quarta-feira, 13 de junho de 2018

50 Anos de 2001 - Uma odisséia no espaço

No fim de março de 1968, as primeiras cópias de 2001: Uma Odisseia no Espaço começaram a ser projetadas para integrantes das elites do cinema de Hollywood e do jornalismo cultural dos Estados Unidos, e produziram um retumbante fracasso.

Ninguém tolerou a visão de futuro do nova-iorquino de ascendência judia Stanley Kubrick, nem mesmo o cientista e escritor inglês Arthur C. Clarke, que trabalhava havia quatro anos, em parceria com o cineasta, na versão literária do filme, que seria lançada logo a seguir.

No livro recém-lançado 2001: Uma Odisseia no Espaço – Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a Criação de uma Obra-Prima, o escritor e cineasta Michael Benson, nascido seis anos antes da estreia, narra com gozo as circunstâncias agudas daqueles dias de 50 anos atrás.  

Nas pré-estreias, Clarke, executivos do estúdio MGM e críticos de cinema se irmanaram naquilo que a viúva de Stanley, Christiane Kubrick, descreve no livro como o “prazer em ver a dor alheia” estampada no rosto do cineasta.

Acontecia ali um daqueles fenômenos em que as elites de um determinado tempo se divorciam completamente da realidade e entendem um fato pelo contrário simétrico do que ele significa. Desesperado pela rejeição inicial, Kubrick encurtou 19 minutos do filme (restaram 139 minutos para a posteridade).

Em lépidos 16 dias, um dos inúmeros críticos que apontaram os “erros” de 2001 produziu a primeira reavaliação, de mea-culpa, sobre o filme, e o apontou como “obra-prima”. Amparado pelas plateias mais jovens, 2001 se transformaria no filme mais lucrativo de 1968 e num dos épicos cinematográficos indeléveis do século passado.

Estima-se que a MGM, que embolsara algo como 12 milhões de dólares com 2001, foi recompensada com uma bilheteria de até 190 milhões de dólares. Antes que 1968 terminasse, a nave Apollo 8 fez o primeiro voo ao redor da Lua; em julho de 1969, a vida imitou Kubrick e fez um terráqueo pisar pela primeira e única vez o solo do satélite artificial do planeta que 2001 gostaria de suplantar.

De modo análogo ao que Kubrick fez ao explorar por dentro as espaçonaves e o robô com (maus) sentimentos humanos HAL 9000, o livro de Benson penetra as entranhas da produção de 1964-68 para explorar minuciosamente o futuro do pretérito que é a substância de 2001.

O que emerge é a colisão criativa sem tréguas entre passado e futuro, memória e invenção, o peso do tempo e a leveza do vento. É flagrante o desespero financeiro de Arthur Clarke diante da relutância de Kubrick em liberar o lançamento da versão literária de 2001.Ao longo da produção, o diretor vai extirpando as palavras da versão audiovisual.

Quando o livro vem à tona, o texto passa a servir de guia auxiliar de decifração para os enigmas não verbais do filme – o monólito alienígena que atravessa milhões de anos entre a Terra e a Lua e Júpiter e além, o salto humano entre o berço terrestre e o infinito intergaláctico, o astronauta que envelhece e volta ao útero materno ao percorrer o Portal das Estrelas imaginado por Clarke, e assim por diante.

Na tensão entre opostos complementares, é como se Kubrick compusesse a melodia da sinfonia que adornaria (ou melhor, ocultaria) as letras de Clarke para um épico folk-rock de Bob Dylan (a certa altura, o diretor cogita, não se sabe se a sério ou zombeteiramente, entregar a encomenda da trilha sonora para os Beatles).

Na contramão das trilhas especialmente compostas para filmes de grande orçamento, Kubrick queria impor à MGM o uso de peças eruditas – do ribombante e nietz-schiano Also Sprach Zarathustra (1896), do alemão Richard Strauss, ao manjado e “cafona” Danúbio Azul (1867), do austríaco Johann Strauss.

Ao vencer a peleja, o diretor impôs à indústria canibal um paradoxal balé futurista banhado por sons compostos mais de um século antes de 2001. Contraste ainda mais chocante era produzido pela cena de envelhecimento do astronauta, ambientado num quarto de hotel interestelar decorado à moda Luís XV.

O arco de ambição da odisseia homérica e joyciana de Kubrick para longe da ave-mãe Terra ajuda a explicar a repulsa da elite que primeiro teve acesso ao filme, e faz o diretor retroceder a hominídeos de milhões de anos atrás, no prólogo A Aurora do Homem.

Combustível fóssil abastece e incendeia a narrativa de Benson sobre o processo de caracterização dos neandertais coreografados pelo mímico Daniel Richter. Ele também acabaria por interpretar Moonwatcher, o homem-macaco namorado da Lua que, após vislumbrar o monólito, aprendia a usar ossos como armas e tornava a espécie carnívora e ereta. 

Ao atirar aos céus o fêmur animal que, na montagem, se convertia numa espaçonave em forma de espermatozoide capaz de furar a Via Láctea, Moonwatcher metaforizava o raio de alcance almejado por 2001.

Richter só foi creditado como ator, porque Kubrick não admitia que ninguém, além dele, acumulasse mais de um crédito nos letreiros. De olho nas estatuetas danúbias do Oscar, o diretor engoliu a equipe de efeitos visuais e assinou a autoria desse setor que era um dos monólitos de inovação do filme.

Os efeitos visuais renderam o único Oscar para 2001 e para Kubrick, diretor também de outros clássicos pop-rock do cinema mundial, como Dr. Fantástico (1964), Laranja Mecânica (1971) e O Iluminado (1980). Idealizador de epopeias de época, guerra, terror e thriller sexual, Kubrick jamais dirigiu um faroeste.

Para Benson, 2001 marca o encerramento do ciclo do cinema de Velho Oeste e a substituição dos épicos sertanejos e caipiras pelo breu interestelar. Psicodélico na travessia do Portal das Estrelas, 2001 o filme saiu da mente de um diretor que evitava religiosamente as drogas, por medo de que lhe sabotassem o fluxo criativo.

Embora um semideus se consolide na narrativa de Benson, biógrafo não perdoa os traços mui humanos do mito que brinca de deus. Em diversas passagens, Kubrick é retratado como limítrofe à ética, e 2001 assoma como resultado da predação do artista que, à maneira das personagens, aprendeu a usar ossos e espaçonaves como armas de destruição em massa (não seria Hollywood se assim não fosse).

Kubrick exigiu da equipe o transplante de árvores africanas em extinção para cenário mais adequado, e depois do uso as silhuetas vegetais pré-históricas extraídas clandestinamente foram serradas e destruídas, simples assim.

Trabalhadores acidentados no exercício da filmagem foram sumariamente demitidos. Além do estúdio hipercapitalista, também o cineasta aparece como obcecado por planilhas, cálculos, lucros, luxo. Ele, afinal, também pertencia à vanguarda que inicialmente rejeitou sua obra-prima.

Kubrick não quis esperar para ver a realidade concretizar (em tablets e internets) e desmentir (na conquista humana tímida do espaço) sua projeção de 2001. O homem que, entre os 36 e os 40 anos, orquestrou uma visão transcendental de futuro morreu de infarto, em 1999, aos 71 anos.

por Pedro Alexandre Sanches


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