segunda-feira, 20 de junho de 2011

1. "Nada de novo no front", de Erich Maria Remarque

Este livro não pretende ser um libelo nem uma confissão, e menos ainda uma aventura, pois a morte não é uma aventura para aqueles que se deram face a face com ela. Apenas procura mostrar o que foi uma geração de homens que, mesmo tendo escapado às granadas, foram destruídos pela guerra.

* * *

Estamos a nove quilômetros da linha de frente. Ontem fomos substituídos, e agora estamos com a barriga cheia de feijão branco com carne de vaca, satisfeitos e contentes. Cada um conseguiu apanhar até mesmo uma marmita para a noite, e ainda nos deram rações duplas de lingüiça e pão ― foi um bom negócio! Há muito que não acontece um caso destes: o cozinheiro, com sua cabeça vermelha como um tomate, oferecendo-nos comida ele próprio. A cada um que passa, acena com a colher e dá-lhe uma boa porção. Está desesperado, porque não sabe como esvaziar seu caldeirão. Tjaden e Müller arranjaram duas tigelas e encheram-nas até a beirada, como reserva. Tjaden o faz por gula; Müller, por precaução. Onde quer que vá, Tjaden é um enigma para todos: ninguém consegue saber onde armazena aquilo tudo; ele é, e continua sendo, um magricela, seco como um arenque defumado.

O mais espantoso, porém, é que as rações de fumo também foram dobradas. Para cada um, havia dez charutos, vinte cigarros e dois rolos de fumo de mascar ― é muita atenção! Troquei meu fumo de mascar pelos cigarros de Katczinsky, o que significa para mim quarenta cigarros: já dá para um dia.

Diga-se, a bem da verdade, que toda esta distribuição não era para nós. Os prussianos não são dados a essas generosidades. Foi devido a um engano que recebemos tanto. Há quinze dias, tivemos de ir para a linha de frente, para revezamento. O nosso setor estava razoavelmente calmo; por isso, o cozinheiro recebera para o dia da volta a quantidade normal de mantimentos e tinha se preparado para alimentar uma companhia de cento e cinqüenta homens. Acontece que, justamente no último dia, estivemos sob fogo cerrado da artilharia inglesa, que martelara nossa posição sem cessar, de modo que tivemos muitas baixas e voltamos com apenas oitenta homens. Era noite quando chegamos, e logo nos deitamos para dormir. Porque Katczinsky está com a razão: a guerra não seria tão insuportável se a gente pudesse dormir mais. Isto nunca se consegue na linha de frente, e quinze dias representam muitas horas de pouco sono.

Já era meio-dia quando os primeiros começaram a se arrastar para fora das barracas. Meia hora depois, cada um pegara a sua marmita e fora se reunir aos outros, diante do caldeirão de gulasch, que cheirava a gordura. Na ponta, é claro, os mais esfomeados: o pequeno Albert Kropp, o mais inteligente de nós, que, por isso, já é cabo; Müller, que ainda carrega livros escolares e sonha com o exame de segunda época; debaixo de fogo cerrado, estuda teoremas de física; Leer, que deixou crescer a barba e tem predileção pelas garotas dos bordéis reservados para os oficiais; ele jura que, por ordem do exército, elas são obrigadas a usar combinação de seda e tomar banho antes, quando se trata de clientes acima do posto de capitão; e, em quarto lugar, eu, Paul Bãumer. Todos os quatro com dezenove anos, todos os quatro saídos da mesma turma para a guerra.

Logo atrás vêm nossos amigos: Tjaden, um ferreiro magro, de nossa idade, o maior comilão da companhia. Magro como um espeto, senta-se para comer e levanta-se gordo como uma rã inchada. Haie Westhus, também da nossa idade, turfeiro, que facilmente esconde uma grande broa numa das mãos e ainda pergunta: “Adivinhe o que tenho nesta mão?”. Detering, um camponês, que não pensa em outra coisa senão em sua fazenda e em sua mulher; e, finalmente, Stanislas Katczinsky, o líder do nosso grupo: enérgico, esperto, quarenta anos, com uma cor terrosa, olhos azuis, ombros caídos e um faro extraordinário para descobrir perigo, boa comida e lugares seguros. Nosso grupo formava a cabeça da fila em frente ao caldeirão de gulasch. Ficamos impacientes, porque o cozinheiro continuava imóvel, esperando ingenuamente que viessem mais companheiros. Finalmente, Katczinsky gritou:

― Abra logo este negócio, Henrique. Não vê que o feijão já está cozido?

Sonolento, o cozinheiro sacudiu a cabeça:

― Só quando estiverem todos aí.

Tjaden sorriu:

― Já estamos todos aqui.

O cabo ainda não percebera nada.

― Sei que é disto que gostariam. Onde estão os outros?

― Hoje não é você quem vai tratar deles. Pode deixar tudo por conta do hospital e do coveiro.

O cozinheiro ficou aturdido quando compreendeu o que ocorrera e chegou a perder o equilíbrio por um instante.

― E eu que cozinhei para cento e cinqüenta homens!...

Kropp deu-lhe uma cotovelada.

― Então, até que enfim vamos nos satisfazer. Vamos, ande logo!

Mas, de repente, a luz da compreensão acendeu-se em Tjaden. Seu rosto afilado de camundongo começou a iluminar-se, os olhos estreitaram-se maliciosamente, as bochechas tremeram e ele aproximou-se o mais que pôde:

― Mas nesse caso... também recebeu pão para cento e cinqüenta homens, não é?

O cabo, confuso e ainda tonto, concordou com a cabeça. Tjaden segurou-o pela túnica:

― E lingüiça também?

O Cabeça de Tomate assentiu novamente. O queixo de Tjaden tremia:

- Fumo... Também?

― Sim, tudo.

Extasiado, Tjaden olhou em redor:

― Puxa! Isto é que se chama sorte! Quer dizer que é tudo para nós! Cada um recebe, então... espere... de fato, são exatamente porções dobradas!

Mas o Cabeça de Tomate voltou a si e declarou:

― Não pode ser.

Então, nós também despertamos e aproximamo-nos:

― E por que não pode ser, seu cara de cenoura? ― perguntou Katczinsky. ― O que era para cento e cinqüenta homens não pode ser para oitenta.

― Nós vamos ensinar-lhe ― resmungou Müller.

― A comida não me importa, mas só posso dar porções para oitenta homens ― insistiu o Cabeça de Tomate.

Katczinsky começou a irritar-se.

― Você está precisando ser substituído, sabe? Não recebeu comida para oitenta homens: recebeu a bóia para a Segunda Companhia, e pronto. E essa bóia você vai distribuir. A Segunda Companhia somos nós.

Aproximamo-nos ainda mais. Ninguém gostava mesmo dele; várias vezes, já fora o culpado de termos recebido a comida nas trincheiras muito depois da hora e já fria, porque ele não tinha coragem de se aproximar sob o mais leve bombardeio, e, por isso, o nosso estafeta era obrigado a atravessar um caminho bem mais longo do que o das outras companhias. O Bulcke, por exemplo, da Primeira, era um sujeito mais camarada. É bem verdade que era gordo como um urso no inverno, mas, quando necessário, arrastava seus panelões até a linha mais avançada.

Estávamos bem exaltados, e, com certeza, teria havido briga, se o comandante da nossa Companhia não tivesse aparecido. Perguntou o motivo da discussão e, para começar, disse apenas:

― É, ontem tivemos muitas baixas...

Depois, olhou para dentro do caldeirão:

― O feijão parece muito bom ― disse.

O Cabeça de Tomate concordou:

― Foi feito com banha e carne.

O tenente nos olhou. Sabia o que estávamos pensando. Além disso, sabia ainda muito mais, pois fora entre nós que crescera, e fora como cabo que entrara na Companhia. Levantou novamente a tampa do caldeirão, cheirou e, afastando-se, disse:

― Traga um prato cheio para mim também. E as porções devem ser todas distribuídas. Bem que estamos precisando.

O Cabeça de Tomate ficou com cara de bobo, enquanto Tjaden dançava à sua volta.

― Não vai lhe fazer mal nenhum. Ele se comporta como se o Serviço de Alimentação fosse unicamente seu. E agora vamos começar, seu velho sovina, e veja se não erra a conta...

― Vá à merda! ― gritou o Cabeça de Tomate. Explodia de raiva, pois sua compreensão não alcançava os fatos. Não entendia mais o mundo. E, como se quisesse mostrar que nada mais importava, distribuiu, espontaneamente, mais duzentas e cinqüenta gramas de mel artificial para cada um.

Hoje é realmente um grande dia. Até o Correio chegou: quase todos receberam algumas cartas e revistas. Agora, estamos passeando em direção ao campo que fica atrás das barracas. Kropp leva debaixo do braço a tampa de um barril de margarina. Do lado direito do gramado, construíram grandes latrinas, com telhado e tudo, uma construção sólida. Mas isto é para os recrutas, que ainda não aprenderam a tirar vantagem de qualquer coisa. Nós procuramos coisa melhor. Por todos os lados, existem pequenas caixas individuais para o mesmo fim. Elas são quadradas, limpas, de madeira, hermeticamente fechadas, com assentos irrepreensíveis e confortáveis. Têm alças dos lados, a fim de serem transportadas.

Juntamos três delas numa roda e instalamo-nos comodamente. Não nos levantaremos aqui antes de pelo menos duas horas.

Ainda me lembro de como ficávamos envergonhados no princípio, quando éramos recrutas do quartel, obrigados a usar a latrina comum. Lá não há portas, e vinte homens sentam-se uns ao lado dos outros, como num trem. Assim, basta um olhar apenas para controlá-los: o soldado deve ficar permanentemente sob vigilância.

Desde então, aprendemos a dominar mais do que este pequeno sentimento de pudor. Com o passar do tempo, acostumamo-nos a muitas coisas...

Aqui, ao ar livre, no entanto, a coisa é um verdadeiro prazer. Não sei mais por que antigamente nos envergonhávamos tanto de funções que, afinal, são tão naturais quanto comer e beber. Talvez agora não fosse preciso mencioná-las, se não desempenhassem um papel tão importante para nós, se não fossem uma novidade, pois para os veteranos já eram naturais há muito tempo ― fatos sem nenhuma importância.

Para o soldado, o seu estômago e a sua digestão são um setor muito mais familiar do que para qualquer outro cidadão. Setenta e cinco por cento do seu vocabulário vem aí, e tanto o sentimento de maior alegria como o da mais profunda indignação têm eles as mais vigorosas expressões. Não é possível empregar outras palavras tão sucintas e tão claras. Nossas famílias e nossos professores ficarão admirados quando voltarmos para casa, mas aqui fora é sempre uma língua universal.

Para nós, todos esses acontecimentos retomaram a velha inocência pela sua obrigatoriedade. Mais ainda: tornaram-se tão naturais, que sua confortável execução é tão valiosa para nós quanto, digamos, um abrigo bem feito para quatro, à prova de bombas. Não é à toa que a expressão “conversa de privada” foi inventada para escrever mexericos de todo tipo; estes lugares são o ponto de encontro dos boateiros e, na tropa, substituem a mesa de bar.

No momento, sentimo-nos melhor do que em qualquer reservado de luxo, todo ladrilhado de branco. Lá, tudo pode ser muito higiênico, mas aqui é agradável.

São horas maravilhosas de devaneio. Acima de nós, o céu azul. No horizonte, suspensos, balões cativos amarelos, iluminados pelo sol, e as pequenas nuvens brancas dos antiaéreos. Às vezes, sobem como um feixe, quando perseguem um avião. Escutamos apenas como uma trovoada longínqua o ribombar surdo da linha de frente. Zangões que passam zumbindo já o abafam.

E, ao nosso redor, a relva florida. A grama delicada balança, as pequenas plumas dos dentes-de-leão vacilam ao vento suave e quente do fim de verão. Lemos cartas e revistas, fumamos os cigarros e os colocamos ao nosso lado; o vento brinca com nosso cabelo, ele brinca com nossas palavras, com nossos pensamentos.

As três caixas estão no meio das papoulas brilhantes e vermelhas. Colocamos a tampa da barrica de margarina sobre os joelhos. Assim, temos uma boa base para jogar cartas. O baralho está com Kropp. Vez por outra, uma partida de bisca. Poderíamos ficar eternamente sentados aqui.

Das barracas, o som de uma gaita chega até nós. De vez em quando, deixamos as cartas de lado e entreolhamo-nos. Um ou outro diz, então: ― “Rapazes, rapazes” ou “Poderia ter saído tudo errado” ― e mergulhamos em silêncio por um momento. Dentro de nós, há uma sensação forte, mal contida; compreendemos e sentimos, não precisamos de muitas palavras. Teria bastado muito pouco para que hoje não estivéssemos aqui reunidos ― nada mais fácil, por sinal. E é por este motivo que tudo parece novo e forte: as papoulas vermelhas, a boa comida; os cigarros e a brisa de verão.

( ... )

Tradução: Helen Rumjanek

* * *

Erich Maria Remarque (1898-1970) nasceu Erich Maria Kramer a 22 de junho de 1898, em Osnabrück, Alemanha. Realizou os estudos básicos na sua cidade natal e freqüentou a Universidade de Münster. Parou de estudar aos dezoito anos para juntar-se ao exército alemão na Primeira Guerra Mundial. Nas trincheiras, foi ferido três vezes, uma delas gravemente. Após o conflito, lutando para sobreviver em um país completamente corroído pela guerra, exerceu diversas profissões: foi pedreiro, organista, motorista e agente de negócios, até estabilizar-se, mais ou menos, no jornalismo, exercendo funções de crítico teatral e repórter esportivo, entre outras, em alguns jornais de Hannover e Berlim.

Mas, mesmo com uma vida mais estabilizada, não esqueceu o pesadelo da guerra. Suas noites de insônia eram preenchidas por infindáveis cadernos, onde anotava os horrores que viveu. Logo descobriu naquelas folhas manuscritas o núcleo de um livro ― um romance sobre o absurdo da guerra. A editora Ullstein insistiu no lançamento da narrativa, mas o máximo que conseguiu foi sua publicação em folhetins no jornal Wossiche Zeitung, em 1928. O sucesso de Nada de novo no front (Im Western Nichts Neues) garantiu a edição do texto em formato de livro em 1929. A obra tornou-se um êxito sem precedentes na literatura alemã moderna e deixou o público e as autoridades alemãs totalmente perplexos. Objeto de críticas, polêmicas e discussões, o romance de Remarque mostrou ― a um público que ainda considerava a guerra como uma fatalidade histórica cercada por um halo de romantismo heróico ― a verdadeira face dos soldados que nela se envolveram. Não eram guerreiros, como os que apareciam nos filmes de propaganda, mas homens maltrapilhos, neuróticos e assustados. Outras obras de ficção que testemunhavam batalhas da Primeira Guerra Mundial já haviam sido lançadas, mas nenhuma parecera aos soldados tão autêntica e reveladora da verdade.

Nada de novo no front ganhou o mundo e foi levado à tela em 1930, por Lewis Milestone. A película alcançou sucesso mundial e status de filme cult. Livro e filme provocaram a ira dos nacionalistas alemães. Com o recrudescimento dos sentimentos nazistas, a perseguição a Erich Maria Remarque aumentou, pelo seu pacifismo manifesto nas suas obras (em 1931, publicou também O caminho de volta, que retratava as frustrações dos que regressavam das frentes de luta). Um ainda ascendente Josef Goebbels e seus homens teriam interrompido sessões do filme, espalhando ratos brancos nas salas de projeção. Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, o filme foi proibido. Remarque exilou-se primeiro na Suíça e, a partir de 1939, nos Estados Unidos. No dia 10 de maio de 1933, seus livros foram queimados na fogueira na praça da ópera, em Berlim. Em 1938, as autoridades alemãs retiraram sua cidadania alemã, por ter “arrastado na lama” os soldados da grande guerra e apresentado uma visão “antigermânica” dos acontecimentos da guerra. O escritor só ficou sabendo das hostilidades depois, na segurança do exílio nos Estados Unidos, mas sua irmã, Elfriede, uma simples costureira que ainda vivia no país natal, confiara a uma cliente que poderia muito bem dar um tiro na cabeça de Hitler. Foi denunciada, condenada à morte em 1943 e decapitada.

Em 1947, Remarque naturalizou-se norte-americano. Nos seus anos de Hollywood, recheou as crônicas hollywoodianas com seus casos amorosos com as atrizes Marlene Dietrich e Greta Garbo. Em 1948, partiu para a Suíça, na companhia da também atriz Paulette Godard, divorciada de Charlie Chaplin.

Remarque, que junto a Goethe é o escritor de língua alemã mais lido no mundo, faleceu aos 72 anos de idade, no dia 25 de setembro de 1970, em Locarno, na Suíça. Não perdoou a Alemanha do pós-guerra pelo tratamento brando para com as autoridades nazistas. Constatou com amargura, por ocasião de uma visita ao seu país natal, em 1966: “Pelo que sei, nenhum assassino do Terceiro Reich perdeu a sua cidadania alemã”. Deixou também outros livros de sucesso sobre o absurdo da guerra (Três camaradas, de 1937, Náufragos, de 1941, Arco do triunfo, de 1946, e O obelisco preto, 1956), além de um romance póstumo, Sombras do paraíso, publicado em 1971.

Nada de novo no front foi traduzido para 58 idiomas e já vendeu mais de dez milhões de cópias no mundo todo.

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