segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Angeli, uma entrevista
Angeli não é de oposição nem de situação. É do contra. Desenha há 37 anos contra a politicagem, contra o politicamente correto – e a favor do grande orgasmo universal
09.08.2010 | Texto por Fernando Luna Fotos Nelson Mello
Fonte: Trip
Talvez você não saiba. Pode ter se distraído e nem percebeu ou, sei lá, estava mais preocupado com qualquer outra coisa. Mas é certo: você foi zoado pelo Angeli. Todo mundo foi. Empresário? Confere. Motorista de táxi? Confere. Webmaster? Confere. Estilista, designer, publicitário? Confere. Motoboy? Também. Político? Ô.
Arnaldo Angeli Filho, 53 anos, coloca sua prancheta diariamente a serviço da avacalhação ampla, geral e irrestrita. Homem ou mulher, liberal ou conservador, descolado ou careta, não passa nada. Todos ridículos cidadãos da República dos Bananas, um país imaginário, incrivelmente semelhante a uma certa República Federativa do Brasil, formado por incríveis 28 mil charges políticas e tirinhas de comportamento – boa parte reproduzida na Folha de S. Paulo, onde Angeli publica há 37 anos.
No jornal, é o único nome que frequenta regularmente tanto o caderno de política quanto o de cultura. Suas charges, que lhe valeram a reputação de mais contundente chargista político do país, saem quatro vezes por semana no espaço nobre da página 2. Suas tiras, crônicas ilustradas de costumes e maus costumes, ocupam diariamente o topo da seção de quadrinhos. Para Angeli, não tem diferença: “Olho da mesma forma para o comportamento e para a política. Nas charges, penso como crítico de comportamento”. Há tempos é assim.
Ele começou cedo. Emplacou seu primeiro desenho aos 14, na extinta revista Senhor. É autodidata. Cresceu no bairro da Casa Verde, na modesta zona norte de São Paulo. Pai funileiro, mãe costureira, os dois filhos de imigrantes italianos. Anarquistas, graças a Deus? Ao contrário, uma família conservadora, “daquelas que só pensam em cuidar dos filhos e em trabalho, trabalho, trabalho”.
Ele aprendeu a lição (pelo menos essa, já que foi expulso da escola na quinta série, depois de repetir três vezes, e não voltou mais): “Me sinto um funileiro na hora de desenhar, sou um proletário”. Um proletário, diga-se, anterior às conquistas trabalhistas, como a jornada de oito horas. Com a insônia que o acompanha desde a adolescência, dorme apenas quatro horas por dia, e passa praticamente as outras 20 entre pincéis, nanquim e, no momento de colorir, computador.
“Todo mundo na família do meu pai tem mão pra desenho”, conta. “Mas só quem se profissionalizou fomos eu e um primo, que faz painéis pro McDonald’s. Como nossa assinatura é igual, a turma fala ‘Angeli se vendeu!’.” A acusação é recorrente, só o que muda é o comprador. Ora Angeli se vende para a direita, ora para a esquerda: depende de quem está apontando o dedo, de quem está no poder. “Nunca quis servir ninguém”, devolve. “É possível você ter um lado e ser crítico com esse lado também.”
Quando a ditadura acabou e Angeli já não via tanta graça em debochar da política, desviou seu foco do Planalto Central para as ruas de São Paulo. Criou com o amigo de infância Toninho Mendes a revista bimestral Chiclete com banana – na época, apenas uma canção do repertório de Jackson do Pandeiro, que tropicalistas transformaram em símbolo de miscigenação de ideias, nada a ver com grupo baiano de axé. Em páginas de papel tosco, personagens como Rê Bordosa, Bob Cuspe, Wood & Stock, Walter Ego e Os Skrotinhos protagonizaram, entre 1985 e 1990, a insana história da vida privada brasileira.
Angeli seguia um roteiro parecido. Mesmo em meio à loucurinha de sexo, drogas e rock’n’roll, deu um jeito de se casar três vezes. A primeira vez, com uma ex-colega de escola, durou quatro anos. A segunda rendeu 18 anos de união e dois filhos – Pedro, 29, faz parte do coletivo audiovisual Embolex, e Sofia, 25, dá aulas de educação física para crianças. O terceiro, com Carol, está completando 13 anos. Carolina de Carvalho, 33, é formada em arquitetura, trabalha com design gráfico e, como ela mesma diz, “cuida do rapaz”.
No apartamento de dois quartos onde mora e trabalha, no bairro paulistano de Higienópolis, Angeli conversou com a Trip entre cafés, cigarros e, como ninguém tem mais 20 anos, pães de queijo. Pendurado na sala, um pôster reproduz uma tira da série “Angeli em crise”. Lá está o avatar do cartunista, olhando a cidade pela janela. No primeiro quadrinho, ele se gaba: “Carros, edifícios, fumaça... Esta cidade eu conheço muito bem”. No seguinte, a cidade retruca: “Babacão, canalha, bicha, mau-caráter, panaca, tarado!”. E o terceiro conclui: “... e ela a mim, é claro”. Angeli zoa até Angeli.
Seu trabalho mudou a política de alguma maneira?
A política é um pouco mais poderosa, cara. É difícil a visão de um artista, de um crítico ou de um sociólogo mudar isso aí.
E o humor, em geral, muda a política?
O humor muda as pessoas. A política, tenho dúvidas.
Política não é feita por pessoas?
Você chama aquilo de pessoas?!
Você anula o voto?
Já anulei, mas não é uma regra.
Como vai ser nesta eleição?
A seleção?!
A eleição.
[Ri] Realmente não entendo nada de futebol... Mas você perguntou o quê?
Em quem você vai votar na próxima eleição.
Ah, deixa só dizer uma coisa: sou lesado. Minha memória recente não existe. Tem horas em que fico pensando “do que estava falando?!”. Mas você perguntou da eleição...
Em quem vai votar para presidente?
Não sei ainda... O cenário é bom, não tem Maluf no meio, nenhum Sarney. Se bem que o Sarney sempre está em algum lugar...
O que Sarney e Maluf representam?
Sarney ganhou de bandeja o poder, carrega aquela merda toda da ditadura. O Maluf... sou paulistano, qualquer paulistano que pensa tem aversão a ele. É o primeiro dos mauricinhos, perfumado, com corrente de ouro. O movimento da boca dele... [faz uma careta]. Tenho problemas com a anatomia do Maluf.
Já encontrou com eles?
Quando fui homenageado com a ordem do mérito cultural, lá em Brasília, o [senador Eduardo] Suplicy me levou pra conhecer o Senado. De repente, entra na sala do Sarney. Fiquei incomodado. Aí ele levanta e fala, segurando minha mão: “Você é o melhor”. Pra mim foi uma derrota, saí de lá cabisbaixo. Sempre fui cruel nas charges com Sarney, mexi com a família toda, e não funcionou...
E o Maluf?
Também encontrei uma vez, no aniversário de 80 anos da Folha. Fui pego de surpresa, o máximo que consegui foi falar “já fiz muito charge do senhor”. E ele [imitando a voz do Maluf]: “Vai fazeeeendo, vai fazeeeendo!” [risos]. O perfume dele ficou na minha mão... Ele tem alguma distorção mental.
O que você acha da Dilma?
Uma candidata feita às pressas, tirada do nada. Não quer dizer que seja a pior candidata. Com o mensalão, o PT ficou sem quadros, né? A Dilma é uma incógnita, não dá pra saber o que ela é.
Serra?
Serra é o Serra de sempre, centralizador, egocêntrico. Capitaliza até projeto dos outros: “Eu criei tal coisa...”. Depois vem um cara que fala que não, e o Serra diz “mas fui eu que tirei do papel”. Aquele papo...
E a Marina?
Gosto do papo dela. Me incomoda um pouco essa coisa religiosa, mas até agora não vi ela misturar as coisas, como vários políticos fazem. Acho interessante o pensamento dela sobre o meio ambiente.
O pessoal te chama para esses encontros de candidatos com artistas?
Chama. Não vou. Não me interessa conhecer esses caras. Se o cara é meio legal, você acaba gostando dele. Não quero gostar...
Você é do contra?
[Ri] Hum, acho que sou, sim.
Existe humor a favor?
A publicidade faz, eu não consigo. Quando começou o PT, muitos cartunistas começaram a fazer humor a favor. O próprio Henfil [1944-1988] fez. Isso me incomoda. A função do cartunista é alfinetar, levantar discussão.
Está mais difícil ser politicamente incorreto?
É, as pessoas estão cercando os incorretos... Não desenhe isso, não desenhe aquilo. Algumas tiras causam problemas. Fiz uma, da série “Lovestórias”, em que uma mulher falava: “Você não me toca há muito tempo”. Aí o cara levantava, cobria a mulher de porrada e voltava: “Pronto, já toquei”. Recebi várias cartas dizendo que eu tava propagando a violência contra a mulher... Não percebem que o ridículo da história é o marido.
Os Skrotinhos são os personagens mais politicamente incorretos...
Meu papo sempre foi mais com delegacia de costumes do que com delegacia de política. Nas vezes que fui preso, foi por maconha.
Quantas vezes foi preso?
Quatro, todas parecidas, por causa de baganinha no bolso... Na primeira vez, tava com dois amigos no carro, chapados. Um deles gritando pela janela. A polícia civil cercou a gente no Pacaembu, perguntou se tava com alguma coisa. Disse que não, mas encontraram. Aí tiraram minha roupa, bateram, me arrastaram pelo cabelo. Eu tinha cabelo comprido.
Você foi hippie?
Peguei o fim da era hippie. Tive brinco, chapéu de couro, bordava coisas na calça, usava blusão igual o do Neil Young, com franjas...
Mas depois virou punk...
A gente sempre ia na porta dos colégios ver as mulherzinhas. O namorado de uma menina veio tirar satisfação de alguma coisa, e a gente já foi cercando o cara. Ele ainda falou “vocês não são de paz e amor?”. Paz e amor o cacete, quebramos o cara. Foi aí que deixei de ser hippie [risos]. Não existia punk nessa época. Depois, li um livro do [escritor Antônio] Bivar...
O que é punk.
Esse. Antes, eu tava muito reticente com punk. Achava que era modinha importada, não tava entendendo direito. Quando li o livrinho, vi que era a minha turma.
Deve ser a única pessoa que virou punk por razões intelectuais.
[Risos] Quando fiz o Bob Cuspe, era pra gozar os punks. Comprei o livro do Bivar pra me embasar, aí comecei a achar do caralho. Falei: “Sou da Casa Verde [bairro classe média baixa da zona norte de São Paulo], do lado do rio Tietê, que é o cu da cidade, saindo um monte de merda... isso é punk”. Tive um período ali em que me perdi um pouquinho. Tinha 18 anos, andei com bandidagem.
Como foi?
Só queria fumar. Como não tinha dinheiro, ficava onde podia surgir alguma coisa. Uma vez, participei de um assalto a uma farmácia sem saber. Tava no carro cheio de caras e falaram: “Fica aí, a gente vai ali...”. De repente, vejo os caras assaltando, sem tiros, mas com a violência necessária para assaltar. Quando vi aquilo, pensei “puta, onde me meti”...
Todos seus personagens são meio errados.
Às vezes me pergunto por que essa fascinação pelo outsider, pelo cara que não dá certo, que anda torto... É tão natural pra mim. Fui caindo nessas coisas. Se vou criar um personagem, logo vou pro cara mais roto, mais esfolado. Pô, morava ao lado de um bar do tráfico. Mas o tempo todo sabia que aquela não era a minha. Quando apareceu a possibilidade de trabalhar na Folha, saí dessa.
Como é trabalhar há 37 anos no mesmo lugar?
É gozado, porque todo mundo sai do jornal, vai parando... Nunca quis sair da Folha e a Folha nunca quis que eu saísse de lá. Não sou funcionário, tenho um contrato e mando nota. Isso inclui tira todo dia e charge quatro vezes por semana. Paga minhas contas.
Quantos desenhos já fez?
Fiz uma conta por cima: uns 28 mil. É que, porra, são 37 anos trabalhando diariamente.
A revista Chiclete com banana chegou a vender 115 mil exemplares. Ganhou dinheiro?
Ganhei, deu dinheiro. Deu, mas já foi...
Em quê?
Mulher, drogas... [risos]. Gastei tudo, cara. Dei um jeito na vida de familiares, ajudei filhos. E separação sempre acaba levando parte do dinheiro pra longe. Mas não lamento, não.
Conseguiu formar um patrimônio?
Nenhum. Este apartamento é alugado. Comecei a me preocupar com isso recentemente, quando você tá ganhando dinheiro, parece que nunca vai acabar. Demorei muito pra ter consciência disso. Comprei um apartamento em Higienópolis [bairro classe média alta na zona central de São Paulo], e tô reformando. Não quero ficar velho e não ter nada. Conheci pessoas que se foderam, tipo o [escritor] João Antônio, o [poeta] Roberto Piva... O que vale ser um cara que fez o que queria, se depois não tem uma cadeira de balanço pra sentar?
Hoje você ganha bem?
Ah, razoavelmente. Acho que poderia ganhar mais... O que não posso é trabalhar mais. Trabalho no limite, faço muita coisa. Durmo pouco, umas quatro horas por noite.
Sempre teve insônia?
Desde moleque. Pra mim funciona muito o silêncio da noite, traz a possibilidade de criar. Nunca quis tomar remédio. Se dá um soninho [de dia], durmo 10, 15 min... Funciona.
A que horas você vai dormir?
Deito às quatro da manhã e às 8h30 já sento na prancheta pra fazer tira. Depois sai aquela bosta... [risos]. Entrego pro jornal antes do meio-dia. A partir de uma da tarde, fico mexendo na charge, só vou terminar às oito da noite, quebrado com o problema na coluna que todo desenhista tem. Tenho artrose, o osso gasta pela forma de ficar sentado. Vou comprar uma cadeira especial. Devia fazer fisioterapia ou exercício, mas... Cuido bem do meu desenho, não da saúde...
Quanto você fuma?
Já fumei quatro maços por dia, hoje são dois e meio. Tô chegando num ponto em que o prazer tá indo embora. Tá começando a bater preocupação, médico falando... Não consigo parar ou diminuir. Comecei com 9 anos, pegava escondido as bitucas do Continental sem filtro que meu pai fumava.
E quando começou a se interessar por política?
Bem moleque, ali por 64, sabia que tava acontecendo uma coisa estranha no país. Em casa ninguém ligava pra política, era só trabalho. Mas lembro do meu pai falando pro meu tio ter cuidado com um gorro vermelho, que “os caras estão pegando”... [Pausa] Por que a gente tá falando disso?!
Você tava contando como começou a se interessar por política.
É, tinha um amigo que comprava O Pasquim, aí comecei a perceber melhor as coisas. Um vai trazendo outro, e forma um grupinho que começa a falar de coisas que antes você ouvia, mas não entendia o porquê. O Pasquim me influenciou muito.
O que é política para você?
Não entendo nada de política. Minha posição é mais anárquica, vejo política como algo viciado, que acaba comendo seu próprio rabo.
Como acompanha a política?
Fico atento ao noticiário. Vejo os jornais da TV, menos os da Record, por causa do negócio dos bispos. É tendenciosa, preconceituosa. Acompanho o site do Millôr, leio [o colunista da Folha] Fernando Rodrigues. Lia jornais pela manhã, até ver que tava sendo influenciado pela opinião deles. Agora leio à noite, depois que faço a charge. Vejo a Folha, o Globo. Estadão não, nunca tive simpatia.
É diferente fazer charge política ou quadrinhos de comportamento?
Para mim é tudo a mesma coisa. Olho da mesma forma tanto para o comportamento quanto para a política. Mesmo nas charges, penso como um crítico de comportamento. Todo político acaba tendo o mesmo...
Está mais ligado no comportamento político do que nos políticos em si.
Sim. Tem cara que faz charge do vice-vereador da subprefeitura. Aquele sujeito, que é um bosta, vira personagem. Prefiro não dar cara, eliminar o rosto. Trato esse baixo clero como um monte de carne, uma coisa só. O perigo do chargista é transformar certas figuras da política em bonequinhos engraçados.
Suas charges têm alguns temas recorrentes, como os políticos em miniatura, as pessoas meio homem meio dinossauro, a invasão de jacarés...
Tem também a coisa das pessoas retorcidas e das pessoas grudadas umas às outras. Uma hora descubro uma chave que possibilita piadas. Acaba virando uma espécie de bordão, um bordão gráfico. Uma hora percebo que preciso dar uma parada com o bordão...
Ou vira Zorra total.
Exatamente. O bordão surge quase sem querer, não tem uma explicação, vou desenhando. Não tenho método. Na verdade, isso tem muito a ver com a minha história pessoal. Fui o pior aluno possível, passava o dia olhando pro teto. Fui mandado embora das escolas.
Quanto você estudou?
Tive uma formação das mais precárias. Repeti a quinta série três vezes seguidas e fui expulso. Já tava estranho, porque era um monte de garotinhos e eu já com umas penugens, um bigodinho, a voz mudando...
Sente falta de estudo?
Ah, tem horas que sinto. Poderia ser um cartunista melhor. Luto com a gramática até hoje. Na época que comecei a desenhar, ficava em pânico porque não sabia escrever. Sabia deixar um bilhete, deixar um recado. Vi que precisava ter mais atenção a isso.
Texto é importante no seu trabalho.
Muito, meus personagens não se movimentam, só param e falam. Sempre tive clareza de como construir texto, o que é o começo, o meio e o fim. Consigo levar o leitor para onde quero que ele vá. Meu problema são as regras... Acho que tenho uma leve dislexia, até hoje troco o F e o V, o Q e o G.
Fala inglês?
Tive aula de inglês com uma punk americana, casada com um amigo. Ela tinha a linguagem da rua. Só que, quando ela chegava, a primeira coisa que eu fazia era um baseado... Fiz dois anos, mas esqueci tudo. As coisas que me interessam dou um jeito de entender. Tenho no computador um arquivo de letras traduzidas do Bob Dylan, um cara que adoro.
Já se sentiu intimidado por não ter uma formação melhor?
Nunca me senti completamente intimidado, porque tudo que não sabia escrever, sabia falar. Entrava bem em situações de contestar pessoas.
Alguma acabou em briga?
Falavam que meu trabalho servia à direita, por eu não tomar partido [da esquerda]. Nunca quis servir ninguém. Ainda trabalhava na redação da Folha, quando perdi a paciência e fui pra cima de um cartunista que era o radicalzinho em pessoa. Foi vidro de guache estourado na parede, tinta nanquim no chão... A turma do deixa-disso separou, inclusive o Boris Casoy [ex-diretor de redação do jornal].
Na época, era obrigatório escolher um lado.
Mas eu pensava que era possível você ter um lado e ser crítico com esse lado também. Disso saiu meu personagem Meiaoito, que fiz pensando nos bêbados da noite que se sentiam Che Guevaras de plantão...
Olhando as charges do período FHC, você batia forte. Na era Lula, também. Você é a favor de alguma coisa?
Sou a favor do grande orgasmo universal [risos].
E, se fosse você o presidente, qual seria sua primeira medida?
Chorava... Não queria essa função.
O que faria sobre o aborto?
Sou a favor de legalizar. Faz parte do direito de cada um sobre seu próprio corpo, e corpo inclui também sua mente, o que você pensa. Estão limitando esse direito cada vez mais. Ultimamente as coisas estão tão limpinhas... As pessoas estão tentando limpar tanto o mundo, que daqui a pouco a gente vai ficar pálido.
Sexo é uma coisa suja é o título de um livro seu. Você se sujou bastante?
Me sujei bastante, sou bastante sexual. Aproveitei muito, às vezes com critério, às vezes sem. Uma época o Chiclete com Banana me proporcionou uma coisa próxima de pop star. Aí era foda, não precisava nem me mexer.
Foi bom pra você?
Foi, matou a vontade.
Foi bom pros outros?
Já ouvi crítica pra caramba... Era meio compulsivo. Quando se é assim, a qualidade vai pras picas... ou pra qualquer outro lugar.
Fez tudo que queria fazer?
Ah, tem um cachorrinho que não comi [risos].
Ménage?
Fiz.
Suruba?
Fiz.
Homem?
De jeito nenhum! Não tenho atração. Já tive que ser elegante pra escapar, porque neguinho não perdoava... Teve época em que ter amigo gay era meio estranho pra mim, hoje é bastante normal.
Você está no terceiro casamento, todos longos. Seus relacionamentos eram abertos?
Não, era cafajestagem mesmo. Ao contrário de hoje. Respeito mais a relação com a Carol do que respeitei as outras. Entendi o valor de viver uma coisa plena, um amor cuidado.
Voltando à sua presidência, e o casamento gay?
Sou a favor, tenho amigos gays, são pessoas que merecem casar, adotar filhos... Não quero mais ser dirigido por um bando de velhas corocas de direita.
E quanto à taxação de grandes riquezas...
Tenho problema com grandes riquezas, tem que taxar sim. Tem gente que construiu tudo em cima de um objetivo muito vazio, que é o enriquecimento próprio. Tudo que é muito pode ser dividido. Sou um proletário, né?
Legalização das drogas?
Fiz até charge sobre isso, quando uns traficantes queimaram uns ônibus lá no Rio. Era uma cena de anarquia, ônibus pegando fogo e tal... Aí um cara falava: “Como você pode ser a favor da legalização? Está querendo que a gente viva numa anarquia?”... A gente já vive na anarquia, só que é anarquia de direita. Traficantes são de direita, querem que as coisas continuem assim para sempre, é o negócio.
Quando experimentou maconha?
Tinha uns 12 anos. Um primo tinha uma baganinha... Lembro que experimentei e ficava olhando no espelho pra ver se minha cara mudava ou entortava... Não entortou. Acho que é por isso que fumo diariamente até hoje...
Você usou muita cocaína.
Consumi todo dia por uns dez anos, tenho tendência a viciar nas coisas. Parei há muito tempo, mas de vez em quando parece que ainda sinto o cheiro...
Teve alguma overdose?
Já achei que tava tendo um ataque cardíaco. Morei dois anos com um cara que sempre tinha uma pacoteira de pó. Ele ia viajar e eu assaltava a gaveta dele. Uma vez, fui lá e mandei uma fileira enorme. Gelou meu corpo inteiro, garganta, peito, tudo. Falei, fodeu! Achei que era um ataque mesmo. Fiquei ali parado um tempão, passando mal. Era xilocaína, o cara ia misturar. Quando passou, tomei um banho e fui na verdadeira.
Como conseguiu parar?
Tava há umas três noites virado, uma caveira ambulante. Meu filho, com 4 anos, acorda todo feliz: “Vamos na pracinha?”. Fui e passei muito mal, queda de pressão, suor... Meu filho me puxando e eu sem energia nenhuma. Achei degradante ver ele brincando sozinho e o pai assim mal. Decidi que nunca mais usaria. Consegui parar sem a dificuldade que todo mundo dizia que seria. Pra me defender, desenvolvi um discurso.
Qual?
Que cocaína é de direita e maconha é de esquerda. Maconha é socializante, todo mundo fuma no mesmo baseado e dá risada depois. Cocaína, não. É de quem tem, e você se submete a esse poder pra cheirar uma fileirinha no cantinho do mármore do banheiro.
Heroína?
Experimentei uma vez, esfregando na gengiva, não bateu... Tenho problema com agulha... Existia um negócio chamado Pervitin, uma ampolinha que toma nos canos, lá na Casa Verde todo mundo tomava. Como tenho medo de injeção, tomei pouquíssimo, nunca foi o meu barato. Já estava meio contra essa ideia de drogas desse tipo, que encampam você todo e você não consegue reagir.
Tipo ácido, ayahuasca?
Devo ter tomado uns 15 ácidos na vida. Tive viagens maravilhosas, nenhuma bad trip. Mas tenho essa coisa de virginiano, parece que nada me pega por completo, não me deixo levar. Tomei Daime uma vez, porque o Glauco era ligado a isso. Não senti absolutamente nada. Uma vez, tava com ele e mais umas pessoas, à noite numa praia. Todo mundo tinha tomado. O Glauco falava: “Olha isso...”. E eu: “Glauco, isso já tá aí faz tempo, essa Lua é bonita com ou sem essa porra!” [risos]. Ele ficava puto.
Deve ter sido difícil perder um amigo tão próximo.
Tem coisas que só o Glauco sabe que vivi [o cartunista Glauco e seu filho Raoni foram assassinados em março deste ano]. A gente correu o Brasil juntos, lançando revistas, entrando em cada furada... Um amontoado de bebedeiras, palhaçadas, sexo malfeito e drogas. Ele era praticamente padrinho dos meus filhos, vi nascer os filhos dele, participei de tudo isso. Criou um buraco na minha história.
Qual foi a última vez que você encontrou o Glauco?
No começo de 2009, numa reuniãozinha que a gente fez pra escrever uns roteiros para uma animação de Los 3 Amigos [série de quadrinhos desenhada a seis mãos por Angel Villa, Glauquito e Laerton].
Por causa do Los 3 Amigos, parece que vocês estavam sempre juntos.
Tinha uma época que era assim. Principalmente eu e o Glauco, que também tinha essa sede de noite, mulheres, se drogar... O Laerte sempre foi mais brando. Mas quando o Glauco entrou nessa coisa da igreja, de Daime, aquilo tomou conta da vida dele.
Como ficou sabendo da morte dele?
Tocou o telefone de manhã, mas não atendo porque faço a tira. Abaixei o volume da secretária eletrônica e não escutei quem era. Era o Adão [Iturrusgarai]. Na mesma hora, eu tava ligando o computador e apareceu a cara do Glauco na primeira página. Não acreditei... Fui sentir mesmo a morte dele quando fiquei em frente ao caixão.
O que você lembra do enterro?
Não lembro muito do entorno, de quem estava lá... Vou direto naquilo que me dói. Foi muito forte ver o Raoni no caixão, o filho dele... [emocionado]. Ele adorava o tio Angeli, era um garoto doce, inteligente. Na verdade, ainda não sei explicar muito bem o que senti. Tem momentos em que penso em alguma coisa e falo “ah, vou ligar pro Glauco”, aí lembro que o cara morreu...
Você acredita em Deus?
Não, nunca acreditei... Mas cheguei a ser coroinha, por um dia.
Um dia?
É, quebrei aquela merda em que coloca incenso. Foi sem querer, eu tinha que virar o negócio, virei muito rápido e, pow!, pulou cinza no meio da missa. O padre ficou puto.
Como está sendo envelhecer?
Tem coisas muito legais, como não se importar mais com coisas pequenas, não dar importância pro que não tem. A parte ruim é que me sinto com menos energia. Um dia fui numa padaria com a Carol e fiquei sentado esperando ela comprar alguma coisa. Quando ela voltou, eu tava cochilando...
Alguma consequência do uso intensivo de drogas?
A cocaína me debilitou um pouquinho. Maltratei meu pulmão mais que um simples fumante. Porque você fica mais tempo acordado, fuma muito mais e bebe bastante pra baixar a bola da cocaína.
Tem medo de morrer?
Não sei se tenho medo de morrer... Acho que tenho é pouco tempo pra fazer as coisas que quero. Sou pretensioso em relação ao que vou deixar. Olho muito o trabalho do Millôr, de pessoas que já morreram, como [os desenhistas] Raul Pederneiras e J. Carlos, e vejo o que eles deixaram.
Como quer ser reconhecido?
Não tenho reclamação. Tenho o reconhecimento que mereço e, às vezes, até o que ainda não mereço. Ouvi coisas como “você é gênio”... É impossível eu ser gênio, sei das dificuldades que tenho.
Conhece algum gênio?
O Laerte é gênio.
"A Arca Russa" no Palácio-Museu Olímpio Campos
Há cerca de 20 anos, quando me mudei para Aracaju mas ainda passava os fins de semana em Itabaiana, descobri uma verdadeira mina de ouro cultural que me ajudou a matar o tédio na "cidade serrana": a Super Vídeo Locadora, de Ivan Valença (notório crítico de cinema local). Lá encontrava (em VHS, claro, pois nem se sonhava com a existência do DVD) os filmes dos quais sempre tinha ouvido falar mas nunca tinha tido a oportunidade de assistir, como O Encouraçado Potemkin de Einsenstein, Cidadão Kane de Orson Welles, Amarcord de Felline e muitos, muitos outros – isso sem ter que passar pelo constragimento de ter atendentes me recomendando o mais novo de Jean Claude Van Damme ou fazendo comentários como um que ouvi certa vez sobre “A Laranja Mecânica”: “esse filme tem uma mensagem ótima e edificante”. “Qual seria”, perguntei à solícita atendente, intrigado. “Aqui se faz, aqui se paga”, ela respondeu.
Então ta.
Recentemente a locadora de Ivan foi mais uma a sucumbir à crise do mercado de vídeo provocada pela pirataria e pelos downloads gratuitos na internet (mea culpa também, admito, ontem mesmo vi “Kick Ass” em arquivo baixado da rede). Antes que fechasse, me dediquei a alugar e copiar os filmes que mais me interessavam, como a pequena obra-prima esquecida da nossa cinematografia “Iracema – Uma transa amazônica”, “Macunaíma” e os filmes do Glauber em versão restaurada, dentre outros. Dentre estes outros estava “A Arca Russa”, de Alekxandr Sokurov, brilhante obra filmada em um único plano sequencia no Museu Hermitage de São Peterburgo. Foram 15 anos desde a idealização, sete de preparação e um dia de filmagem com a utilização de 3.000 figurantes (nada de multiplicação via computação gráfica) com requintados figurinos de época que resultaram em 97 minutos de um deslumbrante passeio pela História do corte imperial russa, desde Pedro, o Grande, que vemos de passagem numa licença poética, já que o Hermitage não existia em sua época, até um jantar da família do último czar, Nicolau II – passando, evidentemente com destaque, pelo reinado de Catarina, a grande. O ponto alto é o último baile imperial, reconstituído em toda a sua pompa de forma exuberante e minuciosa.
Pois bem, tenho a cópia em DVD mas, por puro desleixo (e por excesso do que ver, ler e ouvir, também), nunca tinha assistido. Eis que, zapeando a net, me deparo, no Blog da jornalista Suyene Correia, o “Bangalô Cult”, com a notícia de que haveria uma exibição do mesmo no sábado, às 11 da manhã, no recém-reformado Palácio-Museu Olimpio Campos. Uma combinação pra lá de feliz e apropriada. Fui, e vi. Só não foi melhor porque uma sonolência inesperada me pegou e a sala não estava suficientemente escura, o que deixou a tela um pouco opaca. Fora esses pequenos detalhes, foi uma ótima sessão – e além do mais, o idealizador do projeto, batizado “Cine Experiência”, que estava presente, avisou que o mesmo mudaria de data e horário, passando a ser exibido às 19h, o que resolveria o problema da iluminação.
O filme é realmente deslumbrante e foi apresentado com propriedade por Suyene, além de ter sido seguido por um interessante debate que lançou algumas luzes sobre alguns detalhes da obra que enriqueceram bastante a experiência. Por exemplo: Ficamos sabendo que o “Marquês”, que comanda o passeio, representaria a cultura européia, daí suas fustigadas ao que ele chama de “talento russo para a cópia”, chamando a atenção para o fato de que aquele povo estava sempre em permanente busca por uma identidade própria, fato explicado em parte pela localização geográfica em si do país, parte na Ásia, parte na Europa. Houve também uma inesperada, pelo menos para mim, leitura política, com a insinuação de que o filme faria uma “ode” ao luxo e refinamento aristocrático em contraposição à mediocridade do chamado “realismo socialista”, cujo maior expoente foi, pelo menos em sua primeira fase (ainda não contaminada pelo esquematismo stalinista), o cineasta Sergei Eisenstein que, pode-se dizer, foi uma espécie de criador da montagem cinematográfica, eliminada em “A Arca Russa” pelo recurso do plano sequencia. Meus brios socialistas adormecidos foram atiçados, mas me dei por satisfeito com um comentário de Suyene de que era necessário lembrar que fora daquele palácio, muito longe daquele luxo exuberante, havia uma massa de operários e especialmente camponeses que passavam fome e todo tipo de necessidade, o que legitimava, de certa forma, o processo revolucionário, por mais penoso e tortuoso que o mesmo tenha sido. Valeu também a lembrança de que o filme já havia sido exibido no cinema na extinta Sessão “Cinema de Arte” do antigo Moviecon, em mais uma iniciativa do produtor Roberto Nunes. Infelizmente, essa eu perdi ...
Foi a primeira vez que visitei o Palácio-Museu, antiga sede do Governo do Estado, depois da reforma. Está bonito e, a julgar por minha primeira experiência, promete no que se refere à utilização do espaço. Precisamos muito valorizar este tipo de iniciativa, tão rara em nossa pequena província de Sergipe Del Rey. Espero que o projeto dê certo e se consolide, até porque o monopólio da Rede Cinemark em nossa cidade tem feito com que a oferta de bons filmes nas telas de nossos cinemas seja pra lá de restrita aos blockbusters enlatados norte-americanos – não fosse pela existência da Sessão “Cine Cult”, estaríamos irremediavelmente perdidos.
Para acompanhar a programação do “Cine Experiência” e do Palácio-Museu, consulte o site http://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/
por Adelvan
* * *
+ sobre " A Arca Russa " :
Os 97 minutos sem cortes que compõem o filme de Alekxandr Sokurov apontam para um dos caminhos do cinema no futuro
Por: Rodrigo Carreiro
NOTA DO EDITOR: ★★★★☆
Fonte: Cine Repórter
A simples realização de “Arca Russa” (Russkij Kovcheg, Rússia/Alemanha, 2002) já seria suficiente para inscrever o nome do cineasta Alekxandr Sokurov em uma nova página da história do cinema. A rigor, o longa-metragem nem precisava ser bom para conseguir marcar esse tento. É simples: “Arca Russa” consegue a proeza tecnológica de ter um único plano-seqüência. Ou seja, o filme inteiro numa tomada única. São 97 minutos gravados em um só fôlego, sem cortes. Além disso, o projeto leva, a uma série de reflexões acerca da natureza da arte cinematográfica.
Muita gente acredita que “Arca Russa” oferece uma pista inequívoca daquilo que poderá ser o futuro do cinema. Como grandes clássicos do passado (“Cidadão Kane”), o trabalho de Sokurov exigiu que um equipamento especial fosse adaptado para que pudesse ser realizado. O cineasta e o diretor de fotografia, Tilman Büttner, tiveram que inventar uma maneira de captar as imagens de forma 100% digital. Essa tecnologia já existia, mas não a possibilidade de gravar 97 minutos de filme sem cortes. O filme digital, em tese, teria que ter cortes. Por isso, a câmera utilizada no longa precisou ser ligada a um disco rígido especial, que armazenava os dados digitais à medida em que as cenas iam sendo captadas.
A suntuosidade do projeto também exigiu um ensaio monumental. Não é de admirar que Sokurov tenha sonhado com o o filme durante 15 anos, e que nada menos do que sete meses tenham sido gastos apenas para montar a coreografia do trabalho, que foi gravado em um único dia: 23 de dezembro de 2001. Por sinal, o filme tinha mesmo que sair naquele dia, querendo ou não, pois o Hermitage só permitiu o projeto porque não precisaria fechar a casa por mais tempo.
Um breve resumo do enredo, acrescido de alguns números, podem dar uma idéia do tamanho hercúleo da tarefa. O longa narra um passeio de dois personagens por 35 salas, pátios, corredores e escadas do museu Hermitage, em São Petersburgo (Rússia). Não é uma tour comum; nela, 3 mil figurantes, todos devidamente caracterizados com os figurinos pomposos, característicos da monarquia, encenam grandes e pequenos momentos de 300 anos da história do país, entre os séculos XVII e XX. Os espectadores ficam conhecendo personagens históricos como os czares Pedro o Grande, Catarina a Grande, Catarina II e Nicolau.
Do ponto de vista técnico, portanto, o projeto é capaz de fazer uma campanha logística como a responsável pela trilogia “O Senhor dos Anéis” parecer festa de aniversário de criança. Além disso, a fotografia, a cenografia e os figurinos se casam maravilhosamente, gerando um filme rico de conteúdo e com imagens de beleza plástica inconfundível. Sokurov logra sucesso em um dos objetivos declarados de “Arca Russa”: retratar o museu Hermitage como uma espécie de repositório orgânico, quase vivo, da cultura de um povo. O filme atinge admiravelmente esse propósito, inclusive quando realiza a crítica dessa mesma cultura, através do enigmático personagem do Europeu (Sergei Dreiden). Ele não economiza ironia, ao comentar sobre a vontade dos monarcas russos em copiar os franceses.
Quando se deixa de lado a parte técnica do filme, porém, sobram questões que merecem reflexão. Há uma pergunta que parece fundamental: por que “Arca Russa” precisou ser filmado em uma tomada só, sem cortes? Qual a razão para a utilização dessa técnica específica? Será que o trabalho ficaria pior se fosse filmado de modo tradicional? Essa pergunta permanece sem resposta. Projetos que tentaram experiências parecidas (“Festim Diabólico”, de Hitchcock, e o recente “Timecode”, de Mike Figgis) tinham justificativas mais sólidas. A película de Hitchcock necessitava de um encapsulamento rigoroso dos limites de tempo e espaço, para gerar a tensão necessária no espectador. Já o trabalho de Figgis tem uma semelhança muito maior com o longa de Sokurov, pois inclusive foi filmado com tecnologia digital de captação de imagens. Mas “Timecode” recorta um mesmo período do dia e o narra em quatro janelas simultâneas que se abrem na tela do cinema. Portanto, a continuidade das imagens também é fundamental.
Em “Arca Russa”, nenhuma resposta a essa pergunta satisfaz inteiramente. Parece óbvio, entretanto, que Sokurov tenta travar um diálogo com uma geração anterior; particularmente, com Sergei Eisenstein. O mestre formalista foi o homem que elevou o conceito de montagem ao nível de arte. Através de obras como “O Encouraçado Potemkim” (1925), Eisenstein mostrou que o cinema criava significado através da justaposição de planos – ou seja, através do corte. Em outras palavras, que o significado que emanava do choque entre duas tomadas isoladas não estava, sozinho, contido em nenhuma delas. A cena de uma criança chorando não significa nada além disso. Um plano de um prato vazio também não. Juntas, essas duas imagens geram uma imagem mental na platéia: fome. Esse conceito foi, depois, ampliado e refinado pelos gigantes na arte do filme, como Stanley Kubrick. Todo o cinema contemporâneo presta tributo a Eisenstein.
Talvez “Arca Russa” tenha a pretensão de oferecer um caminho alternativo ao criador de “Potemkim”, porque, de fato, o trabalho de Sokurov consegue ultrapassar esse problema. Mesmo sem cortes, o conterrâneo de Eisenstein também consegue construir imagens mentais que não estão estritamente contidas nas cenas que vemos na tela. Os 30 minutos finais do longa são o melhor exemplo disso – e também o melhor momento do filme. Vemos a última ceia da família Romanov (evocando a Santa Ceia). Depois, o último baile dos nobres russos, antes da revolução de 1917. A saída das centenas de nobres do prédio principal, em silêncio, imprime uma sensação de nostalgia e desolação que correspondem, em última análise, à imagem mental que a montagem de Eisenstein sempre se preocupou em evocar. O fato de o Europeu avisar ao colega-câmera que não pretende deixar o lugar apenas reforça essa nostalgia. Trata-se do final de uma era, o último suspiro de um período. A calma antes da tempestade.
Nada disso teria sido alcançado sem a ajuda, repito, de uma coreografia rigorosa e nunca menos do que espetacular. Nos 97 minutos, a câmera percorre um caminho literalmente impossível, subindo escadas em espiral, passando por sobre o fosso da orquestra (que executa uma ópera para Catarina, a Grande), executando giros de 360 graus e realizando um verdadeiro balé no trecho final, durante o baile de gala dos Romanov, quando chega quase a levantar vôo. Essas proezas técnicas imprimem um ritmo um pouco mais ágil à narrativa, que possui (como qualquer outro filme que usa a noção de tempo real) uma progressão naturalmente lenta. A câmera praticamente não pára, mas também não acelera a ação. Consegue, assim, um meio termo interessante entre a narração e a reflexão. Por tudo isso, “Arca Russa” é um grande programa para os amantes de um cinema que procura algo novo, ao invés de apenas repetir fórmulas consagradas.
O DVD nacional, da Versátil, é de boa qualidade. Traz o filme com enquadramento original preservado (widescreen 1.78:1 anamórfico), áudio em dois canais (Dolby Digital 2.0) e um making of.
- Arca Russa (Russkij Kovcheg, Rússia/Alemanha, 2002)
Direção: Alekxandr Sokurov
Elenco: Sergey Dreiden, Maria Kuznetsova, Mikhail Piotrovsky, David Giorgobiani
Duração: 97 minutos
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
Autoramas na Sessão Notívagos
Autoramas pela terceira vez em Aracaju, desta vez na Sessão Notívagos, que acontece periodicamente no Cinemark do Shopping Jardins com a exibição de um filme seguida da apresentação de duas bandas no saguão do cinema.
Fotos: Skull Valentine & Janaina Amarante
Antes do show recebi os rockers para um bate-papo ao vivo no programa de rock. Confesso que estava empolgado por ter ouvido de novo, depois de muito tempo, o primeiro disco do Little quail e por isso programei 3 músicas deles para tocar, o que gerou um protesto do Gabriel. Por ele não rolava nenhuma, mas com o apoio da baixista Flavia falei que eu que mandava naquela porra e pelo menos uma ia tocar, então mantive o megahit “aquela”, sucesso na versão dos Raimundos. De quebra, ainda encaixei uma da AxBax, uma tosqueira, a primeira banda do Gabriel, na qual ele tocava quando tinhas seus 13, 14 anos.
A entrevista transcorreu num clima descontraído. Falamos sobre gravadoras, tours pelo mundo, cenário independente e sobre a relação deles com a lendária banda de garagem japonesa Guitar Wolf. Eu já era fã da banda e de Gabriel, especificamente, por sua trajetória brilhante no cenário independente (Gabriel Thomaz é “gente que faz”), mas naquela noite virei tiete de todos. Flávia é A baixista, classuda, elegante, uma verdadeira “rocker” e substituta à altura (ou talvez melhor) de Simone “Dash”, membro-fundadora da formação original. E Bacalhau, puta que pariu, o Bacalhau é sensacional. Gente finíssima, inteligente e divertido.
Jantei com eles e por isso perdi o início do filme, mesmo a sessão tendo começado com um grande atraso. Cheguei na sala a tempo de ver Jeff Bridges na cama com Maggie Gyllenhaal. Grandes atores, belíssima atuação. Bom filme, mas talvez não tenha sido a escolha apropriada para a noite, pois trata-se de um dramalhão daqueles de partir o coração embalado em musica country – que eu detesto. Mas BOA música country, frise-se bem. É apenas uma questão de gosto pessoal. Jeff Bridges está realmente fenomenal no papel de um artista decadente que é forçado a se dobrar às duras realidades da vida, no caso, o sucesso de seu pupilo em contraponto ao seu ostracismo e a incapacidade de se relacionar de forma decente com as pessoas que ama, por culpa de seu gênio irascível e do alcoolismo. É “classudo”, mas não deixa de ter aquele clima de “supercine”. Boa parte da platéia “chiou”, mas achei injusto: o filme é bom.
Bom também foi o show da Nantes. Não sou exatamente um apreciador do som que eles fazem (folk rock com influências da psicodelia dos anos 60), mas salta aos ouvidos que é uma banda super competente e que sabe compor. Mais uma vez, talvez não tenha sido a escolha ideal para tocar junto com Autoramas, que é uma banda de rrrrock, mas mandou muito bem o seu recado. Estão para lançar seu primeiro disco “oficial” – fiquem de olho, é um dos grandes nomes do atual cenário alternativo sergipano e merece ser prestigiado. Não posso dar muitos detalhes sobre a apresentação pois estava tendo uma verdadeira “conferência” com Bacalhau e Gabriela Caldas sobre a viabilidade de se produzir shows de rock alternativo “fora do eixo” e fora do “fora do eixo”. Confesso que o otimismo deles não me contagiou, contaminado que estava pelo clima caótico e pelas dificuldades que presenciei nos bastidores da produção do evento. É um território pantanoso, “onde os fracos não tem vez” . Admiro e apoio no que for possível quem faz, mas estou fora.
Por fim, Autoramas. Começaram “desplugados”, mas sempre rock. Excelente presença de palco – dos 3 ! A baixista Flavia há tempos já deixou de ser uma novidade mas ainda impressiona pela entrega, pela elegância e pela competência. Uma coisa realmente bonita de se ver, e com um belo figurino – adorei os óculos ! (veja a foto). Gabriel é aquela simpatia, nem há muito o que comentar. O cara é O frontman. Mas quem estava especialmente inspirado naquela noite era o Bacalhau. Além de detonar na bateria, como sempre, foi pra frente do palco, pogou e teve seu “momento stand up comedy” ao microfone. Musicalmente, não há destaques, tudo muito bom, mas que fique registrada a arrasadora perfomance de “surfin´bird” dos Thrashmen, aquela do “paumama-papapau-ma-ma-ma” imortalizada pelos Ramones. Rock and roll na veia e na artéria – mais uma grande noite pra ficar na memória de quem foi.
Por falar em “quem foi”, o público, pra variar, foi aquém do esperado – mas em quantidade, que fique bem claro. No quesito “qualidade” foi ótimo, animado e participativo. Foi bom pra mim, foi bom pra quem foi.
Foi bom pra vocês, Autoramas ?
Texto: Adelvan
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
O Governo Lula e a diplomacia
20 de junho de 2010
A diplomacia não é uma perfumaria para os países sem força militar. Como dizia um importante político chileno: “quem deve se preocupar mais na selva, o elefante ou o coelho?" Mas é indispensável que essa atividade se ajuste à realidade sem alimentar sonhos de grandeza.
Celso Furtado costumava dizer que nós, brasileiros, desconhecemos nossas reais possibilidades e idealizamos nossas potencialidades. As recentes aventuras do presidente Lula no campo diplomático são um exemplo desse desvio. O peso do Brasil na América Latina é real e o bom desempenho do ministro Celso Amorim e do seu antigo imediato, Samuel Guimarães, na mediação de conflitos entre países do continente, na detonação da Alca e na formação da Unasul, ajustaram-se a essa realidade. Ponto para o Lula.
A formação do G20 foi meio confusa e não tivemos uma atuação muito boa na OMC, pois na verdade nossa posição favoreceu os Estados Unidos contra a pretensão legítima dos pequenos agricultores europeus.
A aventura iraniana já é outro assunto. Faz parte do mesmo delírio de grandeza que nos leva a pretender assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. O que, na verdade, foi o Lula a fazer em Teerã senão buscar somar pontos para atingir esse objetivo? Prestou por isso, gratuitamente, um serviço aos Estados Unidos, pois seu esforço diplomático tinha por objetivo levar o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, a aceitar o patrulhamento da ONU na questão do enriquecimento do urânio.
Qualquer pessoa de bom senso não aceita a fabricação da bomba atômica. Mas é uma rematada hipocrisia condenar o Irã por querer produzir a bomba ante o fato de que USA, França, Inglaterra, China, Coreia do Norte e Israel detêm este artefato decisivo para definir seu lugar no cenário internacional. Diante dessa realidade não há fundamento ético para a exigência que está sendo posta ao Irã por parte dos países com assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Não defendo que o Brasil deva exortar o Irã a produzir a bomba, mas o governo brasileiro não pode alegar qualquer justificativa ética para intrometer-se uma querela complexíssima como esta, ainda mais para fortalecer a posição norte-americana. Na realidade, a operação serviu apenas para nos colocar numa situação de deboche perante o mundo, porque os Estados Unidos descartaram a intromissão no dia seguinte ao propor sanções contra aquele país. Foi um acinte que tivemos de engolir porque a diplomacia norte-americana escora sua força no fato de serem um país detentor da bomba e a maior potência mundial ainda nos dias de hoje – e todos os demais países, especialmente os periféricos, se submetem a essa realidade.
Já quem estiver interessado em saber o que as tropas brasileiras estão fazendo no Haiti apreciará bastante o artigo do professor Osmar Ribeiro Thomaz publicado no último número da Revista do Cebrap. Relatando a conduta dos “brancos” no auxilio às vítimas do terremoto, o professor Thomaz, antropólogo que vive no país e coordena uma pesquisa patrocinada pela Unicamp, expõe com um bisturi implacável a hipocrisia tanto dos países desenvolvidos quanto da ONU no episódio. Com uma argumentação imbatível, Thomaz demonstra que o único auxílio que as vítimas do terremoto receberam veio das próprias instituições haitianas (as igrejas, prefeituras, o Exército e, sobretudo, as próprias famílias).
O propagandeado “patrocínio externo” beneficiou principalmente os próprios funcionários dos “países amigos” que se encontravam no Haiti ou foram para lá a fim de prestar ajuda aos “nativos”.
Causa tristeza o depoimento do professor a respeito do papel das tropas brasileiras, pois ele mostra que a população haitiana não faz a menor distinção entre nossos soldados e os soldados dos demais países que compõem a Força de Paz da ONU. Afirmar, portanto, que nossas tropas ajudam a criar simpatia pelo Brasil entre os haitianos não passa de uma remendada balela.
Não faz parte do artigo do Cebrap, mas cabe acrescentar um outro aspecto da aventura brasileira no Haiti. Nossas tropas foram ocupar militarmente aquele país por determinação dos Estados Unidos - cujo governo não quer desistir do controle que exerce sobre aquele país desde o tempo do Papa Doc, mas não quer sujar as suas tropas nesse trabalho. Para acumular pontos para o sonho do assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, Lula embarcou o Brasil nessa triste aventura.
Para quê? Para ser outra vez duramente humilhado, pois quando os Estados Unidos perceberam que o caos deixado pelo terremoto poderia provocar um levante popular contra o governo que instalaram no Haiti, mandaram imediatamente seus mariners para a ilha caribenha. Eles chegaram e desalojaram as tropas brasileiras do único lugar economicamente importante do país (o aeroporto de Porto Príncipe) sem qualquer explicação. E o Exército brasileiro saiu como cordeirinho.
A primeira providência que cabe a um governo democrático é embarcar imediatamente de volta sua tropa e deixar o Haiti sob condução dos haitianos – qualquer ação estrangeira naquele país só se justificaria se fosse efetivamente auxílio humanitário, financiando a permanência lá profissionais que possam de fato ajudar o povo haitiano a reconstruir seu país (médicos, arquitetos, engenheiros, professores, enfermeiros e não soldados).
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
Robert Crumb, uma entrevista
Crumb me disse que, entre estes, conhecia Pixinguinha, e ainda Lupércio Miranda e ficou curioso para ouvir os 78. E topou bater um papo, onde falou sobre as músicas que ouvia em casa, quando criança, no rádio da mãe, como conheceu essas velhas músicas nos antigos filmes do início século e como era difícil achar esse som nos anos 1950, logo após a explosão do rock, quando pela primeira vez a juventude americana foi vista como um mercado consumidor em potencial. A música de duas, três décadas antes havia desaparecido, não existia em LPs, e tampouco existiam livros que contassem aquela história. Crumb então esbarrou com alguns 78 e viu que ali, escondidas, estavam os obscuros músicos e cantoras que ele tanto admirava. Foi o começo desta fixação que dura até hoje, e ele já reuniu milhares de 78 e LPs, guardados em um quarto em sua casa em Souve, um vilarejo no Sul da França, com 1.500 habitantes, onde vive com a mulher, também quadrinista, Aline Crumb.
Em Paraty, o cartunista, antes esperado como o grande nome da Flip, saiu de lá tachado com um chato, já que a mesa em participou ao lado de seu amigo e também cartunista, Gilbert Shelton, criador dos Faboulous Freak Brothers, decepcionou a muitos. Crumb é avesso a jornalistas e a fotógrafos, e realmente não tem muito a ver com algo como a Flip. Mas o grande equívoco foi escalar um mediador que não conhecia a obra de Crumb a fundo, tampouco de quadrinhos. E aí na imprensa lemos bastante que “Crumb é um chato, ranzinza e mal educado, a Flip deveria chamar só escritores etc.” Ele pode ser ranzinza e mal educado por conta dos lugares comuns que sempre lhe perguntam, ou coisas como se havia muita competição nos quadrinhos underground nos anos 1960, na Califórnia. A essa pergunta, no debate, ele questionou duas vezes: “Você está bricando?” [“Are you kidding?”].
Extremamente educado, simpático e gentil, Robert Crumb fala baixo, é tímido e pouco olhou diretamente nos olhos quando conversamos por 40 minutos em uma pequena mesa, num espaço tranquilo e vazio dentro da pousada onde estava hospedado em Paraty. De terno e chapéu pretos, o mesmo com que foi flagrado em Paraty, e óculos de graus com lentes bem grossas, Crumb falou sobre música e essa fixação dele nos 78 rotações e sons obscuros dos anos 1920 e 1930, sobretudo o blues, e a banda que formou com os amigos para tocar esse som, o Cheap Suit Serenaders. O quadrinista de 67 anos (ele completa 68 em 30 de agosto de 2010) - autor de personagens como Mr. Natural, Fritz, the Cat - também falou dos tempos em que começou a publicar suas histórias, em São Francisco no final dos 1960, no momento em que a contracultura norte-americana explodia, da importância que o LSD teve em seu trabalho, da adaptação de Gênesis, dos irmãos Max e Charles, do trabalho com a mulher Aline, e a filha Sophie, que também é pintora e quadrinista. E disse gostar do trabalho de Daniel Clowes e Joe Sacco.
Crumb folheava o recém-lançado Meus problemas com as mulheres (Conrad, 2010) (ele ainda não havia visto a edição brasileira) e recordou de algumas amigas que retratou há muito tempo. “Lia, essa aqui era tão maluca”, disse apontando para uma delas. Ele mostrou sua primeira esposa, Dana, “também uma maluca”, e alguns desenhos de Aline, sua mulher, dormindo nua, de costas.
O papo começou com os comentários sobre aquelas histórias e retratos dos 1960, 1970 e 1980.
Robert Crumb. Que homem doente…
Você se vê como um doente?
Crumb. Um cara maluco,claro, mas todos eram meio loucos.
E como é fazer esses desenhos?
Crumb. É um prazer, um grande prazer desenhar essas coisas. É uma espécie de masturbação. Sempre tive muito prazer em colocar essas fantasias no papel. Era algo que tinha necessidade de fazer. Hoje nem tanto mais, estou muito velho agora. Isso é completamente real [apontando para a história “É isso que fica na memória!”, de Meus problemas com as mulheres]. E realmente terminou assim. [Com Crumb currando a garota] [risos]
Poderia falar de suas primeiras memórias musicais? Ouvia muita música quando criança?
Crumb. Claro, mas a maior parte da música que eu ouvia era ruim. Aquela música popular que minha mãe ouvia no rádio, dos anos 1940 e começo dos 1950. A pior música popular, de cantores que vocês provavelmente não conheçam aqui, como Frank Sinatra. Você conhece Sinatra?
Ele é bem conhecido aqui…
Crumb. Tinha uns bens ruins. Doris Day, Perry Como, coisas horríveis. Ela me falou mais tarde que gostava de ouvir polca no rádio. Ela tinha aqueles aparelhos antigos, sentava na cadeira de balanço e balançava furiosamente, no ritmo da polca, quando ela tinha 40 anos. Eu me lembro vagamente disso. Essas são minhas primeiras memórias musicais. E quando surgiu a televisão, no começo dos 1950, eu assistia aqueles velhos filmes de 1931, 1932 e realmente gostava da música que tinha lá, por alguma razão que nem sei. Comecei a procurar aquela música no rádio, em discos, e não conseguia achá-la. Até que encontrei aqueles discos de 78 rotações bem velhos, quando tinha 16, 17 anos. Descobri que as músicas daqueles filmes estavam nestes discos. Aí me tornei completamente viciado em procurar essas gravações. Eu apenas tinha que ouvir aquela música, não sei por quê. Uma espécie de intoxicação com aquela velha música. Eu ainda sou intoxicado por ela. O prazer que tenho em ouvir música vem só destas canções.
Por outro lado, você é associado com a música dos anos 1960, o rock e a contracultura, mas você odeia aquilo.
Crumb. Meus quadrinhos fizeram parte daquela cultura hippie, Jimi Hendrix, Janis Joplin, The Doors, Jim Morrison. Então relacionavam minhas histórias hippies com aquela música, mas aquilo não me interessava. Não convivia com eles. Conheci Janis Joplin, ela me pediu para fazer aquela capa de Cheap Thrills[Crumb ganhou US$ 600 pela capa, que tinha um desenho em close do rosto de Janis, com gotas de suor e não chegou a ser usada. A gravadora preferiu usar na capa o desenho que havia sido feita para a contracapa, com ilustrações para cada canção. Crumb afirma nunca mais ter visto o desenho do rosto de Janis]. Mas não tinha conexão com eles. Estava fora daquilo, desenhando o tempo todo, era o que fazia, desenhava.
E sobre a música do início do século, por que esse período lhe fascina?
Crumb. Não sei, realmente não sei, mas essa música americana como o jazz, a partir dos 1930, não me interessou mais, tirando algo de country e do blues. E me interesso pela música de outros países, alguma coisa dos 1950. Gosto de algo popular dessa época, aqueles velhos rockabillies são ok, mas não me afetam tão profundamente como a música mais antiga. É estranho, pois não tenho aquela sincronia com o meu próprio tempo, é muito estranho, desconfortável, mas quando eu escutava aquela música em casa, sozinho, era e é profundamente prazeroso. É mais autêntico para mim, mais real, uma coisa engraçada, sou preso àquilo, que é de antes de eu ter nascido. Minha mãe gostava de Benny Godman, Glenn Miller, Artie Shaw, mas a música que eu gostava era do tempo dos meus avós. E termina no começo dos 1930.
E você também desenhou histórias sobre aqueles músicos obscuros como Charley Patton (ao lado) e aquela época [presentes em Blues].
Crumb. Fui fazer isso mais tarde, até porque quando era jovem e descobri aquilo não havia informação a respeito. Tinha poucos livros sobre jazz, mas coisas sobre Patton você não encontrava. As pessoas estavam começando a pesquisar aquilo, tinha alguns amigos da minha idade que também curtiam aquilo no começo dos 1960, iam pro Sul, Mississippi, Louisiana, Alabama e Kentucky, procurando os discos e pesquisando sobre as pessoas que faziam aquelas músicas. Quando comecei não havia informação.
Tem uma história em Blues(Conrad, 2004), “É a vida”, em que alguém vai batendo de porta em porta, perguntando se aquelas pessoas têm em casa os 78 e gostariam de se desfazer daquilo. Você chegou a fazer isso?
Crumb. Sim, eu fiz aquilo e achei bons discos assim. Li um livro sobre jazz, de 1939, que tinha um capítulo, “Procurando discos”, e falava sobre bater nas portas da vizinhança negra. Eu vou tentar isso, eu pensei. Tinha 18, 19 anos a primeira vez que saí batendo nestas portas, na vizinhança negra em Delaware, onde morava. E aqueles negros pobres ainda tinham os velhos gramofones em casa e os discos da década de 1920. E perguntava se queriam me vender aquilo, e na maioria das vezes eu conseguia. E como não tinha muito dinheiro, pagava 10 centavos por cada um deles. E achei discos incríveis assim. E os nomes eram na maioria desconhecidos ou esquecidos e me perguntava quem era Big Bill, Salty Dog Sam, Joe Evans, The Famous Hokum Boys. Eles não era famosos, obviamente. Quem eram eles? Aquela música era incrível. Os discos geralmente eram muito detonados, furados de tanto usar, cheio de arranhões, mas era uma música fabulosa.
Você fez também umas cartas com músicos de blues, jazz e country [que lembram o formato de cartas de baralho]. Li que você está retrabalhando estes retratos, retocando sombras e o fundo.
Crumb. É, isso mesmo. Tem um cara que quer fazer silk screens, impressas em tamanho grande. Serão 25 destas imagens em formato maior. Ele tirou as cores, aumentou e me enviou. Eu as desenhei no começo dos anos 1980, 1981, algo assim, aqueles retratos dos músicos de blues. Tenho que aperfeiçoá-los, retrabalhar neles, colocar cores novas. E vão sair essas impressões grandes de alguns destes retratos. Aquelas cartas de blues venderam bem na época. Então fiz também retratos de músicos de jazz, mas não venderam tão bem quanto as de blues, não sei porquê. E fiz ainda os músicos de country, que venderam pior ainda que as de jazz. Estas duas venderam quase nada. Quando me mudei para a França, nos anos 1990, fiz uma série destas cartas de antigos músicos franceses de acordeom, que também não venderam nada. Mesmo na França, eles não estão interessados naqueles músicos que tocavam acordeom. Eles venderam muito mal. [risos] E aqueles realmente foram um trabalho duro, os tocadores de acordeom, porque é muito difícil de desenhar os acordeons. Elessão cheio de detalhes, aqueles botõezinhos, e a parte por onde sai o som é toda ornamentada, aquilo era muito difícil de desenhar.
Poderia falar sobre a banda que teve, Cheap Suit Serenaders [Seresteiros de Terno Barato, em tradução literal], com seus amigos. Como vocês resolveram se reunir para tocar e fazer apresentações?
Crumb. Eram caras que também curtiam aquelas músicas antigas, nos encontramos na Califórnia em 1969, 1970, 1971. Eles tocavam bem, eu não era um músico tão bom assim, mas tocávamos de maneira muito simples, muito crua. Era um prazer, por curtir muito aquilo. E então nós estávamos tocando em algum lugar e, de repente, alguém que tinha um bar nos perguntou: “O que pensam de tocar por algum dinheiro?” Dissemos: “Certo, claro, precisamos de dinheiro”, éramos pobres, quebrados. E ganhamos um dinheiro. Tocamos em Aspen, no Colorado, uma cidade onde tem um grande resort de esqui. As pessoas vão para lá para esquiar nas montanhas. Tocamos lá e eles olhavam para nós como se perguntessem “Quem são esses caras?” Eram os patrulheiros de esqui, espécie de salva-vidas, pessoas duronas. E eles odiaram a nossa música, odiaram a gente. [risos] E um destes caras veio e disse “Por favor, queremos ouvir algum boogie woogie, queremos dançar! Vocês não podem tocar algum boogie?” “Não, não podemos, não tocamos boogie”, a gente respondeu. [risos]
Na introdução de R. Crumb’ s heroes of blues, jazz & country (Abrams, 2006), seu amigo Terry Zwigoff [que toca com Crumb no Cheap Suit Serenaders e dirigiu o documentário sobre o quadrinista, intitulado Crumb, de 1995] escreve que trocou um 78 rotações raro por um original seu. Você continua trocando seus originais por estes discos?
Crumb. Sim, troco alguns originais por 78. Fiz um monte de capas de CDs e coisa assim, como cartazes de shows, logotipos, capas de revistas, e continuo trocando por 78 também. Faço estas capas de CDs, principalmente de músicas que gosto. [No bate-papo que aconteceu na Livraria da Vila, em São Paulo, na terça 10 de agosto, ao ser perguntado se tinha trocado um original por uma casa no Sul da França, Crumb respondeu que, na verdade, foram seis originais...]
Depois de 20 minutos de papo, Crumb mostrava-se a vontade e continuou falando. O detalhismo com que analisou a edição brasileira de Meus problemas com as mulheres, ainda inédito para ele, demonstrou alguém preocupado e fissurado pela impressão de seu trabalho. Perguntei-lhe então sobre quando começou a publicar seus quadrinhos, no final dos 1960, em São Francisco, a importância do LSD em seu trabalho, a adaptação do livro do Gênesis, o trabalho com a mulher Aline, a filha Sophie, também pintora e quadrinista, e os artistas que admira hoje em dia. Ele falou sobre tudo isso, e elogiou a qualidade da impressão de suas histórias na revista Piauí, muito diferentes e melhores que a New Yorker, que originalmente publica as histórias do casal nos Estados Unidos. [À direita, retrato de Crumb por Rafael Grampá, que também esteve com o quadrinista em Paraty e fala sobre o encontro em seu blog, Furry Water]
Voltando aos anos 1960 e o momento em que começou a publicar, você fala que o LSD foi muito importante para o seu desenho...
Crumb. Foi uma experiência muito visionária para mim, o LSD. Mudou toda minha opinião do que eu estava fazendo, uma mudança profunda. Claro, não desenhava enquanto estava chapado de LSD, era impossível. Apenas mudou a minha visão e percebi isso naquele momento. Mas não poderia analisar enquanto estava acontecendo. Foi um tempo muito louco. O LSD me deixou com aquela sensação ainda maior de irrealidade. Eu já era um sonhador, não tinha muito contato com a realidade quando era mais novo. O LSD realmente me deixou mais amistoso, creio eu, conseguia lidar melhor com a realidade. Produziu visões poderosas que afetaram meu trabalho artístico e toda minha visão de mundo profundamente. Me alterou em alguns aspectos. Para melhor ou pior, eu não sei.
O que pensa, não tem uma opinião a respeito?
Crumb. Não sei, em alguns aspectos foi bom, em outros, não sei. Não tenho certeza se avariou meu cérebro. Você sabe, algumas vezes você paga o preço por visões como estas, é uma situação muito clássica. Você tem que perder algo, para ter uma visão poderosa como aquela. Faz você enxergar através dessas ilusões em que geralmente vivemos na maneira de ver o mundo. O LSD me ajudou a penetrar através daquilo, mas avariou meu cérebro, com certeza. [risos]
Você falou que passava todo o tempo desenhando. Como era isso?
Crumb. Eu desenhava o tempo inteiro, sim. Comecei com esse ritmo aos 18 anos, estava me escondendo da realidade através do papel, do lápis, das canetas. Passei meus anos enfiado no papel, basicamente. [risos] E quando fiquei conhecido em 1968, 1969 comecei a ter muito mais contato com outras pessoas. Eu era muito introspectivo, só desenhava. Casei e tudo, mas não estava no mundo, não participava, não era social. Aí fiquei conhecido e tudo mudou. Tudo começou a mudar a partir daí.
O que mudou?
Crumb. As pessoas começaram a prestar atenção em mim, exigindo minha atenção. Se você é reconhecido por algo que fez, de repente as pessoas se interessam por você. Homens de negócio querem fazer dinheiro a partir de você. De repente, todas as pessoas queriam falar comigo, me procuravam. O telefone estava tocando, foi muito estranho. No início daquilo, eu era muito bajulado, estava impressionado com toda essa atenção. Depois fiquei muito confuso. Aquela merda pode lhe matar. Eu vi isso tudo matar as pessoas. Vi a fama matar Janis Joplin, matou. Ela não podia lidar com aquilo, foi demais. Aquelas pessoas o tempo todo em volta dela, não a deixavam sozinho, foi horrível, horrível ver o que aconteceu. Ela começou a tomar muitas drogas, bebia muito. O álcool e as drogas mataram Janis. Mas realmente foi a fama. Sou menos famoso que ela, felizmente. E ainda tenho algum tempo para mim mesmo, mas não como era antes.
***
Crumb pareceu um tanto triste nesse momento, quando sua voz embargou. No debate na Flip, no dia seguinte a esta conversa, quando Gilbert Shelton disse que havia convidado Janis para tocar rock com sua banda, ela recusou, dizendo que o pessoal do folk não tocava rock. “Ela deve ter se arrependido depois”, disse Shelton. “Se ela não tivesse largado o folk, ainda estaria viva”, acrescentou Crumb.
Crumb. Quando se deixa de ser alguém obscuro e ignorado para ser alguém conhecido, as pessoas querem sua atenção, o dia inteiro, o tempo inteiro. Foi assim comigo em 1968. E foi ficando pior e pior, na verdade. [risos] Mas eu fiquei mais forte, mais resistente para lidar com aquilo. Comecei a dizer não para as pessoas, ser capaz de identificar aqueles canalhas quando eles se aproximavam para fazer dinheiro a partir de você, tentando que você assinasse contratos, esse lixo todo.
Essa foi uma das razões do por que você se mudou para a França?
Crumb. Não, realmente, não. Foi coisa da Aline mesmo. Ela estava altamente motivada em se mudar para a França. Confiei nela e não me arrependo. É bom morar na França. E os Estados Unidos, pfff...
E você vai para lá algumas vezes?
Crumb. Sim, vou, geralmente uma vez por ano. Tenho muitos amigos, meus irmãos, gosto de revê-los. Meu irmão Max, ele também é artista, um pintor muito bom. Muito estranho, muito louco, mas tem um trabalho artístico poderoso. Gosto de vê-lo, assim como os velhos amigos, como Terry Zwigoff e os outros músicos que tocavam com a gente no Cheap Suit Serenaders. A gente se encontra, toca essas músicas, mas não fazemos mais apresentações públicas. Parei de fazer isso.
Não gosta mais?
Crumb. Eu nunca apreciei. Nunca gostei disso [risos]. Ficar sendo vigiado e observado. Gosto de tocar música. Agora aquelas multidões de pessoas me olhando sempre me deixaram muito nervoso. E me travavam como músico, ficava tão nervoso que não conseguia tocar tão bem. Sempre toquei melhor quando estava sentado em um quarto com poucas pessoas. [risos]
Você falou sobre seu irmão Max. Seu outro irmão, Charles, foi muito importante para que você começasse a desenhar quadrinhos, ainda criança. Gostaria que você falasse sobre esse momento, ainda criança, quando começou a fazer quadrinhos. O que desenhava, quais eram as inspirações?
Crumb. Meu irmão Charles era obcecado em quadrinhos...
***
Neste momento, próximo de onde estávamos, um funcionário da pousada começa a fazer um suco de laranja em uma máquina que emite um barulho alto e esquisito, que lembra o som daquelas máquinas que cortam carne em açougues. Crumb não tem paciência com barulhos, e isso vem desde os anos 1960, com a explosão do rock, e o horror a coisas como o Grateful Dead e companhia. Ele começa a imitar o barulho do espremedor de sucos e rir.
Crumb. Que barulho bizarro... Nhóóóon. Zuurrrr. Uuuummrrrr. Então, estava dizendo… Ah, meu irmão Charles era obcecado com quadrinhos e cartuns da Disney. A Disney fascinava meu irmão, ele tinha uma imaginação muito vívida, muito mais vigorosa que a minha. A Disney afetou-o profundamente quando era criança, ele ficou obcecado com aquele universo, vivia mais naquele mundo do que na realidade. Ele era mais velho que eu e foi uma grande influência para mim. Eu era uma criança muito vaga e passiva. [risos] E Charles desenhava o tempo todo e me fez desenhar também o tempo inteiro. E desenhar quadrinhos. Ele começou a desenhar quadrinhos com 6, 7 anos e me fez começar a desenhá-los também com 7, 8 anos. E era isso que fazíamos, desenhávamos quadrinhos, não estávamos interessados em mais nada. Vivíamos num mundo de quadrinhos e éramos muito inspirados pelo Pato Donald e outros quadrinhos populares na América naquele tempo [final dos 1940, começo dos 1950], Luluzinha, The Funny Animal [desenhado por Jim Tyer]. Não estávamos interessados em super-heróis e esse tipo de coisas. Imitávamos aquilo, fazíamos centenas e centenas dos nossos próprios quadrinhos. Chegavam a formar pilhas e pilhas, as nossas histórias em quadrinhos. E, o que fazia quando criança, continuei a fazer quando me tornei adulto.
Poderia falar sobre o livro do Gênesis (Conrad, 2009), as dificuldades que teve para adaptá-lo e a maneira como aborda este texto sagrado? [Leia mais sobre a adaptação de Gênesis aqui]
Crumb. Foram quatro anos, um bocado de trabalho. E também um desafio para as minhas habilidades como desenhista. Eu realmente tive que melhorar minha habilidade, meu traço quando trabalhei nesta adaptação. E conforme minha destreza melhorava enquanto desenhava, as páginas iniciais começaram a parecer cruas, imperfeitas para mim. Então tive que voltar e fazer muitas correções nas primeiras páginas, melhorar a coisa toda. As roupas, as posições anatômicas dos corpos, tive que melhorar aquilo tudo. Nunca havia feito algo que demandasse tanta habilidade nessa área antes. Foi um bocado de trabalho.
Pensou em desistir ou foi se interessando mais e mais por este trabalho?
Crumb. Acho que pensei em ambas as coisas. Algumas vezes ficava realmente cansado, mas não tinha como parar. Tinha que terminá-lo uma vez que comecei, não poderia parar no caminho. E fui ficando interessado naquilo tudo, em todo o assunto, por muito tempo, anos e anos, profundamente interessado no começo da civilização, na Mesopotâmia, Babilônia, Suméria, Síria, Egito Antigo, toda essa coisa. Estudei bastante aquilo. E especialmente interessado na primeira parte do Velho Testamento, a relação entre aqueles povoados da Mesopotâmia, os Hebreus, o Gênesis, Exôdo. E as histórias me encantaram, cheias de imagens que me seduziram e atraíram, que pediam para ser interpretadas como uma história em quadrinhos. Fui impelido a ilustrar aquelas histórias malucas. Mas entre essas histórias malucas havia muito coisa difícil de desenhar, quando como eles falam de todas as gerações e de quem elas descendiam. Aquilo foi difícil, fazer o rosto de todas aquelas gerações.
E você ouviu críticas dos conservadores ou de gente que o acusou de ter profanado o texto sagrado?
Crumb. Nem tanto, não ouvi muitas críticas como esta. Ouvi, na verdade, mais críticas de fãs do meu trabalho, que falavam algo como: “Crumb, por que você está fazendo isso? Você se vendeu, tornou-se religioso?”. Ouvi muito isso daqueles que amam aquelas coisas malucas e antigas, com muito sexo e drogas. Não entenderam porque eu estaria interessado em adaptar o Gênesis, algo que consideram chato. Eles não conseguem entender porque eu fiz isso. Essa tem sido a maior crítica que tenho recebido.
Sério? Mas essas histórias são cheias de assassinatos, sexo...
Crumb. Mas eles não gostam da Bíblia, acham chato isso. [risos] Essa crítica veio bastante dos fãs franceses e alemães de quadrinhos, especialmente os alemães. Meu trabalho é bastante popular na Alemanha e eles curtem aquela coisa mais raivosa que fiz. Eles realmente não gostaram de Gênesis. E também alguns fãs na América do Norte. Você não pode agradar a todos. Mas esstá vendendo bem, na França, Estados Unidos, Espanha.
E você tem algum personagem que mais gosta?
Crumb. Eu gosto da Devil Girl, ela é engraçada, me diverti muito com ela. [risos] [à direita, Devil Girl e o cartunista]
Está trabalhando em algo neste momento?
Crumb. Não, não estou com um grande projeto em andamento. Apenas coisas pequenas. Tem um grande projeto que quero fazer com Aline, um grande álbum em colaboração com ela. Mas apenas começamos a idealizá-lo.
Você já faz histórias curtas com ela. Como funciona, você começa a desenhar e ela então continua?
Crumb. É, nós ficamos passando e repassando um para o outro. Começamos as histórias a lápis e quando achamos que está realmente bom aplicamos a tinta. Mas sempre começamos a lápis estas histórias, que saem aqui na Piauí. É assim que se chama aquela revista? Aquelas foram muito bem impressas, parecem melhores que a versão original, que saíram em uma revista norte-americana. Não só pelo tamanho, mas pelo papel, a tonalidade de cor, ficou realmente bonito, muito melhor que a New Yorker, onde o papel é algo brilhoso. As histórias na Piauí ficaram muito melhores, o papel em um tom de marfim [na verdade, papel pólen], ficou perfeito. [Confira uma destas histórias ao final da entrevista e veja as demais histórias no site da Piauí]
E sua filha também desenha quadrinhos...
Crumb. Sim, desenha. Ela desenhou quadrinhos quando era mais nova, mas parou agora.
Por quê?
Crumb. Ela fez esses quadrinhos, publicou e teve muitas críticas na internet de fãs de quadrinhos, que a acusaram de ter conseguido publicar por ser minha filha. E isso a desencorajou de desenhar quadrinhos. Ela ainda desenha, mas não faz mais quadrinhos. E entendo-a por ter largado os quadrinhos por conta disso. Não sei, ela é uma artista muita boa, realmente boa, mas isso de ser minha filha, filha de alguém conhecido, é algo difícil de lidar.
Posso imaginar. E que quadrinhos você gosta de ler hoje em dia?
Crumb. Daniel Clowes lançou um álbum incrível, Wilson (Drawn & Quarterly, 2010). É ótimo! Gosto do trabalho do Joe Sacco, é incrível. Você conhece o trabalho dele?
Sim, muito bom.
Crumb. Você já viuaquele que Sacco publicou recentemente, Footnotes on Gaza (Metropolitan Books, 2009)?
Vai sair aqui ainda este ano [pelo Quadrinhos da Cia./Companhia das Letras. A Conrad editou os álbuns anteriores de Sacco no Brasil, como Palestina, Gorazde, Uma história de Sarajevo e Derrotista].
Crumb. É um grande livro. É incrível o que ele fez, incrível. Footnotes in Gazanão foi tão bem recebido em alguns lugares. É muito político, engajado na defesa dos palestinos, e muitas pessoas não gostam daquilo, mas é um grande trabalho. E tem outros bons quadrinhos saindo, é um bom período para os quadrinhos, o que vivemos.
E como você vê o seu trabalho contribuindo para isso, se é que vê?
Crumb. Claro. Os anos 1960, nos Estados Unidos, foram um período culturalmente muito significante. Grandes mudanças aconteceram e aquilo foi o começo dos quadrinhos profundamente e verdadeiramente pessoais. Quadrinhos não mais apenas como uma mídia popular, mas algo onde você podia ser tão personalista quanto desejava, e arranjar pequenas editoras que chamavam “underground”, mas que na verdade não eram realmente underground. Eram pequenas editoras, que editavam qualquer coisa, em 1969, 1970, 1971, 1972. Eles publicavam qualquer coisa, e a maioria dos quadrinhos era muito ruim. Se você olha para eles agora, são ilegíveis, incoerentes. As pessoas totalmente chapadas não conseguiam contar uma história. Mas era um tempo muito solto e livre e que realmente mudou a coisa toda a respeito dos quadrinhos, até então algo estritamente comercial, apelativo, envolvido com essa mídia de massa. E nós estávamos interessados em algo profundamente pessoal, inventivo, onde as pessoas experimentavam todo o tipo de coisa alucinada e usavam os quadrinhos como um meio de expressar isso. Depois veio um período entre os 1970 e os 1980, pfff... que tinha um público muito pequeno para aquilo. Mas as pessoas persistiram e agora tem um grande público interessado. Um dos grandes responsáveis por isso é Art Spiegelman. Quando ele publicou Maus (Cia. das Letras, 2005) [O livro foi lançado originalmente em duas partes, em 1986 e em 1991. Em 1992, Spiegelman ganhou o Prêmio Pulitzer de literatura, o que chamou a atenção definitivamente para as graphic novels], teve um enorme público. E Spiegelman é muito bom em autopromoção, promove a si mesmo e o seu trabalho. Então ele teve um monte de publicidade por aquilo, um monte de resenhas e comentários sobre Maus. E também por conta da questão judaica, ele teve bastante atenção, e se criou uma atitude diferente, as pessoas começaram a olhar para os quadrinhos como algo mais sério, onde você podia agora fazer longas graphic novels. Você podia fazer um longo livro só com quadrinhos. E verdadeiros editores estavam lançando estes álbuns. É isso o que acontece agora, e eles vendem bem, então grandes editores estão prestando atenção nisso.
E você desenha todos os dias?
Crumb. Não mais. Acho que desenhei tudo que estava aqui dentro [I think I’ve drawn myself out, no original] [risos]. Acho que sim, coloquei tanta tinta por debaixo da ponte...
Era um tipo de obsessão?
Crumb. Sim, eu era obsessivo quando jovem. E me escondi atrás disso, realmente. Eu não poderia lidar com a realidade. Eu apenas desenhava, para escapar do mundo real. Os desenhos estavam manifestando minha imaginação o tempo inteiro no papel. E acho que isso acabou. Ainda desenho, claro. Fiquei quatro anos em cima do Genêsis, foi o trabalho mais duro, que jamais havia feito. Ninguém nunca vai saber o quão foda foi trabalhar naquilo. Espero que tenha funcionado, não sei.
Funcionou muito bem. Mr. Crumb, foi um prazer conversar com você. Muito obrigado.
Crumb. Obrigado pelos discos. Estava examinando eles com calma, creio que tenha música muito boa lá.
Acho que vai gostar, tem música instrumental, alguns dos nossos melhores músicos.
Crumb. Sim, música brasileira antiga, estava procurando por elas.
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Texto por Bruno Dorigatti
Foto de Tomás Rangel