Frankenstein nasceu de algo mais do que o desafio de Lord Byron
ao lado de uma chaminé com vista para o lago Léman no verão mais frio
do século XIX. Tudo o que foi depositado por Mary Wollstonecraft Shelley
na narração que deu à luz um mito universal – inspirador de quase mil
obras entre o cinema,
o teatro e os quadrinhos – tem relação com as circunstâncias
extraordinárias que a cercaram desde que nasceu em 30 de agosto de 1797
em Londres. Ao seu redor o velho mundo havia se fragmentado após várias
revoluções. A industrial se encontrava em plena excitação graças ao
aperfeiçoamento da máquina a vapor de James Watt. A política digeria a
overdose de guilhotina de Robespierre e companhia abraçando a volta da
ordem. As ideias e a ciência (ainda chamada filosofia natural) estavam
igualmente agitadas, com as teorias de Lavoisier que inauguram a química
moderna e as expedições aos polos para se aprofundar no magnetismo. E
todas aquelas revoluções tomavam chá em sua casa atraídas por seu pai, o
romancista e filósofo radical William Godwin (1756-1836), partidário da
abolição da propriedade e contrário a toda forma de governo. O primeiro
anarquista.
O próprio entorno
doméstico é forjado contrário à convenção. Godwin vivia com sua segunda
esposa, Mary Jane Clairmont, e cinco filhos de diferentes origens
biológicas no que hoje seria uma moderna família reconstituída. Mary W. Shelley
cresce marcada pelo pensamento de sua mãe, a escritora e filósofa Mary
Wollstonecraft (1759-1797), que a convida a formar-se como uma cidadã
consciente em vez de uma esposa submissa. Uma mãe ausente, cujo túmulo
era um local frequente de leitura. A autora transportará sua experiência
de orfandade à criatura literária, que espalha dor e morte porque não
tem quem a queira.
Em 1792, após o sucesso de um ensaio em defesa da Revolução Francesa, Mary Wollstonecraft publicou Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher,
onde exigia a educação às meninas: “Para fazer o contrato social
verdadeiramente equitativo, e com a finalidade de estender aqueles
princípios esclarecedores que só podem melhorar o destino do homem, deve
permitir-se às mulheres encontrar sua virtude no conhecimento, o que é
praticamente impossível a menos que sejam educadas mediante as mesmas
atividades que os homens”. É considerado o primeiro tratado feminista,
paralelamente à Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã escrita pela francesa Olympe de Gouges, decapitada em Paris por querer levar os direitos humanos longe demais.
Se o pensamento de Mary
Wollstonecraft era transgressor em si mesmo, sua vida encarnou vários
mitos românticos por seus desamores e suas duas tentativas de suicídio.
Entre o episódio do láudano e o do rio Tâmisa viajou pela Escandinávia
com sua primeira filha, Fanny, e uma babá. Da experiência sairia um
livro de viagens que entusiasmou William Godwin: “Se alguma vez foi
escrita uma obra com a intenção de que um homem se apaixonasse pelo
autor, acho que é essa”. Os dois escritores se tornam amigos, amantes e,
por último, cônjuges entre chacotas da imprensa conservadora (Godwin
havia se manifestado contra o casamento em escritos públicos). Na
quarta-feira 30 de agosto de 1797 nasce a única filha do casal, Mary. A
filósofa passou as contrações lendo em voz alta Os Sofrimentos do Jovem Werther,
de Goethe, com seu marido. O mesmo livro que no futuro será apreciado
por uma criatura de dois metros e meio de altura e lábios negros.
Mary talvez não tenha
sido educada como teria desejado sua mãe, que faleceu 11 dias após o
parto, mas seu pai estimulou seu intelecto desde o começo. Os biógrafos
sugerem que cresceu com mais pensadores do que afetos. “Ela
frequentemente sentia-se sozinha e carente de um sentimento de
identidade familiar”, diz James Lynn, “as relações com a segunda esposa
de seu pai eram pobres, e mesmo que Godwin tenha lhe dado uma boa
educação, não deu atenção às suas necessidades emocionais”.
Mary podia ouvir em sua
casa o poete Samuel Taylor Coleridge, o inventor William Nicholson e o
químico Humphry Davy. Seu pai a levava em conferências sobre
eletricidade e para tomar chá com o divulgador do vegetarianismo John
Frank Newton. Todo esse magma individual e criativo deixou marcas em
Frankenstein: o capitão Walton faz referência a um poema de Coleridge
(‘A Balada do Velho Marinheiro’) e o gigante mata, mas é vegetariano. Um
velho amigo de Godwin é apresentado no começo do romance: “Na opinião
do doutor Darwin, e de alguns fisiologistas da Alemanha, os
acontecimentos em que a presente ficção é baseada não são inteiramente
impossíveis”.
O médico e naturalista Erasmus Darwin, defensor de uma teoria sobre a origem única da vida e avô do autor de A Origem das Espécies, também será evocado em Villa Diodati no frio verão de 1816. Horas antes de Mary ter a visão que alimenta Frankenstein,
os poetas Lord Byron e Shelley recordam um de seus supostos testes,
como relata a própria escritora: “Ao que parece havia conservado um
pouco de massa em um pote de vidro, até que, por algum extraordinário
processo, aquilo começou a se agitar com um movimento autônomo. (...)
Talvez um cadáver pudesse reviver, o galvanismo deu provas de coisas
semelhantes: talvez as partes que compõem uma criatura possam ser
construídas, e depois possam ser reunidas e dotadas de calor vital”. A
grande pergunta que se faz Victor Frankenstein – “Onde estará o
princípio da vida?” – era a grande pergunta da época.
Diante da falta de
respostas precisas, os substitutos triunfam. A eletricidade vive seu
momento de glória desde meados do século XVIII. As descobertas
científicas de Benjamin Franklin, Luigi Galvani e Alessandro Volta
convivem com a prestidigitação ambulante. Em seu ensaio Mulheres e Livros,
o editor Stefan Bollman recria um popular espetáculo de “aparelhos
elétricos”: “Colocavam em funcionamento as rodas de suas máquinas
eletrostáticas e enviavam descargas elétricas através das mãos de uma
cadeia humana. Suspendiam uma pessoa de tal forma que levitava e faziam
com que sua cabeça brilhasse”.
Até mesmo Percy Bysshe
Shelley entrou na onda da eletricidade em Oxford, como detalha Charles
E. Robinson, principal especialista na obra de Mary W. Shelley, em sua
introdução a uma edição anotada para cientistas e inventores publicada
em comemoração ao bicentenário da criação da obra: “Construiu sua
própria pipa elétrica, fez faíscas saltarem de um aparelho elétrico e
até armazenou o fluido da eletricidade em garrafas de Leyden: esses
testes servem de base às experiências elétricas do pai de Victor,
Alphonse, em Frankenstein”.
O poeta Shelley também
acabaria frequentando a ágora doméstica de William Godwin, atraído pelo
pensamento de um filósofo quase mais célebre por controvérsias públicas
como a que manteve com Malthus do que por seus densos tratados
políticos. Percy também era especialista em controvérsias: casou-se
apesar da oposição de sua influente família e acabava de ser expulso de
Oxford por fazer propaganda do ateísmo. Mary tinha 16 anos quando foge
com ele, mas voltam logo por falta de dinheiro. A partir daí suas
biografias alimentam o mito do casal perfeito do romantismo, com uma
sucessão de sucessos literários e cadáveres jovens: só um de seus quatro
filhos sobrevive e, aos 29 anos, Percy B. Shelley se afoga na Itália.
No futuro a escritora se afastará da condição de maldita e se preocupará
em obter a aprovação social para ela, seu único filho e o poeta morto.
Mas quando Mary W.
Shelley escreve seu relato em 1816 para a competição sobre histórias de
fantasmas, convocada por Lord Byron no verão mais frio do século, tem
somente 18 anos, um bebê vivo e outro morto, e uma relação escandalosa
que acabará com o suicídio da primeira esposa de Shelley. Ignora que
está forjando um mito universal e que, naquela família onde só contavam
os que tinham méritos literários, ultrapassará a popularidade de todos
eles.
Em 1 de janeiro de 1818, quase dois anos depois da estadia no lago Léman, é publicado Frankenstein ou o Prometeu Moderno
com uma tiragem de 500 exemplares. Não tem assinatura. A mão de Percy
B. Shelley (que fornece correções ao manuscrito) chega a ser especulada.
Mas se algum incrédulo sobreviveu nesses 200 anos, perdeu a última
esperança em 2013. Nesse ano foi leiloado por 477.422 euros (1,9 milhão
de reais) um exemplar da primeira edição dedicada a Lord Byron “pelo
autor”. A letra foi autentificada como a de Mary W. Shelley.
Na segunda edição de
1823 (de tiragem semelhante à anterior), a escritora se identifica. Em
apenas três anos são feitas 10 adaptações teatrais diferentes, incluindo
finais paródicos sobre a morte da criatura, que irá se afastando-se de
seu cultivado espírito original – lia Plutarco, Milton e Goethe – para
transformar-se no imaginário coletivo em um monstro de parafuso na
cabeça e um tanto bobalhão. A obra se emancipa da autora. Seus leitores
encontram em Frankenstein o que precisam: terror gótico, antecipação da ficção científica e um dilema ético sobre os limites da ciência.
No dia de Halloween de
1831 é lançada uma terceira edição de 4.020 exemplares. A escritora
introduz mudanças e cala os céticos: “Certamente, não devo ao meu marido
a sugestão de nenhum episódio, nem sequer de um guia nas emoções e,
entretanto, se não fosse por seu estímulo, essa história nunca teria
adquirido o formato com o qual se apresentou ao mundo”. Assina sua
introdução como M.W.S., mas a história da literatura prescindirá do
sobrenome materno.
Mas somente rastreando
suas origens familiares e as circunstâncias dos primeiros anos de sua
vida pode-se responder à pergunta que tantas vezes fizeram a Mary W.
Shelley: “Como é possível que eu, à época uma jovenzinha, pudesse
conceber e desenvolver uma ideia tão horrorosa?”.
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