Embora seja um long-seller continuamente republicado, recentemente as vendas de Mil novecentos e oitenta e quatro - intitulado assim no original, embora geralmente citado em números -, a distopia de Orwell publicada pela primeira vez há 70 anos, dispararam nos Estados Unidos, onde, segundo o The New York Times,
a editora Penguin enviou várias centenas de milhares de exemplares
pouco depois de Kellyanne Conway, conselheira do Gabinete do presidente Donald Trump,
ter repreendido a imprensa por insistir que a Administração
reconhecesse que o número de participantes da cerimônia de posse de
Trump era uma informação falsa que sua equipe tinha feito circular.
Afinal, disse Conway, não se tratava nem de uma mentira nem de um erro,
mas do que definiu como “fatos alternativos”. Ao ouvir suas palavras,
muitos cidadãos relembraram algumas previsões do romance de Orwell: a
“novilíngua”, um vocabulário sintético e reduzido, cuja pobreza visa
também reduzir a capacidade de pensar; e o “Ministério da Verdade”, no
qual funcionários no livro se aplicam a corrigir os testemunhos do
passado recente e a reescrever a história para que ela se encaixe
perfeitamente no discurso oficial. Ou seja, o que muitos viram em Conway
era uma implantação sem complexos da mentira institucionalizada,
presente em maior ou menor medida não só em Trump, mas em geral nos
discursos da política, do comércio, da religião... do jornalismo...
Caminhamos mansamente em direção a uma sociedade de vigilância em massa
na qual a informação é manipulada para manter as pessoas sob controle,
como o romance reflete? Orwell imaginou um mundo pós-revolucionário onde
tudo o que aconteceu antes da Revolução fundadora de1984
(valores humanísticos, formas de relacionamento, debate público,
liberdade de expressão, cultura...) foi abolido e esquecido. A nova
sociedade materialista que o romance descreve é dividida em três
classes: os membros do partido, os “proles” e os “escravos”. O aparato
de repressão, onipotente e implacável, vigia cada movimento dos súditos
por meio de um sistema de telas instaladas no espaço público e no
doméstico. Não existe privacidade. O poder é encarnado em um tirano
inacessível cuja imagem é exibida em todos os lugares com o slogan “O
Grande Irmão zela por ti”.
Em uma Londres
sinistra, o protagonista, Winston Smith, modesto mas inquieto
funcionário do departamento de História do Ministério da Verdade,
conhece Julia, empregada do departamento de Ficção do mesmo ministério.
Ela opera uma “máquina de escrever romances”: histórias com argumentos
simples e personagens estereotipados, semelhantes àquelas que em nosso
mundo real hoje são escritas por computadores que usam inteligência artificial.
Winston e Julia se apaixonam e tentam se juntar a uma fantasmagórica
organização clandestina de dissidentes que, no fundo, sabem estar
condenada ao fracasso, porque o poder é invencível. Essa tensão entre o
poder esmagador, por um lado, e, por outro, o amor e a liberdade, é a
substância do romance.
Deixando de lado notáveis exceções, como o controle exercido pelo
Governo chinês sobre sua população e satrapias várias, o onipresente
Estado policial todo-poderoso e controlador que Orwell fabulou... não
existe. Paradoxalmente, um dos maiores problemas em grande parte do
mundo é a fraqueza ou a falência dos Estados. Mas os monopólios todo-poderosos da tecnologia,
com seu controle da verdade e sua avidez vampírica por informação,
podem ser um substituto plausível para esse Estado fictício. Nesse
sentido, também na realidade, O Grande Irmão está te vigiando e te
espionando – sim, com uma interface agradável e com a
aquiescência e a entusiástica cooperação da massa – por meio das telas,
do telefone celular que cada um carrega no bolso, do indelével rastro
digital deixado por cada usuário.
Na sociedade ocidental de hoje, o sexo tampouco é reprimido e severamente controlado como em 1984,
mas encorajado e exposto. E, no entanto, sua prática na juventude é
substancialmente atrasada e reduzida, de acordo com estatísticas
oficiais de uma dezena de países do primeiro mundo citadas pela revista
cultural norte-americana The Atlantic. Essa demora pode ser a primeira indicação da recessão sexual,
sinal de “uma retirada mais ampla da intimidade física que se estende
até a entrada na maturidade”. (As causas dessa queda da libido podem ser
pressões econômicas, ansiedade, fragilidade psicológica, uso
generalizado de antidepressivos, televisão em streaming, estrógenos
dispersados pelo plástico no meio ambiente, smartphones, falta de sono, obesidade, excesso de informação... ou o que ocorrer a qualquer analista).
No inferno cartografado por Orwell em seu livro, escrito no
pós-guerra, a miséria é generalizada, as pessoas caminham cabisbaixas e
tolhidas, os bens de consumo são escassos, a aparência das coisas é
cinza, o trabalho é embrutecedor e os horários abusivos. Hoje o mundo
real não é assim, pensam os membros do partido. Mas proles e os escravos
certamente reconhecem essas paisagens.
Em um dos mais famosos, tétricos e patéticos cenários de 1984,
os chamados “dois minutos de ódio”, as massas se reúnem diante de uma
grande tela para vaiar e execrar o inimigo em um paroxismo demente. Ao
lê-lo, é inevitável lembrar das redes sociais, onde hoje qualquer um que coloque o focinho fora do bando se expõe a ser linchado virtualmente.
Outros artefatos e termos usados para descrever o mundo de 1984
foram incorporados à paisagem e à linguagem comum. Orwell concebeu suas
profecias como uma admoestação, uma advertência contra um futuro
totalitário, seja soviético, seja fascista, e contra o cultivo
sistemático da mentira que observou pela primeira vez na Espanha, em
Barcelona, durante a Guerra Civil, que lhe deixou surpreso e pensativo
ao constatar “com que facilidade a propaganda totalitária pode controlar
a opinião das pessoas cultas nos países democráticos”.
O estilo de Orwell é direto e tem uma formidável capacidade de criar
empatia com o leitor, que ao lê-lo ouve a voz de um personagem simpático, honesto,
próximo, bom. Essa proximidade, é claro, é uma grande virtude literária. Como Camus, escrevia impulsionado
por uma obrigação moral. Tinha que expiar seu trabalho como oficial de
polícia do império na Birmânia, onde passou cinco anos depois de ter
estudado em Eton, e de onde voltou com uma forte consciência política
anti-imperialista.
Escreveu com o máximo verismo reportagens sobre os londrinos pobres e
se reduziu voluntariamente à condição de vagabundo. Frequentou mendigos
em pé de igualdade por um longo tempo. Daí surgiu seu primeiro livro, Na Pior em Paris e em Londres.
Com o mesmo espírito de coerência e sacrifício, quando Franco se levantou contra a República espanhola foi para Barcelona e imediatamente se apresentou como voluntário para lutar na frente. Desta aventura ficou o testemunho de sua Homenagem à Catalunha e o rastro de uma experiência e conhecimentos sobre a lógica do totalitarismo que se refletiria em sua famosa fábula Revolução dos Bichos, e que cristalizou em 1984.
Este romance foi seu legado: ele o escreveu tendo em mente Nós,
de Yevgeny Zamyatin, com muito trabalho, dúvidas e correções em uma
ilha escocesa ventosa e fria, onde se retirou com esse objetivo, logo
depois de ter ficado viúvo de uma esposa muito querida, sozinho, doente
de tuberculose – na época muitas vezes letal –, como um longo testamento
político. De fato, morreu no ano seguinte à publicação.
O escritor britânico John Lanchester aponta que o mundo de hoje é
mais parecido com a distopia daquele que foi professor de Orwell, Aldous
Huxley: Admirável Mundo Novo (1932). Esse livro descreve uma
sociedade marcada pela ciência e pela tecnologia e entregue a uma
“narcotizante promiscuidade sexual”, tranquilizada pelo prazer e pelas
drogas (o soma milagroso) e imersa em uma infantilização geral; e coerentemente com isso, narrado em um tom mais leve do que 1984. Para entender o presente, Lanchester propõe uma síntese entre Admirável Mundo Novo e 1984.
Nessa síntese talvez se devam incluir algumas das tendências e
inovações que inundam o nosso mundo. Como as chamadas “capacidades
aumentadas”– drogas, próteses, implantes cerebrais–, os novos órgãos
obtidos com impressoras 3D;
os robôs que controlam nossas casas, aprendem e transmitem nossos
dados; a realidade virtual que entretém e anestesia...
Orwell não se
estendeu em descrições de novas tecnologias e máquinas: colocou o foco
em um estado mental e social. É por isso que seus augúrios conectam com
os leitores. Como Dorian Lynskey afirma em uma recente biografia de
Orwell – In the Shadow of Big Brother (Na Sombra do Big Brother)
–, o britânico “estava muito mais interessado na psicologia do que nos
sistemas”. Aí reside a chave do poder e dos mecanismos de controle da
massa através da mentira e do medo. Isso dificilmente muda.
por Ignacio Vidal-Folch
El País
#
Nenhum comentário:
Postar um comentário