O jornalismo brasileiro ficou mais obtuso, medíocre, raso, frio, casmurro e sem respostas nesta segunda-feira, 22 do agosto sempre aziago.
Com você sabe quem. |
Perdemos o Geneton.
Geneton Moraes Neto morreu no Rio de Janeiro aos 60 anos,
vencido pelas complicações de um aneurisma na aorta sofrido três meses antes.
Na autoapresentação de seu blog, criado em 2004, ele já avisava: “Nasci numa
sexta-feira 13, num beco sem saída, numa cidade pobre da América do Sul:
Recife. Tinha tudo para fracassar. Fracassei”.
Bela mentira. Em quatro décadas de jornalismo, o Geneton do
beco e da sexta-feira 13 tornou-se, para sorte de todos nós, um exemplo de
sucesso e uma referência para todos os repórteres que tentam ser fiéis ao
compromisso irrevogável de uma imprensa dedicada à verdade, à memória, à
história e ao dever de consolar os aflitos e afligir os consolados.
Ele começou como repórter em sua terra, no Diário de
Pernambuco e na sucursal local de O Estado de S.Paulo¸ nos duros anos do
Governo Geisel, em plena ditadura. Foi estudar no exterior. Em Paris, trabalhou
como camareiro do Hotel Mônaco e motorista de uma família rica enquanto
estudava Cinema na Sorbonne.
Voltou ao jornalismo, e ao Brasil, para trabalhar no Grupo
Globo a partir de 1985. Ali, o repórter que se dizia fracassado foi chefe e
mestre nos principais postos de jornalismo da casa: editor-executivo do Jornal
da Globo e do Jornal Nacional, correspondente em Londres da GloboNews e do
jornal O Globo, repórter e editor-chefe do Fantástico.
Nenhuma mesa poderosa da burocracia da redação, porém,
deslumbrou o ex-fracassado do beco: “Não troco por nada o exercício da
reportagem — a única função realmente importante no jornalismo”, definia
Geneton no seu blog. E foi na função seminal de repórter, não como executivo de
redação, que Geneton imprimiu sua marca indelével na imprensa brasileira. As
provas estão guardadas para sempre no seu blog, geneton.com.br, que devia ser
tombado como patrimônio cultural e leitura obrigatória para estudantes,
repórteres, jornalistas e todos aqueles que respeitam a inteligência e o
conhecimento. Ali, Geneton passeia sua intimidade, seu talento e seu ofício de
repórter exemplar e humilde diante da notícia e de gente que, como ele, fez
História. Presidentes e ex-governantes, generais e guerrilheiros, escritores e
cineastas, atletas e poetas, astronautas e políticos, cantores e compositores,
jornalistas e repórteres, grandes repórteres como ele, passaram pelo crivo de
sua inteligência e argúcia.
Os bastardos
As duas sobreviventes do Titanic, o copiloto da bomba de
Hiroshima, o assassino de Martin Luther King, o produtor dos Beatles, o
promotor britânico do tribunal de Nuremberg, o agente secreto que tentou matar
Hitler, os três astronautas que pisaram na Lula, o confessor de Bin Laden nas
montanhas de Bora-Bora, o professor do líder dos terroristas do 11 de Setembro,
o homem que encarou o ‘Setembro Negro’ nas Olimpíadas de Munique, o filho do
carrasco nazista de Auschwitz que ataca o próprio pai, o guerrilheiro
brasileiro que recrutou a mãe para a luta armada, o repórter de Watergate que
derrubou o presidente da Casa Branca, o relato dos 11 jogadores brasileiros da
derrota na final da Copa de 1950 num Maracanã estufado com 10% da população do
Rio de Janeiro na época, mais de 200 mil torcedores.
Todos fazem parte deste universo mágico que Geneton
esquadrinhou e trouxe para perto de nós, para nos recontar, com detalhes
inéditos, a saga da espécie humana, nos seus bons e maus momentos. “Que se faça
a louvação da reportagem. O papel de todo repórter é produzir informação a
curto prazo. E memória, a longo prazo – de preferência, nas páginas de um
livro, hoje transformado em espaço nobre a reportagem no Brasil”, escreveu
Geneton na orelha do penúltimo de seus onze livros, Dossiê História (2007).
Ali, Geneton se define modestamente como um “pequeno
tarefeiro da memória porque, em última instância, a memória é a grande
matéria-prima do jornalismo”. Nessa tarefa, ele seguia com devoção o mandamento
de um velho jornalista do inglês The Times, que ensinava:
Toda vez que estiver entrevistando alguém, anônimo ou
famoso, rico ou pobre, o repórter deve sempre fazer a si mesmo, intimamente, a
seguinte pergunta:
‘Por que será que estes bastardos estão mentindo para mim?’
O blog de Geneton se define como ‘jornal de um repórter’ e
tem até uma padroeira, uma tal de ‘Nossa Senhora do Perpétuo Espanto’. Ele
explicava:
Para que possam contribuir com esse ‘mundo real’, os
jornalistas têm que ter uma atitude de permanente espanto. Precisam ser
‘levantadores’, não ‘derrubadores’ de matéria.
É aí que entra em cena, gloriosamente, a Nossa Senhora do
Perpétuo Espanto. Quando criou esta ‘entidade’, Kurt Vonnegut [1922-2007,
escritor, EUA] não estava se referindo ao jornalismo, mas essa ‘santa’ deveria
ser proclamada padroeira plenipotenciária da nossa profissão.
O jornalista precisa manter, em algum ponto de suas
florestas interiores, aquela chama, aquela faísca, aquele espanto que se vê no
brilho dos olhos de um estagiário – ou de uma criança.
Quando você se guia pelo entusiasmo das pessoas que estão
fora da redação, o resultado do trabalho é melhor do que se você se guiasse
pelo tédio dos que estão dentro.
Geneton ensinava que o mundo real é mais interessante do que
o mundo dos jornalistas: “Cansei de ver, ouvir e encontrar leitores e
telespectadores mais interessados pelos fatos do que jornalistas. Não estou
falando de algo abstrato, mas de uma situação real, palpável, comprovável no
dia a dia dos jornais. Cansei de ver em redações um clima de tédio total entre
os jornalistas. Se você atravessar a rua, for à padaria e comentar que
entrevistou uma velhinha que foi passageira do Titanic, provavelmente os
‘ouvintes’ farão perguntas e se interessarão pelo assunto, enquanto muitos
jornalistas dirão, com os olhos semicerrados de tédio: ‘Ah, mas já faz 100 anos
que o Titanic afundou…’.”
Esse diagnóstico levou Geneton à descoberta de uma terrível
doença que ataca as principais redações brasileiras: a SFG, a ‘Síndrome da
Frigidez Editorial’, que ele batizou e, com ar divertido, ameaçava registrar na
Organização Mundial da Saúde. Definição da síndrome, segundo Geneton: “É a
doença do jornalista que, depois de anos de profissão, perde a capacidade de se
espantar diante da realidade. Se perde esse fogo, o jornalista deve mudar de
profissão”.
E jornalista que não se espanta, é claro, nem pergunta mais.
O crédito do general
Perguntar é o que Geneton sabia fazer como ninguém na
imprensa brasileira. Como já se disse, “o jornalismo é a atividade humana que
depende essencialmente da pergunta, não da resposta. O bom jornalismo se faz e
se constrói com boas perguntas”.
Inimigo juramentado do terno e gravata, fiel ao seu negro
blusão de gola rolê que fazia contraste com o branco da barba branca e dos
cabelos desgrenhados e cada vez mais ralos no alto da cabeça, Geneton não se
intimidava diante das luzes e câmeras da GloboNews, muito menos diante de seus
entrevistados. Preocupado menos com a forma, o penteado ou o traje, ele não
descuidava nunca do conteúdo, a partir da pauta que ele mesmo escrevinhava, em
letras grandes, em folhas de papel almaço que brandia e consultava sem constrangimentos
em suas entrevistas. Com sua fala mansa e firme, no doce sotaque recifense que
preservou até o fim, Geneton encarava as respostas enganosas com mais perguntas
— rápidas, incisivas, cirúrgicas —, repelindo as mentiras com outras perguntas
que conduziam à verdade.
Quando o notório Paulo Maluf negou ser sua a assinatura de
uma conta no exterior, mesmo diante do documento exibido pelo entrevistador,
Geneton disparou:
— O sr. nega então que este Paulo Maluf, aqui, seja o
senhor?
— Nego.
— Mesmo com a assinatura de Paulo Maluf?
— Nego.
— Então, existe outro Paulo Maluf?
O Maluf à sua frente ficou em silêncio.
Como todo bom repórter, Geneton era teimoso. Tentou uma,
duas, três vezes, até convencer o general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015),
ministro do Exército do Governo Sarney, a lhe dar uma histórica entrevista em
2010. Nos créditos da telinha, supreendentemente, o general não aparece
identificado como o primeiro ministro militar da democracia, mas como o chefe
da repressão da finada ditadura, a quem Leônidas serviu com espartana e rígida
fidelidade. Por isso, na entrevista da GloboNews, o general é creditado apenas
como ‘chefe do DOI-CODI, 1974-1977′.
O general falou com uma fluência inédita e uma sinceridade
desconcertante, levantando temas que beiravam a fantasia, a leviandade e a
arrogância. Ironizou as denúncias (“Hoje todo mundo diz que foi torturado para
receber a bolsa-ditadura”) e duvidou até do assassinato do jornalista Vladimir
Herzog sob torturas no DOI-CODI de São Paulo, em 1975: “Eu não tenho convicção
de que Herzog tenha sido morto… Um homem não preparado e assustado faz qualquer
coisa. Até se mata”.
Leônidas desafiou qualquer um a dizer que foi torturado no
DOI-CODI do I Exército, no Rio de Janeiro, que ele comandou como chefe do
Estado-Maior durante quase três anos, na fase mais turbulenta do governo
Geisel. ‘Não houve tortura na minha área’, garantiu Leônidas.
Devia ser uma bolha milagrosa, porque ali mesmo no I
Exército, comandado pelo general Sylvio Frota entre julho de 1972 e março de
1974, o DOI-CODI carioca era um centro de morte, conforme apurou O Globo.
Naquele espaço de 21 meses, contou o jornal, morreram 29 presos nas masmorras
da afamada rua Barão de Mesquita, onde funcionava o centro de torturas do
Exército, comandado pelo notório major Adyr Fiúza de Castro, um dos radicais
mais temidos da ditadura. Bastou chegar ali e assumir o DOI-CODI carioca,
fantasiava o general Leônidas, e a paz dos anjos se instalou.
Sem arrogância, Geneton enfrentou o general Leônidas com perguntas
precisas, enxutas, minimalistas, que iluminaram a história e conseguiram
arrancar o melhor (e o pior) do chefe da repressão política que se orgulhava de
seu trabalho na ditadura. Preocupado com a edição do programa na TV, Leônidas
se apressou em ensinar jornalismo a Geneton:
— Que minhas ideias não sejam suprimidas na edição. Se
houver um corte, você me deixa mal — avisou o general, esquecido de que o
regime de força que ele defendeu se esmerava em cortes sistemáticos pela
censura burra que suprimia ideias e fatos que sempre deixam mal as ditaduras.
Geneton não cortou, e ainda assim o general Leônidas ficou muito mal pelas
ideias que exprimiu, livremente.
Sempre educado, mas incorrigivelmente firme, Geneton
questionou a exótica versão do general de que líderes do regime deposto – como
Arraes, Brizola, Jango, Prestes – saíram do Brasil, a partir de 1964, ‘porque
quiseram’. Leônidas mirou no ex-governador Miguel Arraes, conterrâneo de
Geneton, pregando:
– Ele [Arraes] podia ter ficado em casa…
– Deposto – emendou Geneton.
– E qual é o problema? – admirou-se o general.
– Todo – encerrou Geneton, com a sintética sabedoria que o
general, já nos seus 90 anos, ainda não apreendera. – Não havia condições de
exercer a política no Brasil, naquela época, general.
O ex-chefe do DOI-CODI desdenhou toda uma fase de arbítrio e
violência, dizendo que o país não teve exilados pelo golpe de 1964, mas apenas
‘fugitivos’.
– Eles que ficassem aqui e enfrentassem a justiça – pregou
Leônidas.
– General, num regime de exceção, a justiça não é confiável
– replicou o repórter, com a altivez e a dignidade devidas.
Eu destaquei esse luminoso desempenho de Geneton x Leônidas
num texto — A arte de perguntar —, publicado pelo site Observatório da Imprensa
em 7 de abril de 2010, quatro dias após a exibição do programa pela GloboNews,
num sábado.
Geneton, o mestre e amigo a quem eu tratava nos e-mails pelo
carinhoso título de Master Asker (Mestre Perguntador), me agradeceu pelo texto
com o bom humor de sempre:
Olá. Com um cabo eleitoral como você aí, considero-me eleito
para o Comitê
Central do PPB, Partido dos Perguntadores do Brasil.
Obrigado!
No dia seguinte, ainda mais feliz, Geneton me repassou uma
mensagem do diretor da GloboNews, César Seabra, que redistribuiu pelo correio
interno o meu texto do Observatório a toda a equipe da TV, com a seguinte
determinação:
Caros,
o texto do link abaixo faz elogios merecidíssimos ao nosso
Geneton.
Mas também nos faz um alerta precioso, sobre como conduzir
uma entrevista.
É leitura obrigatória para todos – apresentadores,
repórteres, editores, produtores, chefes… Aproveitem. Beijo e bom dia,
César
Bolt da garotada
O incansável Geneton não desistiu do general, que ficou
satisfeito com o que viu no ar, com todas as suas ideias bizarras respeitadas,
como cabe numa democracia. “Devo ter recebido uns 400 telefonemas…”, disse o
eufórico Leônidas a Geneton, num encontro casual num final de manhã de junho de
2014 num shopping do Leblon. Em março de 2015 Geneton pensava num lance mais
ousado. Colocar o general da repressão no estúdio diante de um guerrilheiro da
luta armada. O general piscou. Perguntou quem seria seu oponente. Geneton
pensava no ex-guerrilheiro Cid Benjamin, um dos integrantes do grupo que
sequestrou o embaixador americano Burke Elbrick em 1969. “Vou dizer uma coisa
que você não sabe: o Cid foi prisioneiro meu”. O encontro épico sonhado por
Geneton nunca aconteceu: Leônidas morreu três meses depois, aos 94 anos,
exatamente um ano depois do encontro dos dois no shopping.
Geneton esmerou-se na arte das perguntas por que esta é a
missão central do repórter: “Não faça jornalismo para jornalista. Faça para o
público”, repetia ele ao público, embevecido como eu, nas duas vezes em que nos
encontramos, em 2011 e 2014, no tradicional SET Universitário promovido pela
Famecos (Comunicação Social) da PUC de Porto Alegre. É o mais longevo (29 anos
em 2016) evento de comunicação do sul do país, atraindo gente da Argentina,
Uruguai e outros países. Geneton era o Usain Bolt da garotada, que ele
conquistava com a rapidez e o brilho de um raio.
Mesmo diante da crise econômica que vive a indústria da
comunicação e da crise existencial que abate os jornalistas atropelados pelo
desafio da tecnologia, Geneton nunca abdicou de seus princípios. Fidelidade
absoluta à reportagem e ao seu ídolo maior, Joel Silveira (1918-2007), “o maior
repórter brasileiro”, um sergipano autodidata que Geneton frequentava todo dia,
até a sua morte, com a reverência de um fã.
Joel foi correspondente de guerra na campanha da FEB na II
Guerra Mundial, escalado para cobrir o conflito em 1944 pelo dono dos Diários
Associados. Assis Chateaubriand lhe deu a ordem final:
— O senhor vai para a guerra! E vou lhe pedir um favor,
senhor Silveira: não me morra! Repórter não é para morrer, repórter é para
mandar notícia!
Joel embarcou e voltou. Mas, contrariando as ordens de
Chateaubriand, morreu um pouco.
— Fui para a Itália com 27 anos, passei dez meses e voltei
com 40 anos. A guerra me tirou 13 anos — confessou o ídolo Joel ao fã Geneton,
que a partir desses 20 anos de convivência e confidências, juntando fitas K7 e
imagens amadoras, acabaria produzindo um documentário fundamental de 90 minutos
sobre o maior repórter brasileiro: Garrafas ao mar — A víbora manda lembranças,
exibido pela GloboNews em 2013.
Geneton se divertia contando as relações de seu ídolo com os
magnatas da mídia. De Chateaubriand, Joel ganhou o apelido de ‘víbora’. De
Adolpho Bloch, dono da revista Manchete, onde Joel publicou suas últimas
reportagens, ele ganhou um bilhete. Bloch aproveitou uma viagem de seu repórter
a Jerusalém e lhe pediu que colocasse o bilhete, como manda a tradição judaica,
numa das frestas do Muro das Lamentações, acompanhado de um pedido. Joel
cumpriu a pauta do patrão, que lhe perguntou na volta:
— E aí, Joel, fez o pedido?
— Fiz, Adolpho. Pedi para você me dar um aumento de salário…
O porta-estandarte
Um dos mantras preferidos do sergipano Joel Silveira —
“Jornalismo é ver a banda passar, não é fazer parte da banda” — reproduz bem a
visão que seu fã pernambucano tinha de boa parte da mídia atual, em que o
jornalismo cede espaço ao partidarismo, a razão é acuada pela paixão, a isenção
é atropelada pela facção. Geneton também deplorava o engajamento até de
jornalistas experientes em uma ou em outra banda partidária, no calor de uma
luta político-eleitoral cada vez mais acesa que rebaixou parcela da imprensa ao
jogo abrutalhado de um Fla-Flu de caneladas e mútuo xingamento, tão estridente
que nem dava para ouvir a banda passar.
Geneton, com a serenidade que nunca lhe permitiu desfilar
nessas bandas, definia:
— Fazer jornalismo é não praticar nunca, jamais, sob
hipótese alguma, a patrulha ideológica.
Geneton via em Joel o seu ideal cada vez mais romântico do
repórter que sobreviveu à ‘ditadura da objetividade’, imposta para combater
pragas como subliteratura, beletrismo e academicismo, e sucumbiu à maldição dos
tempos atuais, com textos áridos, chatos, anêmicos, soporíferos, iguais.
“Lástima, lástima, lástima”, lamentava Geneton.
Geneton sonhava com alguém pichando os muros da cidade,
proclamando: “Chega de objetividade! As notícias eu já vi na internet e na TV!
Quero vivacidade, imaginação, arrebatamento, ousadia!”. No seu devaneio,
Geneton achava que Joel poderia ser o porta-estandarte do resgate desse tipo de
jornalismo, segundo ele exilado para a Sibéria.
— A luta por um jornalismo mais vívido, mais atraente, mais
iluminado faz parte da luta por um Brasil menos medíocre. Por que não? —
perguntava-se Geneton, mais uma vez.
Para sustentar sua teoria, ele usava a prática inigualável
de Joel, dando como exemplo este texto em que o velho sergipano descrevia um
menino morto no Bogotazo, uma revolta popular na Colômbia de 1948 que se seguiu
ao assassinato de um candidato liberal da oposição, Jorge Gaitán, abatido na
rua com três tiros. Os protestos, desordens e a repressão desatada em Bogotá,
num único dia, deixaram um saldo de 500 mortos só na capital. Trecho do texto
de Joel:
Estive no Cemitério Central de Bogotá, em afazer de
repórter, para ter uma ideia aproximada do saldo de mortos deixado pela
explosão popular. Nunca, em toda minha vida, nem mesmo nos meses de guerra,
estive diante de mortos tão mortos. Somente aquele menino – não mais de oito
anos – morrera cândido, de olhos abertos, um começo de sorriso nos lábios. Os
olhos vazios fixavam o céu de chumbo. As mãos de unhas sujas e compridas
pendiam sobre a laje dura – como os remos inertes de um pequeno barco. Um
funcionário qualquer se aproximou, olhou por alguns segundos o menino morto,
procurou sem achar alguma coisa que ele deveria trazer nos bolsos. Tentou em
seguida fechar com os dedos os olhos abertos, mas não conseguiu. Abertos e
limpos, os olhos do menino morto pareciam maravilhados com o que somente eles
viam, com o que queriam ver para sempre.
Geneton fez a pergunta, que insinuava a resposta:
— Os jornais de hoje publicariam textos assim? O grande
poeta Ferreira Gullar fez uma vez, num verso, uma pergunta que a gente bem que
poderia repetir, contra o cinzento da mesmice: ‘Onde escondeste o verde clarão
dos dias?’. Ah, Jornalismo: onde escondeste o clarão?
Geneton, sempre amigo e solidário, acompanhou solitário o
final de vida dos últimos 20 anos da víbora da reportagem. Ninguém mais
frequentava aquele apartamento deserto no sexto andar de um prédio da rua
Francisco Sá, em Copacabana, habitado apenas por livros, lembranças, história e
Joel Silveira.
— Estou morrendo, Geneton, estou morrendo! — suspirava o
velho repórter, que já não saía de casa e já não tinha amigos. Só Geneton. Joel
desprezou o tratamento de um câncer na próstata para morrer em casa em 2007, na
amarga mansidão de seus 88 anos. Na companhia fiel de seu último amigo.
Um dissidente
O fim melancólico de Joel Silveira, que Geneton definia como
precursor do New Journalism que fez a fama de profissionais festejados como Gay
Talese e Truman Capote, explica um pouco a visão cada vez mais pessimista que
Geneton tinha do próprio jornalismo na atualidade.
Geneton criava, produzia, executava, editava e apresentava
suas próprias reportagens na GloboNews, com a doída convicção de que, como
Joel, ele se tornava uma avis rara do jornalismo, um exemplar de dinossauro
condenado à extinção imposta pelo cometa brilhante da inevitável modernidade
tecnológica. Geneton parecia, agora, uma víbora que já não confiava nem na
peçonha de suas perguntas, por mais venenosas que fossem.
Aqui e ali, sem alarde, Geneton deixava fluir aos poucos sua
melancolia, fazia vazar sua desilusão.
Na véspera do réveillon de 2010, ele publicou em seu blog
uma nota sem destaque, quase escondida, sugerindo um ‘Teste para Seleção de
Jornalistas’. Era uma azeda reflexão sobre o jornalismo:
Uma sugestão aos responsáveis pelos departamentos de pessoal
das empresas jornalísticas: depois de pesquisas que se arrastaram por meses, os
especialistas conseguiram montar um teste infalível para seleção de candidatos
a vagas nas redações.
O candidato ao emprego deve ficar imóvel durante três
minutos, diante de um fiscal da empresa.
Se, ao final deste prazo, o candidato não latir nem
relinchar deve ser sumariamente eliminado, porque não serve para a profissão
jornalística.
Se, no entanto, o candidato emitir latidos e relinchos terá
provado que é jornalista legítimo. Deve ser imediatamente contratado.
Porque mostrou estar preparado para ingressar nas redações
brasileiras e produzir os jornais, revistas e programas de TV mais chatos do
mundo.
Cinco anos depois, em 24 de agosto de 2015, inspirado numa
definição de Winston Churchill para a União Soviética de Stálin (“É uma charada
envolvida num mistério dentro de um enigma”), Geneton voltou a filosofar com
amargura em seu blog, numa nota impiedosa sob o título ‘Entrevista de Emprego’,
que seria cômica, se não fosse trágica:
Se eu fosse enfrentar hoje uma entrevista de emprego e se me
pedissem para dizer em trinta segundos o que penso do jornalismo, eu diria, com
toda sinceridade:
‘Depois de décadas na estrada, tenho a nítida, nitidíssima
sensação de que, no fim das contas, como escolha profissional, o jornalismo foi
um equívoco envolvido num engano dentro de um grande erro. Mas agora é tarde
para voltar atrás. Bola pra frente, então! Faz de conta que é a melhor
profissão do mundo!
E é – para os que se descobrem tecnicamente incapazes de
fazer alguma coisa que seja de fato útil ao avanço da humanidade!”.
Nem preciso dizer que eu seria imediatamente dispensado pelo
burocrata do Departamento de Recursos Humanos encarregado de selecionar os
candidatos.
Eu ouviria o aviso de dispensa sumária, me levantaria,
cumprimentaria o dispensador e diria: ‘Parabéns! Você nunca tomou uma decisão
tão acertada!’.
Cinco anos antes, na mesma mensagem de 8 de abril de 2010 em
que me agradecia pela louvação à sua ‘arte de perguntar’, o e-mail privado de
Geneton traía sua desilusão já na linha seguinte, com uma inesperada autodefinição
em tom de confissão:
Pode parecer pretensão, mas acho que realmente o jornalismo
se mediocrizou.
O exibicionismo toma o lugar da substância, especialmente na
TV.
Modestamente, considero-me um dissidente.
O dissidente Geneton Moraes Neto, meu amigo Master Asker,
nosso grande Mestre Perguntador, nos deixou de repente, envolto num manto
diáfano de desencanto, deixando no ar uma última pergunta, que cabe a todos nós
responder:
— Por quê?
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