Na década de 1980, um tempo em que a gente
tinha que ir ao cinema ou esperar passar na TV – aberta – pra ver algum filme,
havia o Festival da Primavera da Rede Globo. Era um espaço nobre, reservado às
grandes produções, o “créme de la créme” da cinematografia mundial. Foi lá que
assisti pela primeira vez – em versão dublada e com intervalos comerciais,
ressalte-se - alguns de meus filmes favoritos de todos os tempos, como “2001 –
Uma odisséia no espaço”, de Stanley Kubrick, “Era uma vez no oeste”, de Sergio
Leone, e “Doutor Jivago”, de David Lean. Este último despertou em mim um
fascínio que preservo até hoje pela história, cultura e paisagens geladas da
Rússia.
O interesse cresceu no ambiente
universitário, quando passei a me aprofundar sobre o imaginário revolucionário.
Não me tornei comunista, apesar de ter feito um “curso de iniciação ao
marxismo” com Wellington Mangueira, então no PCB, mas até hoje leio bastante
sobre o assunto. Causou-me surpresa, portanto, quando me deparei, numa
livraria, na sessão de lançamentos, com um calhamaço de mais de 900 páginas de
um romance escrito ao longo de mais de uma década e finalizado em 1960 cuja
ação transcorria no auge da chamada “Grande Guerra Patriótica” – é assim que os
russos chamam a segunda guerra mundial – e que era descrito, na contracapa,
como “O guerra e paz soviético”.
O fato é que eu nunca havia ouvido falar do
tal livro, “Vida e destino”, nem de seu autor, Vassili Grossman. Me interessei,
pesquisei e entendi porque: tratava-se de uma obra proscrita, de publicação
póstuma, salva do esquecimento pela ação abnegada de alguns amigos. E foi
banida porque era visceralmente verdadeira – um pecado mortal para o
totalitarismo stalinista, que sobreviveu à morte do ditador, em 1953.
O caminho percorrido até que aquelas muito
bem traçadas linhas chegassem às minhas mãos, aqui em meu cantinho ensolarado
do mundo, é, por si só, uma epópéia: A KGB chegou ao extremo de confiscar não
apenas os originais, mas também as fitas da máquina de escrever onde o tomo foi
redigido e a escavar a horta da casa do primo do escritor em busca de mais
exemplares. Nem uma carta direta do autor ao então secretário-geral do Partido
Comunista da URSS, Nikita Khruschov, a quem havia conhecido pessoalmente no
front de stalingrado, adiantou. “Talvez ele seja publicado daqui a uns
duzentos, trezentos anos”, disse-lhe Mikhail Suslov, o ideólogo do Partido,
respondendo pelo “chefe”. Sua devolução estava fora de questão ...
Uma cópia, no entanto, foi preservada por
uma amiga, Liôlia Klestova, em uma mala trancada embaixo de sua cama num
apartamento comunal. Posteriormente, em 1974, esta cópia foi microfilmada e
contrabandeada para a Europa no fundo falso de uma caixa de biscoitos de
gengibre entregue pelo também escritor Vladimir Voinovich a uma rede de
dissidentes da qual fazia parte o célebre físico Andrei Sakharov. Foi publicado
pela primeira vez, finalmente, na Suíça, em 1980, mas sem grande repercussão -
aos dissidentes, em plena guerra fria, o que mais interessava era a denuncia, e
esta já havia sido feita com sucesso através dos escritos de Pasternak e
Soljenitsin. Em todo caso, oito anos depois, com o degelo da “glasnost” e da
“perestroika”, a grande obra pôde finalmente chegar a seu destino original, o
povo russo, e de lá se espalhar pelo mundo, consagrando-se como uma das mais
incisivas e importantes peças de literatura do século XX.
A narrativa gira em torno, principalmente,
da família Chapochnikov, da qual faz parte o físico judeu Viktor Chtrum, uma
espécie de alter-ego do autor. Seu drama pessoal segue, em linhas gerais, o
roteiro da vida do próprio Grossman: do remorso pela morte da mãe nas mãos dos
nazistas na Ucrânia ocupada – culpava-se por não tê-la abrigado em seu
apartamento em Moscou antes que fosse tarde demais - e por uma carta aberta de
repudio que assinou mesmo sabendo se tratar de uma injustiça movida por
perseguição até o romance proibido que manteve
com uma mulher casada. A partir deste núcleo central a narrativa se
desdobra por, literalmente, centenas de personagens secundários que vivem
tramas típicas de sua época: o velho bolchevique Mastovkói, prisioneiro num
campo de concentração alemão; os ocupantes de uma casa que resiste bravamente
ao bombardeio de Stalingrado; os responsáveis pela usina de força da cidade,
que têm que resistir ao impulso de correr em debandada para não serem
considerados desertores pelos responsáveis pela implantação do comunismo de
guerra; os destemidos aviadores que singram os céus combatendo o inimigo; Krímov,
comissário do exército vermelho que cai em desgraça por uma simples menção a um
elogio de Trotski a um de seus artigos; ou o oficial Nóvikov, comandante de um
Corpo de tanques que se envolve em batalha decisiva nos arredores de
Stalingrado. Nóvikov é o amante e Krímov é o ex-marido de Ievguênia, irmã de Liudmila,
esposa de Viktor, que é salvo de um destino terrivel ao receber um telefonema
no meio da noite ...
Além desses personagens ordinários e
fictícios, o livro é povoado por figuras históricas, notadamente Albert
Eichmann, que supervisiona a construção das câmaras de gás na qual milhares
seriam imolados. Hitler e Stalin também dão o ar da graça, de forma breve porém
surpreendente. A passagem em que o fuhrer aparece é particularmente primorosa,
especulando sobre sua psique – não vou dar detalhes para não estragar a
surpresa.
“Vida e Destino” apresenta um amplo painel
da sociedade russa da época, com uma abordagem pioneira de temas tabu como a
brutalidade da coletivização agrícola forçada e o banho de sangue da repressão
política de 1937, passando pelo antissemitismo e o início do programa nuclear
soviético. Suas páginas nos transportam de forma absolutamente arrebatadora
pelos meandros da tragédia humana através de sofisticadas narrativas que nos
inserem dentro da mente de uma mãe que visita o túmulo do filho morto em
combate, de uma médica de meia idade e de uma criança desprotegida em uma
tenebrosa jornada a caminho da morte nas câmaras de gás ou do comandante que
hesita até o ultimo instante em dar uma ordem de ataque, sentindo o peso do
destino de tantos sobre seus ombros. Nos diálogos, sempre brilhantes, embates
ideológicos e dilemas existenciais que reverberam através do tempo e ainda se
apresentam absolutamente relevantes, especialmente agora, quando experimentamos
o retorno a uma situação de polarização ideológica perigosa e preocupante.
É uma obra notável, fruto do imenso
trabalho intelectual de uma mente privilegiada que colocou no papel o que viu e
viveu, pois foi correspondente de guerra em Stalingrado e também sofreu com a
perseguição política. Deve ser lido e relido e redescoberto pelos séculos que
virão.
Já é um clássico.
A.
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