segunda-feira, 30 de outubro de 2017

China Miéville e o "romance sem ficção" da revolução russa

China Miéville é quase um Maiakóvski inglês. Assim como o poeta que revolucionou o verso russo e cantou a insurreição comunista de outubro de 1917, Miéville se divide entre a literatura e a militância política. Ele é um premiado autor de ficção científica. Seus volumosos romances são apinhados de monstros, alienígenas, seres mitológicos e luta de classes. Também é um estudioso do marxismo, doutor em Direito Internacional pela London School of Economics e militante do Partido Trabalhista britânico. Em seu livro mais recente, Miéville combina suas duas paixões: Outubro (Boitempo, 384 páginas, R$ 59), recém-­publicado no Brasil, narra, mês a mês, os eventos que culminaram na Revolução Russa. Ao contrário dos outros livros de Miéville, Outubro não tem uma linha sequer de ficção nem um único personagem inventado. Em entrevista a ÉPOCA, Miéville contou como foi escrever um romance sem ficção e refletiu sobre os dilemas da esquerda contemporânea, que não sabe direito como olhar para a revolução bolchevique.


ÉPOCA – Como foi para um autor de literatura fantástica escrever um livro de não ficção?
China Miéville
Difícil. Eu estava muito nervoso. Segui uma regra bastante rigorosa: não podia inventar nada. Estava ansioso pela recepção das pessoas que conhecem o assunto muito bem. Outubro foi escrito principalmente para quem não conhece a história, mas eu não queria que especialistas pensassem que eu não tinha feito meu dever de casa quando lessem. A recepção foi muito simpática. Valeu a pena. De tudo o que eu já escrevi, esse é o livro que me causou mais ansiedade, porque, embora seja uma história, e não uma discussão política, as questões políticas estão ali, tácitas.

ÉPOCA – Em Outubro, o senhor diz que não aborda essa história com neutralidade, que tem seus heróis e seus vilões. Como fez para não deixar que seus sentimentos pela Revolução Russa interferissem demais no texto?
Miéville –
Os escritores não são neutros, mas podem tentar ser justos. Há alguns personagens no livro de quem eu discordo politicamente ou que representam ideias às quais me oponho, mas que, ainda assim, são personagens fascinantes. Por outro lado, tentei não ser muito compassivo com figuras de quem estou próximo politicamente. O final do livro, por exemplo, é uma longa discussão sobre os erros da revolução. Não sou eu quem deve julgar quão bem-sucedido eu fui, mas posso afirmar que sempre estive muito consciente do problema e me esforcei muito para não ser injusto.

ÉPOCA – Sempre que o assunto é a Revolução Russa, surge a pergunta: como a revolução popular se transformou num Estado totalitário? O senhor tem alguma resposta?
Miéville –
Para mim, não há uma causa única que explique o que deu errado, mas uma complexidade de causas. A revolução foi cercada por todos os lados e houve tentativas deliberadas de destruí-la. Naquele contexto, algumas decisões tomadas pelos revolucionários não ajudaram as coisas a avançar. Por exemplo: em 1924, os bolcheviques desistiram de insistir que uma revolução socialista não pode ser bem-­sucedida em um só país, devido à integração da economia mundial. Naquele ano, ao perceber que a possibilidade da revolução internacionalista recuava, eles viraram esse argumento de ponta-cabeça e concluíram que, sim, o socialismo em um só país era possível. Para mim, isso foi uma catástrofe absoluta! Naquele momento de desespero, em vez de identificar com clareza o problema, eles preferiram se enganar, minimizando o problema.

ÉPOCA – Aqui no Brasil, depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff, debate-se muito a reconstrução da esquerda. Recentemente, o filósofo Ruy Fausto, um renomado estudioso do marxismo, publicou o livro Caminhos da esquerda, no qual ele argumenta ser urgente a esquerda abandonar suas velhas patologias: populismo e tendências totalitárias e antidemocráticas. O senhor acredita que a esquerda deva se livrar de algumas patologias?
Miéville –
Com certeza há patologias. Só um sectário acharia que a esquerda não tem patologias para se livrar. Precisamos nos livrar de nossas patologias e discutir como seguir em frente, como criar o que chamo de “esquerda habitável”. Isso é crucial. Por meio de minha experiência, percebo na esquerda um certo sectarismo, uma brutalidade indesejada. É claro que há muita gente que não compactua com isso, mas são patologias que percebo, e acho que a esquerda não se esforçou o suficiente para se livrar delas. Eu mesmo já me envolvi em brigas feias no interior da esquerda britânica. Essas brigas sempre nos deixam absolutamente exaustos. É claro que vamos discordar, mas não precisamos conduzir nossa política sempre dessa maneira. Aliás, há bastante gente na esquerda, especialmente os mais jovens, que diz isso com seriedade, o que me dá muita esperança.

ÉPOCA – Atualmente, a esquerda discute muito a situação venezuelana. No Brasil, o PT apoia o governo antidemocrático de Nicolás Maduro. Recentemente, o líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, disse que a violência é praticada tanto pelo governo quanto pela oposição. Qual deveria ser a postura da esquerda diante da crise venezuelana?
Miéville –
A esquerda pode começar não se aliando com os bastiões da direita que tentam proclamar a morte do chavismo e dos projetos populares na América Latina. Dito isso, acredito que nós, de esquerda, devemos enfrentar com pragmatismo e seriedade os problemas de Maduro e seu regime, que vêm cerceando a democracia. A esquerda não pode dizer que não há problemas ali. Há, no entanto, grupos na Venezuela que não se aliam de modo algum com Maduro e recusam esse tipo de chantagem política que diz que, se você não apoia o regime, você está dançando no ritmo do capital ou é um fascista. Esse tipo de chantagem deve ser rejeitada. Não posso, em sã consciência, alinhar-me com o regime de Maduro, mas isso não quer dizer que eu apoio a oposição. Precisamos fortalecer as tendências minoritárias da esquerda venezuelana que estão comprometidas, acima de tudo, com a democracia popular.

ÉPOCA – Nos últimos tempos, o eleitorado de centro-­esquerda tem se voltado para candidatos populistas e de extrema-direita. Recentemente, o ex-chefe estrategista da Casa Branca Steve Bannon disse: “Se a esquerda estiver focada em raça e identidade, nós avançamos com o nacionalismo econômico e, assim, esmagamos os democratas”. Focar em questões raciais e de gênero em vez do antigo programa econômico estatizante é um erro das esquerdas?
Miéville –
É perigoso comprar essa narrativa que afirma que toda essa conversa sobre racismo alienou os pobres brancos. É um erro. Ignorar opressões estruturais e históricas, como o racismo americano ou o brasileiro, para não alienar a classe trabalhadora branca, é covardia política e falta de senso estratégico. Ignorar o racismo significa não lidar seriamente com a questão das classes sociais, porque classe social, raça e gênero estão imbricados. Seria um insulto ignorar um movimento como o Black Lives Matter, que provocou um impacto extraordinário na política americana. Mas, é claro, há maneiras melhores e piores de lidar com as políticas identitárias. Há muita gente na internet, uma esquerda de Twitter, que impõe essas plataformas de uma maneira que não ajuda ninguém.

ÉPOCA – Na eleição britânica, a esquerda radical conseguiu resultados surpreendentes, mas Jeremy Corbyn não foi eleito. Apostar no radicalismo pode ajudar a esquerda a voltar ao poder?
Miéville –
No mundo todo estamos assistindo a um colapso do liberalismo. Um programa radical pode, sim, vencer. É verdade que estamos nos estágios iniciais – se tivermos sorte – de um ressurgimento da esquerda. E não surpreende que a nova esquerda ainda não tenha conseguido superar décadas de desencanto popular com os políticos. Há uma montanha a escalar. Nos últimos meses, aprendemos que essa montanha pode, sim, ser escalada.

ÉPOCA – Na época do Brexit, o senhor afirmou que era difícil para a esquerda se posicionar sobre a saída dos britânicos da União Europeia, porque o voto anti-UE estava sendo patrocinado por uma onda de preconceito e xenofobia. Agora, parece haver muita ansiedade quanto aos impactos do Brexit na economia britânica. Como o senhor avalia a saída britânica do mercado comum um ano após o referendo?
Miéville –
O governo britânico está lidando com o Brexit sem nenhum programa ou tática. Os sonhos econômicos da direita anti-UE – uma espécie de parque de diversões no Atlântico – são mais que absurdos. E a direita xenófoba saiu fortalecida do referendo. O desejo nostálgico de muitos liberais de novo referendo, ou de simplesmente ignorar o resultado, é ridículo. A tarefa agora é – usando a fraseologia da esquerda do Partido Trabalhista – fazer um Brexit para muitos, não para poucos, contra o Brexit dos reacionários. É uma tarefa muito difícil, que acarretará muita dor e dificuldades, mas não é impossível. Vale a pena lutar.

por RUAN DE SOUSA GABRIEL

Época

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