domingo, 27 de maio de 2012

O Homem do Castelo Alto

HAVIA uma semana que Mr. Childan aguardava ansiosamente o carteiro. Mas a valiosa encomenda proveniente dos Estados das Montanhas Rochosas ainda não chegara. Quando abriu a loja na sexta-feira cedo e viu apenas cartas na caixa do correio pensou logo: vou ter um freguês furioso.
Tirou uma xícara de chá instantâneo da máquina automática na parede, apanhou uma vassoura e pôs-se a varrer; em pouco tempo a frente da American Artistic Handcrafts Inc. estava pronta para o dia, limpinha, com a caixa cheia de troco, um vaso de margaridas frescas e o rádio tocando música de fundo. Lá fora na calçada passavam homens de negócios a caminho de seus escritórios em Montgomery Street. Ao longe, um bonde; Childan parou para observá-lo com prazer. Mulheres com seus longos e coloridos vestidos de seda... observou-as também. Então o telefone tocou. Voltou-se para atender.
― Sim ― disse uma voz conhecida, quando atendeu.
O coração de Childan ficou gelado.
― Aqui fala Mr. Tagomi. O meu cartaz de alistamento da Guerra de Secessão já chegou, senhor? Por favor, lembre-se; foi-me prometido para a semana passada.
A voz era exigente, breve, apenas polida, apenas mantendo a etiqueta.
― Não lhe dei um depósito, Mr. Childan, com aquela exigência? É para presente, sabe? Já tinha explicado. Um cliente.
― Pesquisas prolongadas ― começou Childan ― feitas às minhas próprias custas, Mr. Tagomi, referentes à encomenda prometida que, como o senhor sabe, origina-se fora desta região e é portanto...
Mas Tagomi interrompeu: ― Então não chegou.
― Não, Mr, Tagomi. Uma pausa glacial.
― Não posso mais esperar ― disse Tagomi.
― Sim, senhor.
Childan olhou com tristeza através da vitrine da loja, o dia quente brilhante e os edifícios comerciais de São Francisco.
― Um substituto, então. Que recomenda, Mr. Childan?
Tagomi propositalmente pronunciou mal o nome; era um insulto dentro da etiqueta que fez arderem as orelhas de Childan. Estava numa falsa posição, sua situação causava-lhe uma terrível mortificação. As aspirações, os medos e os tormentos de Robert Childan vieram à tona e ficaram expostos, inundando-o, paralisando sua língua. Gaguejou, com a mão crispada no telefone. O ar de sua loja cheirava a margaridas; a música continuava a tocar, mas ele sentiu como se estivesse mergulhando em algum mar distante.
― Bem... ― conseguiu murmurar. ― Batedeira de manteiga. Máquina de fazer sorvete de 1900.
Sua mente recusava-se a pensar. Como quando a gente se esquece; como quando a gente se engana. Ele tinha trinta e oito anos, recordava os dias anteriores à guerra, os outros tempos. Franklin D. Roosevelt e a Feira Mundial; o antigo mundo, muito melhor.
― Talvez pudesse levar vários artigos interessantes ao seu escritório? ― sussurrou.
Foi marcado um encontro para as duas horas. Preciso fechar a loja, pensou, enquanto desligava. Não havia escolha. Era preciso manter a boa-vontade desse gênero de clientes; os negócios dependiam deles.
Ali de pé, ainda trêmulo, percebeu que alguém ― um casal ― entrara na loja. Jovens, elegantes, bem vestidos. De aspecto agradável. Acalmou-se e caminhou, sem pressa, na direção deles, sorrindo. Estavam debruçados sobre o mostruário no balcão, e tinham escolhido um lindíssimo cinzeiro. Casados, adivinhou. Moram na Cidade das Neblinas Sinuosas, os novos apartamentos exclusivos no Skyline, com vista para Belmont.
― Alô ― disse, e sentiu-se melhor. Sorriram-lhe sem nenhuma superioridade, apenas com afabilidade. Seu mostruário ― que era realmente o que havia de melhor no gênero ali na Costa ― tinha impressionado; percebeu isso e ficou agradecido.
Eles compreenderam.
― Peças de fato excelentes, senhor ― disse o jovem.
Childan inclinou-se espontaneamente.
Os olhos deles, brilhantes não só pela ligação humana, mas ainda pelo prazer comum que sentiam ao ver os objetos de arte que ele vendia, por seus gostos e satisfações mútuos, fixaram-se nele; agradeciam-lhe por ter coisas como estas, que eles podiam ver, tocar, examinar, manusear talvez, até mesmo sem comprar. Sim, pensou, sabem em que espécie de loja estão; aqui não há bugigangas para turista, placas de sequóia onde se lia MUIR WOODS, MARIN COUNTY, P.S.A., coisinhas, aneizinhos ou cartões postais com a vista da Ponte. Especialmente os olhos da moça, grandes, escuros. Como seria fácil, pensou Childan, me apaixonar por uma garota assim. Que trágica seria então minha vida; como se já não estivesse bastante ruim. Esse cabelo preto na moda, as unhas pintadas, as orelhas furadas com os longos brincos de metal feitos a mão.
― Seus brincos ― murmurou. ― Comprados aqui, talvez?
― Não ― disse ela. ― Em minha terra.
Childan balançou a cabeça. Nada de arte americana contemporânea; apenas o passado poderia estar representado ali, numa loja como a dele.
― Vão ficar muito tempo aqui? ― perguntou. ― Na nossa São Francisco?
― Vou ficar aqui por tempo indeterminado ― disse o homem. ― Trabalho na Comissão de Inquérito para Planejamento do Nível de Vida das Áreas Sinistradas..
Seu rosto demonstrou orgulho. Não era militar. Não era um daqueles recrutas provincianos, mascadores de chicletes, com seus rostos de camponeses gananciosos, perambulando por Market Street, boquiabertos diante dos cabarés, dos filmes sexy, dos tiro-ao-alvo, das boates baratas com fotos de louras de meia-idade sustentando as tetas entre dedos enrugados, com um riso debochado nos lábios... os antros de jazz, que formavam a maior parte da baixa São Francisco, frágeis barracos de lata e de tábuas que surgiram das ruínas mesmo antes de cair a
última bomba. Não ― aquele jovem era da elite. Culto, educado, mais ainda que Mr. Tagomi, que afinal era um alto funcionário, com o posto de Adido Comercial para a Costa do Pacífico. Tagomi era um homem velho. Sua formação vinha do tempo do Gabinete de Guerra.
― Queriam objetos de arte popular tradicional americana para presente? ― perguntou Childan. ― Ou talvez para decorar seu novo apartamento aqui? Se fosse esta última hipótese... ― seu coração apressou-se.
― Acertou ― disse a moça. ― Estamos começando a decorá-lo. Estamos ainda um pouco indecisos. Acha que poderia ajudar-nos?
― Poderia passar em seu apartamento, sim ― disse Childan. ― Levarei várias malas com material e lá, no ambiente, posso sugerir coisas que lhes convenham. Esta é, naturalmente, a nossa especialidade.
Baixou os olhos para encobrir suas esperanças. Poderia ser um negócio de milhares de dólares.
― Estou para receber uma mesa da Nova Inglaterra, toda de madeira de encaixe, não tem um prego. De enorme beleza e valor. E um espelho da época da guerra de 1812. E também a arte aborígene: um grupo de tapetes de pêlo de cabra com tintura vegetal.
― Por mim ― disse o homem ― prefiro a arte das cidades.
― Pois não ― disse Childan ansiosamente. ― Ouça, senhor. Tenho um mural do período dos correios W. P. A., original, feito de madeira, em quatro partes, retratando Horace Greeley. Peça de colecionador, de valor inestimável.
― Ah! ― disse o homem, com os olhos escuros brilhando.
― E uma vitrola de 1920, transformada em bar.
― Ah!
― E, senhor, ouça: um retrato emoldurado e autografado de Jean Harlow.
O homem ficou com os olhos esbugalhados.
― Vamos marcar um encontro? ― perguntou Childan, aproveitando o momento psicológico certo.
Tirou do bolso interno do casaco a caneta e a caderneta.
― Anotarei seu nome e endereço, senhor e senhora. Mais tarde, quando o casal saiu da loja, Childan ficou de pé, mãos nas costas, olhando a rua. Feliz. Se todos os dias fossem assim... Mas era mais do que os negócios, era o sucesso de sua loja. Era a oportunidade de conhecer um jovem casal japonês socialmente, na base de uma aceitação dele como homem mais do que como um yank ou, na melhor das hipóteses, como um comerciante de objetos artísticos. Sim, esses jovens da geração em ascensão, que não se lembravam dos dias de antes da guerra, nem da própria guerra ― eram a esperança do mundo. Diferença de lugar nada significava para eles.
Isso acabará, pensou Childan. Algum dia. A própria idéia de lugar. Não mais governados e governantes, mas gente.
E contudo tremia de medo ao se imaginar batendo à porta deles. Examinou suas anotações. Os Kasouras. Se fosse recebido, sem dúvida lhe ofereceriam chá. Faria direito as coisas? Saberia como agir e falar no momento exato? Ou iria se desgraçar, como um idiota, com alguma gafe terrível?
O nome dela era Betty. Que compreensão em seu rosto, pensou. Os olhos delicados, sensíveis. Certamente, mesmo naquele pouco tempo na loja, percebera suas esperanças e derrotas.
Suas esperanças ― de repente ficou tonto. Que aspirações eram essas, beirando a loucura se não o suicídio? Mas não eram desconhecidas as relações entre japoneses e yanks, embora geralmente fossem entre um japonês e uma yank. Mas... estremeceu à idéia. E ela era casada. Afastou da cabeça esse desfile de pensamentos involuntários e pôs-se a abrir a correspondência matinal com toda atenção.
Suas mãos, descobriu, ainda estavam tremendo. E foi então que se lembrou do encontro com Mr. Tagomi às duas; diante da idéia, suas mãos deixaram de tremer e seu nervosismo transformou-se em decisão. Preciso encontrar alguma coisa aceitável, disse a si próprio. Onde? E como? O quê? Um telefonema. Fontes. Habilidade comercial. Desenterrar um Ford 1929 totalmente restaurado, com capota de tecido preto e tudo. Uma grande jogada para manter sempre a clientela.
Avião trimotor do correio aéreo, modelo original, encontrado num celeiro em Alabama, etc. Apresentar a cabeça mumificada de Mr. B. Bill, incluindo os cabelos brancos esvoaçantes; sensacional objeto americano. Firmar minha reputação nos mais altos círculos de connoisseurs do Pacífico, incluindo o arquipélago nipônico. Para inspirar-se, acendeu um cigarro de niarijuana da excelente marca Land-O-Smiles.

...


1

por Phillip K. Dick

Tradução de SYLVIA ESCOREL

Título original: The Man in the High Castle

SOBRE O AUTOR:

Três pontos dão a medida do talento de Philip K. Dick. O primeiro é um certo número de qualidades essenciais, como: capacidade de urdir uma intriga e desdobrá-la de maneira complexa, sem afetar a coesão da estrutura; faculdade de construir um ambiente; criação de um diálogo convincente e sempre pertinente; imaginação excepcionalmente desenvolvida. O segundo é a maneira quase alucinatória de dar detalhes referentes a qualquer mundo não real que ele resolvesse criar. O terceiro é a capacidade de retornar, tantas vezes quantas julgasse necessário, a um tema já abordado num livro anterior, que ele sentia não ter esgotado - e o resultado invariavelmente mostrava que tinha razão.

Seus principais temas cíclicos eram: o mundo vazio, ou seja, uma sociedade em que as pessoas importantes eram reduzidas a um número ínfimo; o exercício do poder, cujo conceito subjacente parecia ser a faculdade de agarrar a oportunidade no vôo, graças à determinação e à malícia; a ilusão substituindo a realidade, disseminada, aliás, em toda a sua obra; a alucinação provocada pela ingestão de drogas, criando mundos imaginários sem saída; a maleabilidade do universo exterior ― o desejo do homem de aceitar não uma "realidade" hipotética, no sentido kantiano do das Ding an sich, mas uma construção elaborada pelo efeito de idéias preconcebidas implantadas no seu cérebro; e, finalmente, o tema desenvolvido em The Man in the High Castle: nossa existência e o universo inteiro são manifestações de um substrato flutuante, uma cera virgem onde os humanos vão imprimir, por suas decisões e percepções, uma forma dotada de sentido só para eles.

Apaixonado por música, Dick empregou-se numa loja de discos e produziu um programa clássico na estação de rádio KSMO, de San Mateo, Califórnia. Estudou na Universidade daquele Estado, mas não terminou o curso porque "havia gente demais fumando e lendo o Daily Cal, o que não me permitia ouvir os professores". Começou a ler f.c. aos 12 anos em conseqüência de um engano: comprou Stirring Science Fiction em vez de Popular Science. Lia também Joyce, Kafka, Steinbeck, Proust, Dos Passos. Casou-se com Anne, que conheceu na loja de discos, comprou uma casa, começou a escrever e a vender f.c, largou o emprego na loja, continuou ouvindo Monteverdi e Buxtehude mas passava a maior parte do tempo lendo Ibsen e escrevendo. Adorava gatos.

(*) Philip Kendred Dick (1928-1982) era um alucinado. Daqueles típicos hippies drogados dos anos 60. Enxergava raios de luz rosa. Acreditava em reencarnações e em conspirações globais.

Acontece que o escritor, nascido em Chicago, mas californiano de formação, diferenciava-se da maioria dos paranóicos pelo teor da sua obra. Dick escreveu 36 romances  - alguns em quinze dias, durante delírios turbinados por anfetaminas - mais cinco historietas curtas, produzidas no início de sua carreira, entre 1952 e 1956. Tecnicamente, sua ficção-científica não se aproximava da classe de um Arthur C. Clarke, estava mais para um estilo bem folhetinesco. Mas Dick sobreviveu ao tempo e superou sua geração graças aos temas abordados em seus livros. Há quarenta anos, o escritor discutia ética e experiências genéticas, liberdades individuais e problemas de identidade, controle de mentes e demais interferências humanas na ordem natural das coisas. Era um visionário.

Muitas das experiências reais de Dick (foi abandonado pelo pai aos cinco anos de idade, assistiu à morte prematura das suas irmãs gêmeas recém-nascidas, além de casamentos desfeitos e problemas com drogas) serviram para construir uma personalidade pessimista. Em seus livros, o futuro sempre seria pior do que o tempo presente. A Los Angeles de Blade runner - O caçador de andróides (Blade runner, de Ridley Scott, 1982), fria, suja, escura e superpopulosa, era fiel ao pensamento do autor. O quarto imundo do cirurgião de olhos, exibido em Minority report, filmado por Steven Spilberg, provavelmente foi imaginado assim por Dick.

Nos livros, fica evidente o descrédito no governo, nas autoridades. Seu primeiro romance, Solar Lottery (1955), exibe um mundo comandado por lógica e números: os governantes mundiais são escolhidos numa sofisticada loteria. Por outro lado, há também a porção metafísica. No fim da carreira, Dick produziu textos autobiográficos fantasiosos, descreveu experiências com alienígenas e combates entre o Bem e o Mal, baseados em preceitos religiosos.

A consolidação veio somente depois da sua morte. Por mais que o trocadilho seja perigosíssimo, seus seguidores ostentam o orgulho de se denominarem dickheads. Veneram uma personagem folclórica, suspeita de ter sofrido de esquizofrenia, mas capaz de imaginar coisas que hoje se tornaram reais, como a clonagem e os Big Brothers da vida.

Adaptadas para o cinema, suas obras tornaram-se cult-movies. Os dois exemplos mais célebres, Blade runner e O vingador do futuro (Total recall, 1990), serviram para impulsionar as carreiras dos diretores Ridley Scott e Paul Verhoeven. Mas, se o reconhecimento é merecido, a fama já causa alguns problemas: com o tempo, adquirir o direito de seus textos tornou-se um investimento e tanto, quantia suficiente para inviabilizar inúmeros projetos cinematográficos.

* por Marcelo Hessel, a partir deste ponto.

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