sábado, 31 de dezembro de 2016

2016, o ano que não vai terminar

Tudo começou a desandar quando soubemos, logo em janeiro, da morte de David Bowie dois dias após lançar seu álbum derradeiro – uma ode à própria morte. Seria, de fato, um ano de baixas.

Mundo afora, Spotlight, sobre a equipe de jornalistas responsáveis por investigar a rede de pedofilia e crimes acobertados pela Igreja Católica, vencia o Oscar de Melhor Filme e desbancava A Grande Aposta, também baseado em fatos reais, também uma aula sobre apuração, observação de sinais, desconstrução de discursos e mensagens oficiais, desta vez sobre a bolha do mercado imobiliário. A ironia é que o dicionário Oxford escolheria a expressão “pós-verdade”, que, entre outras artimanhas, ajudou a definir o Brexit e a eleger Donald Trump nos EUA com a divulgação de notícias factíveis e não factuais pelas redes, como a palavra do ano.

Pós-verdades, obituário e escândalos domésticos competiam por nossa atenção logo nas primeiras horas de 2016. Um dia era a ex-amante que acusava o ex-presidente de pagar mesada com ajuda de uma empresa amiga de sua gestão. No outro, o marqueteiro da campanha de Dilma Rousseff (e Michel Temer) era preso, suspeito de receber dinheiro oriundo de propina na 23ª (vi-gé-si-ma-ter-cei-ra) fase da Lava Jato.

Em março, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o presidente da Câmara responsável por dar início ao julgamento de Dilma entre os deputados, virou réu no STF sob acusação de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

No mesmo mês, promotores de São Paulo pediram a prisão do ex-presidente Lula, mas o que chamou a atenção foi a confusão entre os pensadores Hegel e Engels. Lula não chegou a ser preso, mas foi conduzido coercitivamente à PF para prestar depoimento.

Ainda em março, uma multidão foi às ruas contra o governo petista, liderados por um jovem militante que, naquele domingo, comparava a luta contra a corrupção no Brasil com a luta imaginária de sua infância contra os vilões dos Power Rangers.

Mas era outro vilão, o Coringa do Batman, que o ex-senador Delcídio Amaral (PT-MS), preso após tentar comprar o silêncio de um delator, evocaria ao anunciar a sua própria delação: “sou o profeta do caos”. O caos era a ideia, desenhada a cada nova denúncia, de que a quebra do silêncio era também a quebra de um pacto frágil que nos fazia acreditar que, longe de nossos olhos, as instituições funcionavam, eram independentes, democráticas, republicanas.

O caos narrado ali desordenava o modelo vilões, mocinhos de HQs e seriados japoneses e patos da Fiesp. Citava, por exemplo, o herói do impeachment, Eduardo Cunha, nas falcatruas e atribuía à perda de influência em órgãos públicos como a origem da bronca contra a presidenta prestes a ser destituída.

Naquele mesmo mês, Lula foi nomeado e desnomeado ministro antes de assinar o papel do Bessias. O vai-não-vai tinha como pano de fundo a divulgação de trechos de gravações entre ele e a presidenta, levando, possivelmente, ao ápice do radicalismo entre apoiadores e opositores do governo. Um ator chegou a interromper uma peça em Belo Horizonte para xingar tudo o que se assemelhasse ao governo, inclusive um “nego qualquer”, grifo dele, da plateia.

Ao mesmo tempo, estava sendo gestada a lista da Odebrecht com mais de 200 políticos de vários, se não todos, os partidos. Foi nesse contexto que o PMDB decidiu romper com o governo que ajudou a eleger e governar até o abismo. Era o triunfo do achaque após levar os anéis e todos os dedos da partilha ministerial.

Estava mais do que desenhado que o futuro presidente seria alguém que fazia saudação em cartas em latim e conseguia enviar mensagem de voz de 15 minutos no WhatsApp. Totalmente conectado, portanto, com as ferramentas para compreender um mundo de diversidades, velocidades e compartilhamentos.

No Planalto, ministros começam a jogar a toalha já em abril. Era uma boa notícia para quem via no governo petista o símbolo da corrupção, da fisiologia e da incompetência. A má notícia era que os antigos sócios da parceria - e protagonistas do mesmíssimos escândalos que todos juram combater – seriam promovidos.

Nos jornais, uma rede de fast food iniciava “um movimento de democratização e acessibilidade a todos” em direção a esfihas vendidas por um real. Dizia que a “queda”, um trocadilho com o momento político e o preço da iguaria, seria boa para todos. Era um retrato bem-acabado daqueles dias, quando até a vergonha virava oportunidade de negócios.

Até que chegou o dia da votação do impeachment na Câmara. O primeiro voto, de Abel Galinha, mobilizou esforços de tradutores da mídia estrangeira que concentrava as atenções sobre o futuro político do Brasil. Em diversos veículos, os colegas tentavam explicar como acusados notórios de corrupção poderiam comandar o julgamento de um governo acusado de corrupção, embora este não fosse exatamente o mérito do pedido de impeachment.

Na sessão, Jair Bolsonaro prestou duas homenagens; uma, ao torturador da ditadura Carlos Brilhante Ustra, e outra a Eduardo Cunha, pela condução dos trabalhos. Segundo o deputado, os derrotados no processo “perderam em 64, perderam em 2016". Cunha, por sua vez, pediu para que Deus tivesse misericórdia da nação.

Em outro momento magnífico, a deputada Raquel Muniz (PSD) disse que o “Brasil tinha jeito” ao votar pelo afastamento de Dilma e citou como exemplo seu marido e prefeito de Montes Claros, Ruy Borges Muniz (PSB), que seria preso menos de 24 horas depois.

Enquanto os deputados falavam em nome de Deus, o futuro governo já encaminhava com representantes da indústria, da agricultura e do comércio uma série de concessões, entre elas menos controle de retorno das concessionárias de serviços públicos, a permissão para negociações diretas entre empregadores e empregados, e a liberação de milhões em recursos.

Alguém lembrou de atualizar a expectativa em relação ao país de alguns anos atrás: de candidato a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU a uma cadeira rotativa da Presidência.

Quem leu ou reler o “Admirável Mundo, de Adous Huxley, naquela época, poderia imaginar que chegara o tempo em que os regimes totalitários já não precisariam do cassetete para impor uma estabilidade à força. Bastaria convencer a população de que ser oprimido era um bom negócio. Para isso era preciso conter a consciência e a capacidade de auto-reflexão dos indivíduos com uma jornada de trabalho alienante (não pense em crise, trabalhe), uma mega exposição a programas de entretenimento infantilizadores, pílulas da felicidade ao menor sinal de sofrimento e o descarte da literatura e de qualquer arte de questionamento como itens de inutilidade.

O Brasil de 2016 se tornava um case de sucesso nas previsões de todas as distopias literárias.
Temer, que já na época era apontado como a melhor solução para o país por apenas 8% do eleitorado, segundo o Ibope, governaria com o apoio do PSDB, que se tornaria aos poucos no PMDB do PMDB.

Em maio, enquanto o futuro presidente se trancava nos bastidores para decidir o futuro e deixar tudo ficar como estava, com os mesmos atores que levaram o governo à ruína, no Brasil real estudantes secundaristas se mobilizavam em outras salas para reivindicar o presente. Seriam eles os acusados de provocar desordem e tumulto em um país que já não sabia o rumo.

Amigo de alcova do novo presidente, Cunha foi afastado em maio do mandato de deputado via STF. Voltaria a operar e vagar feito alma penada pelo submundo de onde surgiu até ser preso. 

Waldir Maranhão (PP-MA) assumiu o lugar de Cunha prometendo surpreender e não desapontou: tentou melar a votação do impeachment e promoveu o maior cai-não-cai na história recente da República. As definições de modernidade líquida acabavam de ser atualizadas pela política brasileira.

Até que o Senado finalmente pôde votar, e confirmar, o afastamento, então provisório, de Dilma. Por ironia, no dia em que seria alçado a presidente interino, quem caiu foi Temer: caiu na pegadinha de um radialista argentino que telefonou para dar os parabéns fingindo ser o presidente Mauricio Macri.

Desfeita a gafe, Temer montou um ministério alinhadíssimo com o Congresso - majoritariamente masculino (e branco e rico). Da nova equipe, 18 ministros colecionavam suspeitas ou polêmicas. Um deles já assumiu dizendo: “não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina”. Falava do SUS com a autoridade de quem teve as contas da campanha para deputado bancadas por operadoras privadas de saúde.

Temer sinalizava, sem dizer uma palavra, que diversidade e cultura não eram prioridades do primeiro escalão, o que levou o pastor Silas Malafaia, coagido a prestar depoimento à PF meses depois, a manifestar no Twitter a sua empolgação: “Os esquerdopatas estão chorando porque Temer acabou com um dos seus antros, Ministério da Cultura”.

Temer teve de se dobrar diante da pressão dos artistas e desistiu de extinguir o ministério, cujo titular, logo em seguida, pediria dispensa após ser pressionado por um colega a liberar um empreendimento de seu interesse embargado pelo Iphan, o instituto responsável por zelar pelo patrimônio histórico. O prédio do Geddel, como ficou conhecido, expôs, segundo um grande observador da cena, o embate entre o patrimônio histórico e o patrimonialismo histórico.

Detalhe: após a pressão, o colega, um dos braços direitos do presidente, tombou, assim como o ministro do Planejamento que disse, em áudio vazado em delação, que a saída para conter as investigações policiais era colocar Temer no poder.

Apesar das tratativas de Jucá e companhia, a PF seguiu prendendo gente, entre eles dois ex-governadores do Rio, empresários, ex-ministros e até mesmo o Japonês da Federal, responsável por acompanhar os detentos famosos, acusado de facilitar contrabando.

Nos novos dias de um novo tempo que começou com o novo governo, o DEM voltaria ao comando da Câmara com Rodrigo Maia, o rosto de um partido que se apequenou desde o fim do governo FHC, da qual serviu como linha auxiliar, trocou de nome, viu sua bancada encolher e passou os últimos anos tentando inviabilizar projetos de ações afirmativas, como as cotas, a partir de um discurso extemporâneo sobre meritocracia.

Nesses novos sonhos, uma atriz chegou a ser agredida, e chamada de puta, ao atravessar uma manifestação pró-impeachment.

Com os ânimos exaltados, recebemos as Olimpíadas do Rio após uma cerimônia que, se não foi capaz de apagar ou escamotear nossos conflitos e contradições, conseguiu suspender por instantes nossos afetos pautados pela dor e imaginá-los como uma harmonia possível.

Entre tantos estrangeiros da festa, ninguém parecia mais fora de seu ambiente do que o interino decorativo. O medo da vaia, que ao fim aconteceu, transformou sua presença numa metáfora de sua condição: uma figura menor, deslocada de seu povo, acuada na apropriação à força de uma autoridade que não reconhece e nem é reconhecida como tal. Nesse retrato, até os aplausos e os sorrisos soavam custosos, artificiais e distantes.

O constrangimento de um símbolo político que se cala menos por medo do que por nada ter a dizer é também parte deste retrato. Ainda assim ele seria confirmado no cargo, confirmando em parte a sua verve poética que, em um de seus muitos versos em tema livre, falava do incômodo com um certo passarinho: “Morro eu ou ele/Os dois, impossível/Começo a matutar/Contratarei pistoleiro”.

Entre ditos e desditos, passamos a observar em tempo real, e pela cobertura da imprensa, a construção de projetos que não duram as 12 horas da jornada de trabalha proposta e “desproposta” pelos ministros temerários. Com elas, Temer e sua equipe se tornaram a imagem do governante que queimou as energias para subir na sela e, preocupado em se manter ali, já não sabe para onde vai o cavalo.

Enquanto isso, Lula começou a acumular denúncias na Justiça, uma delas baseada em PowerPoint.

Tantas denúncias fizeram estragos, nas disputas municipais, nas pretensões eleitoras dos candidatos apoiados pelos principais nomes do sistema político. De puxadores de votos, Lula, Dilma, Aécio Neves e até Marina Silva viram a candidatura afundar no palanque onde colocavam os pés. O resultado imediato da ojeriza à política tradicional foi a ascensão de outsiders (ou falso outsiders), como João Doria em São Paulo e Alexandre Kalil em Belo Horizonte, ou de candidatos ligados a outras agremiações que não partidárias, caso de Marcelo Crivella, ligado à Igreja Universal, no Rio.

Passamos a apostar na Justiça como a saída para todas os vícios políticos, sem atentar para casos em que o desembargador que mandou anular as condenações pelas mortes no Carandiru era o mesmo que determinava a prisão de ladrões de salame.

Se o mundo já estava suficientemente maluco, faltava viver para ver, em plena Avenida Paulista, uma manifestação em apoio a Donald Trump com bandeirinhas com a fotografia de Hilary Clinton entre demônios e menções que a ligavam à “ditadura anarco-petista” (sic). A manifestação terminou em pancadaria com grupos antifascistas, que há tempos tentam demonstrar o elo entre discursos de ódio e crimes como o ocorrido no Metrô Pedro 2º, ocorrida no apagar das luzes deste ano.

Ainda neste ano, quando o mundo inteiro dava demonstração de solidariedade, sensibilidade e (vá lá) união após a queda do avião da Chapecoense, na Colômbia, dirigentes, não só políticos, invertiam prioridades e escancaravam a preocupação em salvar a própria pele durante a votação das medidas de combate à corrupção.

No embalo, o presidente nota 3,6, segundo o Datafolha, conseguiu aprovar um pacote de controle de gastos bancado por um Congresso rejeitado por 58℅ da população. A medida era rechaçada por seis em cada dez entrevistados pelo instituto. A primeira conta é a mais elementar e não fecha: a suposta estabilidade econômica tem como custo uma crise política com risco de convulsão social.

O lema “as instituições estão funcionando” teve, em 2016, o mesmo destino de outra frase famosa, “a defesa brasileira é sólida”, de 2014.

Entrincheirado em Brasília, Renan Calheiros se recusou a obedecer uma ordem judicial que o mandava se retirar da presidência do Senado. A decisão provocou uma onda de provocações e gentilezas verbais impronunciáveis entre juízes e congressistas.

Pouco depois, a delação do ex-vice-presidente de Relações Institucionais da Odebrecht serviu como um mapa até o subsolo do funcionamento das instituições políticas e empresariais brasileiras. Delatado, rejeitado e perdido: o retrato do governo Temer no Datafolha era o epílogo de uma falsa saída política. 

NOTA DO BLOG: Eis que o ano que começou com a morte de Bowie termina se despedindo de outro ícone pop: Carrie Fischer, a eterna (MESMO) princesa Leia de Guerra nas Estrelas. Foi um ano triste, desanimador mesmo. Os poucos (imagino, mas na verdade não sei) que acompanham este blog devem ter sentido isso na quantidade reduzida de postagens - especialmente de textos meus - olá, meu nome é Adelvan, prazer. Ando bem desanimado pra escrever, porque a impressão que tenho é que (quase) ninguém mais lê, tá todo mundo distraído nas redes sociais. Mas ok, deixa pra lá, não vou ficar me lamuriando aqui. Feliz ano novo para todos. Até breve - ou não ...

por Matheus Pichonelli

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