sexta-feira, 29 de julho de 2011

ops, foi ontem ...

Tudo tem sempre seus lados positivo e negativo. Não gosto do twitter, não é útil para mim, não me interessa. Isso é bom, pois já me distraio o suficiente na net para me dar ao luxo de me afogar em mais uma rede social. Mas também é ruim, pois perco coisas como o Lingerie Day, um dia em que as garotas trocam, via microblog, fotos desinibidas. Foi ontem, perdi. Mas pra conpensar deixo vocês com mais este texto excelente do Fausto Salvadori Filho publicado no Boteco Sujo:

Durante uma festa de casamento em um bufê sofisticado, uma das convidadas pede licença para ir à toalete. Ana é uma senhora como as outras da festa: uma mãe de família ainda bonita em seus 48 anos, vestida num tailleur elegante, nada que chame a atenção. Passando por garçons empertigados que entregam os alimentos pela esquerda e as bebidas pela direita conforme os mandamentos do serviço à francesa, Ana chega ao banheiro do bufê. Assim que tranca a porta, contudo, a madame adota um procedimento que a etiqueta européia nunca teria previsto. Após abaixar a calça e a calcinha, ela saca da bolsa uma câmera digital, desliga o flash e passa a fotografar a própria nudez. Cinco minutos depois, Ana já está de volta à mesa, aproveitando discretamente a festa ao lado do marido e do casal de filhos.

No dia seguinte, Ana trata de publicar em seu blog as imagens da noite anterior, ao lado de centenas de outras fotos que mostram todas as partes do seu corpo — todas, menos o rosto. Filhos e marido não podem saber que a mãe e esposa do mundo real adota na Web a identidade de uma “madame e puta” chamada Escravinha Feliz, que adora se exibir em closes ginecológicos.

— Não me excitaria fazer fotos comportadinhas... Adoro uma vulgaridade — diz.

Expor-se ao onanismo de outros internautas foi a maneira que Ana encontrou para compensar a frustração sexual da vidinha convencional que levava ao lado do marido — um profissional liberal bem sucedido que ela ama, porém considera “muito devagar” para satisfazê-la sexualmente, mais interessado em colecionar dinheiro do que orgasmos.

Na sua vida secreta, Escravinha fica excitada tanto por se ver (“Quando baixo as fotos, fico meio louca por mim mesma, acho que eu até me comeria”) como por saber que é vista — e desejada.

— Gosto de mexer com a libido alheia. Saber que o mundo pode me ver tão intimamente é muito gostoso — afirma essa Dama do Lotação da era virtual.

Expor a sensualidade na Web é um hobby também para a professora de inglês Anne Becker, 2 anos, mas acabam aí suas semelhanças com Ana/Escravinha. As fotos que Anne exibe são discretas e sofisticadas, um erotismo à moda antiga feito de corsetes, cintas-ligas e meias arrastão. Anne descobriu esse mundo ainda na infância, assistindo aos clássicos de Hollywood com os pais. Na adolescência, gostava de comprar lingeries trabalhadas para dançar sozinha no quarto, imaginando-se Ava Gardner ou Jean Harlow diante do espelho. É o que Anne continua a fazer até hoje, mas o espelho em que se exibe atualmente são os sites das suas redes sociais (Tumblr, Flickr, Twitter), nos quais a professora publica imagens suas clicadas por um amigo fotógrafo.

— Todo ser humano, não só a mulher, é exibicionista — diz Anne, que sonha em se tornar estilista de uma linha de lingeries produzida para resgatar a “sexualidade misteriosa e artística de antigamente”.

Para Anne, explorar a própria sexualidade na Web é “uma forma de femininismo”:

— Mulheres lutaram durante muito tempo para conseguirem explorar a sensualidade sem serem julgadas
por isso — afirma a professora, que sonha em se tornar estilista de uma linha de lingeries pensada para resgatar a “sexualidade misteriosa e artística de antigamente”.

Pode ser a sacanagem anônima de Ana/Escravinha, o erotismo saudosista de Anne ou todas as variações possíveis entre um e outro. Não importa. Elas querem tirar a roupa. Cada vez mais mulheres, de todas as idades, estilos e profissões, tomam a iniciativa de exibir a própria sensualidade, aproveitando as novas tecnologias que baratearam a produção e disseminação de imagens. São amadoras dedicadas, que não apenas se exibem de graça como podem até pagar para se expor — como as mulheres que gastam até R$ 4.000 para fazer um “book sensual”, item que algumas já consideram pelo menos tão importante quanto o álbum de casamento.

A ânsia feminina pela autoexposição está tão disseminada que pode transformar uma piada num megaevento virtual, como descobriu por acaso o advogado Fernando Gouveia (na Web, Gravataí Merengue). Em julho de 2009, durante uma conversa com amigos no Twitter, ele brincou escrevendo que o site deveria ter seu Lingerieday, uma data para os twitteiros publicarem fotos de si próprios em roupas de baixo.

— Começou de uma gozação, piada mesmo — lembra Gouveia, que no dia seguinte foi pego de surpresa pela chuva de centenas de imagens de mulheres em roupas íntimas que inundou o Twitter. A esbórnia coletiva ganharia ares de evento: o Lingerieday entra regularmente para os Trending Topics como um dos termos mais acessados pelos usuários do Twitter em todo o mundo e recebe a adesão de milhares de participantes, algumas das quais chegam a comprar lingeries novas especialmente para mostrar no dia combinado.

Gouveia, que também faz questão de se exibir no Lingerieday, lembra que o evento é, em tese, unissex — embora a quantidade de homens que mostram as próprias cuecas seja proporcionalmente muito menor, a ponto de passarem quase despercebidos. Para ele, o exibicionismo virtual se limita a espelhar o que ocorre no mundo off-line:

— Acho que a vaidade é uma coisa nossa, humana, não exatamente da mulher. Os homens quando são mais bonitos também gostam de tirar a roupa, mas em geral somos bem feios.

Motivo para uma mulher tirar a roupa é o que não falta.

— Ela pode querer se mostrar para ouvir elogios, para chamar a atenção de alguém especificamente, ou de todos em geral. Pode ser pra se sentir mais feminina. Pode ser uma exposição com o intuito geral de conhecer gente interessante... enfim. Eu arriscaria dizer que é pra se divertir mesmo — afirma uma tradutora de 28 anos que prefere se identificar apenas como Lu Bom, por temer a rejeição do ambiente universitário em que estuda.

“Viciada em ver putaria na internet”, Lu prefere ser espectadora da sacanagem virtual. Mas, como todo voyeur tem seus dias de caça, Lu não resiste a publicar algumas fotos suas de calcinha e sutiã no Twitter, durante o Lingerieday, e em outros sites.

Por quê? Lu cita dois motivos. O primeiro, ligado ao autoconhecimento:

— Gosto de ter fotos do meu corpo como um registro, pra que no futuro eu tenha fotos de como fui, e principalmente para que eu mesma possa me ver do ponto de vista do outro.

E cita um segundo motivo, bem mais prático:

— Postar uma foto ou outra na internet me aproximou de pessoas legais e já me rendeu umas boas trepadas, o que nunca é demais.

A nudez fotografada é tão fascinante para quem se expõe como para quem a vê. Observar a própria nudez numa foto é uma experiência que mistura familiaridade e estranheza, como um médium que enxerga o próprio corpo durante uma viagem astral.

— Tirar uma foto é diferente de se olhar no espelho. Você consegue se ver da maneira como as outras pessoas vêem você — explica a estudante de Rádio e TV Mariane Custódio, 24 anos.

Mariane começou a tirar fotos de si e de suas amigas por brincadeira, durante as festas de pijama da adolescência. Com a experiência, aprendeu a conhecer seu próprio corpo e a gostar de ver as próprias formas. Tirar a roupa diante da câmera tornou-se um hábito: dos 19 aos 23 anos, fez cinco ensaios sensuais com amigos fotógrafos. Mesmo que poucos tenham visto as fotos (a circulação dos ensaios ficou restrita a alguns amigos), aquelas imagens colaboraram com sua autoestima e, hoje, são o seu Prozac.

— Quando estou me achando feia, pego para ver alguma dessas fotos e volto a me sentir bonita — conta. — Quero continuar me fotografando até ficar velhinha.

Para Gustavo Gitti, editor de conteúdo do site Papo de Homem, as mulheres se expõem em busca de uma identidade.

— As mulheres (homens também, aliás) são dependentes do olhar masculino para afirmar sua identidade. ‘Quem sou?’ é inseparável de ‘Quem você vê quando olha pra mim?’” — opina . Assim, mostrar o corpo seria “uma forma de ser olhada, reconhecida, de se sentir viva, de ter o próprio corpo, por mais estranho que isso pareça”. (Leia aqui o texto completo de Gustavo sobre as exibicionistas.)

Talvez por isso um ensaio sensual seja capaz de produzir tanto impacto na autoestima feminina. Foi assim para a dona-de-casa Catharina Mota Souza, 26 anos, passou tempos difíceis após o nascimento da primeira filha. Prematuro de seis meses, o bebê de 900 gramas passou seus primeiros três meses na UTI e, ao sair, continuou a demandar uma série de cuidados especiais nas mãos de pediatras, fisioterapeutas, oftalmologistas, neurologistas... A menina estava bem, mas Catharina sentia-se desanimada.

Catharina encontrou uma saída ao ver “Minha patroa é um avião”, quadro do programa “Superpop” em que a fotógrafa Gina Stocco produz ensaios sensuais de mulheres casadas. Catharina adorou a idéia. Selecionada pelo programa, pode provar que, além de mãe, era também uma mulher provocante que podia se deitar na mesa de sinuca do bar favorito de seu marido, vestindo máscara e lingerie, sendo fotografada por Ginna diante de dezenas de freqüentadores.

Ao contrário de outras protagonistas de books sensuais, Catharina nega que tenha feito o ensaio para agradar ao marido:

— Eu fiz para agradar a mim mesma.

Pronto o ensaio, o que acender para valer a vaidade de Catharina foram os elogios que ela recebeu... de outras mulheres.
— As mulheres são muito mais cruéis do que os homens em seus comentários. Por isso os elogios femininos me fizeram muito bem, mais do que os masculinos — compara.

É, talvez essa festa de mulheres arrancando alegremente a roupa, no fundo, não seja para os nossos olhos.

— Nessa festa, nós só podemos entrar de penetra — avisa o poeta Fabrício Carpinejar.

Partindo do príncípio de que “toda mulher nasce lésbica e depois se torna heterossexual”, Carpinejar acredita que as mulheres que se exibem estão na verdade “querendo se mostrar para as outras mulheres”.

— É como uma mulher que compra uma roupa nova e pede a opinião para ti. Não importa o que tu fales, ela sempre quer a opinião de outra mulher — afirma o poeta.

Carpinejar lembra que as mulheres sempre tiveram o “voyeurismo manso dos álbuns de fotografia”. “Mulheres só debutam e casam para poder ter o álbum de fotografias”, diz. Para o poeta, elas têm a necessidade de “cristalizar seus momentos” em fotografias porque têm, como ninguém, “a consciência do quanto a imagem é provisória” e de que a beleza não vai durar para sempre.

E o poeta dá uma dica: a vaidade é essencial, mas não pode virar narcisismo nem megalomania.

— A mulher não pode se banalizar. Precisa guardar sempre algum pudor, sentir uma vergonha do que ela tem de mais valioso — aconselha.

Autora do ensaio de Catharina, Gina Stocco conta que descobriu o mercado dos ensaios sensuais por acaso. Após posar para um namorado fotógrafo, há cinco anos, começou a tirar fotos das amigas e logo percebeu que aquilo poderia virar um negócio: hoje, cobra até R$ 4.100 por um book.

Atuando no mercado desde 2008, o fotógrafo Marcus Steinmeyer já coleciona histórias de mulheres que salvaram o casamento após um ensaio sensual e algumas observações curiosas: “As mulheres mais cheinhas são as que têm mais autoestima e aceitam melhor o próprio corpo”. Para Steinmeyer, o desejo exibicionista feminino sempre existiu; o que mudou foi a entrada em cena da fotografia digital, que tornou viável vender books sensuais para pessoas comuns.

Cliente de Stenmeyer, a promotora de eventos Renata Malavazzi, 35 anos, pagou um ensaio sensual no ano passado e não vê a hora de fazer o próximo. As oito horas que passou diante da câmera, bebendo algumas doses de uísque para relaxar, significaram para ela “um dia de glamour”.

—Queria ter essas fotos para provar que posso ser tão sensual quanto qualquer mulher que sai em revista — afirma Renata.

Talvez a vontade de tirar a roupa para vestir a pele de uma gostosa seja uma reação à mudança nos papéis que as mulheres passaram a desempenhar nas últimas décadas: obrigadas a acumular Profissional, Mãe e Dona-de-Casa, num belo dia elas perceberam que haviam se esquecido da Mulher.

— A gente procurou tanto se igualar aos homens na labuta, no dividir os papéis dentro de casa, que esqueceu aquela nossa parte feminina que nos diferencia dos homens — conta a professora universitária Flávia Roger, 36 anos. Para ela, a nova nudez é uma retomada de uma valorização do feminino que as feministas haviam deixado de lado.

— Antes nós queimávamos sutiãs, hoje queremos mostrar a lingerie — compara. Embora como professora esteja mais acostumada a valorizar a inteligência, Flávia diz que não se pode esquecer também da “beleza exterior”. — A gente consegue gostar muito mais do que tem dentro quando o que está fora ajuda — ri.

A professora gastou cerca de R$ 800 para fazer um ensaio sensual com a empresa Sensual Art e Stúdio Books. O preço saiu até barato, porque para Flávia a sessão de fotos equivaleu a “uma terapia de curto prazo”. No momento em que a professora se vestia de colegial no estúdio fotográfico, estava exorcizando os últimos vestígios de um trauma: a traição do seu primeiro marido com uma prima dele, nove anos mais nova do que Flávia, que pôs fim a um casamento de oito anos.

— Quando isso acontece, você sente que não é desejável — conta. Embora boa parte do trauma tenha sido superado com um novo casamento, Flávia afirma que o ensaio serviu para expulsar de vez o que restava nela de baixa autoestima: — O ensaio fez desaparecer qualquer noção de que eu não desperto o olhar de alguém. Despertou até o meu.

Mas nem sempre tirar o sutiã diante de uma câmera dá direito a um passaporte carimbado para a realização sexual e todas as outras categorias possíveis de felicidade. Por um lado, nem todas estão preparadas para lidar com o que a exposição pode trazer. E, por outra, há riscos reais.

Enfermeira de um hospital federal no Rio de Janeiro, Juliana, 24 anos (Poison Chantilly), adora participar do LingerieDay para ver as reações que suas fotos provocam. “Isso me diverte”, conta. Uma reação com a qual não contava foi a de um fã que passou a persegui-la pela internet.

— Uma vez ele me deixou uma foto da minha rua no Orkut com o recado ‘Agora só falta o número da sua casa.’ Tive medo — relata. O fã obsessivo não voltou a dar as caras, mas Juliana aprendeu a ser mais reservada na Web.

Mariane Custódio chegou a colocar algumas fotos dos seus primeiros ensaios na Web, mas tirou-os do ar por não gostar dos comentários que passou a receber. Acima de tudo, Mari se incomodava em ser vista apenas como uma gostosa.

— As pessoas que não me conheciam ficavam achando que ficar pelada fosse meu trabalho, quando era um hobby — diz.

E sexo também tem a ver com poder. Sempre. Mesmo que seja apenas o poder de dominar alguns territórios do mundinho da Web — uma guerra na qual a exibição de bundas e peitos tem o poder de armas de destruição em massa. Há um ano, a estudante Bárbara Cristina Santos de Lima, 20 anos (codinome Catwoman69), criou um fotolog sem dar muita atenção ao que fazia, movida por um misto de falta do que fazer com vontade de chamar a atenção. Mas logo ela entrou no clima belicoso das demais fotologgers, que disputavam a audiência com uma fúria de participante de reality show.

— Uma menina faz de tudo para ganhar mais acessos. Posta foto com peito para fora, ou de roupa curta. Tem que dar um jeito de estar em primeiro lugar, por cima da outra — conta Barbara/Catwoman.

Uma garota sem graça do interior de Minas Gerais que só começou a chamar atenção dos garotos no final da adolescência, quando seu corpo finalmente ganhou curvas, a instrutora de vôo Fernanda Lizardo logo percebeu que conseguiria as coisas mais fáceis usando a sensualidade. Começou a postar fotos sensuais na internet aos 20 anos porque queria chamar a atenção para seu blog, O Sexto Sexo. O sujeito que visse as fotos da gostosa iria querer saber o que ela escrevia, era seu raciocínio. Deu certo: o site fez sucesso e, no ano passado, virou livro.

— A mulher aprendeu desde sempre que usar a aparência pode ajudar em vários campos da vida: trabalho, afetivo, familiar... — aponta Fernanda. Ela não vê nada de degradante nesse uso utilitário para a sensualidade, como apontaria uma leitura feminista tradicional. Só se for degradante para o homem: — Quer coisa mais degradante do que um homem se submeter a um par de peitos, a uma bunda?

Sensualidade chama atenção, mas Fernanda acredita que, para a maioria das pessoas, o exibicionismo é uma brincadeira que não terá maiores consequências para o cotidiano. O dia a dia, afinal, passa por outros caminhos.

— O cara que vê a foto lá longe cria mil fantasias, mas ele nunca conversou comigo— compara. — Meu chefe quer mais é saber se o relatório do dia está pronto, minha mãe quer saber se estou me alimentando direito, meu senhorio que saber do aluguel em dia...

Nem sexo é tudo na vida.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Trabalho Interno

"Morreu quem não deveria ter nascido", afirmou o locutor da Radio Reloj, emissora cubana de notícias, sobre a morte do ex-presidente norte-americano Ronald Reagan. Discordâncias quanto a regimes ditatoriais de partido único à parte (até porque os Estados unidos, a seu modo, também o são, na minha humilde opinião*), concordo. Segundo o documentário “Trabalho Interno”, vencedor do Oscar deste ano em sua categoria, foi durante a administração do dedo-duro e pseudo-astro fracassado de Hollywood que começou o processo de desregulamentação do Mercado financeiro que descambou na tragédia neo-liberal, cujo ápice, um verdadeiro armagedon econômico, estamos vivendo desde a eclosão da crise de 2008.
Nenhuma surpresa. O filme, pelo menos pra mim, não trás nenhuma surpresa. Não sou nenhum especialista em economia, muito pelo contrário, tive inclusive muita dificuldade para acompanhar com a devida atenção o rosário de explicações técnicas jogado na tela, mas posso dizer com orgulho que nunca acreditei nesse papo furado de que a “mão invisível” do mercado era suficiente para regular nossas vidas. Reagan não é, no entanto, o único vilão desta mais do que realista história de horror: o que assistimos durante a projeção é um impressionante desfile de mentiras saídas da boca de um infindável séquito de caras de pau, alguns atrapalhados e hesitantes, outros bastante seguros do que dizem, mesmo diante da obviedade do fato de que estão, pura e simplesmente, mentindo – ou, no mínimo, redondamente enganados. Alguns porque querem se enganar, como Alan Greesnpan, que admite em vários momentos não ter tomado as providencias necessárias para evitar o desastre por pura convicção ideológica.

O filme começa com belas imagens da terra de Bjork, a Islandia, outrora uma nação próspera, segura e feliz. Mas um dia seu governo resolve “se abrir para o mundo”, aderir ao “consenso de Washington”, e o resultado foi absolutamente desastroso. Em todos os sentidos, inclusive para o meio ambiente, já que belas paisagens naturais foram simplesmente destruídas para dar lugar a gigantescas fábricas. A partir deste ponto inicial, somos convidados a tentar entender porque isto (que é apenas a “ponta do iceberg”, talvez por isso tenham escolhido a “terra do gelo” – Iceland) aconteceu e para isso o filme se divide em 5 partes numa tentativa, a meu ver frustrada, de ser o mais didático possível. A verdade é que é difícil para leigos acompanhar todo aquele emaranhado de termos técnicos envolvendo siglas e números e gráficos, e este é, justamente, o grande trunfo dos criminosos, que se utilizam da alienação geral para tentar justificar o injustificável e se manter encastelados em suas posições privilegiadas. É fácil perceber, no entanto, o jogo de interesses entre governantes, agentes reguladores do sistema financeiro e o mundo acadêmico com o único intuito de acumular riqueza e poder às custas da esmagadora maioria da população que, muito provavelmente, não vai assistir a este filme – estarão entretidos demais com Harry Potter, Transformers, Piratas do Caribe ...

Uma pena, pois ao final de tudo a conclusão é óbvia: são estes caras que mandam no mundo, e é muito difícil que o cenário mude a curto ou médio prazo, já que eles estiveram e continuam lá, encastelados, em todos os últimos governos norte-americanos, sejam eles republicanos ou democratas, desde o início da “Era Reagan”. E continuam mesmo com Barack Obama! Não é, portanto, um filme com um final feliz. Termina mostrando a vitória eleitoral do primeiro negro a assumir o cargo máximo da mais poderosa nação do mundo, vitória construída justamente em cima de uma promessa de mudança, para logo em seguida sucumbir às pressões do mercado, dos verdadeiros donos do mundo, e manter nos mesmos cargos de chefia os criminosos que deveriam estar, no mínimo, na cadeia – ou com uma bala devidamente alojada em seus cérebros, o que seria mais do que merecido. Deprimente. Nem dá para se empolgar muito com o chamamento à luta da frase de efeito que encerra a projeção, “esta é uma batalha que vale a pena ser lutada”. Os otimistas que me perdoem, mas esta é uma batalha que me parece irremediavelmente perdida ...

por Adelvan

  • Os Estados unidos são uma ditadura de partido único disfarçada de democracia: democratas e republicanos se revezam no poder sem dar a mínima chance a partidos que representem alguma alternativa política, e ficam mais parecidos a cada ano que passa. Parecem mais facções de uma mesma sigla partidária – muito embora esteja havendo um distanciamento à direita entre os republicanos, um movimento cuja maior expressão é o chamado “Tea party”. A principal diferença para as ditaduras totalitárias clássicas é que neste caso o poder é sustentado não pela força do aparelho repressivo do estado, mas por uma espécie de consenso em torno de um “pensamento único” construído ao longo do tempo por uma nem sempre sutil lavagem cerebral levada a cabo 24 horas por dia pela mídia de massas, evidentemente controlada pelas megacorporações multinacionais.
  • “Trabalho Interno” está (finalmente!) em cartaz em Aracaju na Sessão Cine Cult do Cinemark do Shopping Riomar, todos os dias, às 11:00H da manhã.
  • O filme é, por si só, um produto de uma megacorporação, a Sony Pictures, e é exibido mundo afora principalmente em salas de exibição pertencentes a outras megacorporações, como o próprio Cinemark. “Resistir é inútil”.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

loudQUIETloud

"Kim vive num mundinho em separado. É o mundo da Kim e da Kelley", fala Charles (Black Francis/Frank Black) numa determinada altura do filme. Não dá pra saber se em tom de crítica ou apenas a título de informação, já que havia sido perguntado a respeito do relacionamento entre ele e a baixista numa entrevista. E é assim durante toda a projeção: longos silêncios intercalados por alguma conversa jogada fora entre uma brincadeira e outra. Os eventuais problemas (e eles devem existir, já que a banda se separou no auge criativo e, mesmo com esta volta, não conseguiu produzir nada inédito até agora) são, claramente, varridos para baixo do tapete. Não espere obter alguma resposta definitiva para a grande pergunta. Há versões, no entanto: uma resposta vaga, dada por Black Francis em outra entrevista (apenas ele responde às entrevistas, ao que parece), e uma mais direta, saída da boca de alguém que também estava lá. Para Joey Santiago, foi uma resposta do ego do líder ao fato de que a popularidade de Kim aumentava a cada dia. Há ainda a versão do público quando, num dos momentos mais divertidos, Kelley sai pela fila da entrada de um show perguntando ao público porque, na opinião deles, a banda acabou. A resposta mais recorrente é "porque eles são bons demais", para ambas as perguntas. Explicando a presença de Kelley: a irmã gêmea de Kim acompanhou a banda durante a turnê. É dela, aliás, a sentença que define tudo: “Vocês são os piores comunicadores do mundo”. Os quatro parecem concordar, resignados.

A resposta mais provável, no entanto, é mesmo a financeira. Frank Black nunca se esquivou dela, muito pelo contrário: declarou, certa vez, que eles já tinham feito música suficiente com os Pixies, agora era a hora de fazer dinheiro. E fizeram, pelo que se vê no filme: shows totalmente "sold out" por onde passaram - claro que num nível infinitamente distante de um U2 ou de um Guns and Roses, mas provavelmente suficiente para aliviar a situação de David, que conseguia trocados fazendo mágica e vivia de favor na casa de amigos; de Joey, que sustentava a família fazendo trilhas e tocando para meia dúzia de pessoas ao lado da mulher; de Kim, cujo Breders fez relativo sucesso mas que entrou numa roda-viva de abuso de álcool e drogas e estava em recuperação durante a tour; e do próprio Frank Black, cuja carreira solo, convenhamos, seguia (e segue) ladeira abaixo, em termos de popularidade.

No palco há a música, e a música, todos sabemos, é a forma de comunicação mais perfeita que existe, porque dispensa a palavra, esta maravilhosa porém limitada invenção humana. Mas o foco é mesmo nos bastidores, o que leva à pergunta: vale a pena assitir a este filme? A resposta é sim, caso você seja fã da banda. Eu sou. Mas para mim, particularmente, valeria a pena apenas pelo prazer de passar 1 hora e alguns minutos vendo o sorriso de Kim Deal, o mais bonito do universo. Por isso e pela sucessão de momentos antológicos, como quando eles recebem uma homenagem por ter feito o show com os ingressos esgotados mais rapidamente da história da Bixton Academy, lendária casa de shows inglesa. Ou pelo registro da ida do pai do baterista David Lovering, então doente terminal, com câncer, a Londres, para ver o filho se apresentar (como baterista E mágico/ilusionista). Por Kelley ajudando Kim na composição do então novo disco das Breeders ("Montain Battles", imagino). Ou pelo emocionante registro da presença de uma fã cuja vida foi mudada depois dela encontrar, por acaso, um livro no qual a personagem principal era fanática pelos Pixies. Há um rápido encontro dela com Kim no final do show em que a moça, visivelmente emocionada, lhe dá o livro de presente. Na sequencia seguinte o filme registra a reação de Kim ao folheá-lo. Sem palavras (literalmente). No final do filme, entre os créditos, imagens de um ensaio da banda cover da fã são intercalados com uma execução de "Monkey gone to heaven" pelos Pixies.

A banda também tocou pela primeira vez no Brasil neste ano de 2004, mas o documentário, infelizmente, não registra isso. A única referência ao nosso país é uma touca usada pelo guitarrista Joey Santiago durante uma conversa via internet com sua família. Uma pena: pelo visto o "Bananão" continua sendo encarado por muitos, lá fora, como uma terra inópsita e distante, indigna de um enfoque mais detalhado.

O Filme foi lançado em edição nacional recentemente, pela Coqueiro Verde. Você pode adquirir uma cópia aqui.

Ou BAIXE AQUI, em AVI c/ legendas.

por Adelvan

Não sei se já aconteceu com você, mas comigo, várias vezes: você passa um tempo danado sem falar com uma pessoa (as coisas talvez não tenham terminado bem da última vez ou algo assim), e acha que tudo bem, a vida segue, mas chega um determinado momento em que você a reencontra, e todas as coisas se encaixam – como se o tempo não tivesse passado.
Acredite, acontece. Particularmente, sou um cara super estranho com as amizades. O motivo, olhando para mim mesmo, talvez seja porque eu necessite muito da solidão (ou eu necessito, ou eu acho que necessito), e as amizades existem exatamente para impedir que você fique sozinho. Lógico, para muitas outras coisas, mas fazemos amigos essencialmente para termos alguém com quem conversar e trocar idéias.
Risos. Engraçado como falar de uma banda que a gente ama pode entregar mais do que aquilo que a gente imagina. Ok, tenho meus amigos, mais até que do mereço, e eles são uma parte especial da vida. Existem aqueles que estão vivendo o aqui agora, aqueles que já viveram e vira e mexe aparecem para uma cerveja ou para um email carinhoso bissexto, e, alguns, que por algum motivo ficaram pelo caminho.
Existem também os amigos invisíveis, como diria Edgard Scandurra. As bandas, as músicas que sempre nos acompanharam, mas que por algum motivo desaparecem de nossas vidas. Não me lembro o motivo, mas eu tinha brigado com o Pixies. Eles continuaram na minha vida, não tinha como esquecê-los (imagina: toda vez que não ouço algo lembro que fiquei quase surdo por causa de “Doolittle”), mas algo nos distanciava.
Tentei ir vê-los quando eles tocaram em Curitiba, mas não rolou. Quando o Danilo e o Ricardo, da Mojo Books, me pediram uma história sobre um disco, não pensei duas vezes: Pixies (acho que o livro ainda está esgotado aqui). As músicas iam e vinham, mas a volta da banda me deixou com um pé atrás, não sei o motivo. Os vi, depois, no Primavera Sound, e também no SWU, e algo em mim esperava mais, não sei o que.
Hoje assisti “loudQUIETloud: a film about the Pixies”, e parece que tudo se encaixou. As estranhezas das letras do Frank Black, os sorrisos chapados de cerveja sem álcool da Kim Deal, o olhar suspeito de Joey Santiago, a alegria nonsense de David Lovering, quatro pessoas que por algum motivo estiveram na mesma banda, fizeram grandes discos, brigaram e não tinham percebido o valor do que fizeram.
“loudQUIETloud: a film about the Pixies” mostra por a+b que ter uma banda é praticamente como viver em família, você cercado por pessoas estranhas cuja união é o sobrenome e o sangue – e muitos gens que fazem você reproduzir gestos e parecer com seus familiares. Tire os gens e você tem uma banda: pessoas estranhas que se juntam para fazer música.
A juventude preenche as lacunas dos espaços vazios quando você é jovem, mas quando se passa dos 30 e acumula tristezas (lembre-se: viver é acumular tristezas), as pessoas tendem a ficarem mais frias, cínicas e receosas sobre o mundo. Daí o silêncio. “loudQUIETloud: a film about the Pixies” é lotado de SILÊNCIOS, mas abre importantes clareiras para se entender uma banda tão estranha e genial como o Pixies.
E, por que não, nós mesmos?
por Marcelo Costa
Scream & Yeall

terça-feira, 19 de julho de 2011

No Fio da navalha

Uma aula de rock and roll - Tudo já começa "na cara", de sopetão: são os Mamutes e sua "Dama de branco" dizendo sem rodeios ou firulas a que vieram, "no fio da navalha". Grande som, velha conhecida, já lançada no single do ano passado. A segunda faixa, "Eu e minha guitarra", começa apenas com um riff cru e cadenciado - uma cadência que acompanha a música até o final, quando ela engata um ritmo mais rápido e culmina num "Foda-se" gritado por Kal em Alto e Bom som. "Cabeça de Mamute" já é mais forte, com um refrão marcante. "Vinha eu pela 13 a mais de 100", declama Kal na letra de "Eletrokarma". A "13", imagino, é a praia 13 de julho, bairro de Aracaju. É bom ver nossas bandas de rock cantando nossas coisas, o dia-a-dia na cidade. Assim como precisamos nos ver mais nos cinemas, precisamos também nos reconhecer nas letras de nossas canções. O riff da música, pra variar, é ótimo, sinuoso e marcante. A marcação de Odara e Morcego segue precisa. Chamo aqui a atenção para a mixagem do disco, que nesta faixa em especial se mostra perfeita. "Noturna", a faixa seguinte, é outra velha conhecida do single lançado ano passado, e é perfeita em sua melodia poderosa conduzida pelo vocal a cada dia melhor lapidado de Kal Di Leon. Brilhante trabalho de guitarra de Rick Maia, com harmonias nitidamente influenciadas por mestres como o Thin Lizzy. A musica já seria perfeita assim mesmo, seca, mas não: os caras tiveram a manha de incluir sopros e castanholas no arranjo, o que deixou tudo ainda mais exuberante. Contrariando um das máximas do rock and roll, neste caso, menos não foi mais.

"Olho azul" tem, em sua introdução, um daqueles gritos rasgados típicos do hard rock "glam" dos anos 80 - estariam os mamutes "farofando" o som ? Nada disso, o "rasgo" ficou ok, sem afetação, eu estava apenas brincando. A musica segue numa cadencia legal e tem uma ótima melodia que culmina em um excelente refrão. Redondinha, perfeita, e com mais guitarras dobradas a la Thin Lizzy/NWOBHM. Os ecos do Heavy metal se tornam explícitos na faixa seguinte, "olhos de cobra", que começa num clima meio opressivo e segue com a guitarra acompanhando o vocal numa melodia que lembra os bons tempos do Black Sabbath com Ozzy. A (ótima) influência do Sabbath segue até o final, com a musica mudando de andamento e passando por um trecho instumental "viajante" para então voltar ao ritmo inicial, numa dinâmica típica do supergrupo de Toni Iommy. Tudo sem sinal de plágio, já que a musica em si não lembra nenhuma do Sabbath em especial. É apenas a boa, velha e sadia fonte de inspiração da qual, afinal, todos bebem - e ela nunca se esgota.

Aí vem o que se anunciava, pelo menos para mim, como o momento mais perigoso do disco: "Fora de controle", um verdadeiro hino dos Mamutes, em novo andamento. Ficou boa e, como eles bem disseram numa entrevista no programa de rock, perfeitamente integrada ao clima do disco. Nada traumático, claro, os caras não estragaram, como eu cheguei a temer, uma de suas melhores composições, nem de longe. Mas mesmo assim, na primeira ouvida, ainda prefiro a versão do EP. Velhos hábitos são difíceis de mudar.

Na reta final do percurso, "te deixando o meu bye bye", um "rockão", também previamente lançado via single. Poderia inclusive ter finalizado o disco com aquele eco no fim, mas tem mais: gemidos e mais sopros introduzem "tudo no seu tempo", a "saideira". Letra lasciva, Vocal malicioso de Kal, uma bela levada de baixo e um andamento mais suingado. Fechou com chave de ouro.

Certamente um dos melhores petardos já lançados por estas plagas. Um atestado de maturidade e, ao mesmo tempo, fidelidade às origens da cena rock sergipana.

ROCK AND ROLL ! Na veia e na artéria!

Baixe o disco aqui.

por Adelvan

O DISCO

Confesso que fiquei um tanto quanto decepcionado quando os Baggios divulgaram, já há algum tempo, a capa de seu tão aguardado primeiro disco - uma foto "trabalhada" com dois caras vestidos de branco "trabalhando" em algo indefinido, mas que produz uma explosão de luzes cósmico/psicodélicas. Achei uma imagem meio vaga, muito embora seja explícita a referência ao fato de que se trata de uma dupla às voltas com a concepção de um disco - mais que isso, uma obra de arte. Mas porque eles estão de branco? Para isto não há nenhum significado especial, me disse Julico.

Toda esta primeira impressão negativa, provavelmente motivada pelo fato de que eles já há algum tempo vêm sendo trabalhados iconograficamente pela competentíssima dupla de fotógrafos da Snapic (daí ficar meio que subentendido que a capa seria deles) se desfez ao pegar o material gráfico nas mãos. Impressa, a arte da capa ganha vida e adquire consistencia. Ou é isto ou fui eu que simplesmente me acostumei com a imagem, pura e simplesmente. Além disso, as fotos da snapic, sempre excelentes, estão lá, espalhadas pelo encarte e na contracapa, abrilhantando o material que é, como um todo, bem acabado e de muito bom gosto. Se é verdade que a primeira impressão é a que fica, o disquinho dos Baggios, embalado no elegante formato digipack, já chega "chegando".

Feitas as devidas loas e ressalvas ao conceito e apresentação do material gráfico - e ele é importante, especialmente num disco lançado em formato "físico" nestes tempos de download gratuito e fragmentado - vamos ao som em si. As duas primeiras já são velhas conhecidas: "o azar me consome" foi lançada previamente como single e "em outras" venceu o Festival da Arpub e, por conta disto, foi executada à exaustão pela Aperipê FM. As versões registradas no disco são bastante fièis ao que conhecemos, com exceção de alguns detalhezinhos aqui e ali nos arranjos, imperceptíveis à maioria das pessoas (e à mim também, só sei disso porque Julio me falou antecipadamente). Uma vinheta separa as duas músicas, que são ótimas e extremamente apropriadas como cartões de visita. Mas o bicho começa a pegar pra valer a partir da terceira faixa - para todos os fins, a primeira "inédita". Na verdade é uma música antiga, que já constava da primeira demo, mas aparece aqui numa gravação novinha e "turbinada" pelas intervenções do órgão de Leo Airplane, por um novo solo de guitarra e por alguns trechos que surgiram de improviso nas execuções ao vivo e foram incorporados à canção. Destaque para o "lodento" duelo vocal/guitarra/bateria do final, que remete à boa e velha tradição do blues "puro", "de raiz". O timbre da voz de Julico ajuda: ele parece ter nascido no delta do Missisipi, apesar da letra em português e em alto e bom som. É uma das melhores composições do Baggios, velha conhecida de quem frequenta seus shows, e é muito bom ouvi-la em versão tão "encorpada".

A faixa seguinte, "pare e repare", já é mais nova, mas é igualmente redonda e tem um ótimo refrão, além de também ser conhecida dos shows. "Não estou aqui", a quarta, é mais "obscura". Ótima letra, ótimos riffs e mais Leo Airplane nos teclados.

Aí chegamos a "Oh! Cigana" (seria uma letra autobiográfica? Em caso positivo, por onde andará esta cigana que despertou tamanha paixão em nosso "rei do blues" sergipano?) e seus excelentes arranjos de sopros, que não são exatamente novidade, já que a versão demo também os tinha, só que aqui eles aparecem numa "versão estendida". A novidade é um novo solo, na verdade um duelo entre duas guitarras. Muito bom. É seguida por "quanto mais eu rezo" e mais metais que dão ao disco uma pitada de rythm´n´blues.

A próxima é "Seu Cristóvão", muito boa (não existe musica ruim da The Baggios), seguida de "Morro da saudade", que abre com uma gaita muito bem colocada, cortesia do colaborador de longa data Mateus Santana, e conta também com a participação especial de Helio Flanders, do Vanguart. Na sequencia, a primeira cantada em inglês, "get out now", com uma introdução em "crescendo" que culmina em mais um excelente riff de guitarra, sempre pontuado pela potente e martelada bateria de Perninha. Prefiro Julico cantando em português, mas a sonoridade da língua de Shakespeare (e dos grandes mestres do blues, evidentemente) aqui ficou perfeita.

"Meu eu" é uma balada "bluesy" de bom tamanho a esta altura do campeonato - nos dá a oportunidade de tomar fôlego para o petardo seguinte, a já clássica "candango´s bar", mais uma homenagem às "coisas de São Cristóvão", a cidade histórica vizinha à Aracaju onde tudo começou, há aproximadamente 7 anos. Depois de "Josie magnolia", o disco acaba com "you never walk alone", cuja introdução lembra o Led Zeppelin.

Este disco é um marco e já nasceu clássico, porque é o resultado de um trabalho maturado, testado e aprovado por incontáveis apresentações antológicas por todo o Brasil - a maioria delas, certamente, no bom e velho Capitão Cook, em Aracaju. É certamente uma das melhores manifestações desta entidade viva e ativa porém ainda obscura, o rock sergipano.

Ouça no volume máximo, compareça aos shows dos caras, fique bêbado (ou não), cante junto (sempre), faça "air guitar" e ajude a divulgar você também esta pequena pérola do cancioneito independente nacional.

Vida longa e próspera (que o azar pare de os consumir).

por Adelvan

O SHOW

Não poderia deixar de fazer aqui o registro da verdadeira celebração que foi a noite de lançamento do primeiro CD da The Baggios na Casa Rua da Cultura. Quem não foi, perdeu uma das melhores noitadas “rock” que esta cidade já viu ...

Cheguei por volta das 23:00H (o show estava marcado para as 21) e tive dificuldade para estacionar o carro. De longe já via a multidão na praça Camerino, até pensei que por algum motivo o show havia sido transferido para o meio da praça, o que seria uma espécie de reedição dos festivais “clandestinos”, que aconteciam no final dos anos 80, mas ledo engano: ainda não havia começado, como suspeitava. Ok, normal, esta cultura de atrasos vai ser mesmo difícil de mudar, já que entramos, há bastante tempo, num círculo vicioso: as bandas atrasam o início do show porque o público demora a chegar, e o público demora a chegar porque os shows sempre demoram pra começar.

Me parece que já estava rolando a peça de teatro que abriria a noite, “cabaret dos insensatos”, mas eu não vi porque acabei me distraindo com o bom e velho bate-papo de porta de show, desta vez “turbinado” pelo fato de que o evento tirou de suas tocas inúmeras almas avessas ao feijão com arroz da noite “roqueira” aracajuana. Como eu também sou um recluso assumido e incorrigível, tenho que aproveitar estes momentos para colocar o papo em dia.

Enfim, entramos. Bem legal o espaço da Casa Rua da Cultura, muito bem estruturado, e nem tão pequeno a ponto de causar desconforto nem grande o suficiente para provocar a dispersão do público, que compareceu em massa. O local em que aconteceu a apresentação em si, um galpão onde são encenadas as peças de teatro da Stultifera Navis, também é bem legal – um pouco quente, mas nada absurdo. A acústica é ok, com um pouco de eco, mas que não chega a provocar grandes problemas.

Na primeira parte do show a dupla tocou todas as musicas do disco. Foi lindo. Julico e Perninha, como era de se esperar, estavam com o diabo no corpo, e a resposta do publico apenas contibuía para que o espírito travesso que fez aquele bendito (sic) pacto com Robert Johnson se apossasse de todos. Bateria devidamente espancada e guitarras no talo, como deve ser, com riffs matadores penetrando deliciosamente em nossos ouvidos masoquistas em alto e bom som. Destaque para as participações especiais das teclas sempre ácidas de Leo Airplane; dos metais, que deram um “mojo” e um balanço soul em “quanto mais eu rezo” (e algumas outras), e de Arthur, da Nantes, que subiu ao palco para uma belíssima versão de uma música do disco “Harvest”, de Neil Young (obrigado a Fabinho por informar este pobre herege de que se tratava). A noite teve direito, inclusive, a um solo de bateria de nosso camarada Perninha – muito bom, enxuto, sem excessos. Legal também a forma como a bateria foi armada no palco, na frente, do lado, no mesmo nível de onde estava Julico. Baterias geralmente ficam atrás, supõe-se, para economizar espaço no palco, algo desnecessário quando se trata de uma dupla.

Após cerca de 40/50 minutos de show Julico agradece a todos, especialmente a sua família e a seus amigos de São Cristóvão, que estavam presentes, e anuncia um pequeno intervalo ao fim do qual eles voltariam para uma segunda parte da apresentação, tirando o foco do disco em si. Legal, mais tempo pra colocar a conversa em dia e relembrar as memoráveis noites de rock que aconteciam no antigo DCE da praça camerino. Fomos e voltamos – e tome mais blues/rock na cachola. Um dos únicos pontos negativos, fora o atraso (que no meu caso nem foi assim tão negativo, já que era dia de pdrock e eu só saio da rádio às 22:00H mesmo), foi o abastecimento precário do bar. Acho que eles não contavam com um publico tão grande e a cerveja acabou várias vezes. Acabava mas chegava em novas remessas e as pessoas se reabasteciam e todos continuavam felizes. Foi tanto rock que ainda deu tempo de levar uns amigos num ponto de taxi lotação do centro, voltar e ainda pegar o finalzinho de tudo, com os já tradicionais covers de Ramones e Raul Seixas executados em doses maciças para tentar saciar o apetite dos que se recusavam a dar a noite por encerrada.

Foi praticamente perfeito. Tenho até pena de quem não pôde comparecer ...

Fotos por Snapic e Marcelinho Hora

por Adelvan

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A última saideira – por Cleomar Brandi

“Um dia, uma noite, algum boêmio sempre pede a saideira e os garçons nunca gostam dessa história. Mas, o certo, é que sempre chega a hora da última saideira. Dessa vez, chegou minha hora, meu último gole.

Eu, pessoalmente, não diria que estou indo contrariado. A hora e a vez de Matagra. Afinal de contas, soube beber com sede de aprendiz o melhor que havia na taça que a vida me ofertou. Uma taça lavrada, rescendendo a conhaque.

Nadei nas águas mornas de Arembepe, conheci Raulzito quando ele ainda se juntava aos seus panteras, com Thildo Gama e outros, vi Caetano, Moraes Moreira, Pepeu no encontro de trios, enquanto o poeta apontava com a mão a Baía de Todos os Santos. Arpoei caramuru, tirei polvo da toca, garanti as moquecas da minha adolescência, fui recordista de natação, ungido por Oxalá.
Fui bom de porrada, fiz meu nome nas turmas de rua do Lago dos Aflitos, joguei futebol e, nos babas, ganhei o apelido de “Leonam” onde sou conhecido assim até hoje. Fui batizado nos puteiros da Ladeira da Montanha, conheci Mestre Pastinha e Mestre Bimba, vi meu “Bahêêêa” ganhar para o escrete do Santos e Waldemar Santana encher Hélio Gracie de porrada.
Conheci os mistérios dos becos e ladeiras da velha Salvador, fui amigo de Cid Teixeira, Capinam, Guido Guerra e Luis Orlando, encarei dois anos de internamento no Hospital das Clínicas, tive febres diárias, colecionei escaras coloridas, vibrantes e sangrentas, decepcionei laudos médicos, busquei o tempo que eu queria da minha vida.

Um dia, uma brisa morna me carregou para o colo da bela Aracaju, onde eu soube ser feliz, no tempo que me restava. Aqui, bebi os melhores conhaques da minha vida, amanheci nas libações madrugadoras com o amigo-irmão José Eduardo Sousa, soube ouvir o violão de Pantera, a melodia de Paulo Lobo, o blues de Soyan, as conversas de Mariano e Bel nas andanças do Imbuaça. Aqui, plantei amigos, colhi irmãos, como o grande parceiro Gilson Sousa. Aqui, ouvi a melodia do Cataluzes, comi o melhor pirão de caranguejo do Pastelão, me fartei dos mistérios culinários da cozinha de Camilo.

Nessa terra, amei mulheres que reverencio até hoje. Fiz poemas para algumas, embriaguei-me com outras. Como esquecer do sorriso de Arlinda, que ganhou o mundo e acabou na Sorbonne? Como esquecer do sorriso sacana de Ana Paula? E os finais de tarde no Mosqueiro? E o chiado da tainha na frigideira do Bar de Nem? E a amizade terna da turma do JORNAL DA CIDADE e da Aperipê TV.

Como esquecer da lealdade de meus irmãos a vida inteira? E de Christina Brandi, cunhada que se tornou irmã? E da cumplicidade do irmão Chico Neto, que trilhou a vida inteira os caminhos do bom jornalismo, ético e honesto?

Um dia, o velho barril de carvalho pinga sua última gota de conhaque. E o poeta se despede de tudo, sem tristezas nem vexames. Apenas sabendo que cumpriu seu papel com dignidade, com honestidade e com um brilho de crianças nos olhos.

Quem sabe, eu encontre o amarelo dos girassóis nesse novo caminho?

PS: Os amigos estão convidados para a última saideira no Bar do Camilo, assim que terminar o sepultamento. Já está pago.”

NOTA: Sinto-me também convidado, pois tenho certeza que o convite se estende aos amigos dos amigos ...

sábado, 16 de julho de 2011

Sou fã desse filho da puta ...

O filme Febre do Rato, de Cláudio Assis, foi o grande vencedor do Festival de Cinema de Paulínia deste ano. Ele levou oito prêmios, incluindo o de melhor filme de ficção do ano e melhor longa de ficção pelo júri da crítica.
O longa foi também premiado nas categorias melhor ator para Irandhyr Santos, melhor atriz para Nanda Costa, melhor fotografia, melhor montagem, melhor direção de arte, melhor trilha sonora.

O Palhaço, segundo trabalho de Selton Mello, conquistou quatro prêmios, incluindo o de direção em ficção, melhor roteiro e melhor ator coadjuvante para Moacir Franco.

O filme - Em conexão com a tradição dos poetas de rua pernambucanos, Febre do Rato narra os sabores e dissabores na vida de Zizo, que vive a recitar seus poemas aos amigos, às mulheres e no tabloide que edita.
Anarquia e sexo, é disso que são feitos o filme e a poesia de Zizo. Assis continua fazendo cinema visceral. Mas, desta vez, há mais lirismo e nenhuma cena de violência, o que sugere um olhar mais maduro do diretor.

Febre do Rato não se trata de um filme comercial evidentemente, mas a interpretação de Irandhir Santos é magistral. A trilha sonora, de Jorge du Peixe (da Nação Zumbi), tem a cadência certa. E a fotografia em preto e branco de Walter Carvalho é irretocável.

Em entrevista, Assis enaltece o espírito de grupo e diz que, sem os amigos, nunca poderia ter feito esse filme. Zizo também vive cercado de sua trupe e este é o combustível de sua poesia. Neste sentido, o filme é um bom retrato sobre os ativistas culturais da nação pernambucana.

(Folhapress)

O anarco cineasta

Homenagem a Zizo, um poeta do subúrbio do Recife, o terceiro longa-metragem de Cláudio Assis, Febre do Rato, será lançado durante o Festival de Paulínia (SP), que acontece entre 7 e 14 de julho.
O filme, a cujos trechos a revista CULT teve acesso em primeira mão, abre com o ator Irandhir Santos, na pele do poeta, declamando: “Logo ali por trás do mangue, descansa a insônia, a faca, o serrote, o trabalho, o sexo e o sangue”. Já de início se restabelece uma conexão com o movimento cultural do Recife dos anos 1990, de que Assis é tributário: o mangue beat. Mas não só de sua poesia.
Conhecido por não ter papas na língua, o diretor que apontou a família Barreto, Cacá Diegues e Hector Babenco como coronéis do cinema nacional, continua defendendo uma arte contestatória: “Como dizia Chico Science, ‘de que lado você samba, de que lado você vai sambar?’. De que lado está seu cinema? É um cinema para manter as coisas como estão ou para pensar, mudar? Na vida você tem de ter atitude”.
Leia abaixo a entrevista exclusiva concedida por Cláudio Assis à revista CULT.
CULT – À época do lançamento de Amarelo Manga (2003), premiado no Festival de Berlim e grande vencedor do Festival de Brasília, você se queixava de certo “coronelismo” no cinema brasileiro. As coisas mudaram?
Cláudio Assis – Não. O coronelismo ainda existe, e existe entre os jovens também. O cara antes era coronel porque detinha uma distribuidora, dinheiro para produzir etc. Hoje os jovens cineastas também são coronéis, pois ficam adquirindo esse sentimento, esse olhar, essa visão maniqueísta, ficando presos do mesmo jeito que os mais velhos.
No cinema brasileiro, é muito triste ver os mais jovens querendo repetir o que já existe, não há o cinema da reinvenção. Por mais que se diga que o cinema é uma arte nova, ele está em extinção, então é preciso um olhar novo, que não esteja preso a regras, estereótipos, mercado.
Já que o mercado é esse aí, que só quer o que já está posto, por que não tentamos uma nova linguagem ou um discurso que seja compatível com o que o público está sentindo?
O que eu pretendo, que é muito pouco, é que as pessoas tenham um olhar de estrangeiro. Busco em Febre do Rato fazer um cinema de atitude, de coragem, da proposição de ser o que você é, de não ter vergonha do que faz. Não sei se estou conseguindo, mas estou tentando. Quero que as pessoas pensem: “Se ele está fazendo, eu também posso fazer como quero”. Se eu conseguir isso, então realizei meu sonho.
Febre do Rato fecha uma trilogia, após Amarelo Manga e Baixio das Bestas (2007) e esgota o que você tem a dizer sobre o Recife e Pernambuco?
Chegou uma hora em que pensei que eu, Hilton Lacerda [roteiro], Walter Carvalho [fotografia] e Matheus Nachtergaele estávamos fazendo uma trilogia.
Mas acho que não, não foi projeto ou intenção. São olhares diferentes sobre a mesma coisa para ver se as pessoas entendem de um jeito ou de outro. Descobri que não era trilogia porque estou desenvolvendo um projeto com o [jornalista] Xico Sá, adaptação de um livro dele, que também está no mesmo lugar que os outros filmes.
Acho bom, à medida que você está amadurecendo, dar vários olhares, colocar várias camadas sobre o mesmo tema. Ao mesmo tempo, se ele não encerra uma trilogia, dá um arremate sobre o tema da loucura do ser humano, do amor, do desamor, de como se ama errado, se padece amando.
Você ressalta que sempre fala do amor em seus filmes. Nos anteriores, a narrativa é entremeada com um discurso social. Em Febre do Rato, o discurso é poético?
Sim, é o discurso de que por meio da poesia podemos falar de igualdade. Que não há diferença de sexo, cor, de nada. A gente tem uma luta, uma questão que é humana. E só um poeta pode falar disso. Por isso o filme é preto e branco, traz um poeta anarquista, que cria seu mundo como quer.
O ponto de partida é este: dar às 
pessoas a possibilidade de elas serem o 
que são. Serem simples, honestas.
Meu cinema é muito plugado na realidade social. Acho que o mundo é muito injusto com todo mundo. E, por mais que entrem questões como o amor e a anarquia do poeta, a gente tem um problema social que é muito grave e não dá para se ausentar. E o momento que eu tenho para estar presente nessa discussão é num filme.
Demoro cinco, seis anos para fazer um. Então tenho que dizer algo sobre o social. Esse filme tem diferença em relação aos outros porque o documental invade a ficção.
Falando disso, em uma das sequências finais do filme, Zizo invade o desfile de Sete de Setembro no Recife e é detido pela polícia. Durante as filmagens, a polícia tentou prender Irhandir Santos quando ele tirou a roupa…
Chegaram oito carros da polícia, mais nove motocicletas. Queriam prender o Irandhir porque a gente estaria fazendo atentado ao pudor. As ruas já estavam bloqueadas após acerto com a companhia de trânsito. Então estava tudo certo, mas alguém alcaguetou. Mandei fugirem com o ator e os negativos.
O cara mata, rouba, estupra criancinha e sai livre. A gente coloca um cara nu em um filme e isso é crime? Isso é falsa moral, prepotência, anacronismo. Qual o problema de tirar a roupa? O que é uma bilolinha, uma xoxotinha, uma bundinha? Em que uma coisa tão bonita agride? O cara não tava nem de pau duro. O personagem pedia que as pessoas se desnudassem, mas de um tipo de consciência, não tinha nada a ver com sexo. Não era uma provocação.
Seu discurso se confunde com o discurso de seus personagens?
Sim. Isso porque o Brasil tem o cinema que fala só da miséria, da violência. E tem o outro, que é esse cinema continuação da novela das 8, [do diretor] Daniel Filho e do resto. E existem também aqueles outros que ficam querendo ser mais ou menos, não põem a cara pra bater.
O mal do Brasil é que as pessoas querem ser cineastas. Isso dá um status que tem a ver com dinheiro, poder. Você é um ser especial, incomum. Tem de ter a responsabilidade de mostrar o que quer dizer.
Como dizia Chico Science, “de que lado você samba, de que lado você vai sambar?”. De que lado está seu cinema? É um cinema para manter as coisas como estão? Ou para pensar, mudar? E teu compromisso com a sociedade sobre questões como preconceito? Quem é você? Para que você é artista?
Como é o trabalho já quase familiar com uma equipe conhecida dos outros dois longas-metragens, como Hilton Lacerda, Matheus Nachtergaele, Walter Carvalho, Irhandir Santos etc.?
Há a fome e a vontade de comer. Isso é que leva essas pessoas a se juntar. Por isso digo que os filmes não são meus, mas de todos os envolvidos. Eu não conseguiria isso se não tivesse a fotografia de Walter Carvalho, a cara do Matheus, do Irhandir etc. Temos a oportunidade de dialogar de maneira democrática, na qual quem manda é o filme, não o diretor.
Amarelo Manga foi chamado de “o filme mais premiado e menos visto” à época de seu lançamento. Baixio das Bestas teve audiência ainda menor. Que público Febre do Rato pretende encontrar?
Acho que é um filme para um público maior. É mais aberto, por mais que seja em preto e branco. É poesia o tempo inteiro. Acho, sinceramente, que ele contempla o que já foi dito nos outros dois, mas fala de uma maneira mais romântica, sutil, muito leve.
Como você lida com o rótulo de personagem polêmico de plantão no cinema nacional?
Achei bom na época de Amarelo Manga porque a gente estava fazendo filme a partir do nada, com apenas dez cópias. Se for eu que tiver de botar a cara a tapa para divulgar o filme, não tem problema. O importante é o filme.
Continuo a mesma pessoa, não mudei de casa, de mulher, não comprei nada. Não estou preocupado em enricar. Minha preocupação é com meus filmes e o que faço com o dinheiro público. Tenho muito respeito, faço com arte e carinho.
Não é que eu goste de ser polêmico. É que as pessoas não assumem o que fazem ou pensam de verdade. Não têm respeito por si, pela obra, pelo que compreendem com o cinema. Quero provocar o diálogo, fazer com que as pessoas saiam do cinema e pensem: “Por que as coisas não mudam?”.
Estudei economia, fui do Partido Comunista Revolucionário, mas faço cinema porque quero contribuir de uma maneira poética. Mudar o pensamento das pessoas é mais importante do que chegar com armas. Isso não leva a nada. O cinema pode provocar a mudança nas pessoas de maneira mais elegante, construtiva, de modo que você tenha lazer, prazer. Mas não gosto do rótulo de ser polêmico.
E o nó da dependência das leis de incentivo, isso melhorou ou piorou? Como vê o Ministério da Cultura sob a direção de Ana de Hollanda e a discussão em torno do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad)?
Votei na Dilma, adoro ela, acho do caralho ter uma mulher na Presidência. Mas o mundo é muito discriminatório. Tem agora cota para tudo. No governo agora tudo é mulher. Para mim não importa se é mulher, homem ou gay. A questão é a competência. O mundo foi criado em torno do macho. Mas não é só porque a Dilma é mulher que vai botar todo mundo para ser mulher. O que interessa é que a gente cada vez mais amplie as conquistas sociais, culturais…
[Quanto ao Ecad,] eu olhei e pensei: “Que pobreza”. Venderam meu filme Amarelo Manga para vários lugares e eu não recebi nada. Venderam para lugar que eu nem sei. Tem tanta coisa para a gente avançar na área do cinema, do teatro, da cultura toda, e fica essa preocupação com o Ecad. Ei, ei, cuidem disso, botem advogado para cuidar, mas ampliem. A gente já andou tanto que voltar para isso é muito pouco, é perda de tempo, retrocesso.
Eduardo Simões
CULT

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Acho que preciso ir mais ao teatro ...

Esta semana fui convidado por uma amiga a assistir à peça “Cabaret dos Insensatos”, e fui. Fui, vi e gostei. Trata-se de uma adaptação de poemas e textos eróticos de Bertold Brecht e Jean Genet. Brecht é mais conhecido pelo seu ativismo político. Dele eu, particularmente, só conheço o célebre poema “O Analfabeto político”. Já de Jean Genet conheço apenas o filme “Querelle”, de Rainer Werner Fassbinder, que foi baseado numa novela de sua autoria. Some-se a isso o fato de que conta-se nos dedos das mãos o numero de peças de teatro que assisti em toda a minha vida e o resultado da equação só poderia ser um punhado de impressões oriundas de um leigo assumido porém atento e bem intencionado. Dito isso, vamos lá:

Fui numa sessão especial, uma espécie de ensaio aberto promovido para convidados, notadamente da imprensa. Cheguei no horário combinado mas tive que esperar cerca de uma hora pelo início do espetáculo – tudo bem, me distraí tranquilamente na sala de leituras da Casa Rua da Cultura. Nesta hora, se um cara fazendo o papel de um moleque de rua te abordar tentando vender pastilhas, não se espante: é teatro, lá todos são artistas.

A certa altura fomos convidados a sair do recinto e esperar na praça, pois a peça começava lá fora. Mais uma pequena espera, as luzes da casa se apagam, e finalmente sai de lá de dentro um dos atores num figurino um tanto quanto caricato e extravagante de mestre de cerimônias. Ele começa a recitar as falas introdutórias e é o tempo todo interrompido pelo tal “menino de rua”, apoleirado em cima de uma árvore. Depois da encenação de um conflito entre os dois, somos finalmente convidados a entrar no recinto – escuro, iluminado apenas por uma luz vermelha. É um cabaret, lembra? Nos dando as boas vindas, a silhueta insinuante de uma dançarina seminua da qual vemos apenas o vulto por trás de uma cortina.

Ao entrar não estranhe o fato de que parece haver menos gente do que você havia visto lá fora. E não, não estão sendo encenadas outras peças ao mesmo tempo nos outros recintos da casa: tudo isso faz parte da interessante dinâmica do espetáculo, sobre a qual não vou dar maiores detalhes para não estragar a surpresa. Digo-vos apenas: somos brindados pela visão de belas atrizes em figurinos pra lá de insinuantes e cenários minimalistas, desleixados até, eu diria, mas, por isso mesmo, charmosos. Um certo charme decadente em perfeita harmonia com os textos da peça, de autoria de notórios “outsiders”, sempre versando sobre estratégias de sedução e perversões às mais diversas. E o público, em determinados momentos, é convidado a interagir, o que resulta em situações hilárias e inesperadas. Ao final de tudo, com todos reunidos, publico e elenco, o mais engraçado dos sketches, que faz uma espécie de inventário sobre os mais variados tipos de punhetas – isso mesmo, punhetas. Sem pudores quanto ao linguajar “chulo”.

Taí, gostei. Me diverti. Acho que preciso ir mais ao teatro daqui pra frente ...

Por Adelvan

* * *

Quatro espetáculos em uma semana - é o que oferece a Casa Rua da cultura em mais uma edição do 'Projeto Temporada', um trabalho que busca consolidar o teatro enquanto opção e expressão cultural através de apresentações de espetáculos por companhias de teatro sergipanas. As apresentações ocorrerão durante todos os finais de semana, de sexta a domingo, dessa vez também com um espetáculo para o público infantil. Neste semestre o Projeto Temporada tem início no dia 15/7 e terá a duração de três meses.

As companhias teatrais sergipanas ficarão em cartaz com quatro espetáculos durante os meses de Julho, Agosto e Setembro com peças que trazem a temática da fantasia infantil até a irreverência das relações amorosas, passando por questões existenciais. A Cia de Teatro Strultífera Naves, O Grupo Caixa Cênica e Cia Uaaau darão o tom nesse projeto que visa consolidar o teatro como algo inerente ao cotidiano cultural da cidade.

Programação:

Das Sextas aos Domingos de Julho à Setembro.

Cabaré dos Insensatos: Cia Strutífera Naves
Resumo: Adaptação dos textos e poemas de Bertold Brecht e Jean Genet. O texto aborda a sexualidade de uma forma natural e desmistifica o conceito de ‘cabaré’. Direção Lindemberg Monteiro.
Horário: Todas ás Sextas e Sábados, a partir de 21h

Pela Janela: Grupo Caixa Cênica
Resumo: Livre adaptação da obra de Tennessee Williams – Fala comigo doce como a chuva - que tem como tema central a solidão. Direção Caixa Cênica e Co-direção de Maicyra Leão.
Horário: Todos os Sábados, a partir das 20h

Uma Viagem ao Fantástico Mundo do Saber: Cia Uaaau!
Resumo: Uma viagem ao fantástico mundo do saber conta a história de Filo um garoto que acorda num mundo mágico repleto de aventuras onde através de personagens exótico e sábias lições descobre que usando sua imaginação estudar pode ser muito mais divertido.
Horário: Todos os Domingos em duas sessões, às 16h e 18h

Entre quatro paredes: Cia Strutifera Naves
Resumo: Peça baseada no texto do filósofo existencialista francês Jean Paul Sartre, as relações humanas são amplamente discutidas a partir do pensamento ‘o inferno são os outros’ e dar um olhar diferenciado entre a sociedade e o próprio inferno.
Horário: Todos os Sábados, a partir das 19h

Fonte: Infonet

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Vampyr


Vi pela primeira vez ontem e recomendo muito “Vampyr”, clássico filme de horror dirigido pelo dinamarquês Carl T. Dreyer (“A paixão de Joana Darc") em 1932. É uma adaptação livre do romance gótico “Carmilla”, de Sheridan Le Fanu – que teria inspirado Bran Stocker a criar seu mundialmente aclamado “Dracula”. Com uma narrativa hermética e cheia de metáforas visuais, sustenta-se principalmente em suas imagens belíssimas, pontuadas por uma excelente trilha sonora que ajuda a criar um clima sombrio fortemente influenciado pelo expressionismo alemão, especialmente no que tange ao primoroso uso do contraste entre as tonalidades de luz e sombras. Destaque para a filmagem dos rostos, extremamente expressivos, em close – uma característica do diretor – e para as cenas que mostram o mundo visto pela perspectiva de um cadáver.

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Adelvan

recordar é viver ...

A história é velha: morreu, virou santo. Não poderia ser diferente com Itamar Franco, ex-vice presidente de Fernando Collor - atente bem: O CARA DIVIDIU CHAPA COM FERNANDO COLLOR DE MELLO ! Como apagar uma mancha destas de uma biografia? Dando "uma chance" a outro Fernando, o Henrique Cardoso, talvez. O resultado foi tão desastroso que o próprio topetudo pouco tempo depois tornou-se inimigo declarado do governo entreguista tucano, com direito a simulações ridículas de uma guerra de fato, quando era governador de Minas Gerais. Ajudou a eleger Lula, mas não demorou a virar inimigo do PT e novamente aliado dos tucanos. Assim fica difícil entender ...

Abaixo, uma singela recordação de um dos fatos mais pitorescos da vida de nosso recém falecido "grande estadista", numa tirinha de Leonarde e Arnaldo Branco publicado originalmente no site da revista VICE

" 1984 ", de George Orwell

ERA UM DIA FRIO E ENSOLARADO DE ABRIL, E OS RELÓGIOS batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.

O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fôra pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por tôda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda.

Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espêlho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miuda, frágil, a magreza do corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara.

Lá fóra, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos rodamoinhos de vento levantavam em pequenas aspirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver côr em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em tôda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz, rasgado num canto, trapejava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC. Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham importância. Só importava a Polícia do Pensamento.

Por trás de 'Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultâneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa dêste ou daquele individuo. Era concebivel, mesmo, que observasse todo mundo áo mesmo tempo. A realidade é que podía ligar determinada linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver - e vivia-se por hábito transformado em instinto na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro.

Winston continuou de costas para a teletela. Era mais seguro, conquanto até as costas pudessem falar. A um quilômetro dali o Ministério da Verdade, onde trabalhava, alteava-se, alvo e enorme, sôbre a paisagem fuliginosa. Era isto, pensou êle com uma vaga repugnância - isso era Londres, cidade principal da Pista N.O 1, por sua vez a terceira entre as mais populosas provincias da Oceania. Tentou encontrar na memória uma recordação infantil que lhe dissesse se Londres sempre tivera aquele aspecto. Haviam existido sempre aquelas apodrecidas casas do século dezenove, os flancos reforçados com espeques de madeira, janelas com remendos de cartolina e os telhados com chapa de ferro corrugado, e os muros doidos dos jardins, descaindo em tôdas as direções? E as crateras de bombas onde o pó de rebôco revoluteava no ar e o mato crescia à matroca sôbre os montes de escombros; e os lugares onde as bombas haviam aberto clareiras maiores e tinham nascido sórdidas colónias de choças de madeira que mais pareciam galinheiros? Mas era inútil, não conseguia se lembrar: nada sobrava de sua infância, excepto uma série de quadros fortemente iluminados, que se sucediam sem pano de fundo e eram quase ininteligíveis.

O Ministério da Verdade - ou Miniver, em Novilíngua - era completamente diferente de qualquer outro objeto visível. Era uma enorme pirâmide de alvíssimo cimento branco, erguendo-se, terraço sôbre terraço, trezentos metros sôbre o solo. De onde estava Winston conseguia ler, em letras elegantes colocadas na fachada, os três lemas do Partido:

GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORANCIA É FORÇA.

Constava que o Ministério da Verdade continha três mil aposentos sôbre o nível do solo, e correspondentes ramificações no sub-solo. Espalhados por Londres havia outros três edifícios de aspecto e tamanho semelhantes. Dominavam de tal maneira a arquitetura circunjacente que do telhado da Mansão Vitória era possível avistar os quatro ao mesmo tempo. Eram as sedes dos quatro Ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo: o Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, diversões, instrução e belas artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, que acudia às atividades econômicas. Seus nomes, em Novilíngua: Miniver, Minipaz, Miniamo e Minifarto.

O Ministério do Amor era realmente atemorizante. Não tinha janela alguma. Winston nunca estivera lá, nem a menos de um quilômetro daquele edifício. Era um prédio impossível de entrar, excepto em função oficial, e assim mesmo atravessando um labirinto de rolos de arame farpado, portas de aço e ninhos de metralhadoras. Até as ruas que conduziam às suas barreiras externas eram percorridas por guardas de cara de gorila e fardas negras, armados de porretes articulados.

Winston voltou-se abruptamente. Afivelara no rosto a expressão de tranquilo otimismo que era aconselhável usar quando de frente para a teletela. Atravessou o cômodo e entrou na cozinha minúscula. Saindo do Ministério àquela hora, sacrificara o almoço na cantina, e sabia que não havia na casa mais alimento que uma côdea de pão escuro, que seria a sua refeição matinal, no dia seguinte. Tirou da prateleira uma garrafa de líquido incolor com um rótulo branco em que se lia GIN VITóRIA. Tinha um cheiro enjoado, oleoso, como de vinho de arroz chinês. Winston serviu-se de quase uma xícara de gin, contraiu-se para o choque e enguliu-a de vez, como uma dose de remédio.

Instantâneamente, ficou com o rosto rubro, e os olhos começaram a lacrimejar. A bebida sabia a ácido nítrico, e ao bebê-la tinha-se a impressão exata de ter levado na nuca uma pancada com um tubo de borracha. No momento seguinte, porém, a queimação na barriga amainou e o mundo lhe pareceu mais ameno. Tirou um cigarro da carteira de CIGARROS VITóRIA e imprudentemente segurou-o na vertical, com que todo o fumo caiu ao chão. Puxou outro cigarro, com mais cuidado. Voltou à sala de estar e sentou-se a uma pequena mesa à esquerda da teletela. Da gaveta da mesa tirou uma caneta, um tinteiro, e um livro em branco, de lombo vermelho e capa de cartolina mármore.

Por um motivo qualquer, a teletela da sala fôra colocada em posição fóra do comum. Em vez de ser colocada, como era normal, na parede do fundo, donde poderia dominar todo o aposento, fôra posta na parede mais longa, diante da janela. A um dos seus lados ficava a pequena reentrância onde Winston estava agora sentado, e que, na construção do edifício, fôra provàvelmente destinada a uma estante de livros. Sentando-se nessa alcova, e mantendo-se junto à parede, Winston conseguia ficar fora do alcance da teletela, pelo menos no que respeitava à vista. Naturalmente, podia ser ouvido mas, contanto que permanecesse naquela posição, não podia ser visto. Em parte, fôra a extraordinária topografia do cômodo que lhe sugerira o que agora se dispunha a fazer, Mas fôra também sugerido pelo caderno que acabara de tirar da gaveta. Era um livro lindo. O papel macio, côr de creme, ligeiramente amarelado pelo tempo, era de um tipo que não se fabricava havia pelo menos quarenta anos. Era de ver, entretanto, que devia ser muito mais antigo. Vira-o na vitrina de um triste bricabraque num bairro pobre da cidade (não se lembrava direito do bairro) e fôra acometido imediatamente do invencível desêjo de possui-lo. Os membros do Partido não deviam entrar em lojas comuns ("transacionar no mercado livre," dizia-se), mas o regulamento não era estritamente obedecido, porque havia várias coisas, como cordões de sapatos e giletes, impossíveis de conseguir de outra forma. Relanceara o olhar pela rua e depois entrara, comprando o caderno por dois dólares e cinquenta. Na ocasião, não tinha consciência de querê-lo para nenhum propósito definido. Levara-o para casa, às escondidas, na sua pasta. Mesmo sendo em branco, o papel era propriedade comprometedora.

O que agora se dispunha a fazer era abrir um diário. Não era um ato ilegal (nada mais era ilegal, pois não havia mais leis), porém, se descoberto, havia razoável certeza de que seria punido por pena de morte, ou no minimo vinte e cinco anos num campo de trabalhos forçados. Winston meteu a pena na caneta e chupou-a para tirar a graxa. A pena era um instrumento arcaico, raramente usada, mesmo em assinaturas, e êle conseguira uma, furtivamente, com alguma dificuldade, apenas por sentir que o belo papel creme merecia uma pena de verdade em vez de ser riscado por um lapis-tinta. Na verdade, não estava habituado a escrever a mão. Exceto recados curtíssimos, o normal era ditar tudo ao falascreve, o que naturalmente era impossível no caso. Molhou a pena na tinta e hesitou por um segundo. Um trernor lhe agitara as tripas. Marcar o papel era um ato decisivo. Com letra miuda e desajeitada escreveu:

4 de abril de 1984