quinta-feira, 17 de maio de 2018

o processo

Compareci no último sábado à pré-estréia do filme "O Processo" em Aracaju. É sempre bom ver o pequeno e charmoso Cinema Vitória lotado - e neste caso não se trata de força de expressão, quem chegou atrasado teve imensa dificuldade de achar onde sentar. Trata-se, como todos já devem saber, do documentário que Maria Augusta Ramos , conhecida por seus filmes sobre o sistema de (in)justiça, fez sobre o processo de impeachment da presidentA Dilma Rousseff - não entendi porque no filme ela á tratada como presidentE ...

O filme começa com um sobrevoo sobre uma Brasília literalmente dividida entre vermelhos e verdeamarelos, mortadelas e coxinhas. Aquele tipo de imagem que ficará para a história e será vista e revista provavelmente para sempre nos anos que virão. Todo o filme, aliás, se presta a isso: ser um registro precioso para a história. Segue mostrando a igualmente já célebre votação na câmara dos deputados, aquela cena dantesca onde o Brasil mostrou sua cara de forma nunca antes vista - escancarada, despudorada. Daí parte para "o processo" propriamente dito, supostamente judicial mas, por acontecer no senado, eminentemente político - e farsesco.

A diretora teve acesso aos bastidores das reuniões e do dia-a-dia da minoria, que defendia a presidentA. Faz falta o mesmo olhar para o outro lado, mas não há nada que se possa fazer a respeito já que o acesso lhe foi negado. Intercala, então, imagens públicas e já conhecidas dos debates transmitidos pela TV Senado com discussões a principio privadas. Não há entrevistas, apenas o registro e a edição de imagens. Toda edição, evidentemente, revela o olhar do autor e se converte num comentário, numa opinião. A diretora tem consciência disso, já vi declarações suas afirmando que nunca teve a intenção - que na verdade seria uma ilusão - de fazer um filme "imparcial". Mas há sempre, também, a possibilidade da acusação de manipulação, e foi o que parece ter acontecido no debate que se seguiu à exibição do filme naquela tarde, quando um dos espectadores afirmou ter achado de mal gosto uma edição que mostra a Dra. Janaína Paschoal tomando um Toddinho logo após cenas em que destila sua costumeira fanfarronice. Disse que não gostou porque foi uma piada "fácil" que o fez ficar com um "pé atrás" com relação ao filme. Eu, particularmente, não tenho nada contra piadas "fáceis" e ri bastante com a cena. Pra mim funcionou como um alívio cômico necessário diante do tema pra lá de árido e espinhoso. Há pelo menos outras duas que se prestam ao mesmo serviço, a cena da troca da campainha e a da troca de ironias e sorrisos nervosos entre a presidentA Dilma e o senador Cássio Cunha Lima, um dos diversos CANALHAS, CANALHAS, CANALHAS - palavras de Tancredo Neves durante o golpe de 1964 oportunamente lembradas pelo senador Requião em 2016 - que atuaram de forma cínica e dissimulada naquela verdadeira ópera-bufa.

Para mim, particularmente, o filme teve um efeito parecido com o dos "Dois minutos de ódio" que era exibido aos cidadãos da Oceania em “1984” de George Orwell: impossível evitar o asco diante de tantos CANALHAS expostos em tela grande. Isso porque a diretora fez questão de mostrar - corretamente, evidentemente - todos os argumentos, contra ou a favor do impeachment, utilizando imagens publicas de discursos proferidos em plenário e nas sempre tensas e tumultuadas comissões. Janaína, felizmente, se permitiu ser filmada, o que nos proporcionou algumas deliciosas cenas "extras" - dela se alongando ou se congraçando com seus admiradores da direita hidrófoba - além dos muitos momentos patéticos já mostrados na televisão, como o episódio em que ela arma um verdadeiro barraco numa sessão do Senado para tirar satisfações pessoais. Não se pode "culpar" a diretora por nada disso, evidentemente: com relação ao ódio gerado pela situação absurda cujas consequencias estamos todos sentindo na pele trata-se de uma percepção totalmente pessoal, baseada em minhas convicções - sim, tenho algumas. Boa parte dos presentes à sessão de pré-estreia parece ter sentido pudor de se entregar a este sentimento - catártico, purificador, recomendo - a julgar por alguns  comentários proferidos durante o já citado "debate" - confuso, pouco produtivo - que se seguiu à exibição. Me deu a impressão de que alguns dos que se manifestaram ainda estão empenhados em perseguir aquele ideal jornalístico inalcançável de isenção e imparcialidade. A meu ver, o ideal a ser perseguido é o da honestidade intelectual, e isso a diretora demonstrou ter de sobra, a julgar pelo que foi visto na tela.

Gostei bastante do filme. E tenho certeza que gostarei ainda mais ao longo do tempo, com o distanciamento histórico. Será muito bom relembrar, especialmente, a figura patética da "Doutora" Jana e suas caras e bocas e discursos involuntariamente cômicos, e o verdadeiro "tapa na cara" em forma de autocrítica registrado na fala de Gilberto Carvalho em uma das reuniões petistas. Só espero que isso aconteça numa situação ideal, no momento utópica, em um Brasil que superou a crise pela esquerda e se tornou um país mais justo, e não distópica, num país destroçado pelo avanço implacável da insensatez. Quem viver, verá.

Em tempo: o final é sensacional, avançando no tempo para registrar imagens da gigantesca manifestação contra a reforma da previdência um ano depois do impeachment. O filme, que havia começado com a imagem do sobrevoo sobre a cidade dividida, termina com a fumaça do incêndio de um dos ministérios tomando conta da tela ...

“O Processo” está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil.

Em Aracaju, no Cine Vitória.

Vá e veja.

A.

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