É um jogo e tanto. Relatórios do Crédit Suisse e da Oxfam
mostram a grande divisão entre os donos do jogo e os espectadores: 62
bilionários têm mais riqueza do que os 50% mais pobres da população mundial.
Eles produziram tudo isso? Evidentemente, tudo depende de que papel você
desempenha no jogo. Em São Paulo, os muito ricos que habitam o condomínio de
Alphaville estão murados em segurança, enquanto os pobres que vivem na
vizinhança se autodenominam Alphavella. Alguém precisa cortar a grama e entregar
as compras.
De acordo com o relatório global da WWF sobre a destruição
da vida selvagem, 52% das populações de animais não-domesticados desapareceram,
durante os 40 anos que vão de 1970 a 2010. Muitas fontes de água estão
contaminadas ou secando. Os oceanos estão gritando por socorro, o ar
condicionado prospera. As florestas estão sendo derrubadas na Indonésia, que
substituiu a Amazônia como a região número um do mundo em desmatamento. A
Europa precisa ter energia renovável, de carne barata e da beleza do mogno.
A Rede de Justiça Fiscal revelou que cerca de 30 trilhões de
dólares – comparados a um PIB mundial de US$ 73 trilhões – eram mantidos em
paraísos fiscais em 2012. O Banco de Compensações Internacionais da Basileia
mostra que o mercado de derivativos, o sistema especulativo das principais
commodities, alcançou 630 trilhões de dólares, gerando o efeito iôiô nos preços
das matérias-primas econômicas básicas. O maior jogo do planeta envolve grãos,
minerais ferrosos e não ferrosos, energia. Essas commodities estão nas mãos de
16 corporações basicamente, a maior parte delas sediadas em Genebra, como
revelou Jean Ziegler em “A Suiça lava mais branco”. Não há árbitro neste jogo,
estamos num ambiente vigiado. Os franceses têm uma excelente descrição para os
nossos tempos: vivemos une époque formidable!
Fizemos um trabalho perfeito em 2015: a avaliação global
sobre como financiar o desenvolvimento em Adis Abeba, as metas do
desenvolvimento sustentável para 2030 em Nova York e a cúpula sobre mudanças
climáticas em Paris. Os desafios, soluções e custos foram claramente expostos.
Nossa equação global é suficientemente simples para ser executada: os trilhões
em especulação financeira precisam ser redirecionados para financiar inclusão
social e para promover a mudança de paradigma tecnológico que nos permitirá
salvar o planeta. E a nós mesmos, claro.
Mas são os lobos de Wall Street que traçaram o código moral
para este esporte: Ganância é Ótima!
Afogando em números
Estamos nos afogando em estatísticas. O Banco Mundial sugere
que deveríamos fazer algo a respeito dos news four biliion – referindo-se aos
quatro bilhões de seres humanos “que não têm acesso aos benefícios da
globalização” – uma hábil referência aos pobres. Temos também os bilhões que
vivem com menos de 1,25 dólar por dia. A FAO nos mostra em detalhes onde estão
localizadas as 800 milhões de pessoas famintas do mundo. A Unicef conta
aproximadamente 5 milhões de crianças que morrem anualmente em razão do acesso
insuficiente a comida e água limpa. Isso significa quatro World Trade Centers
por dia, mas elas morrem silenciosamente em lugares pobres, e seus pais são
desvalidos.
As coisas estão melhorando, com certeza, mas o problema é
que temos 80 milhões de pessoas a mais todo ano – a população do Egito, aproximadamente
– e este número está crescendo. Um lembrete ajuda, pois ninguém entende de fato
o que significa um bilhão: quando meu pai nasceu, em 1900, éramos 1,5 bilhão;
agora somos 7,2 bilhões. Não falo da história antiga, falo do meu pai. E já que
não é da nossa experiência diária entender o que é um bilionário, vai aqui uma
nova imagem: se você investe um bilhão de dólares em algum fundo que paga
miseráveis 5% de juros ao ano, ganha 137.000 dólares por dia. Não há como
gastar isso, então você alimenta mais circuitos financeiros, tornando-se ainda
mais fabulosamente rico e alimentando mais operadores financeiros.
Investir em produtos financeiros paga mais do que investir
na produção de bens e serviços – como fizeram os bons, velhos e úteis
capitalistas – de modo que não tem como o acesso ao dinheiro ficar estável,
muito menos gotejar para baixo. O dinheiro é naturalmente atraído para onde ele
mais se multiplica, é parte da sua natureza, e da natureza dos bancos. Dinheiro
nas mãos da base da pirâmide gera consumo, investimento produtivo, produtos e
empregos. Dinheiro no topo gera fabulosos ricos degenerados que comprarão
clubes de futebol, antes de finalmente pensar na velhice e fundar uma ONG – por
via das dúvidas.
Um suborno global
Muita gente percebe que as regras do jogo são manipuladas. Os tempos são de fraude global, quando pessoas fabulosamente ricas doam a políticos e promovem a aprovação de leis para acomodar suas crescentes necessidades, fazendo da especulação, da evasão fiscal e da instabilidade geral um processo estrutural e legal. Lester Brown fez suas somatórias ambientais e escreveu Plano B [“Plan B”], mostrando claramente que o atual Plano A está morto. Gus Speth, Gar Alperovitz, Jeffrey Sachs e muitos outros estão trabalhando no Próximo Sistema[“Next System”], mostrando, implicitamente, que nosso sistema foi além de seus próprios limites.
Muita gente percebe que as regras do jogo são manipuladas. Os tempos são de fraude global, quando pessoas fabulosamente ricas doam a políticos e promovem a aprovação de leis para acomodar suas crescentes necessidades, fazendo da especulação, da evasão fiscal e da instabilidade geral um processo estrutural e legal. Lester Brown fez suas somatórias ambientais e escreveu Plano B [“Plan B”], mostrando claramente que o atual Plano A está morto. Gus Speth, Gar Alperovitz, Jeffrey Sachs e muitos outros estão trabalhando no Próximo Sistema[“Next System”], mostrando, implicitamente, que nosso sistema foi além de seus próprios limites.
Joseph Stiglitz e um punhado de economistas lançaram Uma
Agenda para a Prosperidade Compartilhada, rejeitando “os velhos modelos
econômicos”. De acordo com sua visão, “igualdade e desempenho econômico
constituem na realidade forças complementares, e não opostas”. A França criou
seu movimento de Alternativas Econômicas; temos a Fundação da Nova Economia no
Reino Unido; e estudantes da economia tradicional estão boicotando seus estudos
em Harvard e outras universidades de elite. Mehr licht! [Mais luz!]
E os pobres estão claramente fartos desse jogo. Sobram muito
poucos camponeses isolados e ignorantes prontos a se satisfazer com sua parte,
seja ela qual for. As pessoas pobres de todo o mundo estão crescentemente
conscientes de que poderiam ter uma boa escola para seus filhos e um hospital
decente onde pudessem nascer. E além disso veem na TV como tudo pode funcionar:
97% das donas de casa brasileiras têm aparelho de TV, mesmo quando não têm
saneamento básico decente.
Como podemos esperar ter paz em torno do lago que alguns
chamam de Mediterrâneo, se 70% dos empregos são informais e o desemprego da
juventude está acima de 40%? E eles estão assistindo na TV o lazer e a
prosperidade existentes logo ali, cruzando o mar, em Nice? A Europa
bombardeia-os com estilos de vida que estão fora do seu alcance econômico. Nada
disso faz sentido e, num planeta que encolhe, é explosivo. Estamos condenados a
viver juntos, o mundo é plano, os desafios estão colocados para todos nós, e a
iniciativa deve vir dos mais prósperos. E, felizmente, os pobres não são mais
quem eram.
Cultura e convivialidade
Sempre tive uma visão muito mais ampla de cultura do que o
tradicional “Ach! disse Bach”. Penso que ela inclui desfrutar de alegria com os
outros, enquanto se constrói ou se escreve alguma coisa, ou simplesmente se
brinca por aí. Convivialidade. Recentemente passei algum tempo em Varsóvia. Nos
fins de semana de verão, os parques e praças ficavam cheios de gente e havia
atividades culturais para todo lado.
Ao ar livre, com um monte de gente sentada no chão ou em
simples cadeiras de plástico, uma trupe de teatro fazia uma paródia do modo
como tratamos os idosos. Pouco dinheiro, muita diversão. Logo adiante, em
outras partes do parque Lazienki, vários grupos tocavam jazz ou música
clássica, e as pessoas estavam sentadas na grama ou assentos improvisados, as
crianças brincando por perto.
No Brasil, com Gilberto Gil no ministério da Cultura, foi
criada uma nova política, os Pontos de Cultura. Isso significou que qualquer
grupo de jovens que desejassem formar uma banda poderiam solicitar apoio,
receber instrumentos musicais ou o que fosse necessário, e organizar shows ou
produzir online. Milhares de grupos surgiram – estimular a criatividade requer não
mais que um pequeno empurrão, parece que os jovens trazem isso na própria pele.
A política foi fortemente atacada pela indústria da música,
sob o argumento de que estávamos tirando o pão da boca de artistas
profissionais. Eles não querem cultura, querem indústria de entretenimento, e
negócios. Por sorte, isso está vindo abaixo. Ou pelo menos a vida cultural está
florescendo novamente. Os negócios têm uma capacidade impressionante para ser
estraga-prazeres.
O carnaval de 2016 em São Paulo foi incrível. Fechando o
círculo, o carnaval de rua e a criatividade improvisada estão de volta às ruas,
depois de ter sido domados e disciplinados, encarecidos pela comunicação
magnata da Rede Globo. As pessoas saíram improvisando centenas de eventos pela
cidade, era de novo um caos popular, como nunca deixou de ser em Salvador,
Recife e outras regiões mais pobres do país. O entretenimento do carnaval está
lá, é claro, e os turistas pagam para sentar e assistir ao show rico e
deslumbrante, mas a verdadeira brincadeira está em outro lugar, onde o direito
de todo mundo dançar e cantar foi novamente conquistado.
Um caso de consumo
Eu costumava jogar futebol bastante bem, e ia com meu pai ver o Corinthians jogar no tradicional estádio do Pacaembu, em São Paulo. Momentos mágicos, memórias para a vida inteira. Mas principalmente brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com bolas improvisadas ou reais. Isso não é nostalgia dos velhos e bons tempos, mas um sentimento confuso de que quando o esporte foi reduzido a ver grandes caras fazendo grandes coisas na TV, enquanto a gente mastiga alguma coisa e bebe uma cerveja, não é o esporte – mas a cultura no seu sentido mais amplo – que se transformou numa questão de produção e consumo, não em alguma coisa que nós próprios criamos.
Eu costumava jogar futebol bastante bem, e ia com meu pai ver o Corinthians jogar no tradicional estádio do Pacaembu, em São Paulo. Momentos mágicos, memórias para a vida inteira. Mas principalmente brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com bolas improvisadas ou reais. Isso não é nostalgia dos velhos e bons tempos, mas um sentimento confuso de que quando o esporte foi reduzido a ver grandes caras fazendo grandes coisas na TV, enquanto a gente mastiga alguma coisa e bebe uma cerveja, não é o esporte – mas a cultura no seu sentido mais amplo – que se transformou numa questão de produção e consumo, não em alguma coisa que nós próprios criamos.
Em Toronto, fiquei pasmo ao ver tanta gente brincando em
tantos lugares, crianças e gente idosa, porque espaços públicos ao ar livre
podem ser encontrados em todo canto. Aparentemente, por certo nos esportes,
eles sobrevivem divertindo-se juntos. Mas isso não é o mainstream, obviamente.
A indústria de entretenimento penetrou em cada moradia do mundo, em todo
computador, todo telefone celular, sala de espera, ônibus. Somos um terminal,
um nó na extensão de uma espécie de estranho e gigante bate-papo global.
Esse bate-papo global, com evidentes exceções, é financiado
pela publicidade. A enorme indústria de publicidade é por sua vez financiada
por uma meia dúzia de corporações gigantes cuja estratégia de sobrevivência e
expansão é baseada na transformação das pessoas em consumidores. O sistema
funciona porque adotamos, docilmente, comportamentos consumistas obsessivos, ao
invés de fazer música, pintar uma paisagem, cantar com um grupo de amigos,
jogar futebol ou nadar numa piscina com nossas crianças.
Um punhado de otários consumistas
Que monte de idiotas consumistas nós somos, com nossos
apartamentos de dois ou três quartos, sofá, TV, computador e telefone celular,
assistindo o que outras pessoas fazem.
Quem precisa de uma família? No Brasil o casamento dura 14
anos e está diminuindo, nossa média é de 3,1 pessoas por moradia. A Europa está
na frente de nós, 2,4 por casa. Nos EUA apenas 25% das moradias têm um casal
com crianças. O mesmo na Suécia. A obesidade está prosperando, graças ao sofá,
a geladeira, o aparelho de TV e as guloseimas. Prosperam também as cirurgias
infantis de obesidade, um tributo ao consumismo. E você pode comprar um relógio
de pulso que pode dizer quão rápido seu coração está batendo depois de andar
dois quarteirões. E uma mensagem já foi enviada ao seu médico.
O que tudo isso significa? Entendo cultura como a maneira
pela qual organizamos nossas vidas. Família, trabalho, esportes, música, dança,
tudo o que torna minha vida digna de ser vivida. Leio livros, e tiro um cochilo
depois do almoço, como todo ser humano deveria fazer. Todos os mamíferos dormem
depois de comer, somos os únicos ridículos bípedes que correm para o trabalho.
Claro, há esse terrível negócio do PIB. Todas as coisas prazerosas que
mencionei não aumentam o PIB – muito menos minha sesta na rede. Elas apenas
melhoram nossa qualidade de vida. E o PIB é tão importante que o Reino Unido
incluiu estimativas sobre prostituição e venda de drogas para aumentar as taxas
de crescimento. Considerando o tipo de vida que estamos construindo, eles
talvez estejam certos.
Necessitamos de um choque de realidade. A desventura da
terra não vai desaparecer, levantar paredes e cercas não vai resolver nada, o
desastre climático não vai ser interrompido (a não ser se alterarmos nosso mix
de tecnologia e energia), o dinheiro não vai fluir aonde deveria (a não ser que
o regulemos), as pessoas não criarão uma força política forte o suficiente para
apoiar as mudanças necessárias (a não ser que estejam efetivamente informadas
sobre nossos desafios estruturais). Enquanto isso, as Olimpíadas e MSN (Messi,
Suarez, Neymar para os analfabetos) nos mantêm ocupados em nossos sofás. Como
ficará, com toda a franqueza, o autor destas linhas. Sursum corda.
por Ladislau Dowbor
dowbor.org
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