Por uma dessas coincidências cabalísticas do destino, o “Cidadão do Mundo” fica em São Caetano, cidade para a qual eu já iria me dirigir, de qualquer jeito, para visitar meu já citado amigo Marlio, ex-baixista da Karne Krua e da Câmbio Negro HC, que mora lá. Para deixar a mão ainda mais na roda, fica pertinho da casa dele – mas perto mesmo, tipo, desci da Estação de trem, andei uma quadra, bati um rango massa que incluiu o bom e velho cuscus com leite (valeu Tânia!) na casa de Marlio, voltei mais umas duas quadras e voilá – estávamos lá.
Fomos lá para ver, basicamente, duas bandas: No Sense e Lobotomia. A segunda dispensa apresentações, é uma daquelas lendas vivas do Hardcore/crossover nacional. Já o No Sense é menos conhecido, embora não menos importante: trata-se de uma das primeiras bandas de grindcore do Brasil. Foi formada em Santos em 1990 – tecnicamente, portanto, ainda na década de 80! Eu sou fã desde mais ou menos aquela época, quando ouvi a primeira fita demo, “Confused mind”, podríssima, e, posteriormente, o primeiro disco deles - e também o primeiro disco de grindcore lançado por uma banda brasileira - um compacto chamado “out of reality” que trazia na capa um desenho de HR Giger – este já com uma gravação bem melhor. Devo dizer que o que primeiro chamava 3a atenção na banda era o fato de contarem com uma garotinha de apenas 13 anos (!!!) no vocal, mas se fosse apenas isso, teria sido apenas isso. Além disso, a banda era supercriativa e, mesmo fugindo da mediocridade e dos clichês tão comuns ao gênero, conseguia fazer um barulho desgraçado! Se duvida, ouça o primeiro LP deles, “Cerebral Cacophony” (Baixe aqui), lançado em 1992 em vinil pela Cogumelo Records. Ou o mais novo EP, “obey”, que vem com o “out of reality” de bonus. Ouça aqui.
Apesar disso, e de ter mantido por muito tempo correspondência com Ângelo, então guitarrista, e Marly, a vocalista, além de tê-los conhecido pessoalmente e, inclusive, ter ido a um ensaio deles em Santos em janeiro de 1993 (no mesmo dia em que o Nirvana tocou em São Paulo), nunca havia visto um show do No Sense ao vivo. E pensei que nunca veria. Mas eis que me deparo por um acaso, na internet, com o anuncio de um “grito rock” no ABC em que eles iriam se apresentar e me dou conta de que estaria em São Paulo na época, para ver o show do Morrissey e para pegar minha mãe, que estava por lá fazendo um tratamento de saúde. Estava, portanto, fácil pra mim ir, e nas mais que perfeitas condições já especificadas acima. O mundo, realmente, dá voltas, e quem é vivo um dia aparece.
Apareci por lá com Marlio uma hora e meia depois do horário marcado com medo de ter perdido o show que mais queria ver, mas nos deparamos com o espaço praticamente vazio – nenhuma banda havia, ainda, se apresentado. E seriam várias. Ok, tranqüilo: nos sentamos e continuamos a colocar a conversa em dia. O tempo vai passando e as criaturas começam a aparecer, dentre elas, eles: os longos cabelos loiros de Marly e as barbas grisalhas de Morto e Paulão se destacavam na escuridão da noite. Muito bom revê-los depois de quase 20 anos, amigos queridos, e constatar que continuam as mesmas ótimas pessoas de sempre.
Não poderei relatar em detalhes o que aconteceu logo a seguir justamente porque estava aproveitando aquele raro momento para conversar com o pessoal, mas vi alguns trechos de alguns shows, dentre eles o primeiro, de uma banda de Hardcore de Santos que conta com membros do no Sense na formação, e o do Zefirina Bomba, da Paraíba, que tem as manhas de tirar uma distorção irada de um violão. De fora, ouvi também ecos de algo que parecia com planet Hemp (perdidos no tempo, os caras) e uma outra banda que, ao que parece, cantava em espanhol. Lá fora, conheci uma figura: Fralda, ex-Ratos de Porão e Forgotten Boys. O cara tá com um visual cabuloso, total stoner rock podrão, cabeludo e barbudo, e é muito gente fina. Ele toca no Lobotomia e nos falou que iríamos nos surpreender com o novo guitarrista deles, um moleque novinho, de 15, 16 anos, que precisava inclusive de autorização dos pais para viajar, mas que tocava pra caralho. Era esperar para ver.
Na espera tivemos, finalmente, o No Sense, que foi a penúltima banda a se apresentar, já com a madrugada avançada. Foi um show curto (pensei que fosse o normal deles, mas Marly me falou depois que tiveram que limar metade do set atendendo a pedidos da organização) porém avassalador, com musicas de no máximo, 2, 3 minutos, tocadas com precisão, peso e velocidade. Mesclaram sons novos com algumas já velhas conhecidas da galera “de meia idade” presente e contaram com a participação especial, numa delas, de Marlio Oliveira ? Comenta aí, porra!
Destaque também para os afiados, hilários e desbocados diálogos entre Marly Cardoso e Barbara Cristine Chiariello no meio do show – aí só estando lá mesmo pra ver e ouvir. Muito engraçado.
Depois da queda o coice, já diziam os Paralamas do Sucesso (quem?). O show do Lobotomia foi absolutamente matador e nos surpreendeu, já que, confesso, não estávamos botando muita fé numa banda tão descaracterizada – creio que apenas o baterista era da formação original. Era, pelo menos, o único que já ostentava cabelos grisalhos. Foi foda: o vocalista, também novo, segurou bem a onda, assim como o batera. Fralda tem uma presença de palco muito boa, é um rocker, totalmente old school, e o guitarrista, puta que pariu! Sensacional! Simplesmente detonou, mandando altos riffs e solos matadores, com um estilo, tanto visual quanto musical, totalmente metal. Muito bom. Um dos melhores shows de Hard Core que vi em muito tempo – e olha que até que tenho visto bons shows de Hard core ultimamente ...
Voltamos pra casa com o dia amanhecendo e aquela sensação de satisfação que só uma boa noite de rock e diversão pode proporcionar. Na manhã seguinte, segui meu rumo, já que precisava descansar para o que viria à noite – leia sobre aqui.
São Paulo é foda: vi Morrissey, No Sense e Lobotomia, mas perdi Sisters of Mercy, que estava na cidade e iria se apresentar naquela mesma noite no Via Funchal (não fui porque não tenho uma plantação de dinheiro no quintal de casa), e o Ugra Zine Fest, evento no qual foi lançada a segunda parte do documentário “Fanzineiros do século passado”, do meu camarada Márcio Sno, e no qual também esteve presente outro amigo de correspondencia de longa data, o cyberpunk gaúcho Law Tissot, além de várias outras figuras antológicas do meio alternativo nacional como Marcelo Viegas e Flavio Grão. Perdi também, e isso só é perdoável porque eu não poderia me dividir em vários como o Multi-homem, dos Impossíveis, um show da lendária banda brasiliense Death Slam, do meu camarada Fellipe CDC, que estava se apresentando em São Paulo na época. Tudo isso no mesmo dia, na mesma noite. Na noite seguinte eu poderia ter ido depois do show de Morrissey com outro amigo, Andye Iore, de Maringá, Paraná, a um show de monobandas que haveria na Augusta, onde eu estava hospedado, mas cadê a coragem? Preferi bater uma pizza com os camaradas Viegas e Grão e depois se jogar nos braços de Morfeus (ui, poético). São Paulo é realmente foda – possui um incrível efeito aglutinador (todo mundo, uma hora ou outra, passa por lá) e é quase sempre tudo ao mesmo tempo agora, e pra já. Eu sei, a vida é feita de escolhas, mas assim fica difícil ...
Fora este lado “alternativo” da empreitada, teve a viagem em si que, por si só, já é bem legal. Fui com a patroinha e ela não perdeu tempo: chegamos na sexta, dia 09 de março, por volta das 3 da tarde, deixamos a mala no hotel “5 cruzes” no qual costumo me hospedar (ela merecia algo melhor, mas teve que compreender, Morrissey nos quebrou – e o hotel era simples porém decente, no final das contas), batemos um rango e já estávamos no metrô, a caminho do Mercado Municipal, que ela queria conhecer e eu nunca havia visitado. No caminho, passamos pela 25 de março e foi uma loucura: a baixinha ficou louca com a quantidade de bijouterias à venda por preços pra lá de camaradas. Algumas bem bonitas, como um bracelete que ela comprou, mas ficar de “role” por lojas de bugingangas da 25 não é exatamente o MEU tipo de programa, então fomos ao mercado com a promessa de voltarmos lá depois com mais tempo (acabamos não voltando, porque o dinheiro tinha acabado e o cansaço tomado conta).
É muito bonito, o Mercado Municipal de São Paulo. Altas frutas exóticas, como os gigantescos morangos americanos que um feirante esperto convenceu minha senhorinha a comprar por absurdos 25 reais (depois, no hotel, quando fomos comê-los, ficamos um pouco menos arrependidos da compra, pois eram realmente enormes e deliciosos), e o famoso sanduíche de mortadela, supostamente o mais famoso da cidade. Comi. É bom, mas é grande demais! E enjoado. Muito gorduroso. Ficou a desejar ...
De lá seguimos para a galeria do rock, que continua basicamente a mesma: A Baratos Afins continua por lá, com Calanca atrás do balcão, o que significa que tudo está no seu lugar, graças a Deus. Aproveitamos para dar um pulo na galeria ao lado, que não sei hoje, mas antes chamavam de “galeria indie”, muito provavelmente por causa de lojas como a London Calling, e nela encontramos uma simpática lojinha gótica com seu proprietário igualmente simpático que nos deu várias dicas do que fazer – dicas que não seguimos por pura falta de tempo. E de dinheiro, evidentemente.
Visitei também, desta vez sozinho, a Galeria Nova Barão, que reúne, principalmente, lojas especializadas no bom e velho vinil. É de babar! Poderia ficar horas ali só olhando aqueles bolachões lindos e suas capas e encartes grandes e maravilhosos, mas como estava sem grana (oh! Céus! De novo?), era “olhar com os olhos e lamber com a testa”, portanto nem me demorei tanto ...
De lá, no caminho para a Estação Sé do metrô, passamos pelo Centro Cultural Banco do Brasil, onde estava havendo uma exposição bacana sobre a Índia. Mas bacana mesmo foi outra que vi, no MASP, sobre a Roma antiga: Belíssimos objetos, a maioria esculpido em mármore branco, vindos diretamente dos melhores museus da Itália. Era impressionante, dava vontade de tocar em tudo, tocar a história da humanidade em si, ou, pelo menos, uma parte muito importante dela. Destaque para alguns altares sacrificiais ricamente ornamentados, para um busto gigante de Julio Cesar, Uma estátua de Júpiter e outra de Calígula em tamanho real e alguns adereços usados pelos gladiadores, além de toda uma parede pintada em afresco retirada da cidade de Pompéia, aquela que foi destruída pela erupção do vulcão Vesúvio.
Também lá, no MASP, pude ver, Ao Vivo e a cores, um quadro de um de meus artistas plásticos favoritos: “As tentações de Santo Antão”, de Hieronymus Bosch. Sensacional. Haviam também vários outros de pintores igualmente famosos, como um esboço de Salvador Dali – mas nada de muito célebre, apenas “lados B”, como bem definiu Viegas, que me acompanhou na visita.
Que mais? A Livraria Cultura e sua impressionante seção de quadrinhos, que no entanto é menor que a seção de quadrinhos da Martins Fontes. Que, por sua vez, perde para a mesma seção da Fnac – todas na Paulista. É muita tentação consumista numa cidade só ...
A lamentar ainda, no quesito “poderia ter visto mas não deu”, uma Mostra de trabalhos de Angeli que estava em montagem no Instituto Itaú Cultural. Também na paulista. Como deu pra notar, praticamente nem saí daquela região, e mesmo assim não consegui dar conta do que havia por lá.
São Paulo é foda. Um lugar do caralho.
Por Adelvan
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