidentalistas.

O patriotismo refigurado nutre-se, no entanto, do ressentimento da decadência, da miséria, da nova "imagem do inimigo" - o "terrorista" árabe-muçulmano - criado em conjunto com o Ocidente civilizado com o qual identifica-se. O clima não é mais de "anti-imperialismo", mas de xenofobia "petit blanc(25)" em relação a povos ainda mais desfavorecidos, o Sul ameaçador. É paradoxal: muitos lamentam, ao mesmo tempo, a falta do espírito de amizade que reinava nas comunidades multinacionais soviéticas de operários e estudantes e deploram a criação de novas fronteiras, os entraves políticos e financeiros que afetam a liberdade de viajar, as famílias e os amigos que se deslocaram. Aceita-se o massacre dos chechenos ao sabor do filme cult dos anos 1930, Le Cirque, no qual o ator judeu Salomon Mikhoels, assassinado por Stalin, canta uma canção de ninar yiddish a uma criança negra arrancada das garras do racismo americano!

A nostalgia da URSS e sua reavaliação pela população não se confundem com seus diferentes usos políticos. A realidade exclui um "retorno ao sovietismo": a liquidação do sistema social soviético, as privações, o papel do dinheiro e as pressões do mundo exterior "globalizado" atingiram um ponto em que não há mais volta. E, se as tradições de potência, burocráticas e policiais, foram reativadas por necessidades internas do poder e do controle do petróleo, o mesmo se dá no contexto internacional no qual o exemplo da militarização, da cultura securitária é estadunidense, venerado pelos novos russos.

Entre as "reabilitações", o presidente Putin não esqueceu Pedro, o Grande, o reformador liberal autoritário Piotr Stoypine, sob Nicolau II, nem a muito atual Igreja Ortodoxa. O Kremlin tem como emblema a águia imperial bicéfala coroada. O ídolo da nova burguesia é um veado de ouro, verde como o dólar.

Quando ao casal de Vera Moukhina, empunhando ainda as ferramentas do comunismo, a novidade da sua reforma não deve assustar os liberais: quando eles estiverem novamente em pé, orgulhosos e petrificados no seu entusiasmo pelo futuro do passado, o operário e a camponesa kolkosiana deverão ser postos em um pedestal ainda maior, digno dos novos tempos. Diante de um shopping center.

(Trad.: Teresa Van Acker)

1 - A imagem do casal comunista aparecia na primeira tela dos filmes dos estúdios Mosfilm.
2 - Aniversário da "Grande Revolução Socialista de Outubro de 1917"
3 - Sobre a música de Boris Alexandrov, o hino que substituiu a Internacional e foi abandonada pela URSS em 1991, foi restabelecido pelo Duma em 8 de dezembro de 2000, com uma nova letra "patriótica" composta por Serguei Mikhalkov, que já havia escrito a do hino soviético.
4 - Andréi Koslesnikov, Izvestia, Moscou, 5 de junho e 14 de agosto de 2001.
5 - 48% dos russos vêm no fracassado golpe militar conservador e no golpe de Estado bem-sucedido de Boris Yetsin apenas um "episódio da luta pelo poder", 31% classificam os fatos como"acontecimentos trágicos", 10% somente uma "vitória da democracia". Seu segundo aniversário, em 2001, não foi celebrado.
6 - Os antigos magnatas Vladimir Goussinski (mídias), refugiado na Espanha, Boris Berezovski (automóvel, petróleo, mídias, finanças do Kremlin), "refugiado político" na Grã Bretanha, Mikhail Klodorkovski (petróleo Yukos), preso.
7 - O Comissariado do povo nos Negócios do Interior (NKVD) era a polícia política no período de Stalin. Foi substituído, em 1954, pelo Comitê de Segurança do Estado (KGB), e depois, perto do final da URSS, pelo Serviço Federal da Segurança (FSB).
8 - Esta denominação é dada a grupo de homens das forças armadas, das polícias e da informação.
9 - O partido liberal União das forças de direita e a Fundação Soros promoveram uma edição do Livro Negro do Comunismo, do francês Stéphane Courtois.
10 - Ler , URSS, une société em mouvement, L’Aube, La-Tour-d’Aigues, 1988.
11 - Izvestia, 26 de março de 2002. Falava da re-abilitação, na Ucrância, da divisão SS Galitchina
12 - Ten ’Pobedy, Moscou, 2002.
13 - Nezavíssimaïa Gazeta, Moscou, 9 de novembro de 1995
14 - Ler Karine Clément, Les Ouvriers russes dans la tourmente du marché, Syllepse, Paris, 2000.
15 - Ler Pierre Lepape, " Le goulag selon Chalamov ", Le Monde diplomatique, dezembro de 2003
16 - Les Années vingt, éditions Verdier (Paris), que também publicam integralmente os Récits de la Kolyma (2003).
17 - Lioudmila Boulavka, une Russe dans le siécle, La Dispute, Paris, 1998.. Les Années vingt, éditions Verdier (Paris), que também publicam integralmente os Récits de la Kolyma (2003).
18 - Golosa Krest’ian, Selskaïa Rossia XX veka v krest íanskikh memuarakh, Aspekt Press, Moscou, 1996.
19 - Ler Pierre Broué Communistes contre Staline. Massacre d’une génération, Fayard, Paris, 2003.
20 - Litteraturnaüa Gazeta, Moscou, 6-12, março de 2002.
21 - Entrevista sobre seu livro Le Pingouin (Liana Levi, Paris, 2000), in " Le matricule des anges", www