sábado, 27 de agosto de 2011

A Esquerda Brasileira

O professor de serviço social e pensador marxista José Paulo Netto explica a história da esquerda no Brasil e seus desdobramentos no momento atual em entrevista para o site da revista Caros Amigos, em razão do lançamento da edição especial "Dilemas e Desafios da Esquerda Brasileira". Confira:

Por Tatiana Merlino

Caros Amigos - Quando se poderia afirmar que surgiu uma esquerda no Brasil?

Sem pretender rigor cronológico, diria que se pode falar em uma proto-história da esquerda brasileira a partir da última década do século 19 e nos primeiros anos do século 20. Pense-se, para ficarmos em exemplos conhecidos, nos nomes de Silvério Fontes, em parte da atividade de Euclides da Cunha e mesmo nas posições de Lima Barreto. Mas, com rigor, penso que a história da nossa esquerda tem mesmo o seu momento fundacional com a atividade dos grupos anarquistas, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, no período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Julgo correta a afirmação de que os anarquistas inauguraram a história da esquerda no Brasil.

Caros Amigos - Qual foi a influência da imigração europeia na consolidação de uma ideologia de esquerda no Brasil?

Esta influência foi absolutamente fundamental – não por acaso, mencionei, acima, que os anarquistas inauguraram a história da esquerda em nosso país. E sabemos do papel dos imigrantes neste processo (aliás, a oligarquia percebeu-o claramente: recorde-se a “lei celerada”, de 1907). Mas é necessário enfatizar que não se tratou de nenhuma transplantação artificial: a incipiente industrialização criava as condições para que as ideias difundidas pelas lideranças anarquistas penetrassem com força no nascente movimento operário. A greve de 1917, em São Paulo, mostra-o suficientemente.

Caros Amigos - Que ideias os imigrantes trouxeram?

Não cabe aqui, suponho, sumariar o ideário anarquista (que, diga-se de passagem, chega-nos como um caldo de cultura bastante heterogêneo). A mim, parece-me que o mais significativo pode ser resumido em dois pontos elementares: a defesa da dignidade do trabalho e do trabalhador e a definição claríssima das linhas básicas do antagonismo entre os interesses dos trabalhadores e os da oligarquia. Num país onde a herança do escravismo, ademais de pesadíssima, estava muito viva, a simples afirmação dos direitos civis e políticos do trabalhador “livre” já era, em si, revolucionária. Quanto à determinação das lutas de classes, o princípio da autonomia política dos trabalhadores (mesmo que, para os anarquistas, isto significasse uma recusa da intervenção política institucional, o que se demonstrou insustentável), no Brasil nós o devemos aos anarquistas.

Caros Amigos - Quais eram as correntes que atuaram no país no começo do século 20? Como era tal atuação?

À mobilização anarquista, a oligarquia respondeu imediatamente (para além da repressão) com o estímulo ao sindicalismo “amarelo”, explicitamente bancado pelo governo federal (pense-se, por exemplo, no esforço de Mário Hermes da Fonseca, filho do Presidente da República, para a criação do “peleguismo” no IV Congresso Operário, realizado no Rio de Janeiro). No período que sucede imediatamente à Primeira Guerra Mundial, o movimento operário tem a sua dinâmica fundada no confronto entre estas duas tendências. E suas formas de intervenção eram, é óbvio, inteiramente diversas: os anarquistas jogavam forte na criação de condições ideológicas constitutivas da consciência classista (sua ênfase na educação e na imprensa independente são seus traços característicos) e apostavam na ação direta; os “amarelos” incorporavam a ideologia da colaboração de classes e se subordinavam às diretrizes legal-institucionais da oligarquia.

Caros Amigos - Como foi o processo que resultou na criação do PCB? Quais foram as forças que o formaram?

Se não estou em erro, diria que o PCB (fundado em março de 1922) resulta da confluência de dois vetores: o exaurimento do poder de atração do anarquismo entre os trabalhadores e o impacto da Revolução de Outubro. A greve de 1917, que pôs a correr, em São Paulo, as autoridades e deixou a capital nas mãos dos trabalhadores – ponto mais alto da intervenção anarquista em nosso país –, também deixou a nu a incapacidade do anarquismo para tratar a questão do poder. O impacto da Revolução Russa conferiu grande prestígio (o que, aliás, foi um fenômeno mundial) ao comunismo, num primeiro momento inclusive entre os anarquistas. Evidentemente, não se esgotam nestes dois vetores as bases para o surgimento do PCB – para compreendê-lo, é necessário observar as mudanças societais que estavam em curso, mesmo larvares, no país, que alteravam claramente a estrutura de classes e as práticas políticas (pense-se, aqui, no que o “tenentismo” sinalizava) e atingiam inclusive as expressões estéticas (não é casual, ainda que expressando posições de classe muito diversas, que o PCB seja coetâneo ao Modernismo). Importa observar que o surgimento do Partido Comunista no Brasil, à diferença do ocorrido em muitos outros países, inclusive da América Latina, não se beneficiou da existência do que podemos designar como “cultura socialista”: aqui, o peso do anarquismo na fundação do PCB (lembre-se que o nome mais conhecido dentre os fundadores era o de Astrogildo Pereira, que provinha do anarquismo) foi hipertrofiado precisamente pela ausência de qualquer outro componente significativo de esquerda – não é por acaso que, no PCB, manifestam-se precocemente divergências de monta (por exemplo, já em 1927-1928).

Caros Amigos - Como se desenvolveu a esquerda durante o Estado Novo, o que ela enfrentou, como atuou?

O Estado Novo se ergue após uma séria derrota da principal força de esquerda operante no país a partir do segundo terço da década de 1930 – refiro-me ao PCB que, após a ilegalização da Aliança Nacional Libertadora (que, de fato, era uma frente que incluía outras forças além do PCB), lidera a tentativa de tomada do poder em novembro de 1935. Durante os anos de 1938 a 1943, período em que o Estado Novo se manteve em face de uma oposição imobilizada pela repressão (mas não só), a intervenção da esquerda foi praticamente nula. O próprio PCB (que, à época, assistiu ao surgimento de outras frações comunistas, como, por exemplo, aquela animada por Hermínio Sacchetta) praticamente desaparece como organização entre os finais dos anos 1930 e a realização da célebre “Conferência da Mantiqueira” (1943). É somente a partir de 1943 – e não se subestime nisto a viragem que ocorre no decurso da guerra, especialmente após a vitória soviética em Stalingrado – que se pode falar de uma retomada da intervenção da esquerda, inclusive com o surgimento de uma esquerda não-marxista.

Caros Amigos - E durante o intervalo democrático entre 45 e 64?

Penso que devemos ter alguma cautela ao mencionar o período 1945-1964 como um “intervalo democrático” – não nos esqueçamos que o Governo Dutra foi emblemático da Guerra Fria que nascia com o seu zoológico anticomunismo: foi, dos governos “constitucionais”, um dos mais, senão o mais, antidemocrático que tivemos. A repressão que então se abateu sobre o movimento operário-sindical responde, em grande medida, pela interrupção do crescimento da esquerda, visível em 1945-1946. Mas esta repressão não impediu a intervenção significativa da esquerda, seja no próprio período Dutra (evoque-se o papel do Partido Comunista na luta rural de Porecatu, no Paraná), seja na abertura dos anos 1950, em especial no movimento operário-sindical, quando os comunistas estabelecem, de fato, uma aliança com setores do Partido Trabalhista Brasileiro (o PTB de Vargas).

A meu juízo, é na segunda metade da década de 1950 – mais precisamente, após o suicídio de Vargas e a intentona golpista de 1955 – que podemos registrar um efetivo crescimento da esquerda no país. No período posterior a 1955, são constituintes deste crescimento dois fenômenos: a crise e a recuperação do PCB e o surgimento de forças de esquerda independentemente da influência do PCB. Conhece-se a crise do PCB na imediata sequência do XX Congresso do PCUS (fevereiro de 1956): a chamada “denúncia do culto à personalidade” de Stalin leva o PCB, desde 1945 fortemente stalinizado, a uma crise que põe o partido no fundo do poço. Somente em 1958, mediante uma “nova política” (cuja formulação inicial está na discutida “Declaração de Março”), o partido dos comunistas ganha um novo fôlego, que lhe permitirá ser uma referência nos anos seguintes (apesar da fratura que sobrevém em 1962 e que dá origem ao PC do B).

Mas é também no fim dos anos 1950 que surgem núcleos de esquerda, marxistas e revolucionários, que não carregam a hipoteca do stalinismo que marcara o PCB. Este movimento, que se tornará inteiramente visível na entrada dos anos 1960 e que enriquece a esquerda, não expressa tão somente a dinâmica da sociedade brasileira, mas também sinaliza giros ocorrentes em outras experiências políticas (ademais da Revolução Chinesa, incide aqui, poderosamente, o influxo das lutas de libertação nacional em todo o à época denominado Terceiro Mundo e, particularmente nos anos seguintes, da Revolução Cubana). Creio que é preciso estudar com mais cuidado estes anos férteis para a esquerda brasileira, quando o PCB perde o monopólio do marxismo entre nós – e o marxismo se espraia para muito além das fronteiras do PCB.

A transição dos anos 1950 aos 1960 é de crescimento (inclusive orgânico-partidário) da esquerda brasileira – e isto vale, a meu juízo, tanto para o PCB como as outras frações emergentes fora do circuito da tradição marxista. Penso na constituição de setores socialistas em partidos inteiramente alheios a esta tradição (basicamente no PTB) e no aparecimento de segmentos socialistas laicos vinculados a diferentes igrejas, embora com visibilidade maior para os de extração católica (em função, inclusive, do ponderável redirecionamento da Igreja a partir do papado de João XXIII). É mais ou menos claro que este crescimento da esquerda (e, em todas estas respostas, estou designando por “esquerda” um leque muito amplo e heterogêneo de forças, cujo denominador comum me parece ser o antiimperialismo e a crítica à ordem burguesa numa perspectiva voltada para o futuro, excluindo-se, pois, o anticapitalismo romântico próprio da direita restauradora) expressou, naqueles anos, um efetivo processo de democratização da sociedade brasileira – processo ele mesmo relacionado às mudanças estruturais em curso (consolidação da industrialização substitutiva de importações, urbanização etc.).

Caros Amigos - O que representou o golpe de 64 para a esquerda no Brasil?

Entendo o golpe do 1º de abril conforme a brilhante caracterização de Florestan Fernandes: foi parte de um processo mundial de contra-revolução preventiva. Representou, para as massas trabalhadoras brasileiras, a liquidação de um processo de democratização que certamente conduziria a profundas modificações econômico-sociais, capazes de desobstruir a via para o rompimento da nossa heteronomia econômica. Para a esquerda, foi uma derrota de enormes implicações.

Também entendo que a esquerda laborou em equívocos e cometeu erros que facilitaram o golpe e a instauração da ditadura. Mas, ao contrário de muitos analistas, não debito a derrota de abril aos equívocos e erros da esquerda: o golpe, parte da mencionada contra-revolução preventiva, deve ser explicado pela natureza da dominação de classe exercida no Brasil pela burguesia. Naquele momento, incapaz de ser classe dirigente, ela escolheu, conscientemente, enquanto classe, ser classe dominante – e armou um esquema de alianças, nacionais e internacionais, que lhe possibilitou, durante quase 20 anos, instaurar o que o mesmo Florestan designou como autocracia burguesa.

Caros Amigos - Como avalia as diversas organizações que surgiram no pós-golpe? Por que foram tantas, por que eram tantas correntes? Porque não conseguiram se unir?

A unidade entre as forças reacionárias e/ou conservadoras nunca constituiu um problema de vulto na história política do século 20 – e se compreende a razão: seus interesses econômicos têm fundamentos comuns e estão enraizados no presente. No quadro da esquerda, a unidade é sempre problemática, porque os enlaces se dão mais na prospecção do futuro do que na defesa de interesses materiais imediatos; é problemática, mas possível, como resultado de longos processos de debates, do conhecimento da experiência histórica, de combates prévios travados em comum e, sobretudo, do próprio nível de consciência das massas trabalhadoras, conquistado em suas experiências diretas. Frente a um inimigo comum – como era o caso da ditadura instaurada em 1964 e cujo caráter de classe se explicitou, sem deixar margem a dúvidas, em 1968, com o AI-5 – seria esperável a constituição de uma unidade entre as forças de esquerda. Sabemos que isto não ocorreu. Muitas foram as causas da dispersão de esforços e de combates. Penso que parte delas estava inscrita na análise que as diferentes forças fizeram (ou deixaram de fazer) da natureza do regime instaurado em 1964 e, ainda, das causas que permitiram a vitória das forças de direita. Mas também pesaram as concepções estratégicas quanto à derrota da ditadura, a extração de classe dos resistentes e a conjuntura ideológica da época. Substantivamente, pesou igualmente a ponderação diferente que as várias forças de esquerda (profundamente debilitadas, pela repressão sistemática a que foram submetidas, em sua relação com as massas trabalhadoras) faziam do papel a ser desempenhado por estas mesmas massas.

Caros Amigos - Como a luta de massa se organizou na segunda metade dos anos 70?

Parece-me que estavam na direção mais correta aquelas forças (e este foi, entre outros, o caso do PCB) que entendiam a derrota da ditadura como resultado de lutas de massas. O fracasso do “modelo econômico” da ditadura (evidenciado claramente a partir de 1974-1975), as divisões que começaram a erodir a estreita base política do regime de 1964 e, sobretudo, a até então lenta reinserção da classe operária na cena política criaram as condições para que a resistência democrática deixasse os nichos em que subsistia e ampliasse o seu raio de influência. Frentes de luta até então subestimadas (contra a carestia, pela anistia e mesmo processos eleitorais) ganharam uma ponderação até então insuspeitada para muitos setores da esquerda.

Caros Amigos - Qual foi o papel desempenhado pelo sindicalismo no período pré-democratização?

Aqui, a resposta é simples: foi absolutamente fundamental. Mediante a ação do movimento operário-sindical é que se processou a reinserção das massas trabalhadoras (especificamente do proletariado) na cena política brasileira. Até então, a oposição e a resistência à ditadura tinham uma incontestável hegemonia burguesa (não se deve subestimar o papel do falecido Movimento Democrático Brasileiro/MDB); mediante a ação operário-sindical, que começa a ganhar vulto a partir de 1976-1977, a oposição burguesa é afetada, sua hegemonia na resistência institucional é ameaçada e a erosão do regime se acelera.

Caros Amigos - Qual foi a importância da esquerda no fim da ditadura e na redemocratização do país?

Já assinalei que a reinserção da classe operária na cena política, no último terço da década de 1970, foi o componente central para a derrota da ditadura. Foi através da dinamização do movimento sindical que esta inserção se viabilizou – e teve como efeito a catalização das demandas democráticas numa escala até então inimaginável, arrastando amplos setores das camadas médias, da intelectualidade e até mesmo de segmentos burgueses prejudicados no marco do “modelo econômico”. Não penso que este arco de forças, originalmente, possa ser visto como uma criação da esquerda – embora novos setores de esquerda e antigos militantes, que puderam sobreviver à repressão, tenham tido papel significativo na sua constituição. Mas é indiscutível que, com o quadro novo criado pela movimentação operário-sindical, distintas forças de esquerda, operando em especial a partir do fim do AI-5 e da anistia, deixaram a sua marca no processo de derrota da ditadura.

Caros Amigos - Como avalia o processo de surgimento do PT, da CUT e do MST?

Entendo que o surgimento do PT e da CUT estão diretamente ligados ao que designo como reinserção da classe operária na cena política brasileira – diria que ambos, emergentes nos anos 1980, são um fruto daquele processo. E um processo daquela relevância origina naturalmente, numa sociedade diferenciada e complexa, tal como já se apresentava a nossa na abertura daquela década, distintas expressões políticas. Nas suas origens, embora militando noutra organização política, vi o surgimento de ambos como algo basicamente positivo – porém, sempre tive preocupações em relação ao seu futuro, preocupações referidas à retórica “esquerdista” e sectária (quem não se lembra daquela bobagem eleitoreira de “trabalhador vota em trabalhador”?), às ligações internacionais (especialmente no caso da CUT) e, muito especialmente, à ignorância (nalguns casos, o desprezo) em relação ao passado de lutas dos trabalhadores e das outras forças de esquerda. Mas, à época, debitei tudo isto à necessidade natural de constituir uma identidade partidária e confiei em que a presença de lideranças expressivas de lutas sociais precedentes poderia fazer amadurecer esta identidade num sentido efetivamente de esquerda.

Penso que é diferente o caso do MST. Também fruto das condições que levaram à derrota da ditadura, o MST, a meu juízo, tornou-se um movimento verdadeiramente autônomo, com objetivos muito claros e uma estratégia de luta flexível e que leva em conta a experiência do passado. É bastante provável, em função das aceleradas transformações operadas no campo, que o movimento seja, na atualidade, compelido a repensar-se e a repensar a natureza e a função das suas lutas – mas me parece o único protagonista político significativo que põe em prática algumas referências próprias da esquerda, como a sistemática formação política e a solidariedade internacionalista.

Caros Amigos - O que representaram para a história da esquerda as eleições de 89?

O balanço, feito à distância, do processo eleitoral de 1989 é paradoxal. De uma parte, mostrou a força das aspirações democráticas num momento preciso – o saldo eleitoral, do ponto de vista imediato, foi notável: demonstrou a possibilidade efetiva de derrotar, nos marcos da institucionalidade formal, as forças da direita, desde que se realizasse, ainda que momentaneamente, uma unidade da esquerda e de setores democráticos (recorde-se que tanto os partidos comunistas quanto Covas e Brizola apoiaram Lula no segundo turno). De outra parte, o ganho organizativo, para o conjunto da esquerda, parece-me que foi pouco mais que residual – não teve a menor simetria com o ganho eleitoral.Mas é preciso dizer outra coisa importante: ficou claro que a grande burguesia, em processos eleitorais minimamente democráticos, não tinha, no final dos anos 1980, a menor chance de se viabilizar se apresentasse o seu próprio rosto (Collor nunca passou de um aventureiro político, que não expressava organicamente os interesses do grande capital; foi apenas um instrumento para evitar a vitória de Lula). E a grande burguesia aprendeu a lição: no processo eleitoral seguinte, foi obrigada a usar, para a defesa das suas posições, a maquiagem da esquerda – daí o seu apoio a FHC.

Caros Amigos - Como vê os rumos do PT desde então?

A resposta a esta questão já está implícita linhas acima e, de algum modo, inclui a pergunta subsequente. Os anos 1990 foram de um discreto, aparentemente suave e efetivo deslizamento do PT para o centro – já no primeiro confronto com FHC, desenhava-se o “Lulinha paz e amor”. Ao que parece, no fim da década, a esquerda foi inteiramente neutralizada no interior do PT – isto não significa, a meu juízo, que desde então deixaram de estar presentes no PT militantes de esquerda sérios, responsáveis e confiáveis. Mas tudo indica que são algumas rosas vermelhas num grande campo de braquiária. Posso estar enganado, mas, a partir de 2003, o PT converteu-se no gestor preferencial, para a grande burguesia, deste país. Permita-me recorrer a algo menor, mas que me parece extremamente simbólico: semana passada, a grande imprensa noticiou que o ex-presidente da República fez uma viagem ao exterior num jatinho de empresa do Grupo Gerdau, mantendo agradável palestra com o patriarca da família. Não sei se é fato, mas sei que é emblemático. Emblema de que já tivemos prova, aqui no Rio de Janeiro, há tempos: quando do falecimento de Roberto Marinho, Lula veio ao velório acompanhado de um séquito de ministros; no velório de Brizola, brilhou pela ausência. (NOTA DO BLOG ESCARRO NAPALM: Há controvérsias. Lula atrasou o horário de uma viagem que faria a Nova York para comparecer ao velorio, onde esteve por poucos minutos e foi hostilizado por militantes do pdt, como pode ser conferido aqui. Do mesmo PDT que, pouco tempo depois, se encastelou no Ministerio do Trabalho e lá está até hoje. "Assim que o presidente entrou no Salão Nobre, uma legião de militantes do PDT começou a vaiá-lo e, em seguida, começaram a cantar "Você pagou com traição, a quem sempre lhe deu a mão", canção imortalizada pela cantora Beth Carvalho. Militantes do partido foram para cima da comitiva, obrigando que policiais fizessem um cerco ao local. Os militantes pediram ainda a renúncia de Lula, gritando "Brizola presente é o nosso presidente". Cantaram também trechos dos Hinos da Independência e Nacional, e lembraram ainda o jingle de campanha de Leonel Brizola nas eleições de 1989: "Lá, Lá, Lá-Brizola". O ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, disse que era preciso dar um desconto em razão do clima e da emoção que pairavam no local. "Há aqui pessoas apaixonadas e chocadas com a morte de Brizola, mas voltando todos para casa vão ver a grosseria que fizeram com Lula e com o próprio Brizola. Se há pouco eles divergiam, é preciso lembrar que Lula e Brizola lutaram a maior parte do tempo juntos, praticamente a vida toda, ficando no mesmo lado por muito mais tempo. E neste sentido é descabido ajuizar quem tem razão".)

Caros Amigos - Quais foram os efeitos da década neoliberal na esquerda brasileira?

Os efeitos – ainda que indiretos, mediatos e que precisam ser relacionados aos impactos derivados da queda do “Muro de Berlim” – foram catastróficos em todo o mundo e não se limitaram, obviamente, ao universo ideológico e ao imaginário político: o preço da ofensiva do grande capital foi e está sendo pago pelas massas trabalhadoras do mundo inteiro.

Sobre a esquerda brasileira, os efeitos foram imediatamente deletérios: o generalizado abandono do ideário socialista e, no limite, a sua conversão numa social-democracia tíbia e tardia. Forças que no passado tiveram expressiva participação na luta contra a ditadura e pela democratização do país converteram-se ou em abertos porta vozes da ordem (o caso do PT é certamente gritante, mas não se esqueça o posicionamento junto com o DEM – com o DEM! – que os ex-comunistas do PPS hoje efetivam) ou abdicaram do seu programa e da sua autonomia na prática política (o caso do PCdoB). Evidentemente, estamos defrontados com um processo social profundo, que não pode ser creditado a personalidades ou a oportunismos de ocasião. De qualquer forma, impera na esquerda “reciclada” pela ideologia dessa coisa realmente reacionária que grosseiramente se chama neoliberalismo um cinismo assombroso: ex-guerrilheiros que se tornaram paladinos da “cidadania”, ex-líderes sindicais outrora extremamente radicais defendendo/teorizando os/sobre a importância econômica e democrática de fundos de pensão, ex-expoentes de partidos comunistas predicando que a questão central sob o capitalismo está na distribuição e não no modo de produção e coisas que tais.

Caros Amigos - O que representou a eleição de Lula em 2002 para a esquerda brasileira? Como avalia desde então as forças de esquerda no país?

Do ponto de vista político imediato, o resultado eleitoral de 2002 foi uma derrota da direita e dos conservadores, uma derrota do grande capital. Do ponto de vista simbólico, foi extremamente importante a vitória de um líder político de extração operária.

Mas uma coisa foi a vitória eleitoral e outra, muito diversa, o desempenho político: a enorme legitimidade que as urnas conferiram a Lula para empreender a caminhada no sentido das grandes transformações econômicas e sociais foi direcionada para outro rumo – à base da reiteração do fisiologismo político, a adequação do minimalismo da política social à orientação macro-econômica de interesse do grande capital. Lula realizou uma eficiente gestão do status quo.

Que fique claro que estou longe de equalizar Lula (e tudo o que ele representa e expressa) a um líder submisso à direita e aos conservadores ou um mero instrumento do grande capital – mas seus dois períodos presidenciais estiveram aquém, inclusive, de uma prática política “possibilista”. E seu principal papel, no que tange à esquerda, foi desqualificá-la como capaz sequer de um governo “diferente” – e não será fácil, para a esquerda, livrar-se desta herança.

Caros Amigos - Por fim, como o senhor avalia o atual momento da esquerda brasileira?

Penso que se trata de uma conjuntura extremamente difícil (e, insisto, trata-se de um quadro mundial, que não diz respeito somente ao Brasil). O espectro da esquerda orgânica (bastante diferenciada: PCB, Psol, PSTU) e da esquerda que ainda subsiste no interior de alguns partidos (nomeadamente no PT) não reflete minimamente o peso potencial, mesmo que hoje minoritário, da esquerda na sociedade brasileira (como se pode constatar em movimentos como o MST e em grupos políticos minúsculos, mas que podem ser expressivos futuramente). Como escrevi há algum tempo, o nosso déficit é organizacional e ele não será superado da noite para o dia – temos, a esquerda, um longo caminho a percorrer.

A longo prazo (por mais que esta expressão provoque um sorriso nos keynesianos), sou otimista. As contradições e impasses da ordem do capital, inclusive como se apresentam na periferia, são insolúveis no seu marco – não há Bolsa Família, mesmo ampliado, que os resolva. As tensões acumuladas na nossa formação social não podem ser anestesiadas sem limites. Tenho, para mim, que está e continua em curso um processo de fundo que implicará numa agudização das lutas de classes. Se a normalidade da democracia formal não sofrer interrupção, a esquerda poderá perfeitamente superar a sua debilidade organizacional – desde que trabalhemos forte já desde agora – e cumprir o que dela se espera: vencer a cronificação da barbárie pelo avanço na direção do horizonte socialista.

José Paulo Netto é professor emérito da UFRJ e professor da Escola Nacional Florestan Fernandes.

# # #

09 Dezembro 2009 - Tive o privilégio de conviver e aprender com José Paulo Netto durante dez anos, como membros que fomos do Comitê Central e da Executiva Nacional do PCB, a partir do VII Congresso do Partido, em 1982.

Em 1992, quando o PCB se dividiu em dois, eu tinha certeza de que José Paulo não ficaria no PPS. Mas, para ser franco, não tinha certeza de que, pelo menos naquele momento, ele não ficaria no PCB. Aos olhos de grande parte da militância do Partido da época, o Movimento em Defesa do PCB parecia quixotesco e ortodoxo. Como muitos ex-militantes do PCB, José Paulo Netto, desde então, não militou em qualquer partido.

Mas ele nunca deixou de ser comunista. Pelo contrário, transformou-se num dos mais importantes intelectuais brasileiros da atualidade, dedicando sua vida à produção teórica, à luta ideológica contra o capital e à formação política da juventude. Não limitou a esfera de sua contribuição intelectual ao ambiente acadêmico.

José Paulo também nunca se afastou do PCB, colaborando com o Partido em diversas atividades e sobretudo na formulação política, tendo participado destacadamente dos debates das Teses ao XIV Congresso, juntamente com dezenas de comunistas amigos e simpatizantes.

Ou seja, ele havia saído formalmente do PCB, mas o PCB jamais saiu dele.

Nesta sexta-feira, 4 de dezembro de 2009, José Paulo Netto resolveu esta contradição. Voltou oficialmente ao seu Partido, num singelo e emocionante encontro com uma delegação do Comitê Central do PCB, na sede nacional do Partido, no Rio de Janeiro.

A meu ver, José Paulo não voltou ao PCB porque lhe deu saudades e muito menos por qualquer outra razão de natureza pessoal. As Resoluções do XIV Congresso, a nossa coerência política e a reconstrução revolucionária do PCB fizeram com que o Partido merecesse a confiança dele em voltar a militar como intelectual orgânico comunista.

O PCB lhe recebe com carinho e orgulho, camarada José Paulo Netto!

Ivan Pinheiro - Secretário Geral do PCB

Fonte: pcb.org.r

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Esporro


Em um carnaval sem dinheiro, nem nada pra fazer, coloquei o 486 na penteadeira da minha mãe, tostei sem ar condicionado com os 40 graus do verão carioca e durante quatro dias praticamente escrevi um livro. Saí colocando na telinha as histórias que vi e vivi intensamente no começo dos anos 90 no rock underground do Rio de Janeiro como guitarrista do Soutien Xiita. Tempos de guitarras altas, pessoas peladas, loucuras e muito barulho. 'Esporro', meu terceiro livro, é sobre as esperanças da juventude, cair na estrada, tocar, compor e viver o sonho do rock com alguns amigos.

As fotos foram surgindo das gavetas de várias casas, os flyers e cartazes perderam a poeira e os ácaros e foi todo mundo para o vidro do scanner. De lá para as páginas do livro sob a diagramação e capa de Flávio Flock, que viveu com a mesma intensidade os palcos toscos da cidade como baixista do Poindexter. Ansiedades simples como ver que o cabelo cresceu mais um pouco, que a primeira nota do seu conjunto saiu num fanzine ou, pasmem, no Globo ou na Bizz (ou seria Showbizz?).

Quem viveu o sonho do rock vai se ver nas roubadas do livro, outros vão se lembrar de shows que foram. Você pode estar em qualquer cidade do mundo, mas o rock, os palcos imundos, o equipamento ruim, a cerveja e sentar na calçada de madrugada para esperar o primeiro ônibus, serão sempre iguais.

Quem é Leonardo Panço?

E por que não responder em primeira pessoa? Comecei a tocar em 88, tive algumas bandas até 91, mas acho que começou mais pra valer em 92 com o Soutien Xiita. Foi quando eu comecei a ter alguma vaga noção do que estava fazendo. Gravamos demos e um disco. Depois com o Jason de 97 a 2011, durante 14 anos fiz quase 100 shows no nordeste, mais de 100 na Europa em três turnês gringas, gravei quatro discos, vários lados b, faixas saíram em coletâneas, lancei três discos no exterior, sendo um em LP (uau). Foram vários clipes, centenas de outros shows pelo Brasil até minha saída em janeiro passado.

Fiz fanzines desde 91, colaborei em revistas, jornais, isso mesmo antes de entrar para a faculdade. Oficialmente sou jornalista desde 98, mas já o era muito antes disso. Fundei a Tamborete Entertainment em 97, lancei CDs de muitos artistas, meus três livros, o DVD do Verbase e por aí vai.

Em 2008/2009 passei por um monte de cidades com o lançamento do segundo livro 'Caras dessa idade já não leem manuais'. Nessa época o lêem ainda usava chapéuzinho. É muito comum nos Estados Unidos os escritores fazerem turnês promocionais. Mestres do punk rock como Jello Biafra, Henry Rollins e Michael Board fazem. Resolvi fazer também. E agora no final de 2011 inicio minha segunda gira de lançamento, agora do 'Esporro'. E desta vez não lanço o livro sozinho. Comigo o selo Subfolk de João Pessoa e o selo Bons Costumes da Editora Jovens Escribas, de Natal. Lindo demais. Parcerias, energias conjuntas, muitas datas, esforços concomitantes.

Nos vemos em alguma cidade ainda este ano ou em 2012, afinal o Brasil é bem grande e a viagem não termina agora.

por Leonardo Panço

Foto: Mauro Pimentel

http://www.vimeo.com/2291523 - entrevista dada em 2008 durante a tour do segundo livro

www.youtube.com/jasonoficial - aqui tem vários vídeos e clipes do jason, a banda onde toquei por 14 anos.

http://www.youtube.com/watch?v=Bz6MhfP8nPs matéria na tve de campina grande

http://www.youtube.com/watch?v=wbyRbqOzmZw&feature=related matéria do lançamento em salvador no programa soterópolis

http://www.screamyell.com.br/musicadois/leonardopanco_papo.htm matéria sobre o primeiro livro

http://www.portalrockpress.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=3233 - boa entrevista sobre o segundo livro

vimeo.com/esporro90rj - teaser do livro novo

www.twitter.com/esporro90rj

www.facebook/esporro

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Nada é como parece ...


"Enxergar o que se passa debaixo de nossos narizes exige um esforço constante" - George Orwell, em "1984"

A OTAN, A LÍBIA, E A ESPERTEZA DOS TOLOS

“O dia 11 de novembro de 1630 foi decisivo para a história da França e da Europa. Nesse dia, em Versailles, um jovem rei, Luís 13, rompeu com a mãe, a Rainha Maria de Médicis, e entregou todo o poder político da França a seu ministro, o Cardeal de Richelieu. Richelieu amanhecera deposto pela Rainha, mas um de seus conselheiros o convenceu a ir até o monarca, e expor-lhe suas razões. Foi uma conversa sem testemunhas. O fato é que Luis 13 teve a atitude que correspondia ao filho de Henrique IV: “entre minha mãe e o Estado, fico com o Estado”.

Ao tomar conhecimento da reviravolta, quando os inimigos do Cardeal festejavam sua derrota, o poeta Guillaume Bautru, futuro Conde de Serrant –um dos fundadores da Academia Francesa, libertino, sedutor, e homem de frases curtas e fortes– resumiu os fatos, ao ridicularizar os açodados: “c’est la journée des dupes”. Em nossa boa língua pátria, “o dia dos tolos”.

Ao mesmo tempo em que se vingava da princesa italiana, que o humilhara, Richelieu iniciava uma fase de grandeza da monarquia de seu país que só se encerraria 162 anos depois, com a decapitação de Luís 16.

A história é cheia de jornadas semelhantes. Os planos, por mais bem elaborados sejam, nunca se cumprem exatamente e, na maioria das vezes, se frustram, diante dos caprichosos deuses do inesperado. O caso da Líbia, se o examinarmos com cuidado, está prometendo ser uma operação “des dupes”.

Não vai, nesta análise, qualquer juízo moral sobre Khadafi. É certo que se trata de um megalômano, que, tendo chegado ao poder aos 27 anos, provavelmente não estivesse preparado para administrar o êxito que coroou a sua participação na revolta contra outro déspota, o rei Idris. Mas Khadafi não teria sido quem foi, durante 42 anos, se a Europa e os Estados Unidos não tivessem tido atitude sinuosa e incoerente para com o seu regime. Reagan chegou a determinar o ataque aéreo a Trípoli e Bengazi, em 1986, quando uma residência de Khadafi foi atingida e uma sua filha adotiva morreu. Esses ataques, longe de enfraquecer o governante, fortaleceram-no, e desestimularam os poucos inimigos tribais internos.

Os interesses econômicos da Europa, que fazia bons negócios com o dirigente do velho espaço dos beduínos, berberes e tuaregues, ditaram as oscilações da diplomacia diante de Trípoli. A bolsa, sempre pejada e generosa, de Khadafi, favorecia seus entendimentos e os de seus filhos com altos funcionários das chancelarias européias e financiavam festas suntuosas a que eram convidadas as grandes celebridades do show business e dos círculos ociosos da grã-finagem internacional. Enfim, Khadafi fazia o que quase todos fazem. Não é por acaso que Berlusconi sempre o teve como um de seus mais devotados amigos, até que, coerente com seu caráter, somou-se à cruzada contra Trípoli.

Khadafi, por mais insano tenha sido –e todos podiam identificar os sinais de sua mente vacilante– fez um governo de bem-estar social, como nenhum outro da região. Contando com os recursos do petróleo, criou sistema de assistência à saúde que, mesmo restrito aos centros urbanos, tem sido exemplar. Reduziu drasticamente os níveis de mortalidade infantil, possibilitou o tratamento gratuito de toda a população, universalizou a educação, estimulou a agricultura nas raras terras cultiváveis, e fixou salários dignos para os trabalhadores. É certo que se enriqueceu e enriqueceu seus familiares e favoritos, mas os líbios não tinham por que se queixar de sua política social. Em contrapartida, não admitia qualquer tipo de oposição.

Monsieur Sarkozy, que anda fazendo apostas perigosas com a posteridade, e Cameron, da Grã Bretanha, foram os grandes animadores da intervenção maciça da OTAN contra a Líbia. A ocasião era propícia. A Europa se encontra combalida com a crise econômica e o avanço da corrupção está erodindo a coesão de seus povos. O tema é de particular intimidade da França, detentora, na História, dos mais espetaculares escândalos, entre eles o da frustrada construção do Canal do Panamá por uma companhia francesa: a empresa obtivera, mediante propinas a muitos parlamentares, a concessão de uma loteria especial para o financiamento da obra, recolhera investimentos pesados dos homens de negócios europeus e dos poupadores modestos, e quebrou espetacularmente poucos meses depois. Durante muito tempo, “panamá” passou a ser sinônimo, em todas as línguas, de negócios escusos e da corrupção política. Talvez com a única exceção dos tempos de De Gaulle, nunca houve governo na França imune a denúncias de sujeiras semelhantes. A corrupção foi uma das causas da Revolução Francesa.

Quase todos estão saudando a vitória contra Khadafi, mas isso não significa que tenham conquistado a Líbia. São grupos internos de interesses diferentes que se uniram para livrar-se de um inimigo comum, com o apoio das potências estrangeiras, que bombardearam sistematicamente a população civil –o que, convenhamos, é terrorismo puro. Mas, sempre que as armas se calam, novo e mais complicado conflito se inicia. Quem assumirá o poder? Irão as tribos do deserto, que se relacionam entre elas mediante complexa malha de fidelidade, fundada no parentesco e nas alianças bélicas seculares, unir-se sob um protetorado estrangeiro? É duvidoso.

Há uma questão de fundo, que Sarkozy e Cameron, em seu açodamento, desprezaram. Londres e Paris, pressurosos em aproveitar os episódios dos países árabes, a fim de reocuparem seu domínio colonial, tomando o lugar da Itália na influência sobre a Líbia, esqueceram-se de Israel.

Mubarak, do Egito, o principal aliado de Tel-Aviv, e fiel vassalo de Washington, perdeu o poder e corre o risco de perder também a cabeça. Israel tomou a iniciativa de provocar as novas autoridades do Egito ao cometer o ataque fronteiriço, que causou a morte de oficiais daquele país, na pressão para que se feche novamente a passagem aos palestinos.

Nada indica que os governos que, eventualmente, sucedam aos déspotas destituídos no Egito e na Tunísia, e os que possam vir a ser derrubados nas vizinhanças, sejam mais condescendentes com Israel. Até mesmo a Síria é uma incógnita, no caso em que Assad perca o mando.

A Itália, acossada pela crise econômica e pela desmoralização de Berlusconi, em lugar da neutralidade, somou-se, na undécima hora, aos agressores.

Os fundamentalistas se somam aos que saúdam os movimentos de rebeldia nos países árabes. A Palestina, por intermédio do Hamas, aplaude o fim de Khadafi. Terá suas razões para isso. E a rede Al Jazeera já está emitindo de Trípoli. Como se queixou Khadafi, a Al-Qaeda não o apoiava.

Enfim, para lembrar o burlador Conde de Serrant, é bem provável que este ano de 2011 fique na história como o ano dos tolos.”

FONTE: escrito pelo jornalista Mauro Santayana no Jornal do Brasil Online. Transcrito no portal “Conversa Afiada” (http://www.conversaafiada.com.br/politica/2011/08/24/santayana-a-libia-e-o-festival-de-tolices/).

* * *

O grande Kadafi nem bem deixou o complexo de Bab-al-Aziziyah, e os abutres ocidentais já sobrevoam o local, disputando o “grande butim” – o petróleo e o gás da Líbia.

A Líbia é um peão muito mais crucialmente importante num tabuleiro ideológico, geopolítico, geoeconômico e geoestratégico mais sério, do que deixa ver o ‘reality show’ moralista vendido como noticiário pelas redes de televisão: “rebeldes” idealistas vencem o inimigo público número um.

Por Pepe Escobar, no “Asia Times Online”

Tempo houve em que o inimigo público número um foi Saddam Hussein; depois, Osama bin Laden; hoje é Muamar Kadafi; amanhã será o presidente Bashar al-Assad da Síria; um dia será o presidente do Irã Mahmud Ahmadinejad. Só uma coisa é certa: a ultrarreacionária Casa de Saud [Arábia Saudita] nunca é o inimigo público número.

COMO A OTAN VENCEU A GUERRA

Apesar do reaparecimento espetacular do filho de Kadafi, Saif al-Kadafi, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) virtualmente já venceu a guerra civil líbia (“atividade militar cinética”, como insiste a Casa Branca). As massas do “povo líbio” foram, no máximo, espectadoras, ou atores com papel pequeno, mostrados sob a forma de poucos milhares de “rebeldes” armados com Kalashnikovs.

Inicialmente, apostaram em “R2P” (“responsabilidade de proteger”[sic]). Mas, logo no início, essa “R2P”, manobrada por França e Grã-Bretanha e apoiada pelos EUA, já apareceu [ilegalmente, sem aval da ONU] convertida, por passe de mágica, em “mudança de regime”. Daí em diante, as estrelas do show nessa produção foram “conselheiros”, “empresas contratadas” ou “mercenários ocidentais” e “monárquicos”.

A OTAN começou a ganhar a guerra ao iniciar a Operação Sirene no Iftar –sirenes que soaram interrompendo o jejum do Ramadã– no sábado à noite. “Sirene” foi o nome código para invadir Trípoli. Foi o gesto final –e desesperado!– da OTAN, para mostrar força, quando ficou claro que os “rebeldes” caóticos nada haviam conseguido, nem depois de cinco meses de luta contra as forças de Kadafi.

Até aquele momento, o “Plano A” da OTAN era assassinar Kadafi. O que os garotos-propaganda da R2P –de direita e de esquerda– chamavam de “pressão continuada pela OTAN” acabou com a OTAN pedindo a Deus que acontecesse um de três milagres: que conseguissem assassinar Kadafi; que Kadafi se rendesse; ou que sumisse.

Não que qualquer desses resultados tivesse impedido a OTAN de bombardear residências, universidades, hospitais e até áreas bem próximas do Ministério do Exterior. Tudo –e todos– virou alvo da OTAN. A “Operação Sirene” mostrou elenco colorido de “rebeldes da OTAN”, fanáticos islâmicos, jornalistas alugados “incorporados”, grupos sempre voltados para as câmeras de televisão e jovens da Cyrenaica manipulados por desertores oportunistas do governo Kadafi, de olho nos gordos cheques das gigantes Total e BP, do petróleo.

Para a operação “Sirene”, a OTAN trouxe armamento (literalmente) novinho em folha: helicópteros Apache atirando sem parar e jatos bombardeando furiosamente tudo que havia à vista. A OTAN supervisionou o desembarque de centenas de soldados de Misrata na costa leste de Trípoli, enquanto um navio de guerra da OTAN distribuía armamento pesado para os “rebeldes”.

Só no domingo, o número de civis mortos pode ter chegado a 1.300 em Trípoli, com pelo menos 5.000 feridos. O Ministério da Saúde anunciou que os hospitais estão superlotados. Quem, àquela altura, ainda acreditasse que o furioso bombardeio pela OTAN tivesse algo a ver com “responsabilidade de proteger” e Resolução nº 1.973 da ONU mereceria internamento em hospício.

Antes de iniciar a “Sirene”, a OTAN bombardeou furiosamente Zawiya –cidade chave, de grande refinaria de petróleo, 50km a oeste de Trípoli. Com isso, a população de Trípoli ficou sem combustível para os carros. Segundo a própria OTAN, pelo menos metade das forças armadas líbias foram “degradadas” –em língua do Pentágono, significa que a OTAN destruiu metade do exército líbio, entre soldados mortos ou muito gravemente feridos. Foram dezenas de milhares de mortos. Esse massacre explica, também, o misterioso desaparecimento dos 63 mil soldados encarregados de defender Trípoli. E também explica que o regime de Kadafi, que se manteve no poder durante 42 anos, parece ter caído em menos de 24 horas.

O toque da “Sirene” macabra da OTAN –depois de 20 mil missões e mais de 7.500 ataques contra alvos no solo– só foi possível por causa de uma decisão crucial do governo Barack Obama no início de julho, como se lê hoje no “Washington Post”: os EUA passaram [em julho] a “partilhar material mais sensível com a OTAN, inclusive imagens e sinais interceptados, que passaram a ser fornecidos, além de aos pilotos no ar, também a soldados de equipes britânicas e francesas de operações especiais no solo”.

Quer dizer: sem a contribuição do descomunal poder de fogo dos EUA e correspondentes agentes, satélites e aviões-robôs (drones) tripulados à distância, a OTAN ainda estaria atolada na “Operação Pântano Eterno Sem Saída” na Líbia –e o governo Obama jamais conseguiria extrair desse drama “militar cinético” nem, que fosse, algum simulacro de grande vitória.

QUEM SÃO ESSAS PESSOAS?

Quem são essas pessoas que, de repente, irromperam em festas nas telas de televisão dos EUA e Europa? Depois de sorrir para as câmeras e disparar tiros de Kalashnikovs para o alto... preparem-se para, em breve, outros fogos explodindo na noite: fogos fratricidas.

Conflitos étnicos e tribais estão a ponto de explodir. Muitos dos berberes das montanhas do oeste, que entraram em Trípoli vindos do sul no fim de semana, são salafitas, linha (muito) dura. O mesmo se deve dizer da “nuvem” salafitas/Fraternidade Muçulmana da Cyrenaica –que recebeu instrução diretamente de agentes da CIA-EUA que estão na região. Dado que esses fundamentalistas "usaram" os europeus e norte-americanos para aproximar-se do poder, ninguém duvide que se organizarão rapidamente como furioso grupo guerrilheiro, caso sintam-se marginalizados pelos chefões da OTAN.

A tal grande “revolução” com base em Benghazi, que foi vendida ao ocidente como movimento popular, sempre foi mito. Há apenas dois meses, os “revolucionários” armados mal chegavam a 1.000. A OTAN, então, decidiu construir ela mesma um exército mercenário –que reuniu os tipos mais assustadores, de ex-membros de um esquadrão da morte colombiano a pessoal recrutado no Qatar e nos Emirados Árabes Unidos, associados a tunisianos desempregados e membros das tribos inimigas da tribo de Kadafi. O pessoal é esse, acrescido de esquadrões de mercenários alugados pela CIA –salafitas em Benghazi e Derna– e a gangue da Fraternidade Muçulmana, gente da equipe da Casa de Saud.

É difícil não lembrar da gangue da droga do UCK (Ushtria Çlirimtare e Kosovës, Exército da Libertação do Kosovo) –na guerra que a OTAN “venceu” nos Bálcãs. Ou dos paquistaneses e sauditas, com apoio dos EUA, que armaram “combatentes da liberdade” no Afeganistão nos anos 1980. E há também o muito suspeito grupo de personagens que compõem o “Conselho Nacional de Transição” [ing. “Transitional National Council” (TNC)], de Benghazi.

O chefe, Mustafa Abdel-Jalil, foi ministro da Justiça de Kadafi de 2007 até desertar, dia 26 de fevereiro de 2011, estudou direito civil e sharia na Universidade da Líbia. Talvez esteja habilitado a cruzar lanças retóricas com os fundamentalistas islâmicos em Benghazi, al-Baida e Delna, mas pode usar seus conhecimentos para fazer avançar seus interesses em algum novo arranjo do poder.

Mahmoud Jibril, presidente do conselho executivo do TNC, estudou na Universidade do Cairo e, depois, na University of Pittsburgh. É a principal conexão com o Qatar: trabalhou na gestão do patrimônio de Sheikha Mozah, esposa super poderosa do emir do Qatar.

Há também o filho do último rei da Líbia, rei Idris, que Kadafi derrubou há 42 anos (em golpe sem derramamento de sangue). A Casa de Saud adoraria ver nascer uma nova monarquia no norte da África. E o filho de Omar Mukhtar, herói da resistência contra o colonialismo italiano –figura mais secular.

O NOVO IRAQUE?

Esperar que a OTAN vença a guerra e entregue o poder aos “rebeldes” é piada. A Agência [norte-americana de notícias] Reuters já noticiou que uma “força-ponte” de cerca de 1.000 soldados do Qatar, Emirados e Jordânia chegará a Trípoli para atuar como polícia. E o Pentágono já começou a “vazar” que militares norte-americanos atuarão “em terra” para “auxiliar na segurança dos equipamentos”. Toque sutil, que diz bem claramente quem realmente estará no comando: os neocolonialistas “humanitários” e seus asseclas árabes.

Abdel Fatah Younis, o comandante “rebelde” assassinado pelos próprios “rebeldes” era homem do serviço secreto francês. Foi morto por uma facção da Fraternidade Muçulmana –exatamente quando Sarkozy, o Grande Libertador de Árabes, tentava negociar algum acordo com Saif al-Islam, filho de Kadafi formado pela “London School of Economics” e, há dias, renascido dos mortos.

Tudo isso para dizer que os grandes vencedores são Londres, Washington, a Casa de Saud e o Qatar (que mandou jatos e “conselheiros” e já estão administrando as vendas de petróleo). Com especial menção para o conjunto Pentágono/OTAN –posto que o Comando dos EUA na África (AFRICOM) conseguirá, afinal, sua primeira base africana no Mediterrâneo; e a OTAN, que está um passo mais próxima de declarar o Mediterrâneo “um lago da OTAN”.

Islamismo? Tribalismo? Esses são pequenos problemas, ante a nova terra da fantasia que se escancara para o neoliberalismo. Já praticamente ninguém duvida que os novos mestres do ocidente tentarão reviver versão amigável da nefasta, rapace, nefanda “Autoridade Provisória da Coalizão”, convertendo a Líbia em delírio neoliberal “hardcore” à custa de 100% das propriedades líbias, com repatriação de lucros, corporações ocidentais com os mesmos direitos que as empresas locais, bancos estrangeiros comprando os bancos locais, renda baixa para os pobres e impostos idem para as empresas [o Brasil de FHC/PSDB/DEM já viu esse filme].

Simultaneamente, a fissura profunda que separa o centro (Trípoli) e a periferia, pelo controle dos recursos de energia, se aprofundará. BP, Total, Exxon, todas as gigantes ocidentais do petróleo serão fartamente recompensadas pelo “Conselho de Transição” –em detrimento de empresas chinesas, russas e indianas. E soldados da OTAN “em terra” certamente ajudarão a impedir que o Conselho saia da linha.

Executivos da indústria do petróleo estimam que demorará, no mínimo, um ano para que a produção de petróleo volte ao nível de antes da guerra civil, de 1,6 milhões de barris/dia, mas dizem que os ganhos anuais do petróleo renderão aos novos governantes cerca de US$50 bilhões de dólares/ano. Muitos estimam que as reservas líbias alcancem 46,4 bilhões de barris de petróleo, 3% do petróleo do mundo, equivalendo a cerca de $3,9 trilhões aos preços de hoje. As reservas conhecidas de gás líbio chegam a 5 trilhões de pés cúbicos.

No frigir dos ovos, “R2P” vence. O imperialismo humanitário vence. As monarquias árabes vencem. A OTAN como Robocop global vence. O Pentágono vence. Mas nem tudo isso satisfaz os suspeitos de sempre –que já pedem o envio de uma “força de estabilização”. E tudo isso enquanto os progressistas da categoria “perderam-o-rumo-e-o-prumo” em várias latitudes, continuam a louvar a “Sacra Aliança” entre neocolonialismo ocidental, monarquias árabes ultrarreacionárias e salafitas ‘hardcore’.

Ainda não terminou. Só terminará quando a onça árabe aparecer para beber água. Seja como for, próxima parada: Damasco."

FONTE: escrito por Pepe Escobar, correspondente itinerante de “Asia Times Online” e autor de “Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War”. Transcrito no portal “Vermelho” (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=162233&id_secao=9) [trechos entre colchetes adicionados pelo blog ‘democracia&política’].

O Grande Gaddafi[1]
Pepe Escobar, Asia Times Online, Tradução: Coletivo Vila Vudu
20/8/2011

A noite vai avançada em Trípoli, e o Grande Gaddafi beberica seu White Russian[2], fumando um do bom, do Maghreb, enquanto sintoniza uma gigantesca televisão de plasma em sua tenda na fortaleza de Bab al-Aziziyah. Ninguém, nem alguma voluptuosa enfermeira ucraniana, conseguiria apaziguar sua alma em revolta.

Assiste, com ar de quem não acredita nos próprios olhos, à narrativa que avança naquela sopa de letras ocidentais conhecida como “noticiário”; juram que Muammar Gaddafi está “sitiado”, “exaurido”, “tentando achar alguma rota de fuga”, “preparando-se para fugir” (para a Tunísia) e que “é só questão de tempo” antes do “colapso” de seu governo.

Tudo isso, porque um bando de beduínos bárbaros apoiados pelas bombas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) decidiram mijar no seu tapete.

O Grande Gaddafi: “Aquele tapete era a base que mantinha em pé a sala”.

Não diria, de si mesmo, que esteja “sitiado”. Afinal, as pesquisas mostram que, na Líbia, a aprovação de seu governo no mínimo dobrou, nos últimos meses. E então um dos caras lá da Casa Branca disse ao pessoal lá que a Líbia aceitaria um acordo de cessar-fogo pelo qual a OTAN controlaria só alguns pontos da Cyrenaica – sim para Benghazi, não para Misrata – e abriria caminho para uma força de paz dos capacetes azuis da ONU.

Examina o calendário no seu iPhone; o mês do jejum santo dos muçulmanos, o Ramadã, estende-se até 29 de agosto. Faltavam só uns dez dias, para que o cessar-fogo entrasse em vigência. Mas os norte-americanos – como sempre – e sua cobiça sem limites! Queriam para eles todas as concessões de petróleo e gás, pôr as mãos em todas elas. E queriam que Gaddafi se aposentasse. Petróleo e gás são sempre negociáveis. Questão de acertar o preço. Quanto à aposentadoria, podem enfiar no seu rabo.

Guarda-costas do Grande Gaddafi: “E quando estivermos fazendo a entrega, eu pego um dos deles, arrebento o cara e arranco tudo dele, de volta. Que tal?”

O Grande Gaddafi: “Grande plano, porra, super engenhoso, se estou entendendo bem. Perfeito, porra, infalível como uma porra de relógio suíço, porra.”

Que tipo de guerra “popular” foi aquela? O pessoal do serviço secreto trouxe-lhe em bandeja de prata a mais recente pesquisa Rasmussen – segundo a qual, só 20% dos norte-americanos apoiam hoje o escandaloso bombardeio por EUA/OTAN, sobretudo porque aqueles panacas bombardearam civis e mais civis, até crianças. Os europeus – os que contam, gente de verdade, não os burocratas panacas de Bruxelas – estão ainda mais incomodados que os norte-americanos.

E dizer-se que os niilistas europeus tentaram vender a ficção de que ele, Gaddafi, seria um “ditador maléfico” que queria “matar o próprio povo”!

Guarda-costas do Grande Gaddafi: “Niilistas?! Agora, fodeu… Quero dizer, digam o que disserem dos princípios do nacional socialismo, Meu Chapa árabe, pelo menos era algum ethos”.

Os niilista europeus bombardearam a infraestrutura civil – privaram muita gente no oeste da Líbia, de água e comida, para que as ‘massas’ ‘se levantassem’ e derrubassem Gaddafi. É como funciona uma guerra para “proteger civis”, nessas cabeças ocidentais doentias: ensinar os civis a se borrarem de medo.

O Grande Gaddafi sempre soube que nunca esteve só. O povo de Trípoli não se borrou de medo. Estudantes, professores, cidadão comuns, todos armados com Kalashnikovs, lança-granadas e morteiros, todos prontos a escavar trincheiras, cercar a cidade, montar um cordão de pontos de controle, organizar a resistência casa a casa. Os ‘rebeldes da OTAN’ jamais tomariam Trípoli.

Guarda-costas do Grande Gaddafi: “Cara, recebi informações novas. Há mais merda no ar, do que pensávamos.”

Verdade. Gaddafi agora sabe com certeza que grandes tribos – Warfa’llah, Washafana, Tarhouna, Zlitan – todas sempre estiveram com ele. E que, ao contrário do que prega a propaganda dos “rebeldes da OTAN”, Zawiya, Gharian e Surman não caíram.

Gaddafi sempre soube que aqueles sujeitos sem sal nem vergonha do Conselho Nacional de Transição [ing. Transitional National Council (TNC)] nunca superariam ou superarão as guerras tribais seculares que os separam; todas elas, de fato, miniguerras civis.

Impossível acreditar que norte-americanos e europeus tenham sido idiotas a ponto de pôr dinheiro na brigada Abu Ubaidah bin Jarrah. A brigada recusa-se a lutar sob comando dos “rebeldes da OTAN” e já assumiu a “segurança interna”, pelo mesmo método de sempre: eles degolam inimigos.

Gaddafi hoje conta, inclusive, com o apoio da furiosa tribo Obeidi – que inclui a família do general General Abdul Fatah Younis, que foi ministro do Interior de Gaddafi, antes de virar desertor comandante-em-chefe dos ‘rebeldes’ e ser assassinado lá mesmo, pelos mesmos “rebeldes da OTAN”.

Ocidentais imbecis, que ainda ontem beijavam barra de túnica africana, em visita que faziam, em fila, à tenda itinerante. Hoje salivam só de ouvir falar de sumarentos acordos comerciais, ainda mais sumarentas perfurações nos campos de petróleo, certos – perfeitos idiotas – que conseguirão evitar a inevitável, monstruosa guerra civil tribal que descerá sobre eles.

O Grande Gaddafi: “Ok. Certo, certo. Então, se assinarem meu cheque, 10% de meio trilhão… 50 bilhões… Eu me mando. Sumo.”

Gaddafi sempre soube por que vieram até ali, mijar no seu tapete. Porque nunca deu a britânicos, franceses e ianques as concessões de petróleo que queriam. Então eles, e os insuperáveis salafrários sauditas, puseram-se a financiar aqueles fanáticos que tinham contatos com a al-Qaeda – exatamente o que fizeram no Afeganistão nos anos 1980s.

Banqueiros-gânsteres inventaram um Banco Central ‘alternativo’ – com a prestimosa ajuda do HSBC – para assaltar a Líbia e roubar o dinheiro dos líbios. E também inventaram uma nova empresa de petróleo, nova, totalmente privada, administrada pelo Qatar, para roubar o petróleo da Líbia.

Ora, ora… Por que ele, Gaddafi, não pensou antes nesse lance de “guerra humanitária”? Que matança utilíssima, teria feito!

O Grande Gaddafi: “Vocês têm a história de vocês, eu tenho a minha. O que digo e provo é que confiei meu dinheiro a vocês e vocês – vocês! – roubaram o meu dinheiro que tinham sob sua guarda.”

A “Coalizão”: “Loucura! Como se algum dia tivéssemos SONHADO com roubar essa merda de dinheiro líbio!”

O que está sendo feito na Líbia terá troco – será horrível. De dar medo.

As bombas da OTAN já degradaram a indústria líbia de petróleo, que voltou ao ponto em que estava, no mínimo, há três anos passado. Mas os canalhas, covardes, não terão coragem de atacar Trípoli. Numa batalha por Trípoli, mulheres e crianças morrerão em massa.

O Grande Gaddafi: Ah, malditos! Fucking fascistas!

Terão de bombardear Trípoli até devolvê-la à idade da pedra – exatamente o que já fizeram em Bagdá. Ou usarão alguma arma biológica alucinada, que fará de Trípoli cemitério e deserto.

O Grande Gaddafi: “Não pode ser. Não será. Não vai ficar assim, ya know, essa violência não pode ficar sem castigo, man.”

OK. Seja. Se esse é o tipo de paraíso que a OTAN e os ‘democratas’ sauditas e qataris querem… o Nosso Chapa árabe lhes dará o que querem – e será como sobreviver no inferno. Mercado livre aberto para todos, uma base do Africom no Mediterrâneo, um governo fantoche, um Karzai da Líbia – e um exército de guerrilheiros fanáticos degoladores que os combaterão por muitas gerações, até o dia do Juízo Final. O Afeganistão remixed.

O Grande Gaddafi procurou The Chocolate Watchband[3] no seu iPod – “passei por aqui / só pra ver / em que condições / estava minha condição” – olhou em volta e andou diretamente para dentro da nem tão fresca noite norte-africana. Os jatos da OTAN circulavam no céu. Ouviram-se sete explosões em Bab al-Aziziyah.

O desconhecido: ‘Meu Chapa’ desapareceu na escuridão – “darker’n a black steer’s tookus on a moonless prairie night”[4]. Sem fundo.

_______

[1] Para ler pensando em “O Grande Lebowiski” [The Big Lebowiski, 1993, dir. irmãos Coen]. Todas as falas aí citadas de Gaddafi, são falas do Grande Lebowski, no filme; falas de outros personagens do filme aparecem atribuídas aí a outros ‘falantes’ (cf. IMDB).
O filme nara a história de Jeffrey Lebowski, apelidado “The Dude” [‘Meu chapa’, ‘meu camaradinha’, ‘o cara’; gíria], que vive em Los Angeles no início dos anos 90s. Uma noite, ‘Meu Chapa’ chega em casa e encontra à sua espera dois homens que lhe dizem que sua mulher deve uma enorme quantidade de dinheiro a um homem chamado Jackie Treehorn; e que ‘Meu Chapa’ tem de pagar a dívida, dado que Treehorn sabe que ‘Meu Chapa’ é riquíssimo. Os homens torturam ‘Meu Chapa’, espancam-no, metem sua cabeça no vaso sanitário e, na saída, urinam no tapete que há na sala e ao qual ‘Meu Chapa’ é emocionalmente muito ligado. A questão é que ‘Meu Chapa’ não tem mulher, nem dinheiro algum; é desempregado crônico e vive de bicos. Os agressores, afinal, vendo, de fato, a miséria da casa onde ‘Meu Chapa’ vive, dão-se contra de que apanharam o Jeffrey Lebowski errado. E vão-se.
Depois de alguma reflexão sobre o ocorrido, ‘Meu Chapa’ aceita a sugestão do amigo Walter, de irem em busca do outro Jeffrey Lebowski, para exigir dele algum tipo de indenização pelo tapete urinado. Para grande surpresa de ‘Meu Chapa’, o outro Jeffrey Lebowski é um velho, preso a uma cadeira de rodas e perfeito canalha ‘de filme’: vive em mansão imensa, com piscina gigante, é violento contra visitantes como ‘Meu Chapa’, tem um capanga-guarda-costas (que bajula o chefe) e uma sexy jovem esposa-troféu – Bunny –, além de muitos tapetes caríssimos. ‘Meu Chapa’ rouba-lhe um tapete e dá-se por bem indenizado. Tapete a mais, tapete a menos, para quem tem tantos…
A história muda de registro quando Bunny é sequestrada e o Lebowiski milionário pede que o Lebowiski-‘Meu Chapa’ lhe sirva de portador, para entregar aos sequestradores o resgate de um milhão de dólares. Daí em diante a coisa é praticamente inenarrável, senão como o filme narra: misturam-se objetos de diferentes planos de discussão – calcinhas, cuecas, um tapete de alto valor sentimental, pornografia, niilistas, carros destruídos, esmalte verde para unhas, um pedófilo, disputas de boliche, para citar alguns itens-ícones. O filme é interessantíssimo e pinta retrato miserável dos EUA onde nem os sobreviventes sabem exatamente porque sobrevivem ou como, e são capazes de vinganças exemplares [NTs].

[2] Coquetel adocicado de vodka. Mais na Wikipedia).

[3] Banda de rock psicodélico ‘de garagem’, criada em 1965. Pode ser ouvida aqui

[4] Ninguém por aqui conseguiu traduzir essa frase. A maioria aprovou que se deixasse como está, a frase intraduzível. Dificilmente seria mais claramente compreensível em português, do que em inglês. Talvez haja, mesmo, algum mistério imperscrutável, nessa frase. Mas, sim, qualquer ajuda é bem-vinda [NTs].

Nota do Blog Maria Frô: O leitor Marcelo Fraga sugere a seguinte tradução: A frase quer dizer algo como “mais escuro que o traseiro de um boi preto em uma noite de pradaria sem lua.” Tookus é uma corruptela de “tuchus“, uma palavra em iídiche (afinal, várias palavras em iídiche viraram gírias nos EUA).



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A morte de um amigo

Conheci Marcos Oliveira Ferreira, o MOF, primeiramente via troca de correspondências. Eu editava o Escarro Napalm, ele o "Meleka Korrosiva", um fanzine enxuto, bem diagramado e impresso num formato diferente, fininho. Ficamos bastante amigos. Tanto que ele veio me visitar aqui, em Aracaju, algum tempo depois. Passou quase um mês. Demos alguns "rolês" - fomos até Recife ver uma edição do Abril pro rock, por exemplo. Era 1995 e a gente teve a honra de assistir, juntos, uma apresentação da Nação Zumbi ainda com Chico Science.

Já o havia conhecido pessoalmente em 1994, em Belo Horizonte, durante o BH Rock Independente Fest. Na verdade foi ele que me encontrou: falou que estava de passagem pela cidade, para o festival e visitando parentes, viu meu nome no folder de divulgação das palestras e me procurou. Vimos vários bons shows juntos. Seus comentários sempre jocosos e bem humorados eram ótimos.

Em 1988 eu fui pela segunda vez ao Rio de Janeiro ver o show do U2 e desta vez foi ele que me ciceroneou pela sua cidade. Juntos vasculhamos lojas de discos atrás de promoções, e graças a suas dicas preciosas comprei o caixão com a discografia do Misfits e a caixa "The Airplane Flight High" do Smashing Pumpkins, a preços camaradas.

Quando voltei ao Rio em 2005 (por algum motivo que eu não sei bem qual é eu sempre vou à cidade Maravilhosa de 7 em 7 anos) encontrei-o como um dos proprietários da Loja Plano B, na Lapa, especializada em vinil. Sempre solícito e boa praça, me levou pra passear novamente - Bondinho, Santa Tereza, centro, Saara, CCBB ... Num final de tarde deixei ele numa estação do metrô, pois ele tinha resolvido dar uma mudada no roteiro e não pegou o ônibus que costumava pegar todo dia. Pois bem, foi exatamente naquela linha na qual ele deixou de embarcar que, naquela mesma noite, bandidos puseram fogo num ônibus com os passageiros dentro. Não digo que ele escapou por um golpe do destino porque o incidente não foi na hora em que ele estaria presente, mas foi um episódio emblemático.

Marcos morava no complexo do Alemão, exatamente na área que foi palco daquela invasão recente da policia em conjunto com as Forças Armadas, numa operação de guerra sem precedentes. Uma vez eu liguei pra ele e ele me falou: "espera um pouco que eu vou fechar a janela porque tá rolando um tiroteio aqui na rua". Falei que ele tava de sacanagem, ele colocou o telefone na janela e dava mesmo para ouvir o barulho de tiros de fuzil. Sinistro.

Por mais um acaso do destino (ou não), Marcos ligou pra mim num domingo destes, depois de um bom tempo sem contato, a não ser via net. Conversamos trivialidades e ele se despediu, como sempre, me falando que se visse algum vinil de banda de metal da cogumelo dando sopa por aqui me avisasse que ele comprava. Já há algum tempo ele ajudava a organizar a Feira do Vinil, um evento muito bacana que cresce a cada edição. Fora isso, era um cara simples, na dele, discreto. Você provavelmente nunca ouviu falar de Marcos Oliveira Ferreira, mas saiba que ele existiu e era um cara muito gente fina que vai fazer falta, quer você saiba disso, quer não.

Marcos morreu semana passada. Neste momento o pessoal da Loja Plano B deve estar fazendo uma festa em sua homenagem lá na Lapa, no Rio de Janeiro. Eu estou lá, em espírito. Ele também, tenho certeza.

Descanse em paz, camarada.

+

AQUI
AQUI
AQUI

Russia, 19 de agosto


Há exatos 20 anos, no dia 19 de agosto de 1991, irrompia uma tentativa de golpe de estado na União Soviética, governada por Gorbachev e sua "perestroika". "“Superar a crise profunda, bem como a confrontação política, interétnica e civil, o caos e a anarquia que ameaçam as vidas e a segurança dos cidadãos soviéticos e a soberania, a integridade territorial, a liberdade e a independência da pátria”, era o objetivo declarado dos inssurectos. Não era nada disso, evidentemente. Tratava-se apenas de uma última tentativa desesperada da velha camarilha burocrática de continuar agarrada ao poder. Houve motivo, portanto, para comemoração entre todas as pessoas de bom senso pelo fracasso do movimento, pelo menos na época. Visto de hoje, nem tanto ...

O golpe foi uma oportunidade e tanto para que oportunistas como Boris Yeltsin usassem a legítima insatisfação popular em proveito próprio. E ele soube capitalizar o momento, infligindo uma derrota humilhante a Gorbachov, um incompetente bem intencionado (de boas intenções o inferno está cheio), e precipitando o fim da própria União Soviética, que virou Comunidade dos Estados Independentes. Foi uma tragédia. O patrimônio publico foi vendido a preço de banana, seguindo o receituário neo-liberal, o que gerou uma brutal concentração da riqueza e a proliferação de organizações mafiosas. As coisas foram de mal a pior até que o bebum, famoso por seus vexames em publico, entregasse o poder a um novo "czar", Vladimir Putin, que pôs ordem na casa - mas até certo ponto, e às custas de uma mal-disfarçada mão forte autoritária travestida de democracia.

Segue assim até hoje. Pobre Russia, parece mesmo condenada a viver sob o jugo de autocracias ...

Na foto acima, a derrubada da estátua de Felix Djerjinsky, fundador da temida KGB, em 1991.

Abaixo, um relato do neto do maior líder comunista brasileiro, Luiz Carlos Prestes, publicado hoje pela BBC Brasil:

A Rússia dos tempos atuais é melhor e oferece muito mais possibilidades que a extinta União Soviética, mas sofre com o declínio de uma série de serviços e com uma obsessão exagerada pelo dinheiro.

É essa a opinião do empresário Vladimir Prestes, neto do maior líder comunista da história brasileira, Luís Carlos Prestes, que ao longo de toda a vida foi leal ao regime soviético.

''Lógico que hoje em dia há mais possibilidades, o mercado é livre, as fronteiras são abertas e você pode ganhar dinheiro e construir sua vida de forma eficaz'', disse Prestes à BBC Brasil, de Moscou, em uma entrevista por telefone.

A liberdade de mercado e abertura das fronteiras é algo crucial para o trabalho de Vladimir Prestes, que ganha a vida exportando frutas secas brasileiras para a Rússia.

A contrapartida, acrescenta o neto do antigo dirigente do ''Partidão'', é que ''o nível de educação caiu muito, as pessoas com 17, 18 anos, não sabem a história de seu país. A cultura americana, com o cinema e o McDonald's, entrou na vida russa e não acho isso muito bom. O setor de agricultura, por exemplo, está destruído, e a agricultura soviética era uma das melhores do mundo''.

Filho do brasileiro Antonio João Prestes, Vladimir nasceu em 1978, quando o governo de Leonid Brezhnev chegava ao fim. Era um período identificado por muitos analistas como de saturação com um sistema econômico estagnado e de escassas liberdades políticas.

Prestes conta que as falhas e contradições do sistema soviético ficavam ainda mais claras para ele, devido aos privilégios que sua família possuía por conta do cargo de seu avô à frente do PC brasileiro e devido às viagens ao exterior realizadas regularmente por eles.

Lista de espera - ''Minha escola tinha 40 outras crianças e eu era o único que tinha TV a cores e máquina de lavar em casa. Quando eu ia ao Brasil, sempre comparava os super-mercados de lá com os da União Soviética. Enquanto nos brasileiros havia 15 marcas de presunto, nos soviéticos só havia dois. Enquanto nos brasileiros havia dez de tipos de queijo, nos soviéticos só se encontrava um, e muitas vezes nem isso'', recorda.

''A população não tinha acesso a várias coisas. Para comprar uma geladeira, era preciso se inscrever em uma lista e esperar até dois anos. Para comprar um carro novo, era preciso esperar cinco anos. Hoje em dia, é difícil imaginar uma coisa dessas'', diz, aos risos.

Com a ascensão de Mikhail Gorbachev ao comando da União Soviética, reformas até pouco tempo inimagináveis começaram a ser introduzidas no país. As políticas de glaznost (transparência) e perestroika (restruturação) ofereceram novas liberdades políticas e reformas econômicas.

''Quando Gorbachev chegou ao poder, o descontentamento estava no auge. Com a chegada da glaznost, começaram a sair várias matérias nos jornais sobre coisas que eram proibidas até poucos anos antes, como os crimes na época de Stálin, os revolucionários soviéticos que haviam sido apagados da história soviética. O povo então entendeu que não sabia a verdade e a visão de todos sobre o passado do país começou a mudar'', conta Prestes.

Rolling Stones e Pink Floyd - ''As pessoas sentiram que alguma coisa estava mudando quando começaram a ser exibidos na TV filmes americanos e quando bandas que até pouco tempo estavam proibidas, como Pink Floyd e Rolling Stones, passaram a tocar no rádio. Foi como respirar ar fresco''.

Mas o entusiasmo inicial foi aos poucos passando. ''Por volta de 1988, as pessoas já estavam começando a se desiludir. Gorbachev não tinha a coragem ou a possibilidade de finalizar as reformas que começou. A União Soviética era um império, onde a Rússia era a matriz. Nas várias repúblicas soviéticas, que não tinham nem um idioma e nem uma cultura em comum, os sentimentos nacionalistas começaram a crescer muito rapidamente.

Para piorar, o país também começou a enfrentar uma crise econômica e, para contê-la, adotou um sistema de racionamento, mediante o qual cada cidadão só tinha direito a uma quantidade determinada de certos produtos.

''Você tinha que apresentar um papelzinho no supermercado para receber um quilo de açúcar ou duas garrafas de vodca. As pessoas perceberam que isso não era normal, porque só haviam visto algo assim na Segunda Guerra Mundial. Além disso, o povo começou a querer mais, e Gorbachev não estava pronto para dar essa liberdade total ao povo.''

Aproveitando o enfraquecimento da liderança soviética, Boris Yeltsin surgiu com força na cena política soviética, insurgindo a população a resistir contra os golpistas linha-dura que tentaram derrubar um Gorbachev enfraquecido. ''Yeltsin falou: 'Vamos acabar com o Partido Comunista e abrir os mercados'. A popularidade de Gorbachev começou a despencar e a de Yeltsin a subir sem parar.''

Em 1991, Yeltsin anunciou a dissolução da União Soviética, marcando 70 anos do fim de um regime que pretendia durar vários séculos.

Aprovação familiar - Apesar da associação histórica do sobrenome Prestes com o comunismo soviético, o empresário conta que sua família ''foi 100% a favor do fim da União Soviética''.

Seu avô, que morreu em 1990, não chegou a ver a derrocada do império soviético, mas, segundo Vladimir Prestes, ficou profundamente desiludido ao ouvir os relatos sobre as contradições do regime.

''Quando íamos de férias ao Brasil, ficávamos na casa de meu avô e de sua mulher, dona Maria. Eles nos faziam um monte de perguntas sobre a situação do país. Eu contava que todo mundo só comia batatas, que faltavam vários produtos nos super-mercados. Eu era criança e não entendia que a verdade era um pouco dura para o meu avô, que gostava muito da União Soviética. Mas graças a Deus ele não viu o que aconteceu.''
Vladimir Prestes, que presenciou os acontecimentos, acredita que no saldo geral ''as coisas estão melhores do que antes'', mas fala com nostalgia sobre os valores o período soviético.

''Naquela época, as pessoas acreditavam em ideais. Achavam que era importante ser uma pessoa boa, educada e culta. Agora, as pessoas da minha idade só têm uma coisa na cabeça: o dinheiro''.

Entrevista para o Blog da Fanzinoteca Mutação

Law, o fanzineiro cyberpunk gaúcho, fez uma entrevista comigo no início do ano para o Blog da Fanzinoteca (uma espécie de biblioteca de fanzines) que ele dirige em Rio Grande, Rio Grande do Sul. O resultado você confere abaixo:

1 - Você consegue lembrar como foi seu primeiro contato com os fanzines? E o que te motivou a editar o Escarro Napalm?

Adelvan Kenobi: Foi através de uma loja especializada em rock que havia aqui nos anos 80. Eles tinham alguns fanzines à venda. Na verdade eu já fazia um fanzine sem saber – chamava de “apostila” !!! Eu estava começando a gostar (muito!) de rock e queria compartilhar minha paixão com as outras pessoas de alguma forma, então fiz minha própria “revistinha” artesanal. Foi um lance muito instintivo, nunca tinha ouvido falar a palavra “fanzine” em toda a minha vida – lembrando que eu morava no interior do menor estado do Brasil (Itabaiana/Sergipe) nos anos 80, então a circulação de informação era infinitamente menor do que hoje em dia. Minha formação “roqueira” foi toda moldada pelo Rock In Rio e pela Revista Bizz – que era “mainstrean” mas reverberava e, mais que isso, enaltecia o “underground”. Foi através da Bizz que li a resenha do disco “Descanse em paz” do Ratos de Porão, por exemplo, e fiquei curiosíssimo em conhecer aquilo. Posteriormente virei “metaleiro” (pero no mucho, sempre fui “traidor” de todos os movimentos) e leitor da Rock Brigade. Mas quem me iniciou pra valer na rede de fanzines, me fez ver que havia toda uma movimentação no Brasil e no mundo em torno daquela cultura, foi Sylvio “suburbano”, vocalista da Karne Krua, a mais antiga banda de punk rock ainda em atividade no nordeste. Ele viu uma cópia de meu fanzine (já não chamava mais de apostila) na tal loja, a “Distúrbios Sonoros”, e me mandou um pacotão cheio de zines, panfletos, flyers e manifestos, todos ligados ao anarquismo e ao movimento punk. Tive um início de contato com o “mundo exterior” via zines nesta época, mas somente mais tarde, já no início dos anos 90, através da coluna “Run Xerox”, da revista Animal, comecei a me envolver pra valer. Lembro que pessoas que ainda hoje eu considero meus amigos, como Oscar F. de Goiânia e Fellipe CDC, do DF, estavam na lista das primeiras pessoas para quem eu mandei a primeira edição de meu novo (na época) fanzine, o Escarro Napalm.

2 -Como era produzido seu zine - formato, conteúdo, etc ?

AK: O formato, na primeira versão, chamada apenas Napalm (tirei o nome da Bizz, era uma casa noturna dos anos 80 na qual as bandas de rock se apresentavam), era o mais conveniente: folha de papel ofício inteira. Só depois, com o “Escarro Napalm”, optei pelas folhas dobradas e grampeadas, que davam mais trabalho mas, por outro lado, davam à publicação um aspecto melhor, de “revista”, mesmo. O conteúdo do primeiro era um só: rock. Mesmo assim, nas ultimas edições (foram 8 ou 9, não lembro bem), acabei abrindo espaço para outros assuntos, como o cinema (via um amigo que se tornou colaborador e era fissurado na sétima arte) e a política, quando reproduzi os panfletos que me haviam sido enviados por Sylvio. No Escarro Napalm o conceito seguiu por aí: rock “underground” e “alternativo”, mas também o que me viesse à mente e fosse do meu interesse. O Blog segue a mesma linha – sou eu e meus temas de interesse, enfim. Nunca quis fazer os chamados “pro-zines”, mais profissionais e que se assemelhavam a revistas (alguns deles viraram revistas, como a Panacéia e a própria Rock Brigade), com sessões bem definidas. Eu curtia a anarquia, a diagramação zoada – muito embora curtisse muito alguns “pro-zines”, como o Papakapika, de Curitiba, e o Cabrunco, que eu considero o melhor fanzine já feito aqui, em Sergipe, e um dos melhores do Brasil.

3 - Como era aquela época de xerocar, enviar - e também receber - os zines pelo correio?

AK: Era muito trabalhoso mas também muito divertido. Me lembro que a primeira vez que fui xerocar o Escarro deixei lá na loja pra pegar depois. Lembro que a garota que me atendeu falou que uma outra funcionária perguntou se ela não tinha medo de eu não ir pegar as cópias, no que ela respondeu: “minha filha, você imagina o trabalho que esse rapaz teve pra datilografar (lembram disso?) e colar isso tudo aí, você acha mesmo que ele vai abandonar tudo aqui, sem mais nem menos?” Ah, a sabedoria popular, hehehehe. Eu tinha uma espécie de fetiche por carteiros, quando via algum rondando a minha rua já ficava ansioso, na expectativa de ter algum pacotinho recheado de pérolas do underground pra mim. Foi assim, através das fitas-demo e dos fanzines, que eu conheci bandas sensacionais, como a Gangrena Gasosa, do Rio, ou Os Cabeloduro e o DFC, do DF.

4 - Quais foram os zines, zineiros, quadrinhistas e ações no underground que mais entusiasmaram você durante a década de 1990?

AK: Vixe, muitos. Sei que vou esquecer alguns, mas não posso deixar de citar Fellipe CDC, me influenciou muito com seu caprichado “Protectors of noise” e seu entusiasmo eterno, que persiste até hoje – aquele é um guerreiro do underground, pode ter certeza ! Oscar F. ficou muito meu amigo, nos encontramos pessoalmente duas vezes na época, em Brasília e depois em São Paulo. Gostava muito do traço dele, era elegante e poético. De SC Henry jaepelt, sensacional, mais o Dietmar Hille, do “Distorção Alternativa” (creio que o zine melhor diagramado que eu conheci) e o Edson Luis do Abrigo Nuclear. Do Paraná, Marcel e Digão, do papakapika, e Andhie Yore, do “The Wild side”, de Maringá. Você, Law, e o Claudio MSM, curtia muito essa estética expressionista sombria de vocês – sempre tive meu lado “gótico”, ainda tenho, aliás. A galera do Rio, muito gente boa e batalhadora, especialmente o Alberto Monteiro, talentosíssimo, Marcos OF, do “Meleka Corrosiva”, que ficou muito meu amigo, o Panço e seu Gnomo da Tasmânia e Danúbio e o “Mensageiro” – aliás, foi pra ele que dei minha primeira entrevista, como vocalista da banda ETC, um projeto de grindcore pornográfico que eu tinha com Silvio da Karne Krua. De São Paulo, vários, mas os mais próximos eram o Hugo Leta, a Danieus e o Marcio Sno. Joacy Jamys, do Maranhão, talentosíssimo, inquieto, meu amigo – infelizmente nunca o conheci (nem conhecerei, já que ele faleceu) pessoalmente, mas nos falávamos bastante por telefone. E os caras de Fortaleza, especialmente o Weaver – até hoje acho que "Masturbação, Iogurte e Rock And Roll" foi o melhor fanzine que eu já li em toda a minha vida.

5 - O Blog conseguiu substituir os zines impressos, quer dizer, consegue manter o mesmo 'espírito'?

AK: Cara, o espírito acho que sim. Mas não é a mesma coisa, evidentemente. Há muito mais contato, sei que muito mais gente entra em contato com o blog, mas é mais frio. Pouca gente deixa comentários (e olha que eu facilito ao máximo o espaço para comentários), há pouco “feedback” direto. Além disso, acho a internet muito dispersiva – a pessoa ta lendo ali já pensando em outra coisa que quer acessar, é bizarro. Muita informação. Excesso de informação, mesmo. Por isso até evito colocar muitos links no blog, pra tentar fazer com que a pessoa simplesmente pare e leia, o que hoje em dia é muito difícil – e falo tudo isso de experiência própria, já que também sou internauta. Mea Culpa, também.

6 - Você acredita que ainda faz algum sentido manter os zines xerocados circulando?

AK: “o que a gente não inventa, não existe”, já dizia aquele mote, acho que era da Rede Globo. Porra, se existe quem queira fazer e quem curta ler, faz sentido, sim. “tudo vale a pena se a alma não é pequena”, dizia o poeta. Pra mim mesmo não dá mais, e já não deu bem antes de eu entrar em contato com a internet. Parei de fazer fanzines em 1995, por cansaço. Muita carta pra responder, chega!!!

7 - Como está a cena alternativa [underground e/ou independente] de arte e rock de Aracaju?

AK: BEM melhor do que era antes, porém ainda bem aquém de seu potencial. Há bandas sensacionais dos mais variados estilos, o que é ótimo, já que por muito tempo tudo circulou em torno do metal e do Hardcore. Há a The Baggios, blues rock, a Plástico Lunar, hard rock e psicodelia, que eu acho uma das melhores bandas de rock do Brasil hoje em dia, a Mamutes, mais pro hard rock "setentista", The Renegades of punk, que é punk vegano com vocal feminino, muito bom, Nucleador, crossover de primeira, Scarlet Peace, Doom Metal, Aliquid, Finitude e Tchandala, Heavy Metal, Sign Of Hate, Death metal na linha do Cannibal Corpse, Mystical Fire, Black metal. E há as bandas já “clássicas” que sobrevivem: Lacertae, com seu experimentalismo “com cheiro de capim molhado”, Snooze, que é uma das grandes referências “indie” do Brasil, e a Karne Krua, incansável. Quem quiser acompanhar esta cena, é só ouvir o meu programa e dar uma olhada no blog de vez em quando. Ta tudo lá.

8 - E a experiência de radialista com o Programa de Rock, como aconteceu e o que rola na programação?

AK: Aconteceu de repente, e foi mais um sonho realizado: sempre tive essa vontade de ter meu próprio programa de radio, até porque sempre tive esse instinto de compartilhar meus interesses, divulgar as coisas que eu gostava. Fomos chamados, eu e Fabinho da banda Snooze, pelo Diretor da radio, que faz parte da Fundação Aperipê, a versão sergipana da Fundação padre Anchieta, que gere a TV cultura de São Paulo – só pra você se situar. É uma emissora publica, gerida e mantida pelo estado, portanto livre de amarras comerciais, o que é ótimo! Aliás, o programa só poderia existir numa radio como a aperipê mesmo, pois comercialmente é inviável, já que toco de tudo, do Extreme Noise Terror ao Cocteu Twins, passando pelos alternativos daqui, do Brasil e do mundo. Me divirto muito fazendo o Programa de Rock. É diversão levada a sério – como o eram os fanzines, aliás.

9 - E o que você tem descoberto ultimamente... blogs, bandas, arte...

AK: De arte, descobri recentemente que nosso amigo Oscar F. é, atualmente, um artista plástico consagrado em Goiânia, o que eu acho absolutamente maravilhoso !!! “We do not hate it when our friends become successful” – falo por mim e por você, Law, tomei essa liberdade. Nunca vi nenhuma tela dele ao vivo, só reproduções, mas boto fé que deve ser do caralho. Fora isso, sempre coloco reproduções de artistas plásticos que gosto, especialmente os sergipanos, pra divulgar, no meu blog. Curto artes plásticas, sempre frequentei “vernissages”, mas sempre ao lado dos roqueiros vândalos que vão lá só pra beber, hehehe. Tenho descoberto séries de TV – taí um gênero que deu um salto, de uns 15 anos pra cá. Recomendo A Sete Palmos, Roma, Spartacus, True Blood, Familia Soprano... Lost acompanhei toda, mas fiquei extremamente decepcionado com o final. Foi patético. Infelizmente nas séries o aspecto artístico quase sempre sofre interferências do lado comercial, o que prejudica muito algumas produções. Já bandas, caralho, são muitas … vou citar só duas: The Baggios e Plástico Lunar, as duas melhores de Sergipe...