quarta-feira, 12 de junho de 2019

70 Anos de Mil novecentos e oitenta e quatro

Embora seja um long-seller continuamente republicado, recentemente as vendas de Mil novecentos e oitenta e quatro - intitulado assim no original, embora geralmente citado em números -, a distopia de Orwell publicada pela primeira vez há 70 anos, dispararam nos Estados Unidos, onde, segundo o The New York Times, a editora Penguin enviou várias centenas de milhares de exemplares pouco depois de Kellyanne Conway, conselheira do Gabinete do presidente Donald Trump, ter repreendido a imprensa por insistir que a Administração reconhecesse que o número de participantes da cerimônia de posse de Trump era uma informação falsa que sua equipe tinha feito circular. Afinal, disse Conway, não se tratava nem de uma mentira nem de um erro, mas do que definiu como “fatos alternativos”. Ao ouvir suas palavras, muitos cidadãos relembraram algumas previsões do romance de Orwell: a “novilíngua”, um vocabulário sintético e reduzido, cuja pobreza visa também reduzir a capacidade de pensar; e o “Ministério da Verdade”, no qual funcionários no livro se aplicam a corrigir os testemunhos do passado recente e a reescrever a história para que ela se encaixe perfeitamente no discurso oficial. Ou seja, o que muitos viram em Conway era uma implantação sem complexos da mentira institucionalizada, presente em maior ou menor medida não só em Trump, mas em geral nos discursos da política, do comércio, da religião... do jornalismo...

Caminhamos mansamente em direção a uma sociedade de vigilância em massa na qual a informação é manipulada para manter as pessoas sob controle, como o romance reflete? Orwell imaginou um mundo pós-revolucionário onde tudo o que aconteceu antes da Revolução fundadora de1984 (valores humanísticos, formas de relacionamento, debate público, liberdade de expressão, cultura...) foi abolido e esquecido. A nova sociedade materialista que o romance descreve é dividida em três classes: os membros do partido, os “proles” e os “escravos”. O aparato de repressão, onipotente e implacável, vigia cada movimento dos súditos por meio de um sistema de telas instaladas no espaço público e no doméstico. Não existe privacidade. O poder é encarnado em um tirano inacessível cuja imagem é exibida em todos os lugares com o slogan “O Grande Irmão zela por ti”.

Em uma Londres sinistra, o protagonista, Winston Smith, modesto mas inquieto funcionário do departamento de História do Ministério da Verdade, conhece Julia, empregada do departamento de Ficção do mesmo ministério. Ela opera uma “máquina de escrever romances”: histórias com argumentos simples e personagens estereotipados, semelhantes àquelas que em nosso mundo real hoje são escritas por computadores que usam inteligência artificial. Winston e Julia se apaixonam e tentam se juntar a uma fantasmagórica organização clandestina de dissidentes que, no fundo, sabem estar condenada ao fracasso, porque o poder é invencível. Essa tensão entre o poder esmagador, por um lado, e, por outro, o amor e a liberdade, é a substância do romance.

Deixando de lado notáveis exceções, como o controle exercido pelo Governo chinês sobre sua população e satrapias várias, o onipresente Estado policial todo-poderoso e controlador que Orwell fabulou... não existe. Paradoxalmente, um dos maiores problemas em grande parte do mundo é a fraqueza ou a falência dos Estados. Mas os monopólios todo-poderosos da tecnologia, com seu controle da verdade e sua avidez vampírica por informação, podem ser um substituto plausível para esse Estado fictício. Nesse sentido, também na realidade, O Grande Irmão está te vigiando e te espionando – sim, com uma interface agradável e com a aquiescência e a entusiástica cooperação da massa – por meio das telas, do telefone celular que cada um carrega no bolso, do indelével rastro digital deixado por cada usuário.

Na sociedade ocidental de hoje, o sexo tampouco é reprimido e severamente controlado como em 1984, mas encorajado e exposto. E, no entanto, sua prática na juventude é substancialmente atrasada e reduzida, de acordo com estatísticas oficiais de uma dezena de países do primeiro mundo citadas pela revista cultural norte-americana The Atlantic. Essa demora pode ser a primeira indicação da recessão sexual, sinal de “uma retirada mais ampla da intimidade física que se estende até a entrada na maturidade”. (As causas dessa queda da libido podem ser pressões econômicas, ansiedade, fragilidade psicológica, uso generalizado de antidepressivos, televisão em streaming, estrógenos dispersados pelo plástico no meio ambiente, smartphones, falta de sono, obesidade, excesso de informação... ou o que ocorrer a qualquer analista).

No inferno cartografado por Orwell em seu livro, escrito no pós-guerra, a miséria é generalizada, as pessoas caminham cabisbaixas e tolhidas, os bens de consumo são escassos, a aparência das coisas é cinza, o trabalho é embrutecedor e os horários abusivos. Hoje o mundo real não é assim, pensam os membros do partido. Mas proles e os escravos certamente reconhecem essas paisagens.

Em um dos mais famosos, tétricos e patéticos cenários de 1984, os chamados “dois minutos de ódio”, as massas se reúnem diante de uma grande tela para vaiar e execrar o inimigo em um paroxismo demente. Ao lê-lo, é inevitável lembrar das redes sociais, onde hoje qualquer um que coloque o focinho fora do bando se expõe a ser linchado virtualmente.

Outros artefatos e termos usados para descrever o mundo de 1984 foram incorporados à paisagem e à linguagem comum. Orwell concebeu suas profecias como uma admoestação, uma advertência contra um futuro totalitário, seja soviético, seja fascista, e contra o cultivo sistemático da mentira que observou pela primeira vez na Espanha, em Barcelona, durante a Guerra Civil, que lhe deixou surpreso e pensativo ao constatar “com que facilidade a propaganda totalitária pode controlar a opinião das pessoas cultas nos países democráticos”.

O estilo de Orwell é direto e tem uma formidável capacidade de criar empatia com o leitor, que ao lê-lo ouve a voz de um personagem simpático, honesto, próximo, bom. Essa proximidade, é claro, é uma grande virtude literária. Como Camus, escrevia impulsionado por uma obrigação moral. Tinha que expiar seu trabalho como oficial de polícia do império na Birmânia, onde passou cinco anos depois de ter estudado em Eton, e de onde voltou com uma forte consciência política anti-imperialista.

Escreveu com o máximo verismo reportagens sobre os londrinos pobres e se reduziu voluntariamente à condição de vagabundo. Frequentou mendigos em pé de igualdade por um longo tempo. Daí surgiu seu primeiro livro, Na Pior em Paris e em Londres.

Com o mesmo espírito de coerência e sacrifício, quando Franco se levantou contra a República espanhola foi para Barcelona e imediatamente se apresentou como voluntário para lutar na frente. Desta aventura ficou o testemunho de sua Homenagem à Catalunha e o rastro de uma experiência e conhecimentos sobre a lógica do totalitarismo que se refletiria em sua famosa fábula Revolução dos Bichos, e que cristalizou em 1984.

Este romance foi seu legado: ele o escreveu tendo em mente Nós, de Yevgeny Zamyatin, com muito trabalho, dúvidas e correções em uma ilha escocesa ventosa e fria, onde se retirou com esse objetivo, logo depois de ter ficado viúvo de uma esposa muito querida, sozinho, doente de tuberculose – na época muitas vezes letal –, como um longo testamento político. De fato, morreu no ano seguinte à publicação.

O escritor britânico John Lanchester aponta que o mundo de hoje é mais parecido com a distopia daquele que foi professor de Orwell, Aldous Huxley: Admirável Mundo Novo (1932). Esse livro descreve uma sociedade marcada pela ciência e pela tecnologia e entregue a uma “narcotizante promiscuidade sexual”, tranquilizada pelo prazer e pelas drogas (o soma milagroso) e imersa em uma infantilização geral; e coerentemente com isso, narrado em um tom mais leve do que 1984. Para entender o presente, Lanchester propõe uma síntese entre Admirável Mundo Novo e 1984.

Nessa síntese talvez se devam incluir algumas das tendências e inovações que inundam o nosso mundo. Como as chamadas “capacidades aumentadas”– drogas, próteses, implantes cerebrais–, os novos órgãos obtidos com impressoras 3D; os robôs que controlam nossas casas, aprendem e transmitem nossos dados; a realidade virtual que entretém e anestesia...

Orwell não se estendeu em descrições de novas tecnologias e máquinas: colocou o foco em um estado mental e social. É por isso que seus augúrios conectam com os leitores. Como Dorian Lynskey afirma em uma recente biografia de Orwell – In the Shadow of Big Brother (Na Sombra do Big Brother) –, o britânico “estava muito mais interessado na psicologia do que nos sistemas”. Aí reside a chave do poder e dos mecanismos de controle da massa através da mentira e do medo. Isso dificilmente muda.

por

El País





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