terça-feira, 5 de março de 2013

Adiós, comandante.

(***) Os arranha-céus de Caracas, construídos nos anos 60, parecem mais feios que o habitual. O Hotel Gran Melia também não é atraente. O teto kitsch do saguão gigantesco lembrava a Escola de Dubai (por que o petróleo parece gerar sempre uma arquitetura tão ruim?) e eu desejei ter me hospedado, como faço normalmente, no Hilton, um hotel decrépito, despojado e tristonho, mas cheio de clima. Eu estava em Caracas para falar numa conferência sobre redes globais de mídia, e participar de uma reunião do conselho consultivo de uma emissora de notícias a cabo em espanhol e português, a Telesur - criada em conjunto por Venezuela, Argentina, Uruguai, Bolívia, Cuba e, agora, Equador. Planejada para oferecer uma alternativa à visão de mundo da CNN/BBC, a nova emissora é um sucesso modesto, com algo entre cinco e seis milhões de telespectadores regulares. Os canais privados dedicam horas à cobertura de votações no Congresso americano, ou de um assassinato numa universidade dos Estados Unidos. A Telesur anuncia esses fatos rapidamente, e devota o restante do noticiário a entradas ao vivo da Nicarágua, onde ocorrem eleições. Ou do Equador, onde um referendo, que servirá de base para a confecção de uma nova constituição, foi vencido pelo novo governo.

Num seminário em Caracas, em 2003, levantei pela primeira vez a idéia de criar uma emissora que se contrapusesse às redes comprometidas com o Consenso de Washington. Adotaram a sugestão prontamente, mas o nome que propus - al-Bolívar - foi rejeitado com firmeza. Era inadequado, disseram-me, pois excluiria o maior país do continente, que não tinha qualquer vínculo com o Libertador. No fim das contas, o Brasil se excluiu sozinho. "Por que você não apóia a Telesur?", perguntou Chávez a Lula. "Não sei", respondeu o brasileiro, com expressão envergonhada. A razão era óbvia: ele não quis confrontar a mídia brasileira ou irritar Washington. Mesmo assim, a Telesur está começando a conquistar telespectadores no seu país.

O centro de convenções estava cheio para ouvir o discurso de Chávez. Quando já estávamos todos sentados, ele entrou e trocamos algumas cortesias. "Você deve estar feliz, agora que Blair está indo embora", disse-me. Observei que minha felicidade era um tanto limitada pelo sucessor. "Long live the revolution", ele falou, exercitando seu inglês.

E nos sentamos para seu discurso de três horas, que foi transmitido ao vivo pela televisão. Ocasiões como essa sempre me fazem desejar ter levado comigo uma cesta de piquenique. O discurso foi bastante típico. Alguns fatos (exemplo: o crescimento da receita com o petróleo, acarretado pelo aumento dos royalties, chega a alguns bilhões de dólares); filosofia rudimentar; autobiografia; um relato de sua conversa mais recente com Castro, justaposto a uma estimativa do tempo gasto pelos dois proseando um com o outro (bem acima de mil horas); seu orgulho pelo governo venezuelano patrocinar o filme de Danny Glover sobre Toussaint L'Ouverture e a revolta dos escravos haitianos; os horrores do Iraque ocupado; um contundente ataque ao papa por sua sugestão, feita durante a visita ao Brasil, de que a população indígena não sofreu maus-tratos e abraçou Cristo por vontade própria.

À acusação contra o papa seguiu-se um canto improvisado, que normalmente indica a aproximação do fim do discurso, mas dessa vez a preleção continuou. Seguiu-se um breve (trinta minutos) desvio histórico, dedicado em sua maior parte a Bolívar, e ao modo como ele foi traído por homens a soldo da aristocracia/oligarquia local: "Os livros escolares de história nunca falam dessas traições".

Houve então uma discussão sobre a sobrevivência do planeta, antes que o discurso terminasse com um slogan tomado de empréstimo à Cuba de tempos ruins: "Socialismo ou Morte". Trata-se de uma mensagem realmente medonha. Quando fiz ver a um dos auxiliares de Chávez o quanto aquilo soava ameaçador, ele me explicou que o presidente estava em "modo Rosa Luxemburgo". O que ele queria dizer, na verdade, era "Socialismo ou Barbárie". Não me convenceu.

Chávez parecia estar ligeiramente contido. Especulei se seu verdadeiro público-alvo não seria formado pelos soldados do exército. No dia seguinte, o ex-vice-presidente, José Vicente Rangel, contou-nos que houvera um complô colombiano-estadunidense para infiltrar na Venezuela paramilitares colombianos, inclusive atiradores de elite. O objetivo, afirmou ele, era criar um estado de emergência nacional: membros do governo e líderes da oposição seriam assassinados, e um lado culparia o outro. Um plano para matar Chávez, envolvendo três oficiais graduados do exército, fora descoberto mais ou menos simultaneamente. Dois dos aspirantes a assassinos estavam na prisão; o terceiro, segundo se informou, fugira para Miami.

Os estudos militares de Chávez lhe ensinaram que o inimigo jamais deve ser reduzido ao desespero, pois isso só o fortalece. Sua estratégia é oferecer rotas de fuga. Ele e seus seguidores não são vingativos, e o coro da mídia ocidental que retrata seu regime como autoritário passa muito longe do alvo. Esse coro estava a plenos pulmões quando visitei Caracas. O motivo dessa vez era uma estação de televisão privada (RCTV), cuja concessão de vinte anos o governo recusara-se a renovar. A RCTV, juntamente com a maior parte da mídia venezuelana, envolveu-se no golpe de 2002 contra o governo (democraticamente eleito) de Chávez. Arregimentou apoio para o golpe, falsificou imagens para sugerir que os seguidores do presidente estavam matando pessoas e, quando o putsh fracassou, não exibiu uma única imagem da recondução triunfante de Chávez ao poder. Um ano depois, fizeram prolongados apelos aos cidadãos para que derrubassem o governo durante uma greve de petroleiros orquestrada pela oposição. Mais uma vez, não estavam sozinhos, mas suas conclamações estimularam a violência.

Quando um repórter do Guardian me perguntou se eu apoiava a decisão, respondi que sim. Ele ficou escandalizado: "Mas agora a oposição ficou sem seu canal de televisão". Perguntei-lhe se a oposição na Grã-Bretanha, ou em qualquer outro lugar da Europa ou da América tinha "sua TV". Que governo ocidental toleraria uma coisa dessas? Thatcher se recusou a renovar a concessão da Thames TV, que se limitara a exibir um único documentário crítico. Blair demitiu Greg Dyke e emasculou a BBC. Bush se dá ao luxo de ter canais noticiosos acríticos, além da Fox como rede de propaganda.

Fiz um alerta sobre a obsessão com o poder da mídia na conferência. Afinal, Chávez venceu seis eleições apesar da oposição quase universal da imprensa. Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador, também tiveram êxito apesar de uma oposição pertinaz. Isso não é verdade só na América do Sul. Os franceses votaram contra a Constituição Européia sem o apoio de um único jornal ou emissora de televisão.

(**) Em 2007, gostaria de ter questionado Chávez sobre se ele não estava pesando a mão demais em seu “socialismo do século 21”. Encontrei parte da população, e falo dos chavistas, assustada com as propostas que o presidente estava fazendo para mudar a Constituição, principalmente em relação à propriedade privada – e de fato perderia o referendo por isso. Depois, queria ter lhe indagado: “quando o senhor vai fazer seu sucessor? Não vai seguir o exemplo de Lula?”

Por último, quando apareceu em sua derradeira foto, ainda em Cuba, ao lado das filhas, na cama, com um sorriso artificial no rosto que me lembrou Tancredo Neves, gostaria de ter perguntado, ou melhor, lhe dito: “Presidente Chávez, convoque eleições”. A Venezuela teria ficado em situação mais confortável se seu líder tivesse feito isso antes de adoecer tão gravemente, deixando o país em um estado de suspensão que durará até a nova eleição, a ser convocada em 30 dias, de acordo com a Constituição. Será que não faltou um bom amigo, um conselheiro, para dizer isso a ele?

Eu admirava o presidente Hugo Chávez. Em Caracas, conheci a história da Venezuela e me informei sobre os projetos importantes que desenvolveu em 12 anos de governo. Estive com jovens entusiasmados em construir uma nação diferente a seu lado. Jovens com boa formação política, em um país plenamente consciente de seus direitos, onde todo cidadão conhece a Constituição. As leis são vendidas nas ruas e as pessoas compram os livretos para lerem e se informarem sobre tudo. Imaginem, camelôs de leis. Isso me impressionou muito.

Há políticos e há os Hugo Chávez, que aparecem uma vez na vida de um país, para o bem e para o mal – e Chávez, com todos os defeitos que pudesse ter, foi para o bem. O mundo fica pior quando um político assim se vai. É o tipo de homem público que tem ideias próprias, que não teme desafios, que tem sonhos, objetivos de transformação. Um líder latino-americano tão importante para o equilíbrio do poder no mundo que só se vai reconhecer seu papel histórico, estou segura, alguns anos mais para a frente. Um homem de Esquerda, com letra maiúscula. Sobre isso não resta nenhuma dúvida.

(*) Nos quase 14 anos como presidente da Venezuela, o tenente-coronel reformado Hugo Chávez, morto nesta terça-feira 5 vítima de um câncer, construiu uma imagem associada ao bolivarianismo. Dono do lema “socialismo do século XXI”, ampliou o papel do Estado na economia com nacionalizações, controle de preços  e parcerias público-privadas.

Afastou-se dos Estados Unidos, seu maior parceiro comercial, e reforçou laços com o regime cubano de Fidel Castro. Por outro lado, buscou criar alianças estrangeiras com potências emergentes, como China, Rússia e Brasil.

Crítico ferrenho do capitalismo, que acusou de “expropriar o povo” e de ser “a condenação da raça humana”, Chávez procurou adotar medidas para diminuir a desigualdade no país. Apoiado nas receitas geradas pelo petróleo da Venezuela, que detém as maiores reservas do mundo, reduziu os níveis de pobreza de 42% para 9,5%.

“Assumimos o compromisso de dirigir a Revolução Bolivariana até o socialismo do século XXI, baseada na solidariedade, fraternidade, amor, liberdade e igualdade”, disse ao ser reeleito em 2006.

Ao longo dos anos, demostrou-se um influente ator na América Latina, trabalhando com Bolívia, Cuba e Equador.

A partir de 2003, o governo passou a mostrar maior intervencionismo na economia, com controles como a fixação dos preços de alimentos básicos, como arroz, farinha e leite.

Com a elevação dos preços do petróleo em 2004, Chávez pediu uma série de reformas legais que permitiram o aumento das receitas com o item por meio de impostos e controle acionário dos projetos de energia concedidos na década de 1990 a petroleiras privadas nacionais e estrangeiras.

Com o lema “O petróleo é agora de todos”, o carismático líder armou uma estrutura de fundos que permitiu o uso de enormes recursos para reforçar suas políticas sociais, mas também para financiar uma onda de nacionalizações que caracterizariam sua política econômica.

Chávez ordenou a recuperação de mais de 2,5 milhões de hectares de terras de propriedade privada e a nacionalização de setores estratégicos, como cimento, aço, telecomunicações, alimentos, elétrica ou bancário.

A siderúrgica argentina Sidor, a empresa mexicana de cimento Cemex, o banco espanhol Santander ou os supermercados Êxito – com participação acionária francesa -, são alguns dos principais nomes nesta série de expropriações.

Enquanto isso, também com recursos do Estado, Chávez promoveu a criação de cooperativas, empresas cogeridas e de produção social como novas formas de “propriedade solidária”.

No entanto, o setor privado ficou com cada vez menos espaço de manobra por causa do controle do Estado e da inflação galopante. Em 2009, o Estado atingiu mais de 30% do PIB, uma ameaça à sua própria sobrevivência. A nova dinâmica nacional também foi estendida aos seus parceiros externos.

Confrontando politicamente os EUA, seu principal parceiro comercial, o governo de Chávez começou a buscar novos mercados, mais de acordo com a sua linha ideológica, como China, Rússia e Brasil.

A China, que até recentemente não estava no mapa econômico da Venezuela, é agora o segundo destino do petróleo nacional (500,00 b/d) e também um de seus principais financiadores, graças a uma série de acordos pelos quais o governo de Chávez conseguiu empréstimos de mais de 30 bilhões de dólares em troca de petróleo.

O PIB da Venezuela, que em 1998 foi de 91 bilhões de dólares, foi para 328 bilhões em 2011, impulsionado principalmente pelo aumento dos gastos governamentais.

O governo de Chávez, no entanto, não conseguiu controlar a alta inflação e evitar a escassez de commodities cíclicas e os efeitos disso sempre são sentidos nas massas, que seu governo sempre alegou tanto proteger.

Ao mesmo tempo, o país, com uma moeda supervalorizada para efeito de controle de câmbio, se tornou muito dependente das importações de produtos agrícolas, em particular.

Por diversas vezes, o líder bolivariano foi criticado pela oposição por tentar dominar os meios de comunicação do país e se fazer onipresente na vida dos venezuelanos. Seduzia com o povo de forma carismática e desafiava constantemente seus opositores, que o derrotaram em poucas ocasiões nas urnas.

Poucos meses após assumir o poder em 1999, lançou o programa dominical “Alô, Presidente”, com duração média de cinco horas aos domingos. Como principal plataforma de exposição, utilizou as cadeias de rádio e televisão (de transmissão obrigatória) para informar os venezuelanos, liberar recursos ou inaugurar obras em aparições sempre impregnadas por um estilo próprio, com piadas, contos e músicas.

Também atacava a oposição e os meios de comunicação privados, que chamava de “apátridas”, “burgueses” ou “imperialistas”. As acusações de conspiração contra seu governo eram constantes.

Mas a “guerra midiática”, como afirmava Chávez, começou realmente durante o golpe de abril de 2002, que o afastou do poder por 48 horas, quando os canais privados optaram por exibir desenhos animados e não informar sobre as manifestações nas ruas que pediam o retorno do presidente.

Chávez decidiu em 2007 não renovar a concessão da RCTV, a mais antiga emissora de televisão do país, que tinha grande audiência, o que provocou uma onda de protestos liderados por estudantes e muitas críticas internacionais.

Desde então, apenas um canal de oposição continuou com transmissão em sinal aberto, a Globovisión, mas com um alcance limitado a Caracas e à cidade de Valencia, enquanto a frequência da RCTV – a de maior alcance – passou a ser usada pela estatal TVES.

A Globovisión, apesar de não ter sofrido o mesmo destino da RCTV e de outras 30 emissoras de rádio, recebeu multas milionárias, dezenas de processos administrativos e acusações contra os sócios do sócios do canal, chamado por Chávez de “terrorista midiático”.

Em abril de 2002, Chávez foi deposto por um golpe da cúpula militar em meio a manifestações contra seu governo. Pouco depois, acabou devolvido ao poder por militares leais e multidões entusiasmadas.

Após o golpe, Fidel Castro forneceu milhares de médicos, agrônomos, assessores militares e militantes a Chávez para montar as chamadas “missões” sociais que lhe deram mais apoio popular. Este, por sua vez, se tornou o salvador de uma Cuba frágil após a queda da União Soviética, com o fornecimento de petróleo e ajuda econômica.

Chávez também passou a criar iniciativas regionais como o grupo de integração econômica e coordenação política Aliança Bolivariana das Américas (ALBA), integrada por Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e ilhas caribenhas anglófonas, assim como o Petrocaribe, de subsídios petroleiros.

Implacável com os opositores, isolou quem não estava com ele e retomou de Fidel Castro os EUA como inimigo do país. No entanto, foi suficientemente pragmático para manter seu calendário de eleições e referendos e para seguir enviando um milhão de barris diários de petróleo a Washington.

Chávez governou de forma pouco convencional, misturando seu olfato político e o ensino militar, delegando poderes apenas a um pequeno grupo de colaboradores, do qual talvez saia seu herdeiro político.

Sob esta ótica, seu chanceler e vice-presidente, Nicolás Maduro, foi apontado como seu sucessor no auge de sua batalha contra o câncer. Definido por Chávez como “um revolucionário por completo, um homem com muita experiência, apesar de sua juventude”, Maduro foi designado pelo bolivariano para sucedê-lo em 9 de dezembro, dois dias antes de embarcar para uma cirurgia em Cuba.

Ao morrer, Chávez concentrava um grande poder em suas mãos. Era presidente, comandante-em-chefe das Forças Armadas e presidente do PSUV. Além disso, seus partidários controlam a maioria parlamentar e ostentam uma maioria no Supremo Tribunal de Justiça.

Filho de dois professores de educação primária e criado por sua avó materna, Chávez cresceu em Sabaneta, estado de Barinas (sudoeste). Casou-se e se divorciou duas vezes, e teve quatro filhos.

*** Tariq Ali na revista piauí de agosto de 2007
** Cynara Menezes em Carta Capital
* AFP/Carta Capital

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