O turista – ou mesmo o “local” - desavisado que se
desviasse, por algum motivo, da área onde acontecia o “Arraiá do povo” na Orla
da Atalaia durante os festejos juninos e se bandeasse para os lados da
“orlinha”, cantinho da praia quase na curva do farol, provavelmente se
depararia com uma cena inusitada para os padrões habituais da noite aracajuana:
Ferdinando, guitarrista prodígio de Itabaiana, cidade serrana situada no
agreste do estado, passeando entre as mesas de um bar, provocando o público com
seu blues endiabrado com gosto de cebola e cachaça. Ou, quiçá, com o projeto“Bicho do mato”, que reuniu algumas feras do rock local executando um
repertório rebuscado, calcado em canções mais obscuras de bandas “cult” da
década setenta. Era o Maori, reduto da boemia mais “antenada”, aquela que vai
além dos pratos requentados servidos no dia-a-dia das programações oficais e
comerciais de nosso combalido cenário cultural, dando seus últimos suspiros de
vida ...
Funcionando desde novembro de 2013, o Maori vinha se
firmando como uma boa opção de programação cultural alternativa na noite
sergipana. Com uma proposta inovadora, oferecia ao público e aos artistas
locais a oportunidade de congraçamento, sem portaria nem bilheteria e, a
princípio, sem barreiras de “tribos”. As apresentações aconteciam numa
estrutura simples e o financiamento era providenciado ali mesmo, na hora,
literalmente passando o chapéu. Não era nada demais, em termos estruturais, já
que o valor arrecadado não permitia grandes produções, mas era meio que
unânime, entre os músicos, a opinião de que o que eles conseguiam com uma
“tocada” por lá não era muito diferente do que obtinham no esquema tradicional.
Com a vantagem de que o “clima”, devido à facilidade de acesso que propiciava
uma maior proximidade entre as pessoas, era quase sempre muito bom. Para o bar,
em si, ficava a renda da venda de bebidas e petiscos, e assim terminavam todos
felizes. Para sempre?
Infelizmente não. No dia 24 de maio deste ano a casa soltou
uma nota em sua página numa rede social informando que o mês de julho será o
último em que estarão em atividade. Foram vencidos pelos fatos: multidões se
aglomeravam nos arredores, mas o consumo no balcão não era suficiente, já que a
turba acabava trazendo sua bebida de casa ou consumindo dos ambulantes que,
inevitavelmente, passaram a bater ponto por ali. Apostaram na consciência, no
comprometimento e no espírito coletivo de quem freqüentava o local em busca,
imagina-se, de uma alternativa à mesmice, e perderam a aposta.
Preciso dizer, também, que meu amigo Rian, a quem muito
admiro como pessoa e como profissinal da palavra, foi injusto, a meu ver, ao
acusar os proprietários do estabelecimento de “explorar o ganha pão suado de
uns para vender cerveja gelada aos outros”. Sem querer fazer a defesa de
ninguém, que eu não sou advogado nem de Deus nem do diabo, mas conversei com
vários músicos que se apresentaram por lá e nenhum deles manifestou, nem de
longe, o sentimento de terem sido explorados. Muito pelo contrário: a
esmagadora maioria é só elogios ao tratamento que receberam, sempre claro e
honesto em relação ao papel de cada um dos envolvidos na empreitada.
E foram muitas, as empreitadas. As últimas foram duas festas de despedida. A primeira aconteceu na terça-feira do dia 07 de julho último, uma véspera de feriado, com duas apresentações concorridíssimas – até demais, eu diria, já que estava tão lotado que se tornava difícil respirar e circular por lá, em alguns momentos – das duas melhores bandas de rock do estado, The Baggios e Plástico Lunar. Choveu e a lama tomou conta do entorno e choveu mais e o povo quis se abrigar dentro do bar e não dava, não cabia tanta gente. Espremido no palco pequeno, decorado com temas que remetiam à viágem à lua de Meliés, The Baggios pedia "one more cup of coffee". Plástico, "pra variar", demorou demais a começar a tocar, pois um deles estava atrasado. Não tive paciência de esperar e fui embora, mas foi massa ...
Devo dizer, por fim, que para mim, que venho acompanhando o
cenário há quase 30 anos, não foi nenhuma surpresa, a notícia do fechamento.
Ali mesmo, naquela região, existiu, na década de 1980, o “Submarino Amarelo”,
um espaço mítico de congraçamento entre os “loucos” e antenados da cidade que
teve vida curta: foi tragado, literalmente, pelo mar. Não se pode, portanto,
culpar a falta de espírito coletivo das pessoas pelo seu fim prematuro, mas o
fato é que acabou. Poderia ter sido transferido para outro local – ficava na
antiga “praia dos artistas”, que não existe mais, foi engolida pelas marés –
como no célebre caso do Circo Voador do Rio de Janeiro, que começou na praia
mas se transferiu para a Lapa e lá está até hoje. Mas não foi. Morreu. Como
morreu, aliás, a nossa versão da lona carioca, o Circo Amoras e Amores.
Para ficar num exemplo mais próximo não apenas no espaço
como também no tempo, morreu, também, a movimentação que acontecia na porta do
Capitão Cook, um pub simpático incrustado entre as pedras do molhe e o farol da
Coroa do meio que foi, por mais de uma década, um pouso seguro para os apreciadores
de música diferenciada. Padeceu do mesmo mal: cansei de chegar lá e imaginar
que o evento estava “bombando”, tamanha a aglomeração na porta, apenas para
constatar que havia uma multidão fora, papeando e bebericando, e quase ninguém
dentro, prestigiando as apresentações – algumas delas antológicas. Assim não há
“cena” que resista. Por menor que seja o gasto, ninguém vai ficar tomando
prejuízo a vida inteira apenas para produzir um ambiente propício ao encontro
de gente que não tem o menor interesse no que está sendo produzido – e
apresentado.
A desculpa de muitos para este comportamento predatório é a de que os locais, em geral, nunca têm uma estrutura adequada, com o mínimo de conforto e atrativos para estimular a tal “cadeia produtiva”. Discussões infinitas já foram travadas na internet em torno dessa questão: o povo não valoriza porque a "cena" não oferece estrutura ou a "cena" não tem estrutura porque o público não valoriza? Qual será o segredo de Tostines? Eu, particularmente, já desisti de tentar entender. Até porque já existiram, por aqui, locais razoavelmente estruturados que abriram espaço, em suas dependências, para eventos alternativos. Geralmente em dias e horários igualmente “alternativos”, mas era sempre melhor do que nada. Já vi, por exemplo, Blaze Bayley (ex-vocalista do Iron Mainden) e Marky Ramone no Tequila Café; Pato Fu (em início de carreira), Planet Hemp (idem) e Mundo Livre S/A (lançando seu primeiro disco) no Batata Quente; Bambix – banda de punk rock holandesa – no Etnia; Eddie e Nação Zumbi no “Los Gatos” – um “pico” de pagode que terminou abrigando shows underground, inclusive de Black Metal! -, e Sepultura no Espaço Emes. Nenhum deles – com exceção do Emes – existe mais. Mas mesmo o Emes, hoje em dia, só que saber do que pode dar certo – como diziam os Titãs – e sobrevive, basicamente, de festas de formatura e esporádicos shows de “medalhões” da MPB e do rock “mainstram”. Como os Titãs.
A desculpa de muitos para este comportamento predatório é a de que os locais, em geral, nunca têm uma estrutura adequada, com o mínimo de conforto e atrativos para estimular a tal “cadeia produtiva”. Discussões infinitas já foram travadas na internet em torno dessa questão: o povo não valoriza porque a "cena" não oferece estrutura ou a "cena" não tem estrutura porque o público não valoriza? Qual será o segredo de Tostines? Eu, particularmente, já desisti de tentar entender. Até porque já existiram, por aqui, locais razoavelmente estruturados que abriram espaço, em suas dependências, para eventos alternativos. Geralmente em dias e horários igualmente “alternativos”, mas era sempre melhor do que nada. Já vi, por exemplo, Blaze Bayley (ex-vocalista do Iron Mainden) e Marky Ramone no Tequila Café; Pato Fu (em início de carreira), Planet Hemp (idem) e Mundo Livre S/A (lançando seu primeiro disco) no Batata Quente; Bambix – banda de punk rock holandesa – no Etnia; Eddie e Nação Zumbi no “Los Gatos” – um “pico” de pagode que terminou abrigando shows underground, inclusive de Black Metal! -, e Sepultura no Espaço Emes. Nenhum deles – com exceção do Emes – existe mais. Mas mesmo o Emes, hoje em dia, só que saber do que pode dar certo – como diziam os Titãs – e sobrevive, basicamente, de festas de formatura e esporádicos shows de “medalhões” da MPB e do rock “mainstram”. Como os Titãs.
Uma exceção em toda essa história de fugacidade é o Clube
ATPN, da Atalaia. Que não exercia, propriamente, a atividade de promoção
eventos, mas que foi, durante muito tempo, uma espécie de porto seguro para os
que se aventuravam pelos caminhos tortuosos da produção “underground”,
abrigando em suas dependências toda uma geração que cresceu vendo apresentações
antológicas de importantes nomes da cena local ao lado de ícones consagrados
nacionalmente, como Ratos de Porão, Autoramas, Júpiter Maçã, Headunter DC,
André Matos, Jason e Dominatrix. Fez história. Mas já encerrou seu ciclo. Foi
demolido.
Poderia estender infinitamente a narrativa, mas vou parar
por aqui. Sem conclusões, mas com a certeza de que, apesar das dificuldades, a
chama da criatividade humana nunca se apagará, porque é a arte que nos dá
alguma esperança de transcendência e de sublimação das dores do mundo.
Especialmente a música. “Sem música, a vida seria um erro”.
A.
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Um comentário:
Texto foda! Muito bom como sempre.
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