quarta-feira, 8 de julho de 2015

O Maori e a difícil arte de se manter uma cena alternativa viva e ativa

O turista – ou mesmo o “local” - desavisado que se desviasse, por algum motivo, da área onde acontecia o “Arraiá do povo” na Orla da Atalaia durante os festejos juninos e se bandeasse para os lados da “orlinha”, cantinho da praia quase na curva do farol, provavelmente se depararia com uma cena inusitada para os padrões habituais da noite aracajuana: Ferdinando, guitarrista prodígio de Itabaiana, cidade serrana situada no agreste do estado, passeando entre as mesas de um bar, provocando o público com seu blues endiabrado com gosto de cebola e cachaça. Ou, quiçá, com o projeto“Bicho do mato”, que reuniu algumas feras do rock local executando um repertório rebuscado, calcado em canções mais obscuras de bandas “cult” da década setenta. Era o Maori, reduto da boemia mais “antenada”, aquela que vai além dos pratos requentados servidos no dia-a-dia das programações oficais e comerciais de nosso combalido cenário cultural, dando seus últimos suspiros de vida ...

Funcionando desde novembro de 2013, o Maori vinha se firmando como uma boa opção de programação cultural alternativa na noite sergipana. Com uma proposta inovadora, oferecia ao público e aos artistas locais a oportunidade de congraçamento, sem portaria nem bilheteria e, a princípio, sem barreiras de “tribos”. As apresentações aconteciam numa estrutura simples e o financiamento era providenciado ali mesmo, na hora, literalmente passando o chapéu. Não era nada demais, em termos estruturais, já que o valor arrecadado não permitia grandes produções, mas era meio que unânime, entre os músicos, a opinião de que o que eles conseguiam com uma “tocada” por lá não era muito diferente do que obtinham no esquema tradicional. Com a vantagem de que o “clima”, devido à facilidade de acesso que propiciava uma maior proximidade entre as pessoas, era quase sempre muito bom. Para o bar, em si, ficava a renda da venda de bebidas e petiscos, e assim terminavam todos felizes. Para sempre?

Infelizmente não. No dia 24 de maio deste ano a casa soltou uma nota em sua página numa rede social informando que o mês de julho será o último em que estarão em atividade. Foram vencidos pelos fatos: multidões se aglomeravam nos arredores, mas o consumo no balcão não era suficiente, já que a turba acabava trazendo sua bebida de casa ou consumindo dos ambulantes que, inevitavelmente, passaram a bater ponto por ali. Apostaram na consciência, no comprometimento e no espírito coletivo de quem freqüentava o local em busca, imagina-se, de uma alternativa à mesmice, e perderam a aposta.

A notícia caiu como uma bomba na rede e desencadeou um verdadeiro mural de lamentações, com opiniões quase unânimes no sentido de chorar a perda de mais um espaço diferenciado na cidade. Um dos poucos a navegar contra a maré foi o jornalista Rian Santos, que publicou um texto bastante duro significativamente intitulado “Nem uma lágrima pelo Maori”(leia AQUI). Tocou em algumas questões pertinentes, como a falta de sentido de se culpar exclusivamente o público (que, nos final das contas, é sempre uma entidade abstrata cujo comportamento é quase sempre difícil de se antecipar) e, mais ainda, a presença dos vendedores ambulantes (sobre os quais uma suposta “culpa” fica subentendida na mensagem de despedida da casa, que você pode ler na íntegra AQUI). “Ambulante também é gente”, muito bem lembrou o escriba. Devo dizer, no entanto, que apesar de concordar com a defesa do direito à liberdade de escolha das pessoas (“faz o que tu queres, é tudo da lei”), acho também justo que se cobre um mínimo de comprometimento com a construção de um projeto coletivo que, caso contrário, se inviabilizará. Simples assim: se você não quer gastar nem um mísero tostão de seu suado dinheirinho no balcão de um estabelecimento que está abrindo suas portas para uma programação alternativa, tão escassa na cidade, o estabelecimento vai fechar e você que se vire para beber num lugar que toque uma musica decente. Ou melhor: FAÇA VOCÊ MESMO! Just do it ...

Preciso dizer, também, que meu amigo Rian, a quem muito admiro como pessoa e como profissinal da palavra, foi injusto, a meu ver, ao acusar os proprietários do estabelecimento de “explorar o ganha pão suado de uns para vender cerveja gelada aos outros”. Sem querer fazer a defesa de ninguém, que eu não sou advogado nem de Deus nem do diabo, mas conversei com vários músicos que se apresentaram por lá e nenhum deles manifestou, nem de longe, o sentimento de terem sido explorados. Muito pelo contrário: a esmagadora maioria é só elogios ao tratamento que receberam, sempre claro e honesto em relação ao papel de cada um dos envolvidos na empreitada.

E foram muitas, as empreitadas. As últimas foram duas festas de despedida. A primeira aconteceu na terça-feira do dia 07 de julho último, uma véspera de feriado, com duas apresentações concorridíssimas – até demais, eu diria, já que estava tão lotado que se tornava difícil respirar e circular por lá, em alguns momentos – das duas melhores bandas de rock do estado, The Baggios e Plástico Lunar. Choveu e a lama tomou conta do entorno e choveu mais e o povo quis se abrigar dentro do bar e não dava, não cabia tanta gente. Espremido no palco pequeno, decorado com temas que remetiam à viágem à lua de Meliés, The Baggios pedia "one more cup of coffee". Plástico, "pra variar", demorou demais a começar a tocar, pois um deles estava atrasado. Não tive paciência de esperar e fui embora, mas foi massa ...

Devo dizer, por fim, que para mim, que venho acompanhando o cenário há quase 30 anos, não foi nenhuma surpresa, a notícia do fechamento. Ali mesmo, naquela região, existiu, na década de 1980, o “Submarino Amarelo”, um espaço mítico de congraçamento entre os “loucos” e antenados da cidade que teve vida curta: foi tragado, literalmente, pelo mar. Não se pode, portanto, culpar a falta de espírito coletivo das pessoas pelo seu fim prematuro, mas o fato é que acabou. Poderia ter sido transferido para outro local – ficava na antiga “praia dos artistas”, que não existe mais, foi engolida pelas marés – como no célebre caso do Circo Voador do Rio de Janeiro, que começou na praia mas se transferiu para a Lapa e lá está até hoje. Mas não foi. Morreu. Como morreu, aliás, a nossa versão da lona carioca, o Circo Amoras e Amores.

Para ficar num exemplo mais próximo não apenas no espaço como também no tempo, morreu, também, a movimentação que acontecia na porta do Capitão Cook, um pub simpático incrustado entre as pedras do molhe e o farol da Coroa do meio que foi, por mais de uma década, um pouso seguro para os apreciadores de música diferenciada. Padeceu do mesmo mal: cansei de chegar lá e imaginar que o evento estava “bombando”, tamanha a aglomeração na porta, apenas para constatar que havia uma multidão fora, papeando e bebericando, e quase ninguém dentro, prestigiando as apresentações – algumas delas antológicas. Assim não há “cena” que resista. Por menor que seja o gasto, ninguém vai ficar tomando prejuízo a vida inteira apenas para produzir um ambiente propício ao encontro de gente que não tem o menor interesse no que está sendo produzido – e apresentado.

A desculpa de muitos para este comportamento predatório é a de que os locais, em geral, nunca têm uma estrutura adequada, com o mínimo de conforto e atrativos para estimular a tal “cadeia produtiva”. Discussões infinitas já foram travadas na internet em torno dessa questão: o povo não valoriza porque a "cena" não oferece estrutura ou a "cena" não tem estrutura porque o público não valoriza? Qual será o segredo de Tostines? Eu, particularmente, já desisti de tentar entender. Até porque já existiram, por aqui, locais razoavelmente estruturados que abriram espaço, em suas dependências, para eventos alternativos. Geralmente em dias e horários igualmente “alternativos”, mas era sempre melhor do que nada. Já vi, por exemplo, Blaze Bayley (ex-vocalista do Iron Mainden) e Marky Ramone no Tequila Café; Pato Fu (em início de carreira), Planet Hemp (idem) e Mundo Livre S/A (lançando seu primeiro disco) no Batata Quente; Bambix – banda de punk rock holandesa – no Etnia; Eddie e Nação Zumbi no “Los Gatos” – um “pico” de pagode que terminou abrigando shows underground, inclusive de Black Metal! -, e Sepultura no Espaço Emes. Nenhum deles – com exceção do Emes – existe mais. Mas mesmo o Emes, hoje em dia, só que saber do que pode dar certo – como diziam os Titãs – e sobrevive, basicamente, de festas de formatura e esporádicos shows de “medalhões” da MPB e do rock “mainstram”. Como os Titãs.

Emes que já abrigou, também, edições antológicas de festivais importantes e que marcaram época - mas que, “pra variar”, não tiveram continuidade. Foi o caso do Rock-se e do Punka, em suas últimas encarnações. É um drama a parte, o dos festivais: nenhum, por aqui, conseguiu ter vida longa e se firmar no calendário de eventos da cidade. O que teve mais edições foi o Punka, porque começou pequeno e foi crescendo aos poucos, ao contrário do Rock-se, superdimensionado já em sua primeira encarnação. Mas morreu na oitava edição, de 2004 - justamente a que ostentava o lema “independência ou morte”. Tentou, na ocasião, dar um salto, fez apostas arriscadas, e bateu de frente com o muro invisível que parece impedir as iniciativas independentes e/ou alternativas de crescer por aqui ...

Uma exceção em toda essa história de fugacidade é o Clube ATPN, da Atalaia. Que não exercia, propriamente, a atividade de promoção eventos, mas que foi, durante muito tempo, uma espécie de porto seguro para os que se aventuravam pelos caminhos tortuosos da produção “underground”, abrigando em suas dependências toda uma geração que cresceu vendo apresentações antológicas de importantes nomes da cena local ao lado de ícones consagrados nacionalmente, como Ratos de Porão, Autoramas, Júpiter Maçã, Headunter DC, André Matos, Jason e Dominatrix. Fez história. Mas já encerrou seu ciclo. Foi demolido.

Eu poderia estender infinitamente esta narrativa, tamanha a quantidade de histórias que teria para contar sobre o que vi e ouvi no Mahalo, no Cotinguiba, no 799, no U-show-a, no Little Hell; na Kxaçaria, onde me apresentei com minha banda de grindcore pornográfica com o mitológico Silvio Campos na guitarra, Gabbirin Naggal Gibborin Villas Parakas, AKA Bilal, o “rei do metal”, na bateria, e Agapito, o “mendigo rico”, na gaita e no streap tease – tosco! -; no Vasco, onde o Krisiun tocou pela primeira vez por aqui - com sonorização de "Paquito"(Tá CD!); na Casa de Rato, onde esmigalhei meu cotovelo “pogando” num show da Inkoma, a antiga banda de Pitty, ao ponto de ter que fazer duas cirurgias e uma infinidade de sessões de fisioterapia para me recuperar; no “Castelo Rá-Tim-Bum” do DCE da Praça Camerino e no Porão do Cultart; no “fedor de merda”, apelido “carinhoso” que demos a uma associação de moradores abandonada no conjunto Dom Pedro que os punks usavam como local de “gigs”; no Auditório Lourival Baptista, onde aconteceu o III Festcore, e na quadra do Batistão, onde aconteceu o primeiro Rock-se; no Sindipetro; no Estúdio de Fabio e Chacal que ficava no calçadão da João Pessoa e que eles usavam para shows e festas; no Teatro Engenho & Arte, de Paulo Lobo, onde encerrei minha carreira de “produtor”, há exatos 20 anos; na Casa do Rock e na Cultiva; no Gonzagão e no Gonzaguinha; no Centro de Criatividade; no Rock Sertão de Glória, no Clube Altemar Dutra de Canindé, numa chácara em Lagarto, na Boate da Atlética, no Aruanda e no Casa Grande, em Itabaiana; no Tio Maneco;  na Casa Laranja; na finada Rua da Cultura e na vivíssima Casa Rua da Cultura; numa infinidade de garagens e buracos e lugares cujos nomes eu nem me lembro mais e, por fim, no Saloon (recém- fechado); embaixo do viaduto no Sarau de Baixo e por aí, nos Clandestinos; no Che e na Caverna, que ainda resistem ...

Poderia estender infinitamente a narrativa, mas vou parar por aqui. Sem conclusões, mas com a certeza de que, apesar das dificuldades, a chama da criatividade humana nunca se apagará, porque é a arte que nos dá alguma esperança de transcendência e de sublimação das dores do mundo.

Especialmente a música. “Sem música, a vida seria um erro”.

A.


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