quarta-feira, 29 de junho de 2011

"O Caçador de Andróides", de Phillip K. Dick


E AINDA SONHO QUE ELE PISA O RELVADO, ANDANDO, FANTASMAGÓRICO, PELO ORVALHO, PELO MEU CANTO ALEGRE INTEIRAMENTE PERFURADO.

YEATS

UMA TARTARUGA QUE O EXPLORADOR CAPITÃO COOK DEU AO REI DE TONGA EM 1777 MORREU ONTEM. TINHA QUASE 200 ANOS DE IDADE. O ANIMAL, CHAMADO TU'LMALILA, MORREU EM TERRENOS DO PALÁCIO REAL, EM NUKU, ILHA DE ALOFA, CAPITAL DE TONGA. O POVO DE TONGA CONSIDERAVA O ANIMAL COMO UM CHEFE, E TRATADORES ESPECIAIS FORAM NOMEADOS PARA CUIDAR DELE. FICARA CEGO NUM INCÊNDIO DE MATA, HÁ ALGUNS ANOS. A RÁDIO DE TONGA INFORMOU QUE A CARCAÇA DE TU'IMALILA SERIA ENVIADA PARA O MUSEU DE AUCKLAND, NA NOVA ZELÂNDIA.

UMA PEQUENA e alegre descarga elétrica, transmitida pelo alarme automático do órgão de condicionamento mental, instalado ao lado da cama, acordou Rick Deckard. Surpreso — sempre se surpreendia quando descobria que fora acordado sem aviso prévio — levantou-se, estendeu o corpo todo dentro do pijama multicolorido, e espreguiçou-se. Na cama ao lado, a esposa, Iran, abriu os olhos cinzentos, sérios, pestanejou, gemeu e fechou-os outra vez.
— Você ligou seu Penfield em nível fraco demais — disse ele à mulher. — Vou religá-lo, você vai despertar inteiramente e...
— Não toque em meu aparelho. — Havia seca amargura em sua voz. — Eu não quero acordar.
Rick sentou-se ao lado da esposa, inclinou-se sobre ela e explicou em voz suave: — Se você liga a descarga em nível suficientemente alto, fica satisfeita quando acorda. Esse é todo o princípio por trás do funcionamento desse aparelho. Na marca C, ele vence o bloqueio do patamar da consciência, como faz comigo.
Carinhosamente, porque se sentia bem-disposto para com o mundo, ligara o aparelho em D, acariciou-lhe o pálido ombro nu.
— Tire de cima de mim essas grosseiras mãos de "tira" — disse Iran.
— Eu não sou um tira. — Nesse momento sentiu-se irritado, embora não houvesse discado para essa emoção.
— Você é pior do que isso — respondeu a esposa, os olhos ainda fechados. — É um assassino, contratado pelos tiras.
— Eu nunca matei um ser humano em toda minha vida. — Aumentara sua irritabilidade e se transformara em franca hostilidade.
— Apenas aqueles pobres andros — disse Iran.
— Mas você nunca hesitou, nem por um único minuto, em gastar o dinheiro de prêmio que eu trago para casa, no que quer que logo lhe atraia a atenção. — Levantou-se e foi até seu órgão de condicionamento mental. — Em vez de economizar — continuou — para comprarmos uma ovelha autêntica e substituir aquela, falsa, que nós temos lá em cima. Um mero animal elétrico, e eu, ganhando todo esse dinheiro, pelo qual trabalhei e subi na vida estes anos todos.
Ao consolo do órgão, hesitou entre discar por um supressor talâmico (o que aboliria sua disposição irritadiça) ou um estimulante (o que o tornaria aborrecido o suficiente para ganhar a discussão).
— Se discar para maior malignidade — disse Iran, abrindo os olhos e observando-o — farei o mesmo. Discarei o máximo e você vai ter uma briga que fará todas as discussões que tivemos até agora parecerem brincadeiras de crianças. Disque só, e veja. — Saltou rápida da cama para o consolo de seu próprio órgão e olhou-o zangada, à espera. Ele suspirou, derrotado pela ameaça.
— Vou discar o que há na minha programação de hoje. — Examinando a agenda do dia 3 de janeiro de 1992, observou que era aconselhável uma atitude profissional, prática.
— Se eu discar de acordo com a agenda, você fará o mesmo? — perguntou, cauteloso. Esperou, sabido o bastante para não se comprometer até que a esposa concordasse em agir do mesmo modo.
— Minha agenda de hoje lista um período de depressão auto-acusatória de seis horas — disse Iran.
— O quê? Por que foi que você programou isso? — Uma programação dessa era o contrário do órgão de condicionamento mental. — Eu nem mesmo sabia que se podia ajustá-lo para isso — disse sombrio.
— Uma destas tardes eu estava sentada aqui — disse Iran — e, naturalmente, liguei para Buster Amigão e Seus Amicíssimos Amigos, ele estava falando sobre uma notícia que ia dar logo em seguida e, depois, apareceu aquele horrível comercial, aquele que eu odeio, você sabe, do Protetor Genital de Chumbo Mountibank. Assim, durante um minuto, desliguei o som. E ouvi o edifício, este edifício. Ouvi os... — Fez um gesto vago com a mão.
— Os apartamentos vazios — disse Rick.
Às vezes, ele ouvia-os, também, à noite, quando devia estar dormindo. Ainda assim, para este dia e idade, um prédio de apartamentos ocupado pela metade classificava-se alto no esquema da densidade demográfica. Lá fora, onde antes da guerra se estendiam os subúrbios, podiam-se encontrar prédios inteiramente vazios... ou pelo menos fora isto o que ouvira dizer. Deixara que essa informação permanecesse num segundo plano; como a maioria das pessoas, não queria verificá-la diretamente.
— Naquele momento — continuou Iran —, quando desliguei o som da TV, eu estava num estado de espírito 382. Acabava justamente de discar isso. De modo que, embora intelectualmente eu ouvisse o vazio, não o sentia. Minha primeira reação foi de agradecimento, porque a gente podia comprar um órgão condicionador Penfield. Mas, depois, compreendi como isso era doentio, sentir a ausência de vida, não só neste prédio, mas em toda parte, e não reagir, compreende? Acho que não. Mas isso era, antes, considerado como sintoma de doença mental. Chamavam a isso de "ausência do afeto apropriado". Assim, deixei desligado o som da TV, sentei-me ao meu órgão e fiz uns experimentos. Finalmente, descobri uma combinação para desespero. — Seu rosto moreno, animado, mostrou satisfação, como se ela houvesse realizado alguma coisa de valor. — De modo que coloquei isso em minha programação duas vezes por mês. Acho que é um período razoável de tempo para a gente se sentir impotente a respeito de tudo, de ficar aqui na Terra, depois que toda a gente sabida emigrou. O que é que você acha?
— Mas num estado de espírito desses — disse Rick — a tendência é permanecer nele, não discar para sair. Um desespero como esse, sobre a realidade total, é autoperpetuante.
— Eu programo uma rediscagem automática para três horas depois — disse astuciosamente a esposa. — Uma 481. Percepção das múltiplas possibilidades que estarão abertas para mim no futuro. Nova esperança de que...
— Eu conheço o 481 — interrompeu ele. Discara muitas vezes essa combinação e confiava um bocado nela.
— Escute aqui — continuou, sentando-se em sua própria cama e segurando as mãos da esposa para puxá-la para junto de si —, mesmo com um desligamento automático, é perigoso suportar uma depressão, de qualquer tipo. Esqueça o que você programou e eu farei o mesmo. Discaremos um 104 e nós dois o experimentaremos juntos. Depois, você fica nele enquanto eu remarco o meu para minha habitual atitude prática. Nesse estado, dou um pulo até o telhado para ver como anda a ovelha e, em seguida, vou para o escritório. Enquanto isso, tenho certeza de que você não fica aqui, macambúzia, sem TV.
Soltou-lhe os esguios e longos dedos, e cruzou o espaçoso apartamento até a sala de estar, onde pairava ainda o leve cheiro dos cigarros da noite anterior. Curvou-se para ligar a TV. Do quarto, veio a voz de Iran:
— Eu não suporto TV antes do café da manhã.
— Disque 888 — aconselhou Rick, enquanto o aparelho esquentava. — O desejo de assistir à TV, qualquer que seja o programa.
— Não estou com vontade de discar absolutamente coisa alguma neste momento — respondeu Iran.
— Então, disque 3 — sugeriu ele.
— Não posso discar uma combinação que estimula meu córtex cerebral a querer discar! Se não quero discar, ainda menos quero discar isso, porque, neste caso, vou querer discar, e querer discar é, neste momento, o impulso mais estranho que posso imaginar. — A voz dela se tornara seca, com conotações de desolação, enquanto sua alma congelava; deixava de mover-se quando o grande, instintivo, onipotente véu de um grande peso, de uma inércia quase absoluta, depositou-se sobre ela.
Rick aumentou o som da TV e a voz de Buster Amigão trovejou e encheu a sala: "Ei, vocês aí, pessoal. Hora de uma curta notícia sobre o tempo atmosférico hoje. O satélite Mangusto informa que a precipitação será especialmente forte por volta do meio-dia e que, em seguida, desaparecerá, de modo que vocês, caras, que vão sair de casa hoje...
Aparecendo ao lado dele, sua longa camisola arrastando-se pelo chão como um fogofátuo, Iran desligou o aparelho de TV.
— Muito bem, desisto. Vou discar. Tudo o que você quiser que eu faça, felicidade sexual extática... Eu me sinto tão mal que suporto mesmo isso. Droga. Que diferença isso faz?
— Eu disco para nós dois — ofereceu-se Rick e levou-a para o quarto. Ao consolo da esposa, discou 594, o satisfeito reconhecimento da sabedoria superior do marido em todas as coisas. No seu próprio consolo, discou uma atitude criativa e revigorante em relação ao seu próprio trabalho, embora mal precisasse disso, tal era seu enfoque habitual, inato, sem precisar recorrer ao estímulo cerebral artificial do aparelho Penfield.

APRESENTAÇÂO

O Caçador de Andróides (Do Androids Dream of Electric Sheep, ou DADES, como também é conhecido) de Philip K. Dick, originalmente chamava-se "Phillip K. Dick: Electric Shepherd", e foi escrito entre 1966 e 1968, provavelmente os mais turbulentos anos que a América conheceu desde a Segunda Grande Guerra.
Assassinatos, manifestações populares, desordem, a guierra do Vietnam, hippies, drogas, contra-cultura, escândalos e a Guerra Fria, serviram como contexto para o livro que, basicamente, é uma história de um detetive em um futuro sombrio.
Dick era leitor de Dashiell Hammet (um mestre do romance detetivesco) e admirava seu estilo econômico. Embora não seja possível comparar O Caçador de Andróides com O Falcão Maltês (The Maltese Falcon) de Hammet, pois as tramas são diferentes, trata-se do mesmo mundo. Pessoas desaparecidas, um parceiro que é baleado, uma femme fatale, problemas com os policiais locais e um universo de cinismo onde não há esperança para ninguém.
Talvez não seja uma coincidência que, ao ser adaptado para o cinema (Blade Runner, dirigido por Ridley Scott, lançado em 1982 e estrelado por Harrison Ford), as câmeras estavam no mesmo lugar onde quarenta anos antes, foi filmado O Falcão Maltês (No Brasil se chamou Relíquia Macabra, dirigido por John Huston e estrelado por Humphrey Bogart). Ambos os livros se passam nas ruas de San Francisco, ambos os filmes tiveram suas cenas de rua filmadas em New York, nos estúdios da Warner Brothers em Burbank.
O filme Blade Runner (que transcorre no ano de 2019) limita-se a dois aspectos do livro: visões da megalópole do amanhã, com seus edifícios de 400 andares e a perseguição implacável de um caçador profissional a um pequeno grupo de andróides evadidos, "produtos" quase perfeitos, super-homens e super-mulheres que aspiram a um pouco mais de vida (foram programados para morrer em 4 anos).
Já o livro O Caçador de Andróides se passa em 1992 (em edições recentes o ano foi mudado para 2021).
No livro, o governo encoraja a população a emigrar para colônias fora-da-Terra, visando preservar a raça humana dos efeitos nocivos da poeira radioativa (conseqüência da guerra nuclear 'World War Terminus').
A população que permanece no planeta vive enclausurada em cidades decadentes e vazias, envenenada pela radiação que danifica seus genes. A maioria dos animais foi extinta e possuir um deles é uma prova distinta da empatia humana, mas principalmente é um símbolo de status. Quanto mais raro o animal, maior o status do proprietário. Pessoas que não podem pagar por um animal de verdade compram animais sintéticos.
Em uma San Francisco pós-apocalíptica, o caçador de recompensas Rick Deckard (que possuía uma ovelha real que morreu de tétano), tenta enganar a todos, inclusive a si mesmo, de que sua nova ovelha elétrica é igual a uma de verdade, enquanto realiza um trabalho que odeia, e lida com sua esposa viciada em estímulos artificiais.
Quando Deckard aceita perseguir e matar os seis andróides Nexus-6 que fugiram de controle, por uma boa recompensa, o que ele mais sonha é com o dinheiro, poder adquirir um animal de verdade.
Ao fim, Deckard chega à conclusão de que ao resolver o caso ele não terá a felicidade esperada, mas apenas uma enorme crise existencial. Semelhante ao que ocorre com Sam Spade em O Falcão Maltês, não há uma solução satisfatória.
Poucos escritores de ficção científica são, como Philip K. Dick, admirados e elogiados por seus próprios colegas. Poucos atingem um público tão diversificado. Como disse John Brunner: "Ele é o mais invariavelmente brilhante escritor de ficção científica do mundo".
Infelizmente (ao contrário de Hammett) Dick não viveu o bastante para saborear o prestígio que a crítica hoje lhe atribui. Seus últimos anos de vida foram dedicados a uma excêntrica investigação sobre a verdadeira natureza de Deus e do Cosmos.
Dois anos antes de morrer por conta de um acidente vascular cerebral, ele escreveu em seu diário que estava próximo de descobrir os segredos do Universo.
(Trechos do prólogo da edição brasileira e de ‘A Metaphysical Detective Story’ de Adrian Mckinty)
(Em Portugal o livro chamou-se "Perigo Iminente". No Brasil primeiramente foi publicado como “Andróides Sonham Com Carneiros Elétricos?", e mais tarde reeditado com o título "Blade Runner: O Caçador de Andróides" e, posteriormente "O Caçador de Andróides".)


Hoje não se discute o fato de o filme Blade Runner (1982) ser um dos maiores marcos da história da ficção científica. Mas nem sempre foi assim. O filme de Ridley Scott foi uma das grandes expectativas de sucesso de bilheteria de seu ano de lançamento, mas o clima pesado e deprimente do filme, aliado à trama filosófica e hiperrealista, marcasse um enorme ponto de interrogação nas cabeças nos poucos que foram assistir ao filme nos cinemas.

Blade Runner encontrou sobrevida no recém-lançado mercado de video e na TV a cabo dos anos 80, quando, graças à repetição e a seu visual de cair o queixo (além de um elenco formado por grandes promessas da época – Harrison Ford, Sean Young, Rudger Hauer), inaugurou o conceito de “filme de culto”. Graças a esse novo status, Blade Runner ainda pode ser relançado diversas vezes, lançando também o conceito de “versão do diretor”, diferente daquela que foi lançada comercialmente.

Mas se alguém já havia percebido o potencial de Blade Runner, este alguém era o autor da obra que havia inspirado o filme. O livro O Caçador de Andróides (ou, em inglês, Do Android Dream of Electric Sheep? – Andróides sonham com ovelhas elétricas?), de Philip K. Dick, foi a primeira adaptação da obra do clássico autor de ficção científica para o cinema, apresentado pela primeira vez a seu universo de dúvidas existencialistas e questões filosóficas disfarçadas de historinhas de robôs, alienígenas e drogas sintéticas.

Blade Runner é uma história de detetive cujo protagonista, Rick Deckard, é delegado a eliminar andróides (ou “replicantes”, em seu universo) da série Nexus 6, que se infiltraram entre os humanos. O que começa como uma história de gato e rato logo ganha contornos épicos sobre a natureza da consciência e o que faz de cada um de nós humanos. O filme ainda contava com efeitos especiais de ponta, trazendo para a Terra toda uma visão apocalíptica e desoladora de um futuro hipercomercial e sem a menor preocupação com o meio ambiente. K. Dick, que morreria no mesmo ano de estréia do filme, sem conseguir assistir à sua versão final, assistiu a um trecho dos bastidores em um programa de TV e escreveu a seguinte carta ao produtor Jeff Walker, que pode ser encontrada no site que a família do autor mantém sobre sua obra:

Caro Jeff:

Assisti ao programa Hooray for Hollywood, que passou hoje à noite no canal 7, com uma matéria sobre BLADE RUNNER (bem, para ser honesto, eu não assisto a esse programa; alguém me avisou que iriam fazer uma matéria sobre BLADE RUNNER e que seria bom se eu assistisse). Jeff, depois de assistir – e especialmente depois de ouvir Harrison Ford discutir o filme -, cheguei à conclusão que isso não é ficção científica; e que não é fantasia; isso é exatamente aquilo que Harrison disse: futurismo. O impacto de BLADE RUNNER será simplesmente surpreendente, tanto no público quanto nas pessoas criativas – e, eu acredito, na ficção científica como um todo. Desde que comecei a escrever e a vender obras de ficção científica há trinta anos que isso é algo importante para mim. Devo dizer com toda franqueza que esta área gradualmente e permanentemente vem se deteriorando nos últimos anos. Nada que fizemos, individualmente ou coletivamente, chega aos pés de BLADE RUNNER. Não é escapismo; é super-realismo, tão realista e detalhado e autêntico e convicnente que, bem, depois de assistir ao programa eu reencontrei pálida, por comparação, a minha “realidade” atual. O que quero dizer é que todos vocês podem ter criado coletivamente uma forma única de expressão artística e gráfica que nunca foi vista. E, eu acho, BLADE RUNNER pode revolucionar nossos conceitos sobre o que é a ficção científica e, mais, o que ela pode ser.

Deixe-me resumir desta forma. A ficção científica preparou lenta e inevitavelmente uma morte monótona para si mesma: tornou-se senso comum, derivativa, rasa. De repente, vocês aparecem, alguns dos melhores talentos que existem hoje em dia, e agora temos uma nova vida, um novo começo. E sobre o meu papel no projeto BLADE RUNNER, só posso dizer que nunca havia imaginado que um trabalho meu – ou um conjunto de ideias minhas – poderia ser elevado a dimensões tão inacreditáveis. Minha vida e meu trabalho criativo estão justificados e completos graças à BLADE RUNNER. Obrigado… e será um tremendo sucesso comercial. Provará-se invencível.

Cordialmente,

Philip K. Dick

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Bukowsky por ele mesmo

Entrevista de 1987 feita por Sean Penn enquanto estava em Los Angeles para protagonizar “Barfly“, a cinebiografia sobre a vida de Charles Bukowski (papel que ele acabou perdendo pro Mickey Rourke). Na entrevista Bukowski fala sobre as mesmas questões que estão sempre presentes em seus livros, contos e poemas, da mesma forma desbocada e debochada/cínica/bêbada/demente que lhe é peculiar.

BARES: “Eu não vou muito a bares. Tirei isso do meu sistema. Hoje, quando entro num bar, sinto náuseas. Freqüentei muito, enche o saco. Os bares servem para quando somos jovens e queremos brigar, dar uma de macho, arrumar umas mulheres. Na minha idade, eu não preciso mais dessas coisas. Agora só entro nos bares para urinar. Às vezes, entro e já começo a vomitar”.

ÁLCOOL: “O álcool é provavelmente uma das melhores coisas que chegaram à Terra, além de mim. Nos entendemos bem. É destrutivo para a maioria das pessoas, mas eu sou um caso à parte. Faço todo o meu trabalho criativo quando estou intoxicado. O álcool, inclusive, me ajudou muito com as mulheres. Sempre fui reticente durante o sexo, e ele me permitiu ser mais livre na cama. É uma liberação porque basicamente eu sou uma pessoa tímida e introvertida, e ele me permite ser este herói que atravessa o espaço e o tempo, fazendo uma porção de coisas atrevidas… O álcool gosta de mim.”

FUMAR: “O cigarro e o álcool se equilibram. Certa vez, ao despertar de uma embriaguês, notei que havia fumado tanto que minhas mãos estavam amarelas, quase marrons, como se eu tivesse colocado luvas. E passei a reclamar: ‘Droga! Como estarão os meus pulmões?’”

BRIGAR: “A melhor sensação é quando você acerta um sujeito que todo mundo acha impossível. Certa ocasião enfrentei um cara que estava me xingando. Falei pra ele: ‘Tudo bem, venha’. Não tive problema – ganhei a briga facilmente. Caído no chão, com o nariz ensangüentado, ele falou: ‘Jesus, você se move tão lentamente que pensei que seria fácil. Mas quando começou a briga, eu não conseguia nem ver as tuas mãos. O que aconteceu?’. Respondi: ‘Não sei, cara. As coisas são assim. Um homem se prepara para o dia que precisa’.”

GATOS: “É bom ter um monte de gatos em volta. Se você está mal, basta olhar pra eles e fica melhor, porque eles sabem que as coisas são como são. Não tem porque se entusiasmar com a vida, e eles sabem. Por isso, são salvadores. Quantos mais gatos um sujeito tiver, mais tempo viverá. Se você tem cem gatos, viverá dez vezes mais que se tivesse dez. Um dia, isso será descoberto: as pessoas terão mil gatos e viverão para sempre.”

MULHERES, SEXO: “Eu as chamo de máquinas de queixas. As coisas entre elas e os homens nunca estão bem para elas. E quando vêm com essa histeria… Ah, eu tenho que sair, pegar o carro, ir embora para qualquer lugar. Tomar café em algum canto, fazer qualquer coisa, menos encontrar outra mulher. Acho que elas são feitas de maneira diferente, não? Quando a histeria começa, o cara tem de ir embora e elas não entendem porque. ‘Onde vai?’, gritam. ‘Vou à merda, querida!’. Pensam que sou um misógino, mas não é verdade. É fofoca. Ouvem por aí que Bukowski é ‘um porco chauvinista’, mas não vêm de onde partiu o comentário. Verdade! Às vezes, eu pinto uma má imagem das mulheres nos meus contos, e faço a mesma coisa com os homens. Até eu me ferro nesses escritos. Se realmente não gostar de uma coisa, digo que é ruim, seja homem, mulher, criança ou cachorro. As mulheres são tão encanadas que pensam que são meu alvo especial. Esse é o problema delas.”

PRIMEIRA VEZ: “Minha primeira vez foi insólita. Não sabia como fazer, e ela me ensinou todas essas coisas de sacanagem. Lembro que ela dizia: ‘Hank, você é um bom escritor, mas não sabe nada sobre as mulheres.’ ‘O que você está dizendo? Eu já estive com uma porção de mulheres.’ ‘Não, não sabe nada. Vou te ensinar algumas coisas.’ Concordei. Depois, e ela disse: ‘Você é bom aluno, entende rápido’. [Bukowski faz cara de envergonhado. Não pelos detalhes, mas pelo sentimento da lembrança.] Mas esse assunto de … Eu gosto de servir a mulher, mas isso tudo tá tão exagerado! O sexo só é bom quando você não o faz.”

ESCREVER: “Escrevi um conto a partir do ponto de vista de um violentador de uma menininha. E as pessoas passaram a me acusar. Diziam: ‘Você gosta de violentar criancinhas?’. Eu disse: ‘Claro que não. Estou fotografando a vida’. De repente, estava envolvido com uma porrada de problemas. Por outro lado, os problemas vendem livros. Em última instância, eu escrevo para mim. [Bukowski dá uma longa tragada em seu cigarro.] É assim. A tragada é para mim, a cinza é para o cinzeiro. Isto é publicar. Nunca escrevo de dia porque é como ir pelado a um supermercado – todos te podem ver. À noite é quando saem os truques da manga… E vem a magia.”

POESIA: “Faz séculos que a poesia é quase um lixo total, uma farsa. Tivemos grandes poetas, entenda bem. Existiu um poeta chinês chamado Li Po que tinha a capacidade de colocar mais sentimento, realismo e paixão em quatro ou cinco simples linhas que a maioria dos poetas em suas doce ou treze páginas de merda. Li Po bebia vinho também e costumava queimar seus poemas, navegar pelo rio e beber vinho. Os imperadores o amavam porque entendiam o que ele dizia. Lógico que ele só queimou os maus poemas. O que eu quis fazer, desculpem, é incorporar o ponto de vista dos operários sobre a vida… Os gritos de suas esposas que os esperam quando voltam do trabalho. As realidades básicas da existência do homem comum… Algo que poucas vezes se menciona na poesia há muito tempo.”

SHAKESPEARE: “É ilegível e está demasiadamente valorizado. Só que as pessoas não querem ouvir isso. Ninguém pode atacar templos. Shakespeare foi fixado à mente das pessoas ao longo dos séculos. Você pode dizer que fulano é um péssimo ator, mas não pode dizer que Shakespeare é uma merda. Quando alguma coisa dura muito tempo, os esnobes começam a se agarrar a ela como pás de um ventilador. Quando os esnobes sentem que algo é seguro, se apegam. E se você lhes disser a verdade, eles se transformam em bichos. Não suportam a negação. É como atacar o seu próprio processo de pensamento. Esses caras me enchem o saco.”

HUMOR E MORTE: “Para mim, o último grande humorista foi um cara chamado James Thurber. Seu humor era tão real que as pessoas gritavam de rir, como numa liberação frenética. Eu tenho um ‘fio cômico’ e estou ligado a ele. Quase tudo o que acontece é ridículo. Defecamos todos os dias – isso é ridículo, não? Temos que continuar urinando, pondo comida em nossas bocas, sai cera de nossos ouvidos… As tetas, por exemplo, não servem para nada, exceto…”.

NÓS: “A verdade é que somos umas monstruosidades. Se pudéssemos nos ver de verdade, saberíamos como somos ridículos com nossos intestinos retorcidos pelos quais deslizam lentamente as fezes… enquanto nos olhamos nos olhos e dizemos: ‘Te amo’. Fazemos e produzimos uma porção de porcarias, mas não peidamos perto de uma pessoa. Tudo tem um fio cômico.”

GANHAR: “E depois de tudo, morremos. Mas a morte não nos ganhou. Ela não mostrou nenhuma credencial; nós é que nos apresentamos com tudo. Com o nascimento, ganhamos a vida? Não, verdadeiramente, mas a filha da puta da morte nos sufoca… A morte me provoca ressentimento, a vida também, e muito mais estar pressionado entre as duas. Você sabe quantas vezes eu tentei o suicídio? Me dá um tempo, tenho só 66 anos. Quando alguém tem tendências suicidas, nada o incomoda, exceto perder nas corridas de cavalos.”

AS CORRIDAS: “Durante um tempo quis ganhar a vida com as corridas de cavalos. É doloroso, vigoroso. Tudo está no limite, o dinheiro do aluguel, tudo. É preciso ter cuidado. Uma vez, eu estava sentado numa curva, haviam doze cavalos na disputa, todos amontoados. Parecia um grande ataque. Tudo o que eu via era essas grandes traseiras de cavalos subindo e descendo… Pareciam selvagens. Pensei: ‘Isso é uma loucura total’. Mas tem outros dias em que você ganha 400 ou 500 dólares, ganha oito ou nove corridas, e se sente Deus, como se soubesse tudo.”

AS PESSOAS: “Não olho muito as pessoas. É perturbador. Dizem que se você olha muito para uma outra pessoa acaba ficando parecido com ela. Pobre Linda! Na maioria das vezes eu posso passar sem as pessoas. Elas me esvaziam e eu não respeito ninguém. Tenho problemas nesse sentido. Estou mentindo, mas, creia-me: é verdade.”

A FAMA: “É uma cadela, é a maior destruidora de todos os tempos. A fama é terrível, é uma medida numa escala do denominador comum que sempre trabalha num nível baixo. Não tem valor nenhum. Uma audiência seleta é muito melhor.”

SOLIDÃO: “Nunca me senti só. Durante um tempo fiquei numa casa, deprimido, com vontade de me suicidar, mas nunca pensei que uma pessoa podia entrar na casa e curar-me. Nem várias pessoas. A solidão não é coisa que me incomoda porque sempre tive esse terrível desejo de estar só. Sinto solidão quando estou numa festa ou num estádio cheio de gente. Cito uma frase de Ibsen: ‘Os homens mais fortes são os mais solitários’. Viu como pensa a maioria: ‘Pessoal, é noite de sexta, o que vamos fazer? Ficar aqui sentados?’. Eu respondo sim porque não tem nada lá fora. É estupidez. Gente estúpida misturada com gente estúpida. Que se estupidifiquem eles, entre eles. Nunca tive a ansiedade de cair na noite. Me escondia nos bares porque não queria me ocultar em fábricas. Nunca me senti só. Gosto de estar comigo mesmo. Sou a melhor forma de entretenimento que posso encontrar.”

TEMPO LIVRE: “É muito importante e temos que parar por completo, não fazer nada por longos períodos para não perdê-los inteiramente. Ficar na cama olhando o teto. Quem faz isso nesta sociedade moderna? Pouquíssimas pessoas. Por isso é que a maioria está louca, frustrada, enojada e com ódio. Antes de me casar, ou de conhecer muitas mulheres, eu baixava as cortinas e me punha na cama por três ou quatro dias. Levantava só para ir ao banheiro e comer uma lata de feijão. Depôs me vestia e saía à rua. O sol brilhava e os sons eram maravilhosos. Me sentia poderoso como uma bateria recarregada.”

BELEZA: “A beleza não existe, especialmente num rosto humano – ali está apenas o que chamamos fisionomia. Tudo é um imaginado, matemático, um conjunto de traços. Por exemplo, se o nariz não sobressai muito, se as costas estão bem, se as orelhas não são demasiadamente grandes, se o cabelo não é muito comprido. Esse é um olhar generalizante. A verdadeira beleza vem da personalidade e nada tem a ver com a forma das sobrancelhas. Me falam de mulheres que são lindas… Quando as vejo, é como olhar um prato de sopa.”

FIDELIDADE: “Não existe. Há algo chamado deformidade, mas a simples fidelidade não existe.”

IMPRENSA: “Aproveito as coisas más que dizem sobre mim para aumentar a venda de livros e me sentir malvado. Não gosto de me sentir bem porque sou bom. Mas, mau? Sim, me dá outra dimensão. Gosto de ser atacado. ‘Bukowski é desagradável!’ Isso me faz rir, gosto. ‘É um escritor desastroso!’ Rio mais ainda. Mas quando um cara me diz que estão dando um texto meu como material de leitura numa universidade, fico espantado. Não sei, me assusta ser muito aceito. Parece que fiz alguma coisa errada.”

O DEDO: [Ergue o dedo mínimo de sua mão esquerda] “Você viu alguma vez este dedo? [O dedo parece paralisado em forma de “L”]. Quebrei uma noite, bêbado. Não sei porque, ele nunca voltou ao normal. Mas funciona bem para a letra ‘a’ da máquina de escrever, e – que mistério! – acrescenta coisas aos meus personagens.”

VALENTIA: “Falta imaginação à maioria das pessoas supostamente valentes. É como se não pudessem conceber o que aconteceria se alguma coisa saísse mal. Os verdadeiros valentes vencem a sua imaginação e fazem o que devem fazer.”

MEDO: “Não sei nada sobre isso.” [Risos]

VIOLÊNCIA: “Acho que, na maioria das vezes, a violência é mal interpretada. Faz falta uma certa violência. Existe em nós uma energia que precisa ser liberada. Se ela for contida, ficamos loucos. Às vezes, chamam de violência à expulsão da energia com honra. Existe loucura interessante e loucura desagradável; há boas e más formas de violência. Sei que é um termo vago, mas ela fica bem se não acontecer às custas dos outros.”

DOR FÍSICA: “Com o tempo, o cara se endurece e agüenta. Quando eu estava no Hospital Geral, um cara entrou e disse: ‘Nunca vi ninguém agüentar a agulha com tanta frieza’. Ora, isso não é valentia. Se o sujeito agüenta, alguém cede. É um processo, um ajuste. Mas não existe maneira de se acostumar com a dor mental. Fico longe dela.”

PSIQUIATRIA: “O que conseguem os pacientes psiquiátricos? Uma conta. Creio que o problema entre um psiquiatra e seu paciente é que o psiquiatra atua de acordo com o livro, ainda que o paciente chegue pelo que a vida lhe fez. E mesmo que o livro possa ter certa astúcia, as páginas sempre são as mesmas e cada paciente é diferente. Existem muito mais problemas individuais que páginas. Tem muita gente louca para resolvê-los, dizendo: ‘São tantos dólares por hora e quando a campainha tocar a sessão estará terminada’. Isso só pode levar um cara um pouco louco à loucura total. Quando as pessoas começam a se abrir e sentir bem, o psiquiatra diz: ‘Enfermeira, marque a próxima consulta’. O cara tá aí para sugar, não para curar. Quer o teu dinheiro. Quando toca a campainha, que entre o louco seguinte. Aí o louco sensível vai perceber que quando toca a campainha, é sinal que o fodeu. Não existem limites de tempo para curar a loucura. Muitos psiquiatras que vi parecem estar no limite deles mesmos, mas estão bem acomodados. Ah, os psiquiatras são totalmente inúteis. Próxima pergunta…”

FÉ: “Tudo bem que as pessoas a tenham, mas não me venham enfiar isso na cabeça. Tenho mais fé no encanador que no Ser Eterno.”

CINISMO: “Me chamaram sempre de cínico. Creio que o cinismo é uma uva amarga, uma debilidade. É dizer: ‘Tudo está uma merda. Isso não tá bom, aquilo tá ruim’. O cinismo é a debilidade que evita que nos ajustemos ao que acontece no momento. O otimismo também é uma debilidade: ‘O sol brilha, os pássaros cantam, sorria.’ Isso é uma merda igual. A verdade está em algum ponto entre os dois. O que é, é. Se você não está disposto a suportar a verdade, dane-se!”

MORALIDADE CONVENCIONAL: “Pode ser que não exista o infernhttp://www.blogger.com/img/blank.gifo, mas os que julgam podem perfeitamente criá-lo. As pessoas estão muito domesticadas. O cara tem que ver o que acontece e como vai reagir. Vou usar um termo estranho aqui: o bem. Não sei de onde vem, mas sinto que existe um componente de bondade em cada um de nós. Não acredito em Deus, mas creio nessa ‘bondade’ como um tubo que está dentro de nossos corpos e que pode ser alimentada. Ela é sempre mágica quando, por exemplo, numa estrada sobrecarregada de automóveis, um estranho te oferece lugar para mudar de mão.”

SOBRE SER ENTREVISTADO: “É vergonhoso e, por isso, nem sempre digo toda a verdade. Gosto de brincar e mentir um pouco. Daí que dou informações falsas só pelo gosto de distrair. Se quiserem saber alguma coisa de mim, não leiam uma entrevista. Ignorem esta, também”.

Fonte: Canibuk

sábado, 25 de junho de 2011

Parte 1 - Cap. 1 - "On the road", de Jack Kerouac

Encontrei Dean pela primeira vez não muito depois que minha mulher e eu nos separamos. Eu tinha acabado de me livrar de uma doença séria da qual nem vale a pena falar, a não ser que teve algo a ver com a separação terrivelmente desgastante e com a minha sensação de que tudo estava morto. Com a vinda de Dean Moriarty começa a parte da minha vida que se pode chamar de vida na estrada. Antes disso eu tinha sonhado muitas vezes em ir para o Oeste conhecer o país, mas não passavam de planos vagos e eu nunca dava a partida. Dean é o cara perfeito para a estrada simplesmente porque nasceu na estrada quando seus pais estavam passando por Salt Lake City em 1926, a caminho de Los Angeles, num calhambeque caindo aos pedaços. As primeiras notícias sobre ele chegaram através de Chad King, que havia me mostrado algumas cartas que ele escrevera num reformatório do Novo México. Fiquei ligadíssimo nas cartas por causa do jeito ingênuo e singelo com que elas pe-diam a Chad para lhe ensinar tudo sobre Nietzsche e todas aquelas maravilhas intelectuais que Chad conhecia. Certa vez Carlo e eu falamos a respeito das cartas e nos perguntamos se algum dia iríamos conhecer o estranho Dean Moriarty. Tudo isso foi há muito tempo, quando Dean não era do jeito que ele é hoje, quando era um delinqüente juvenil envolto em mistério. Então chegaram as notícias de que Dean havia se mandado do reformatório e estava vindo para Nova York pela primeira vez; falava-se também que ele tinha acabado de casar com uma garota chamada Marylou.

Um dia eu vagabundeava pelo campus quando Chad e Tim Gray me disseram que Dean estava hospedado numa daquelas espeluncas sem água quente no East Harlem, o Harlem espanhol. Tinha chegado na noite anterior, pela primeira vez em Nova York, com sua gostosa gata linda Marylou; eles saltaram do ônibus Greyhound na rua 50, dobraram a esquina procurando um lugar onde comer e deram de cara com a Hector's, e a partir de então a cafeteria Hector's se transformou para sempre num grande símbolo de Nova York para Dean. Eles gastaram dinheiro em belos bolos enormes com glacê e bombas de creme.

O tempo inteiro Dean estava dizendo para Marylou coisas do tipo: "Então, garota, cá estamos nós em Nova York, e embora eu não tenha te contado tudo que estava passando pela minha cabeça quando a gente atravessou o Missouri, especialmente na hora em que passamos pelo reformatório de Booneville, que me lembrou do meu problema na prisão, é absolutamente imprescindível dar um tempo em todos os detalhes pendentes do nosso caso e, de uma vez por todas, começar a pensar em planos específicos para nossa vida profissional...". E assim por diante, do jeito que ele falava naquele tempo.

Fui à tal espelunca sem água quente com a rapaziada e Dean abriu a porta de cueca. Marylou estava saltando do sofá, Dean tinha expulsado o inquilino do apartamento para a cozinha, provavelmente para que fizesse café, enquanto ele dava prosseguimento às questões amorosas, já que, para ele, sexo era a primeira e única coisa sagrada e realmente importante na vida, ainda que ele tivesse que suar e blasfemar para ganhar o pão e assim por diante. Dava para perceber isso pela maneira como ele parava curvando a cabeça, sempre olhando para baixo, assentindo como um boxeador novato ao receber instruções, fazendo você pensar que ele estava escutando cada palavra, cuspindo milhões de "sins" e "claros" o tempo inteiro. A primeira impressão que tive de Dean foi a de um Gene Autry mais moço - esperto, esguio, olhos azuis, com um genuíno sotaque de Oklahoma -, um herói de suíças do Oeste nevado. Na verdade ele tinha trabalhado num rancho, o de Ed Wall, no Colorado, antes de casar com Marylou e vir para o Leste. Marylou era uma loira linda, com enormes cachos de cabelos derramando-se num mar de ondas douradas. E ela ficava ali sentada, na beira do sofá, com as mãos pousadas no colo e os olhos caipiras azuis-esfumaçados fixos numa expressão assustada porque estava num pardieiro cinzento e maligno de Nova York do tipo que tinha ouvido falar lá no Oeste, e ela ficava ali pregada, longilínea e magricela como uma daquelas mulheres surrealistas das pinturas de Modigliani num quarto sem graça. Embora fosse uma gatinha, ela era terrivelmente estúpida e capaz de coisas horríveis. Aquela noite todos nós bebemos cerveja, jogamos queda-de-braço e conversamos até o amanhecer e, de manhã, enquanto fumávamos em silêncio baganas dos cinzeiros na luz opaca de um dia sombrio, Dean levantou-se nervosamente, andou em círculos, pensativo, e decidiu que a melhor coisa a fazer era mandar Marylou preparar o café e varrer o chão: "Em outras palavras, garota, o que estou dizendo é: temos mais é que entrar na dança rapidinho, do contrário, a gente fica aí numa flutuante, sem cair na real. e nossos planos jamais se cristalizarão". Aí, eu caí fora.

Tradução: Eduardo Bueno
Ilustração: Rik Rawling

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quarta-feira, 22 de junho de 2011

Heavy Metal - A História Completa

Apesar do texto excessiva e desnecessariamente “épico” que, em alguns trechos, parece ter sido escrito por Joey DeMaio, do Manowar, ou por alguém do Massacration (o que, na verdade, não faria muita diferença), da tradução descuidada e da capa da edição brasileira, absolutamente horripilante, “Heavy Metal, a História Completa”, do norte-americano Ian Christe, é, provavelmente, a melhor e mais completa obra já escrita sobre este estilo musical que desperta sentimentos igualmente intensos de amor e ódio (nunca indiferença) ao redor do mundo.

Tudo começa, evidentemente, com o Black Sabbath, e é este o primeiro dos muitos acertos do autor: apesar de terem havido precursores, como o Blue Cheer e seu intenso “Vincebus eruption”, foi com o Black Sabbath que o metal deu seus primeiros passos. Outra sentença do livro com a qual eu concordo é a de que a maioridade do estilo foi alcançada no final dos anos 70, quando o Judas Priest deixou de ser “apenas” mais uma boa banda de Hard rock para se assumir, explicitamente, como Heavy metal, coisa que o Sabbath nunca fez. O Judas lapidou o estilo tanto musical quanto visualmente, com toda aquela já célebre iconografia repleta de tachinhas de metal ornamentando roupas de couro. Daí para a NWOBHM e a “festa” que foram os anos 80 foi um pulo ...

Christe dá um destaque especial para algumas bandas, notadamente o Metallica, cuja trajetória é praticamente esmiuçada e, a partir de determinado momento do livro, serve como fio condutor da narrativa. Narrativa que é rebuscada, detalhada e, mais importante, perfeitamente contextualizada – além de ser pontuada por infinitas listas, uma verdadeira obsessão do autor. Tem lista pra tudo: de maiores discos da história deste ou daquele subgênero (alguns bem obscuros) às músicas de maior duração.

Foi assim, com este apreço à analise e à contextualização, que fatos como a “corrida pela velocidade” deflagrada pelo “speed metal” são esmiuçados de forma extremamente competente - corrida ganha, diga-se de passagem, pelo Napalm Death, que com seu até hoje impressionante “From Slavement to obliteration” fez surgir um novo subgênero musical, o mais infame e extremo de todos, o “grindcore” (acho o segundo disco do Napalm mais emblemático para o estilo, já que “scum” ainda carrega fortemente a sonoridade do Hard Core “crust”). O mesmo acontece com o trecho que discorre sobre o flerte do metal com o rap, que começou com o Aerosmith e o Run DMC e desembocou na antológica colaboração entre o Anthrax e o Public Enemy, passando pelo “funk metal” do Faith No More e pelo furioso Body Count, de Ice T. - o livro reproduz, por sinal, muitas declarações de Chuck D., certamente uma das maiores cabeças pensantes da música contemporânea.

A narrativa é, ainda, pontuada por deliciosas histórias de bastidores, algumas bastante desconhecidas, outras de amplo conhecimento publico mas que acabam adquirindo uma nova dimensão ao serem inseridas numa linha de tempo que demonstra o quanto a história do Heavy Metal é rica em fatos e conceitos. Exemplo: eu não sabia, mas o Celtic Frost não foi mais uma das muitas bandas a simplesmente piratear uma imagem de HR Giger para reproduzi-la na capa de um de seus discos. Segundo Christe, eles entraram em contato com o artista plástico via carta e foram surpreendentemente bem recebidos pelo mesmo, ao ponto de se tornarem amigos de longa data. Outro exemplo: há uma engraçadíssima descrição de como o Manowar se aproveitou da suposta “traição” do Metallica para se promover - os membros da clássica banda thrash californiana haviam cortado os cabelos e recheado o encarte de seu último disco com fotos tiradas por um fotógrafo da moda, Anton Corbijn. Por conta disso, em seus shows da época os eternos guerreiros do metal, assim que identificavam alguém com uma camiseta da banda “rival” na platéia, o chamavam ao palco e o exortavam a abandonar aquele “caminho da perdição” e voltar ao seio do verdadeiro Heavy Metal. A “conversão” era coroada pela troca da camiseta por outra do Manowar, entre goles de Jack Daniels, para o delírio da audiência.

Um dos melhores capítulos de toda a obra, no entanto, é o que disseca a polêmica cena Black metal da Noruega com uma lucidez e apego aos detalhes poucas vezes vista. Sua análise, mais uma vez, é precisa, ao explicar, por exemplo, como o cristianismo foi imposto de forma violenta ao país dos vikings há cerca de mil anos atrás, o que gerou um descontentamento histórico que perdura até hoje em boa parte da população. A análise do autor vai além da abordagem simplista e sensacionalista focada apenas na queima de igrejas e no culto ao satanismo para explorar a inventividade de boa parte dos nomes mais célebres do cenário da época, cujo som ia do minimalismo extremo e selvagem a sofisticados climas “ambient” onde procuravam reproduzir a atmosfera lúgubre das florestas de sua terra – tudo isso, é claro, sem deixar de contar, em detalhes, toda a história do mais famoso epísódio ocorrido no período, o assassinato de Euronymous, do Mayhen, por Varg Vikernes, do Burzum.

O livro só não é mais completo porque foi publicado originalmente em 2003, o que nos deixa ávidos por colher as impressões do autor sobre alguns fatos recentes e marcantes na história do estilo, como o lançamento dos documentários de Sam Dunn (a quem ele indiretamente acusou de plágio recentemente em uma entrevista) e a impressionante “volta por cima” do Iron Maiden que, depois de uma longa fase de decadência nos anos 90, começou a se recuperar com a volta de Bruce Dickinson (devidamente registrada no livro), na virada do milênio, e hoje está novamente no topo, com direito a premiação no Grammy e tietagem explicita de Lady Gaga, a maior estrela pop da atualidade – tudo isso coroado pela antológica turnê “somewhere back in time world tour”, que levou a banda a incluir em seu roteiro de shows territórios ainda não exploradas, como a vizinha Recife, em Pernambuco.

Grande livro, enfim, ricamente ilustrado, impresso em papel de boa qualidade e com uma encadernação gostoso de se manusear. Recomendo a leitura, sem sombra de dúvidas.

por Adelvan kenobi

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Detalhes:

TÍTULO: HEAVY METAL: A HISTORIA COMPLETA
TÍTULO ORIGINAL: SOUND OF THE BEAST: THE COMPLETE HEADBANGING HISTORY OF HEAVY METAL
ISBN: 9788502085374
AUTOR: Ian Christe
TRADUTOR: Milena Durante | Augusto Zantoz

IDIOMA: Português
ENCADERNAÇÃO: Brochura
FORMATO: 16 x 23
PÁGINAS: 480
ANO DA OBRA/COPYRIGHT: 2003
ANO DE EDIÇÃO: 2010
EDIÇÃO:

segunda-feira, 20 de junho de 2011

1. "Nada de novo no front", de Erich Maria Remarque

Este livro não pretende ser um libelo nem uma confissão, e menos ainda uma aventura, pois a morte não é uma aventura para aqueles que se deram face a face com ela. Apenas procura mostrar o que foi uma geração de homens que, mesmo tendo escapado às granadas, foram destruídos pela guerra.

* * *

Estamos a nove quilômetros da linha de frente. Ontem fomos substituídos, e agora estamos com a barriga cheia de feijão branco com carne de vaca, satisfeitos e contentes. Cada um conseguiu apanhar até mesmo uma marmita para a noite, e ainda nos deram rações duplas de lingüiça e pão ― foi um bom negócio! Há muito que não acontece um caso destes: o cozinheiro, com sua cabeça vermelha como um tomate, oferecendo-nos comida ele próprio. A cada um que passa, acena com a colher e dá-lhe uma boa porção. Está desesperado, porque não sabe como esvaziar seu caldeirão. Tjaden e Müller arranjaram duas tigelas e encheram-nas até a beirada, como reserva. Tjaden o faz por gula; Müller, por precaução. Onde quer que vá, Tjaden é um enigma para todos: ninguém consegue saber onde armazena aquilo tudo; ele é, e continua sendo, um magricela, seco como um arenque defumado.

O mais espantoso, porém, é que as rações de fumo também foram dobradas. Para cada um, havia dez charutos, vinte cigarros e dois rolos de fumo de mascar ― é muita atenção! Troquei meu fumo de mascar pelos cigarros de Katczinsky, o que significa para mim quarenta cigarros: já dá para um dia.

Diga-se, a bem da verdade, que toda esta distribuição não era para nós. Os prussianos não são dados a essas generosidades. Foi devido a um engano que recebemos tanto. Há quinze dias, tivemos de ir para a linha de frente, para revezamento. O nosso setor estava razoavelmente calmo; por isso, o cozinheiro recebera para o dia da volta a quantidade normal de mantimentos e tinha se preparado para alimentar uma companhia de cento e cinqüenta homens. Acontece que, justamente no último dia, estivemos sob fogo cerrado da artilharia inglesa, que martelara nossa posição sem cessar, de modo que tivemos muitas baixas e voltamos com apenas oitenta homens. Era noite quando chegamos, e logo nos deitamos para dormir. Porque Katczinsky está com a razão: a guerra não seria tão insuportável se a gente pudesse dormir mais. Isto nunca se consegue na linha de frente, e quinze dias representam muitas horas de pouco sono.

Já era meio-dia quando os primeiros começaram a se arrastar para fora das barracas. Meia hora depois, cada um pegara a sua marmita e fora se reunir aos outros, diante do caldeirão de gulasch, que cheirava a gordura. Na ponta, é claro, os mais esfomeados: o pequeno Albert Kropp, o mais inteligente de nós, que, por isso, já é cabo; Müller, que ainda carrega livros escolares e sonha com o exame de segunda época; debaixo de fogo cerrado, estuda teoremas de física; Leer, que deixou crescer a barba e tem predileção pelas garotas dos bordéis reservados para os oficiais; ele jura que, por ordem do exército, elas são obrigadas a usar combinação de seda e tomar banho antes, quando se trata de clientes acima do posto de capitão; e, em quarto lugar, eu, Paul Bãumer. Todos os quatro com dezenove anos, todos os quatro saídos da mesma turma para a guerra.

Logo atrás vêm nossos amigos: Tjaden, um ferreiro magro, de nossa idade, o maior comilão da companhia. Magro como um espeto, senta-se para comer e levanta-se gordo como uma rã inchada. Haie Westhus, também da nossa idade, turfeiro, que facilmente esconde uma grande broa numa das mãos e ainda pergunta: “Adivinhe o que tenho nesta mão?”. Detering, um camponês, que não pensa em outra coisa senão em sua fazenda e em sua mulher; e, finalmente, Stanislas Katczinsky, o líder do nosso grupo: enérgico, esperto, quarenta anos, com uma cor terrosa, olhos azuis, ombros caídos e um faro extraordinário para descobrir perigo, boa comida e lugares seguros. Nosso grupo formava a cabeça da fila em frente ao caldeirão de gulasch. Ficamos impacientes, porque o cozinheiro continuava imóvel, esperando ingenuamente que viessem mais companheiros. Finalmente, Katczinsky gritou:

― Abra logo este negócio, Henrique. Não vê que o feijão já está cozido?

Sonolento, o cozinheiro sacudiu a cabeça:

― Só quando estiverem todos aí.

Tjaden sorriu:

― Já estamos todos aqui.

O cabo ainda não percebera nada.

― Sei que é disto que gostariam. Onde estão os outros?

― Hoje não é você quem vai tratar deles. Pode deixar tudo por conta do hospital e do coveiro.

O cozinheiro ficou aturdido quando compreendeu o que ocorrera e chegou a perder o equilíbrio por um instante.

― E eu que cozinhei para cento e cinqüenta homens!...

Kropp deu-lhe uma cotovelada.

― Então, até que enfim vamos nos satisfazer. Vamos, ande logo!

Mas, de repente, a luz da compreensão acendeu-se em Tjaden. Seu rosto afilado de camundongo começou a iluminar-se, os olhos estreitaram-se maliciosamente, as bochechas tremeram e ele aproximou-se o mais que pôde:

― Mas nesse caso... também recebeu pão para cento e cinqüenta homens, não é?

O cabo, confuso e ainda tonto, concordou com a cabeça. Tjaden segurou-o pela túnica:

― E lingüiça também?

O Cabeça de Tomate assentiu novamente. O queixo de Tjaden tremia:

- Fumo... Também?

― Sim, tudo.

Extasiado, Tjaden olhou em redor:

― Puxa! Isto é que se chama sorte! Quer dizer que é tudo para nós! Cada um recebe, então... espere... de fato, são exatamente porções dobradas!

Mas o Cabeça de Tomate voltou a si e declarou:

― Não pode ser.

Então, nós também despertamos e aproximamo-nos:

― E por que não pode ser, seu cara de cenoura? ― perguntou Katczinsky. ― O que era para cento e cinqüenta homens não pode ser para oitenta.

― Nós vamos ensinar-lhe ― resmungou Müller.

― A comida não me importa, mas só posso dar porções para oitenta homens ― insistiu o Cabeça de Tomate.

Katczinsky começou a irritar-se.

― Você está precisando ser substituído, sabe? Não recebeu comida para oitenta homens: recebeu a bóia para a Segunda Companhia, e pronto. E essa bóia você vai distribuir. A Segunda Companhia somos nós.

Aproximamo-nos ainda mais. Ninguém gostava mesmo dele; várias vezes, já fora o culpado de termos recebido a comida nas trincheiras muito depois da hora e já fria, porque ele não tinha coragem de se aproximar sob o mais leve bombardeio, e, por isso, o nosso estafeta era obrigado a atravessar um caminho bem mais longo do que o das outras companhias. O Bulcke, por exemplo, da Primeira, era um sujeito mais camarada. É bem verdade que era gordo como um urso no inverno, mas, quando necessário, arrastava seus panelões até a linha mais avançada.

Estávamos bem exaltados, e, com certeza, teria havido briga, se o comandante da nossa Companhia não tivesse aparecido. Perguntou o motivo da discussão e, para começar, disse apenas:

― É, ontem tivemos muitas baixas...

Depois, olhou para dentro do caldeirão:

― O feijão parece muito bom ― disse.

O Cabeça de Tomate concordou:

― Foi feito com banha e carne.

O tenente nos olhou. Sabia o que estávamos pensando. Além disso, sabia ainda muito mais, pois fora entre nós que crescera, e fora como cabo que entrara na Companhia. Levantou novamente a tampa do caldeirão, cheirou e, afastando-se, disse:

― Traga um prato cheio para mim também. E as porções devem ser todas distribuídas. Bem que estamos precisando.

O Cabeça de Tomate ficou com cara de bobo, enquanto Tjaden dançava à sua volta.

― Não vai lhe fazer mal nenhum. Ele se comporta como se o Serviço de Alimentação fosse unicamente seu. E agora vamos começar, seu velho sovina, e veja se não erra a conta...

― Vá à merda! ― gritou o Cabeça de Tomate. Explodia de raiva, pois sua compreensão não alcançava os fatos. Não entendia mais o mundo. E, como se quisesse mostrar que nada mais importava, distribuiu, espontaneamente, mais duzentas e cinqüenta gramas de mel artificial para cada um.

Hoje é realmente um grande dia. Até o Correio chegou: quase todos receberam algumas cartas e revistas. Agora, estamos passeando em direção ao campo que fica atrás das barracas. Kropp leva debaixo do braço a tampa de um barril de margarina. Do lado direito do gramado, construíram grandes latrinas, com telhado e tudo, uma construção sólida. Mas isto é para os recrutas, que ainda não aprenderam a tirar vantagem de qualquer coisa. Nós procuramos coisa melhor. Por todos os lados, existem pequenas caixas individuais para o mesmo fim. Elas são quadradas, limpas, de madeira, hermeticamente fechadas, com assentos irrepreensíveis e confortáveis. Têm alças dos lados, a fim de serem transportadas.

Juntamos três delas numa roda e instalamo-nos comodamente. Não nos levantaremos aqui antes de pelo menos duas horas.

Ainda me lembro de como ficávamos envergonhados no princípio, quando éramos recrutas do quartel, obrigados a usar a latrina comum. Lá não há portas, e vinte homens sentam-se uns ao lado dos outros, como num trem. Assim, basta um olhar apenas para controlá-los: o soldado deve ficar permanentemente sob vigilância.

Desde então, aprendemos a dominar mais do que este pequeno sentimento de pudor. Com o passar do tempo, acostumamo-nos a muitas coisas...

Aqui, ao ar livre, no entanto, a coisa é um verdadeiro prazer. Não sei mais por que antigamente nos envergonhávamos tanto de funções que, afinal, são tão naturais quanto comer e beber. Talvez agora não fosse preciso mencioná-las, se não desempenhassem um papel tão importante para nós, se não fossem uma novidade, pois para os veteranos já eram naturais há muito tempo ― fatos sem nenhuma importância.

Para o soldado, o seu estômago e a sua digestão são um setor muito mais familiar do que para qualquer outro cidadão. Setenta e cinco por cento do seu vocabulário vem aí, e tanto o sentimento de maior alegria como o da mais profunda indignação têm eles as mais vigorosas expressões. Não é possível empregar outras palavras tão sucintas e tão claras. Nossas famílias e nossos professores ficarão admirados quando voltarmos para casa, mas aqui fora é sempre uma língua universal.

Para nós, todos esses acontecimentos retomaram a velha inocência pela sua obrigatoriedade. Mais ainda: tornaram-se tão naturais, que sua confortável execução é tão valiosa para nós quanto, digamos, um abrigo bem feito para quatro, à prova de bombas. Não é à toa que a expressão “conversa de privada” foi inventada para escrever mexericos de todo tipo; estes lugares são o ponto de encontro dos boateiros e, na tropa, substituem a mesa de bar.

No momento, sentimo-nos melhor do que em qualquer reservado de luxo, todo ladrilhado de branco. Lá, tudo pode ser muito higiênico, mas aqui é agradável.

São horas maravilhosas de devaneio. Acima de nós, o céu azul. No horizonte, suspensos, balões cativos amarelos, iluminados pelo sol, e as pequenas nuvens brancas dos antiaéreos. Às vezes, sobem como um feixe, quando perseguem um avião. Escutamos apenas como uma trovoada longínqua o ribombar surdo da linha de frente. Zangões que passam zumbindo já o abafam.

E, ao nosso redor, a relva florida. A grama delicada balança, as pequenas plumas dos dentes-de-leão vacilam ao vento suave e quente do fim de verão. Lemos cartas e revistas, fumamos os cigarros e os colocamos ao nosso lado; o vento brinca com nosso cabelo, ele brinca com nossas palavras, com nossos pensamentos.

As três caixas estão no meio das papoulas brilhantes e vermelhas. Colocamos a tampa da barrica de margarina sobre os joelhos. Assim, temos uma boa base para jogar cartas. O baralho está com Kropp. Vez por outra, uma partida de bisca. Poderíamos ficar eternamente sentados aqui.

Das barracas, o som de uma gaita chega até nós. De vez em quando, deixamos as cartas de lado e entreolhamo-nos. Um ou outro diz, então: ― “Rapazes, rapazes” ou “Poderia ter saído tudo errado” ― e mergulhamos em silêncio por um momento. Dentro de nós, há uma sensação forte, mal contida; compreendemos e sentimos, não precisamos de muitas palavras. Teria bastado muito pouco para que hoje não estivéssemos aqui reunidos ― nada mais fácil, por sinal. E é por este motivo que tudo parece novo e forte: as papoulas vermelhas, a boa comida; os cigarros e a brisa de verão.

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Tradução: Helen Rumjanek

* * *

Erich Maria Remarque (1898-1970) nasceu Erich Maria Kramer a 22 de junho de 1898, em Osnabrück, Alemanha. Realizou os estudos básicos na sua cidade natal e freqüentou a Universidade de Münster. Parou de estudar aos dezoito anos para juntar-se ao exército alemão na Primeira Guerra Mundial. Nas trincheiras, foi ferido três vezes, uma delas gravemente. Após o conflito, lutando para sobreviver em um país completamente corroído pela guerra, exerceu diversas profissões: foi pedreiro, organista, motorista e agente de negócios, até estabilizar-se, mais ou menos, no jornalismo, exercendo funções de crítico teatral e repórter esportivo, entre outras, em alguns jornais de Hannover e Berlim.

Mas, mesmo com uma vida mais estabilizada, não esqueceu o pesadelo da guerra. Suas noites de insônia eram preenchidas por infindáveis cadernos, onde anotava os horrores que viveu. Logo descobriu naquelas folhas manuscritas o núcleo de um livro ― um romance sobre o absurdo da guerra. A editora Ullstein insistiu no lançamento da narrativa, mas o máximo que conseguiu foi sua publicação em folhetins no jornal Wossiche Zeitung, em 1928. O sucesso de Nada de novo no front (Im Western Nichts Neues) garantiu a edição do texto em formato de livro em 1929. A obra tornou-se um êxito sem precedentes na literatura alemã moderna e deixou o público e as autoridades alemãs totalmente perplexos. Objeto de críticas, polêmicas e discussões, o romance de Remarque mostrou ― a um público que ainda considerava a guerra como uma fatalidade histórica cercada por um halo de romantismo heróico ― a verdadeira face dos soldados que nela se envolveram. Não eram guerreiros, como os que apareciam nos filmes de propaganda, mas homens maltrapilhos, neuróticos e assustados. Outras obras de ficção que testemunhavam batalhas da Primeira Guerra Mundial já haviam sido lançadas, mas nenhuma parecera aos soldados tão autêntica e reveladora da verdade.

Nada de novo no front ganhou o mundo e foi levado à tela em 1930, por Lewis Milestone. A película alcançou sucesso mundial e status de filme cult. Livro e filme provocaram a ira dos nacionalistas alemães. Com o recrudescimento dos sentimentos nazistas, a perseguição a Erich Maria Remarque aumentou, pelo seu pacifismo manifesto nas suas obras (em 1931, publicou também O caminho de volta, que retratava as frustrações dos que regressavam das frentes de luta). Um ainda ascendente Josef Goebbels e seus homens teriam interrompido sessões do filme, espalhando ratos brancos nas salas de projeção. Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, o filme foi proibido. Remarque exilou-se primeiro na Suíça e, a partir de 1939, nos Estados Unidos. No dia 10 de maio de 1933, seus livros foram queimados na fogueira na praça da ópera, em Berlim. Em 1938, as autoridades alemãs retiraram sua cidadania alemã, por ter “arrastado na lama” os soldados da grande guerra e apresentado uma visão “antigermânica” dos acontecimentos da guerra. O escritor só ficou sabendo das hostilidades depois, na segurança do exílio nos Estados Unidos, mas sua irmã, Elfriede, uma simples costureira que ainda vivia no país natal, confiara a uma cliente que poderia muito bem dar um tiro na cabeça de Hitler. Foi denunciada, condenada à morte em 1943 e decapitada.

Em 1947, Remarque naturalizou-se norte-americano. Nos seus anos de Hollywood, recheou as crônicas hollywoodianas com seus casos amorosos com as atrizes Marlene Dietrich e Greta Garbo. Em 1948, partiu para a Suíça, na companhia da também atriz Paulette Godard, divorciada de Charlie Chaplin.

Remarque, que junto a Goethe é o escritor de língua alemã mais lido no mundo, faleceu aos 72 anos de idade, no dia 25 de setembro de 1970, em Locarno, na Suíça. Não perdoou a Alemanha do pós-guerra pelo tratamento brando para com as autoridades nazistas. Constatou com amargura, por ocasião de uma visita ao seu país natal, em 1966: “Pelo que sei, nenhum assassino do Terceiro Reich perdeu a sua cidadania alemã”. Deixou também outros livros de sucesso sobre o absurdo da guerra (Três camaradas, de 1937, Náufragos, de 1941, Arco do triunfo, de 1946, e O obelisco preto, 1956), além de um romance póstumo, Sombras do paraíso, publicado em 1971.

Nada de novo no front foi traduzido para 58 idiomas e já vendeu mais de dez milhões de cópias no mundo todo.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

"Incêndios" nos 4 Anos da Sessão Cine Cult


Eu odeio religião. Ponto final. Foda-se quem acha que as religiões detém o monopólio da moral, ou que é preciso um culto institucionalizado para nos guiar neste mundo, para nos dizer o que é certo ou errado. Exemplos não faltam para demonstrar o absurdo desta premissa: na Guerra civil libanesa, só pra citar um, foram principalmente as milícias cristãs, com a conivência dos israelenses, que mais tocaram o terror – vide o massacre de Sabra e Chatila, uma das maiores infâmias da história recente da humanidade.
A Guerra do Líbano é o pano de fundo e o fio condutor de “Incêndios”, do diretor canadense Dennis Villeneuve, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e inédito nas telas dos cinemas de Aracaju até a última quarta-feira, quando foi exibido numa Sessão Comemorativa aos 4 anos do projeto Cine Cult. É uma história angustiante contada em belas imagens enriquecidas por uma excelente trilha sonora, com destaque para a ótima utilização das músicas do Radiohead.
A protagonista de “Incêncios”, Nawal Marwan, intepretada pela belga Lubna Azabal, é uma mulher atormentada pela culpa de ter “amaldiçoado” sua família (cristã) ao ter engravidado de um namorado palestino, assassinado friamente por seus irmãos. Ela mesma só não morreu porque foi protegida por sua avó. A criança foi entregue para adoção logo após o parto e Nawal resolve partir pelo mundo à sua procura. No meio de seu caminho, no entanto, havia muito mais do que uma simples pedra: havia uma guerra. Numa das cenas mais chocantes ela escapa da morte se declarando cristã e mostrando a seus algozes (também cristões) um crucifixo, o mesmo que teve que esconder para conseguir uma carona num ônibus cheio de muçulmanos. Nawal decide então tomar partido, mais por vingança pessoal que por convicção ideológica, e paga caro por isso: é presa e torturada, o que dá origem a desdobramentos terríveis que só ficarão claros para o expectador no final do filme, surpreendente.
Antes da exibição da fita o criador e coordenador das sessões “Cine Cult”, Roberto Nunes, entregou um diploma de agradecimento a algumas pessoas que contribuíram para o sucesso da empreitada: a jornalista Suyenne Correia, do Jornal da Cidade, a gerente do Cinemark na época, Clara, e o professor Ítalo, do Colégio Atheneu, que sempre levava seus alunos às sessões, representando o público expectador. A primeira Sessão do Cine Cult aconteceu no dia 15/06/2007 com a exibição do filme coreano “O Hospedeiro”, de Bong Joon-Ho, no Cinemark do Shopping Jardins, em Aracaju, e a partir daí expandiu-se para 25 Complexos da rede em todo o Brasil. As comemorações continuam hoje, no Capitão Cook, com uma festa onde se apresentarão as bandas Plástico Lunar e Nantes e o cantor e compositor Deilson Pessoa.
“Incêndios” está em cartaz no Cinemark do Shopping Riomar, em Aracaju, em sessões diárias, às 14:00H.
por Adelvan

quarta-feira, 15 de junho de 2011

MATADOR !

9 graus, o maior frio que já passei em minha vida. Só o Slayer mesmo pra me fazer ir a São Paulo em pleno inverno – e voltar feliz da vida! Não apenas eu, diga-se de passagem: pipocavam posts com as palavras mágicas “eu vou” a todo momento no Facebook, e não era papo-furado: a frente da Via Funchal estava lotada de headbangers de todo o Brasil naquela noite de 09 de junho (09/06!) de 2011 – digo isso por dedução, afinal, se haviam tantas criaturas oriundas do menor estado da federação, imagine ...
Vi o show cercado de amigos, o que foi ótimo: estava me sentindo em casa. Entramos a tempo de assistir a apresentação do Korzus, a banda de abertura. A primeira impressão, no entanto, não foi das melhores: o som estava péssimo! Abafado e saturado, precisei até tapar os ouvidos em determinados momentos, tamanha a saturação. Fora isso (como se fosse pouco), tudo ok: Korzus é do caralho e Marcelo Pompeu continua um grande frontman, apesar de viajar DEMAIS na conversa fiada entre uma musica e outra, com aqueles papos manjados a la Manowar de “o metal é eterno”, “ninguém nunca vai nos destruir” e coisas do tipo. O show foi curto, cerca de meia hora, e terminou com Pompeu levantando o coro da galera aos berros de “SLAYER!”.
Desce o gigantesco pano de fundo com o tradicional desenho da águia sustentando um pentagrama feito de espadas e o público vai à loucura. No som da casa, AC/DC, com direito a “Back in Black” em ritmo de funk! Ótimo. Um pouco mais de espera e lá estão eles, os quatro cavaleiros do apocalipse (ou melhor, 3, Gary Holt é “apenas” um convidado de luxo). Os trabalhos começam com os dois “hits” do (já não tão) novo álbum, “world painted blood” e “Hate worldwide”. Boas músicas, apesar de eu continuar não achando o disco em si tão bom quanto andam falando - é meio que “mais do mesmo”. Mas o público parece gostar e já começa cantando junto, o que gera uma expressão de satisfação estampada no rosto de Tom Araya – li uma entrevista em que eles falam que se sentiram mais seguros para colocar mais músicas do último disco nos shows justamente por conta do feedback positivo do público.
O som, no entanto, continuava ruim e não dava sinais de que iria melhorar, o que era preocupante. Na terceira música, a clássica “war ensamble”, uma pane! Ficou apenas o som do palco, o que fez com que os músicos demorassem um pouco a se dar conta do que estava acontecendo. Mas se saíram muito bem: continuaram tocando a musica até o fim, com Araya incentivando a platéia a cantar. Foi bonito, até porque o incidente ressaltou ainda mais o fato de que um Deus estava entre nós: Dave Lombardo, uma atração à parte. Absolutamente impressionante o que aquele cara faz com as baquetas!
“Via Funchal vai tomar no cu” era o coro entoado por todos. Lá com meus botões eu pensei: se fosse em Aracaju, evocariam logo a tal maldição do Cacique Serigy! Mas felizmente não demorou para que as coisas voltassem ao normal, e com uma sensível melhora na qualidade ao longo do processo até o final da apresentação, que engrenou de vez especialmente pra mim, já que eles voltaram com “postmorten”, uma de minhas favoritas do “Reign in blood” e um dos melhores riffs da história do metal. A partir daí começou a baixar o caboclo headbanger adolescente e foi só alegria. Dois pontos altos: a iluminação, muito bem utilizada, e a ironia de Araya em “Dead Skin mask”, apresentada como uma canção de amor (será que ele sabia que domingo era o Dia dos namorados no Brasil?) com seus versos românticos: "Como esperei você vir/ Estive aqui sozinho/ (...) Esfolando a pele com a ponta de meus dedos/ (...) Membros cortados, ornamentos do meu ser”.
Gary Holt segurou bem a onda, muito embora seu estilo seja um tanto quanto diferente, mais melódico, que o de Jeff Hanneman, o guitarrista original, que se ausentou devido a uma estranhíssima doença causada pela picada de uma aranha que é conhecida nos Estados Unidos como "bactéria comedora de carne" – o que deve render, sem dúvidas, uma boa letra, no futuro.
Um fato curioso foi o de que não houve pausa para o bis. Sapecaram sem intervalo e sem dó nem piedade a sequencia final, com direito a dois clássicos absolutos, ‘raining blood” e “Black Magic” (a primeira faixa do primeiro disco), emendadas. O encerramento foi com outra das “favoritas da casa”, “Angel of death”. E aí um abraço, fim de papo, thank you good night. Confesso que fiquei meio atordoado, mas gostei: pela primeira vez vi uma banda de grande porte dispensar aquele ritualzinho manjado. Estes não têm frescura, realmente!
Queríamos mais, evidentemente, afinal foram 25 anos de espera (no meu caso) e cerca de 2.000 km percorridos para estar ali, mas ok: 23 músicas em quase 2 horas de show, estava de bom tamanho. No telão, um aviso de que a responsabilidade pela pane no som não foi da casa, mas da produção do show.
E foi isso, amiguinhos. Baterias recarregadas, back to reality, bola pra frente.
SLAYER !
Fotos: Jorge Rosenberg/iG
Texto: Adelvan/pdrock
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A ideia de que vai “chover sangue” nesta quinta-feira (9) em São Paulo é uma metáfora que deixa muito roqueiro da cidade feliz. Para quem não conhece o grupo americano de thrash metal Slayer, entretanto, a frase, referência a um dos maiores clássicos do estilo, fica perdida e pode até assustar - desnecessariamente.

Para metaleiros, Slayer representa uma das maiores referências de som pesado de todos os tempos, com guitarras velozes, vocal rouco e agressivo, baixo e bateria em sincronia perfeita - tudo em alto volume e com muito barulho. São 30 anos de carreira, com mais de dez álbuns lançados e clássicos do thrash metal, que fazem da banda uma das “grandes 4” do estilo, junto a Metallica, Anthrax e Megadeth.

Para essas pessoas, talvez não haja muita novidade ao dizer que a banda volta a se apresentar em São Paulo nesta quinta-feira (9), com a turnê World Painted Blood - elas provavelmente já sabem, e vão ao show.

Para apresentar a banda que compôs “Raining Blood” aos não-iniciados na barulheira agressiva do metal, que deixa tantos fãs em êxtase, o G1 convidou três músicos eruditos para avaliar músicas que fazem parte do repertório que o Slayer apresenta na atual turnê.

A impressão deles ao ouvir ao som do grupo pela primeira vez é de que há muita “repetição” e “simplicidade”, uma música “primal”, com “caráter hipnótico” e tocada por “músicos muito competentes”.

O maestro Gil Jardim, a maestrina Claudia Feres e o violonista erudito Fabio Zanon deixaram claro que não costumam ouvir heavy metal e que não querem fazer juízo de valor do estilo de música de que outras pessoas gostam, nem disputar que estilo é melhor. A análise deles é propositalmente superficial, simples e distante, mostrando a impressão inicial de pessoas que conhecem música clássica ao escutar a banda pela primeira vez.

"Eles gostam de Mi bemol!" - Regente titular e diretora artística da orquestra municipal de Jundiaí, a paulistana Claudia Feres nunca tinha ouvido falar em Slayer até o convite do G1. Ela aceitou escutar duas músicas das mais famosas já gravadas pelo grupo: “Seasons in the abyss” e a já mencionada “Raining blood”, e não ficou muito convencida. “Meu mundo é bem distante desse do heavy metal. Não me atrai. Não me faz muito bem.”

Segundo ela, as músicas têm um perfil “muito repetitivo, monotônico". "Rítmica e melodicamente muito pobre”, disse. “A base das duas músicas é muito parecida. Parece que há um cuidado em encontrar essa sonoridade dura e árida, uma sonoridade pesada que traga sentimentos de dor e sofrimento. (Eles gostam de Mi bemol!)”, completou.

"Grande batera" - Fabio Zanon contou que já tinha ouvido falar da banda, mas nunca tinha escutado nenhuma das suas músicas. Após ouvir "World painted blood" e "Angel of death", ele fez elogios à bateria do Slayer e à “cozinha”, como costuma-se chamar o casamento sonoro dela com o baixo.

“A bateria é muito interessante. O cara é criativo, pois as duas músicas são em compasso binário, muito repetitivo, e o cara consegue fazer coisas diferentes, mudar muito os formatos. Se não fosse a bateria, o som ia ficar muito primário”, disse. Segundo ele, toda a produção é muito interessante e profissional, mas a sonoridade é “primal, lembrando música ritual, primitiva, com caráter hipnótico”, disse. “Música em compasso binario sempre lembra marcha.”

Segundo Zanon, “World painted blood” usa uma espécie de modo cigano que “é interessante, foge um pouco à expectativa de harmonia padrão que eu esperava nesse gênero e realça o caráter lúgubre da música.”

O violonista erudito fez questão de ressaltar que não é conhecedor do estilo. “Um gênero desses tem de ser julgado dentro de sua própria esfera sócio-cultural. Não dá pra se julgar tomando como parâmetro Beethoven ou com Tom Jobim, é outro departamento”, disse. “Não é que eu não tenha respeito e não admita qualidades musicais, simplesmente não tenho o componente antropológico pra me identificar”, completou.

Excentricidade planejada - Para o diretor artístico da Orquestra de Câmara da Universidade de São Paulo e diretor artístico da Philarmonia Brasileira, o maestro Gil Jardim, o Slayer é um grupo muito profissional com ótimos músicos e que faz da personalidade radicalmente excêntrica um negócio competente e bem planejado.

“Poderia definir a música feita pelo Slayer, assim como grande parte do rock, como rudimentar se a compararmos com obras produzidas ao longo da história da música clássica ocidental, ou mesmo com a música popular brasileira ou pelo jazz americano”, disse, em texto enviado a pedido do G1.

“Suas músicas trazem letras elaboradas estritamente dentro da linha que caracteriza o grupo, com temas e expressões escolhidas em busca de ‘objetos de uma realidade pervertida, da obsessão além dos sonhos selvagens...’ Na verdade, jamais se perde de vista a busca por um “êxtase permanente”, seja qual for o tema: a morte, a guerra, o sexo, a droga.... E sob esse ponto de vista, o som que tende a ser sempre eletrizante em sua pulsação, em seus decibéis, é coerente esteticamente”, completou.

“Devemos ter claro que, para manter essa linha de ‘excentricidade infinitamente arrojada’ é necessário trabalhar com planejamento, com acuidade, com sagacidade. É um negócio. Esse é o produto da banda Slayer, construído, bem ensaiado (os músicos são muito bons) e, mais que vendido, comprado pela imensa multidão que os acompanham ‘enlouquecidamente’.

Naturalmente, o mise en scène é particular, assim como em cada um dos outros estilos musicais”, disse, defendendo o gosto alheio e alegando ser inútil gerar uma disputa sobre qual estilo é “melhor” de que o outro.

por Daniel Buarque

Fonte: G1

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"Não posso mais 'bater cabeça'". A afirmação foi feita pelo vocalista e baixista do Slayer, Tom Araya, na última segunda-feira (6), dia em que concedeu por telefone uma entrevista exclusiva ao Terra, direto do hotel onde estava hospedado em Buenos Aires. A banda norte-americana se apresentou ontem em Curitiba e faz show em São Paulo nesta quinta-feira (9).
A justificativa para a nova regra na vida do músico, há 30 anos acostumado a jogar para frente e para trás a longa cabeleira - o termo bete-cabeça vem da expressão "headbang", em inglês -, é médica, consequência de uma cirurgia nas costas a que foi submetido no ano passado. Infelizmente, não é só ele que vive um ano difícil no quarteto, o precursor do estilo thrash metal, conhecido por seu peso, velocidade e letras endiabradas.

Jeff Hanneman, guitarrista da banda, foi hospitalizado em fevereiro deste ano após ter uma séria infecção no braço direito causada pelo veneno de uma aranha venenosa que o picou. O fato o levou a ser substituído por Gary Holt, do Exodus, na turnê atual. "Não foi uma decisão fácil de ser tomada, mas ter um amigo para te ajudar e que ainda é um tremendo guitarrista deixou tudo mais simples. Não poderíamos fazer essa substituição com outra pessoa".

Bastante simpático e bem-humorado, Araya, que completou 50 anos de idade no dia da conversa, falou sobre os mais variados assuntos, inclusive alguns bastante espinhosos, como o processo judicial sofrido pelo Slayer em 2000, quando uma família acusou suas músicas de terem influenciado três jovens a assassinar brutalmente uma garota de 15 anos em um ritual macabro. "Aquilo nos fez perceber o quão perigoso pode ser o que fazemos. Foi um período bastante nervoso".

Confira a entrevista completa a seguir.

Terra - Primeiramente, feliz aniversário.

Tom Araya - Obrigado, muito obrigado. Você é o primeiro a me desejar isso sem contar a minha mulher (risos).
Terra - Como está Jeff Hanneman?
Tom - Ele está indo bem, tocando sua guitarra, cuidando de sua saúde. Vai demorar ainda um tempo para que volte a se juntar a nós, mas ele está melhorando.
Terra - Vocês só voltam a gravar com ele na guitarra?
Tom - Sim, quando ele estiver pronto, conseguir escrever músicas e voltar ao estúdio, nós voltaremos a gravar.
Terra - Como encara o fato de estar no palco sem ele?
Tom - Não é fácil fazer isso. Sabe, nós temos estado no palco juntos por 30 anos e não foi uma decisão fácil de ser tomada fazer a turnê sem ele. Mas nós estamos com Gary Holt (do Exodus), que é um tremendo guitarrista, e ele está tocando muito, muito bem. Fica mais fácil fazer isso quando você tem um amigo para te ajudar. Nós conhecemos o Gary há quase 30 anos, ele é um grande amigo do Jeff e eu não acho que nós poderíamos fazer essa substituição temporária com nenhuma outra pessoa que não fosse o Gary, sabe? Ele está indo muito bem, sua guitarra soa otimamente, então estamos conseguindo lidar com esse problema.
Terra - Você também teve um problema no início do ano, mas com tonturas que atrapalhavam sua performance no palco. Como está agora?
Tom - Há um ano e meio eu tive que passar por uma cirurgia nas costas. E, apesar de ter me recuperado muito bem, de não ter mais nenhum problema, eu estava com um nervo doendo demais, afetando todo o lado esquerdo do meu corpo, especialmente o meu braço e o peitoral. Agora estou bem melhor, não tenho mais isso, mas não posso mais "bater cabeça" (headbang). Isso chegou a ser um problema no início, mas não é mais.
Terra - Desde então, você nunca mais "bateu cabeça"?
Tom - Não, eu realmente não posso.
Terra - Sua cidade natal, Viña del Mar, no Chile, o homenageou no último fim de semana. Como você encarou isso?
Tom- Foi demais, uma grande honra. Foi um evento bem formal, com discursos e tudo o mais, e eu me senti muito honrado pelo fato de eles terem me homenageado por representar o Chile e por ter nascido em Viña del Mar. Fiquei muito orgulhoso.
Terra - Foi também a primeira vez que você tocou com o Slayer na cidade. Qual foi a sensação?
Tom - Foi um grande show, realmente demais. Foi tremendo! Eu senti o amor...senti o amor (diz em português e dá risada).
Terra - Qual é a sua relação com o Chile e com a América do Sul em geral? Você vem para cá com alguma frequência?
Tom - Sabe, eu só venho para cá quando o Slayer toca. Isso torna nossas turnês por aqui muito especiais, porque é muito raro virmos à América do Sul. Eu gostaria de vir para cá para apenas visitar, pois amo o continente. Faz parte do meu sangue, então todas as vezes que estamos na América do Sul é muito especial, pois ela é parte de mim.
Terra - Você é uma pessoa que se diz muito cristã. Qual é a sua relação com a religião?
Tom - Eu sinto que tenho uma relação muito próxima com Deus. Isso é entre mim e ele (risos). Mas, sabe, na verdade não vou à igreja. Eu rezo, rezo em casa, rezo com meu coração, rezo com a minha família, que também tem sua própria relação com Deus. Eu sempre digo que sou católico ou cristão, pois nasci nisso, fui criado para o catolicismo. Mas, na verdade, sou mais cristão, tento viver mais como cristo, sabe? "Faça com os outros o que gostaria que fizessem com você". Quero dizer, é tudo sobre amor. É assim que eu e minha família tentamos viver.
Terra - Você já recebeu críticas por sua relação com o cristianismo e o fato de as letras do Slayer falarem de temas totalmente opostos à religião?
Tom - Sim, eu recebo críticas, mas, quer saber, f...-se (gargalhadas). Eu sei que essa não é a forma cristã de dizer, mas essa é a minha maneira (risos).
Terra - Os assuntos pesados das canções do Slayer te aproximaram de alguma forma da religião?
Tom - Eu acho que a religião por si própria significa "eu faço o que faço". Eu tenho um entendimento diferente do que fazemos, de escrever sobre o demônio. Quero dizer, tenho um entendimento melhor dele, pois não é com a figura do diabo que me preocupo e sim com o demônio da humanidade, a sociedade, que é muito feio. Sim, ele é, e, sabe, isso fala por nós, às vezes de uma forma muito alta (risos).
Terra - No ano 2000, a família de uma menina assassinada aos 15 anos de idade por três garotos em um ritual macabro processou o Slayer alegando que a banda os havia influenciado na forma como a mataram. Como vocês encararam esse caso?
Tom - (pensativo) Bem, eu me senti açoitado, mas a verdade a ser dita é que o verdadeiro diabo não era aquele ao qual as pessoas se referem ou o Slayer. O verdadeiro diabo foi a humanidade naquele celeiro. Nós, como humanos, somos pessoas muito feias, podemos fazer coisas muito feias e más uns com os outros. Sabe, eu sempre soube que a verdade chegaria à tona (a banda foi inocentada no processo), mas por causa dos homens e de suas leis, às vezes esse não é o caso. Então eu estava um pouco receoso, muito nervoso com isso, pois as leis do homem podem não ser justas com as pessoas. Por isso, eu estava um pouco nervoso, todos nós estávamos. Eu não quero dizer o termo com medo, mas estávamos muito receosos com o rumo que as coisas poderiam tomar, pela forma como é o mundo e de como as leis da sociedade funcionam. Foi um período bem nervoso para nós.
Terra - Isso afetou o Slayer de alguma forma, como em sua música?
Tom - Não nos afetou musicalmente, mas espiritualmente. Nos fez perceber o quão perigoso pode ser o que fazemos. Quero dizer, não estou preocupado sobre como o que fazemos afeta as pessoas, é a responsabilidade do que as pessoas dão às coisas que as afeta. Esse é o perigo, pois as pessoas podem ser muito más. Elas querem acreditar e apontar o dedo culpando outras pessoas pelo que fazem e é aí que o perigo mora.
Terra - O fato de os integrantes do Slayer não acompanharem o Metallica e as outras bandas do Big Four (Anthrax e Megadeth) na execução de Am I Evil, do Diamond Head, de alguma forma criou um ambiente ruim entre vocês?
Tom - Não, de forma alguma. Sabe, eu provavelmente fiz isso só uma vez. Foi com o Soufly, de Max Cavalera, com quem escrevi uma música. Essa foi a única vez que eu me juntei a uma banda para fazer algo do tipo. Sabe, para mim, não é a música apropriada. Quero dizer, Am I Evil (serei eu mal?), nhé (som de desprezo), nós sabemos que somos (risos), não precisamos cantar uma música sobre isso. Para mim, a canção apropriada para esse encontro, aquela que me faria subir ao palco para tocar, seria The Four Horsemen (do primeiro disco do Metallica, Kill´Em All, de 1983), pois ela representa aquilo que estamos fazendo. É uma música que significa mais para mim, pois representa o que realmente é o Big Four, o que fazemos. Quero dizer, nós chegamos às cidades e trazemos doenças e vícios (gargalhadas).
Serviço:
São Paulo - 09/06/2011
Local: Via Funchal
Endereço: Rua Funchal, 65
Telefone: (11) 3846-2300
Horário: 22h