quarta-feira, 28 de agosto de 2013

"Entusiasmo", de Dziga Vertov

Энтузиазм (Симфония Донбаса) ou “Entusiasmo (Sinfonia do Donbass)” – o temo “Donbass” se refere à  bacia do Donets, uma grande região mineradora e industrial localizada entre a Ucrânia e a Rússia - é uma obra-prima do cinema de propaganda soviético dos anos 1930 e, como tal, deve ser entendido no contexto de sua época: A guerra civil havia acabado, Lênin estava morto e a disputa interna no partido havia sido vencida por Stalin. Era o momento de partir finalmente e decisivamente rumo à construção do socialismo – só que num país só, ao contrário da idéia marxista original encampada pelos bolcheviques em outubro de 1917, a da revolução mundial, ou “revolução permanente” , na visão de Trotski.  Para tanto foram implantados os planos qüinqüenais, com o objetivo de construir as bases materiais para o novo regime  – que preconizava a divisão da riqueza, não da miséria – a partir da realidade de uma nação desindustrializada e atrasada economicamente, como era o caso da Russia. O filme retrata tudo isso de forma idealizada, evidentemente – afinal, é propaganda! – mas magistral: fosse eu um cidadão soviético naqueles tempos, sairia do cinema direto para alguma fábrica para trabalhar orgulhosamente pelo futuro da pátria socialista!

Assisti ao filme recentemente no cinema, em Aracaju, o que é sem dúvida uma novidade digna de nota. Foi exibido no Cine Vitória, nova sala dedicada à sétima arte aberta no centro da cidade, na “Rua do turista”, que vem exibindo uma programação alternativa de altíssima qualidade. Nunca havia visto nenhum filme de Dziga Vertov, portanto a expectativa era alta!

No início da projeção, a tela nos  apresenta uma jovem armada com fones de ouvidos, a postos para receber uma mensagem de rádio. Na sequencia vemos imagens da decadência da Russia de antes, com suas igrejas ortodoxas e imagens religiosas reverenciadas pelo povo, dos mais humildes aos mais aristocráticos. E também vagabundos embebedando-se pelas ruas.

A montagem é primorosa: através dela assistimos à chegada da nova ordem, numa sequencia radical que tem o claro objetivo de causar impacto em mentes atrasadas e ainda tomadas pela superstição: a velha ordem é literalmente demolida diante dos olhos da platéia e substituída pelos símbolos do que virá: as palavras de ordem do Partido Comunista, tendo ao fundo as chaminés dos parques industriais. As Igrejas têm suas cúpulas explodidas e seus interiores pilhados, com seus ícones empilhados na rua pelo mesmo povo que pouco antes aparecia adorando-os com um devoção inabalável. Eles agora crêem em si mesmos, na força do esforço coletivo em prol de um ideal igualitário.

Somos então transportados ao esplendor do novo tempo: desfiles do “Konsomol” (a Juventude Comunista) aparecem intercalados com imagens dos trabalhadores exercendo suas atividades com empenho e entusiasmo, sempre incentivados pelos onipresentes propagandistas do partido. A montagem conduz a narrativa de forma a nos mostrar a harmonia da união do homem com a máquina, numa perfeita sinfonia. Sinfonia que se encerra no campo, que começa a ser, também, mecanizado. Tudo filmado com uma fotografia belíssima e ângulos inusitados. Coisa de gênio.

Curioso notar que o culto à personalidade ainda não havia sido implantado em toda a sua plenitude, o que explica a ausência da imagem de Stalin no filme – algo que, alguns anos depois, seria impensável numa peça de propaganda soviética. Em seu lugar, as tradicionais bandeiras vermelhas (subentende-se, já que o filme é em preto e branco) com slogans inscritos, comuns nos primeiros anos da revolução. Em pouco tempo o construtivismo russo, escola sob a qual a película foi concebida, seria banida pelo estado, e o realismo socialista reinaria absoluto como doutrina cultural oficial. Seria a morte da ousadia e da criatividade em nome de um didatismo insosso que engessou, para sempre, a força criativa que eclodiu com a revolução e que, no cinema, teve seu ápice nas obras de Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. Tudo parte de um processo no qual uma idéia generosa se transformou num pesadelo totalitário, onde "todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros".

Abaixo, o filme, na íntegra.

por Adelvan


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