segunda-feira, 27 de março de 2023

Radio gaga


Minha formação musical “primordial”, digamos assim, veio basicamente do rádio e das fitas de musica “brega” que meu irmão, caminhoneiro, gravava em
Gud Gud, de Itabaiana, uma loja que funcionava num esquema de pirataria pré-internet: tinha um grande acervo de LPs e lá você podia passar horas selecionando faixas para coletâneas em fitas k7. Vem daí que curto, até hoje, o “brega” da década de 1970, principalmente – Marcio Greick, Fernando Mendes, Odair José – e as baladas românticas dos artistas brasileiros que se travestiam de “gringos” – quase chorei quando o Mopho, num show no Che, tocou um cover de “We say goodbye”, de “Dave McLean”.

 

Sempre curto, também, quando rola algum hit de FM da década de 1980. Me remete a uma época muito boa, de descoberta do mundo – nasci em 1971. Tipo “Captain of the heart”, do Double(quem?). Era o que eu ouvia antes de virar “roqueiro”: radio FM. E AM por tabela, via meu pai.

 

Porque virei “roqueiro” praticamente parei de ouvir radio – voluntariamente, no caso – e perdi de curtir quando tocava coisas que hoje curto, como Teas for fears e Pet Shop Boys. Passei a levar uma “vida imbecil, zanzando atrás do que é bom” e controlando o que vai no meu som – acredite, John, do pato Fu, dedicou essa musica pra mim uma vez, num show. Tínhamos contato por carta, quando eu era fanzineiro.

 

Em todo caso, tocava rock no rádio na década de 1980. Muito, até. Eu diria inclusive que comecei a virar “roqueiro” ouvindo U2, Dire Straits, Ira!, Camisa de Vênus, Replicantes e Hojerizah na Atalaia FM, principalmente. Mas em 1986 eu ouvi os acordes iniciais de “Caught somewhere in time” do iron Maiden – não no radio, no caso, numa vitrola mesmo, direto dos sulcos de um LP  – e fudeu: virei “metaleiro”. E, pelo menos em Aracaju, metal não tocava no radio.

 

Assinei a revista Rock Brigade, especializada em Heavy metal, mas lia também a Bizz, que era mais “pop” e chegava em Itabaiana, na Livraria Cunha – que na verdade era uma papelaria, mas funcionava também como banca de revistas. Sempre fui “eclético”. E graças a um programa de rádio da mesma Atalaia FM produzido de forma independente por Antonio Passos e Roberto Aquino, donos da primeira loja especializada em rock e música independente do estado, a Disturbios Sonoros, pude finalmente ampliar significativamente meus horizontes musicais ouvindo coisas que eu só conhecia de ler a respeito na clássica publicação da Editora Abril. Tipo Fellini, Harry, e clássicos como Mutantes e Casa das máquinas – da primeira a primeira que ouvi, no programa de Passos e Roberto, foi “O meu refrigerador não funciona”, e da segunda foi “vou morar no ar”. Lembro bem porque sempre gravava tudo em fitas k7 para ouvir depois, “n” vezes. Pena que não guardei essas fitas, hoje em dia seriam relíquias. Detalhe: acho que cheguei a ligar para a radio umas duas ou três vezes pra reclamar porque eles não tocavam Iron Maiden ...

 

Muito por conta dessa minha relação de afeto pelo Rock Revolution – era o nome do programa – sempre tive vontade de fazer também o meu. Aconteceu, em parte, na década de 1990, lá em Itabaiana mesmo. Eu já morava em Aracaju, mas despencava pra lá a cada 15 dias com a mala do carro cheia de LPs para dar minha contribuição ao Guilhotina, o programa que um amigo, Ademir Pinto, tinha na Itabaiana FM. Ele era operador e havia sugerido ao dono da radio ocupar um espaço ocioso aos sábados, depois da Voz do Brasil, aproveitando os acervos de discos dos amigos, dentre eles eu.

 

Não tenho idéia até hoje se tivemos alguma audiência – de vez em quando o telefone tocava e nós ficávamos excitados achando que era algum ouvinte mas era sempre sobre algum assunto que não tinha nada a ver com o que estávamos tocando – mas me diverti fazendo. Também porque Ademir já queria ser demitido mesmo então liberou para que os produtores chutassem o pau da barraca: uma vez ele me ligou avisando que o programa ia rolar mas seria interrompido a qualquer momento por chamadas direto de um povoado onde um poço artesiano ia ser inaugurado pelo vice-governador do estado, que não por acaso era também o proprietário da radio. Coloquei no ar, então, um especial “grindcore”, com Napalm Death, Carcass, Extreme Noise Terror e afins. O vice governador ouviu, mas não o demitiu, apenas reclamou porque a gente não tocava Raul Seixas.    

 

Quem tinha audiência cativa era o programa “concorrente”, o Sabotage, de Adelardinho Jr., que ia ao ar no mesmo horário por outra emissora, a Princesa FM. Muito por conta do carisma e de algumas grandes sacadas “sem noção” de seu produtor/apresentador: pra que se tenha uma idéia, uma vez ele pegou em mercadorias o valor de dois patrocínios que uma sorveteria e uma funerária deviam e sorteou entre os ouvintes um caixão de defuntos cheio de picolés. O sucesso foi tanto que a promoção se tornou anual, com direito ao caixão ser conduzido em cortejo até a casa do ganhador – em pelo menos uma ocasião com o próprio dentro, para o horror de sua mãe, desavisada, que quase morreu de enfarto.

 

Já no inicio do século XXI o rádio seguia com algum prestigio, apesar da crescente concorrência da internet, e um grupo de amigos conseguiu o feito de colocar no ar, também pela Atalaia FM, um novo programa dedicado ao rock “indepentente”, o playground  – no caso mais “indie” mesmo, refletindo o gosto musical dos mancebos, Rafael Jr, baterista da Snooze, Patrick Tor4, Bruno Aragão e Augusto. Muito Weezer, Sonic Youth, Flaming Lips e afins, inclusive com faixas raras e exclusivas baixadas da internet, a grande novidade da época.

 

Toda essa história de guerrilha sonora escavando trincheiras nas ondas do radio converge, na segunda metade da primeira década do novo século, para uma novíssima programação da emissora pública do estado, a Aperipê FM, que caiu nas mãos, graças às voltas que o mundo dá também na política, do DJ Patrick Tor4, o mesmo da trupe que fazia o playground. Foram tempos gloriosos, onde taxistas desavisados poderiam se deparar, ao mudar de estação, com uma programação totalmente inesperada dividida em segmentos antológicos como o Clube do jazz, Império periférico – dedicado ao rap -, Encruzilhada – que tocava blues -,Vanguarda e o programa de rock. Os dois últimos eram os mais radicais. O primeiro, produzido e apresentado por Alessandro “Cabelo”, tocava musica de ... vanguarda. Mas de vanguarda MESMO, indo a extremos tais que passou a adotar o aviso “seu rádio não está com defeito, você está ouvindo o Vanguarda”, depois que um operador da radio achou que o sinal estava fora do ar.

 

Já o programa de rock foi concebido e apresentado, nos seus dois primeiros anos no ar, por Fabio “Snoozer” e por este que vos digita, que o levou até o final, 9 anos depois. Também flertava com extremismos – de Daminhão Experiença e Incinerated Clitorial region, passando por Cocteau Twins, Motorhead, Pixies e muito rock sergipano, cujos integrantes das bandas eram também, rotineiramente, entrevistados. Durou até 2016, numa trajetória da qual muito me orgulho e que teve alguns pontos culminantes, como o lançamento ao vivo, com a banda tocando direto dos estúdios, do então novo LP da karne Krua, seminal banda punk local. Foi meu momento “peel sessions”.

 

Há programas de rádio antológicos dos quais sempre ouvi falar mas nunca tinha ouvido, até o advento da internet. É o caso do “Garagem”, produzido e apresentado pelos Andrés Barcinski e Forastieri com Alvaro Pereira Jr. e Paulo Cesar Martin desde a década de 1990. Sobrevive até hoje em formatos variados, atualmente como podcast sob o nome ABFP – Amigos, Barcinski, Forasta e Paulão. É dos meus favoritos.

 

Pela internet pude acompanhar também os últimos anos da carreira de Kid Vinil, sempre uma grande referência, como radialista. E também a antológica Ipanema FM, de Porto Alegre, que tocava “marquee moon” do Television e “Pau no seu cu menina” dos Devotos de Nossa Senhora Aparecida na programação normal, no meio da tarde!

 

Sigo ouvindo radio até hoje. As “de fora”, como a Kiss de SP e a Saudade FM de Santos, pela internet. Mas principalmente na madrugada, quando a programação costuma ser mais musical e menos pasteurizada, em emissoras especificas que tocam musica que não ofende os ouvidos, como a Fan, Nova Brasil e a Transamérica FM, que vieram salvar minhas noites insones da falta que me faziam as finadas Atalaia e Liberdade FM.


A.


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segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Distopia: eu não queria uma pra viver ...

Comecei a me interessar por distopias no início da década de 1980, quando só se falava da data fatídica que se aproximava: 1984. Fui atrás, claro, do livro, escrito por George Orwell em 1948(para o título ele apenas trocou os números das datas) e foi amor à primeira leitura.

 

“1984” é objeto de controvérsias até hoje, por ser claramente inspirado na ditadura de Stalin  e ter, obviamente, servido como poderosa arma de propaganda anticomunista durante todo o período da guerra fria. O que nem todo mundo sabe, no entanto, é que ele também é diretamente inspirado em outro romance distópico mais antigo, “Nós”, do russo Ievgeny Zamiátin.

 

O livro de Zamiátin foi escrito entre 1920 e 1921, antes, portanto, da ascensão do “grande irmão” propriamente dito – Stalin só tomou as rédeas do destino dos soviéticos após a morte de Lenin, em 1924 -, o que torna ainda mais impressionante seu dom premonitório.  A história é narrada em primeira pessoa por um dos cientistas encarregados da construção do “Integral”, uma nave espacial destinada a espalhar a ideologia do Estado Unificado, no qual vive, pelo cosmos. Uma sociedade guiada pelo “Benfeitor” a partir de regras rígidas de conduta matematicamente programadas onde a abolição da individualidade, necessária ao perfeito funcionamento das engrenagens, é garantida por artifícios como a adoção de números no lugar dos nomes próprios e a construção de casas de vidro transparente. D-503, o protagonista, passa a questionar o sistema a partir de seu envolvimento amoroso com uma misteriosa mulher que faz parte de uma organização subversiva, obviamente clandestina. Como se vê, as similaridades com a obra máxima de Orwell são muitas, mas isso não tira do inglês o mérito de ter pensado em conceitos originais e brilhantes, como o “duplipensar”(2+2 pode ser igual a 5, caso o partido queira que assim seja) e a “novalingua”, resultado de uma simplificação radical e progressiva da linguagem destinada a ajudar na supressão do pensamento crítico e criativo – pensou no twitter e nos memes da internet de hoje em dia? Pensou certo.

 

Se “1984” foi inspirado nos regimes totalitários, notadamente o soviético, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, é basicamente uma crítica à alienação pelo consumo – inclusive de drogas entorpecentes – típica dos regimes capitalistas. Nele Ford(ele mesmo, Henry) é tratado como uma espécie de Deus, ou messias, por ser o fundador das bases nas quais a sociedade é estruturada, a partir de linhas de produção.

 

Já “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, que forma uma espécie de “santíssima trindade distópica” com os livros de Orwell e Huxley, é uma declaração de amor à literatura e seu poder transformador, criador de espíritos livres. Foi adaptado com maestria para o cinema por François Truffaut em 1966.

 

De Philip K. Dick já li “Andróides sonham com ovelhas elétricas?”, que foi adaptado para o cinema como “Blade Runner”, e “O Homem do castelo alto”, que recentemente virou uma série da Amazon prime. Como já se tornou praxe com as obras de Dick, as adaptações têm pouco a ver com os originais, muito embora a do “Castelo Alto” esteja entre as mais fiéis, limitando-se basicamente a fazer algumas adaptações e criar novos personagens, além de expandir consideravelmente o universo alternativo imaginado pelo escritor, no qual os países do eixo venceram a segunda guerra mundial e ocuparam os Estados Unidos. Há um ponto em comum entre os dois livros: à medida que vão se aproximando do final a narrativa vai se tornando cada vez mais hermética ao explorar uma das obsessões do autor, a confusão entre fantasia e realidade. “O Homem do castelo alto” venceu o prestigiado prêmio Hugo no ano de 1963.

 

Outra obra aclamada e vencedora do Hugo mas pouco conhecida por aqui, “Um Cântico para Leibowitz”, do norte-americano Walter M. Miller Jr, foi resgatada recentemente do limbo pela editora Aleph. Publicada originalmente em 1959, no auge da guerra-fria, nos transporta para um futuro pós-apocalíptico onde a humanidade passa a rejeitar o progresso científico que supostamente a levou à autodestruição. Rejeição que a faz regredir a uma nova idade das trevas, mas que não impede o renascimento – porque o novo sempre vem, já dizia Belchior. O renascimento, no entanto, nos conduz, novamente, à beira da aniquilação, num círculo vicioso ilustrativo do ditame segundo o qual aqueles que falham em aprender com a história estão condenados a repeti-la.

 

“Um Cântico para Leibowitz” entrou numa lista dos dez melhores livros do gênero que a mundialmente prestigiada revista Time publicou em 2010. Graças, em grande parte, à originalidade de sua trama, que tem início seiscentos anos depois do chamado Dilúvio de Fogo, no qual a maior parte da população mundial foi dizimada. São, na verdade, três histórias distintas que giram em torno de uma abadia na qual monges se dedicam a preservar a “memorabília”, o que restou da devastação nuclear e da “simplificação”, a caça às bruxas que veio a seguir. “Bruxas” encarnadas, no caso, nos doutores detentores do saber, como professores e cientistas. A ordem que ocupa a abadia é, por sinal, consagrada a um destes “doutores”, um tal Leibowitz, que se tornou um mártir – e santo da igreja católica! – ao dar sua vida pela preservação do conhecimento.

 

Foi o único livro publicado em vida por Walter M. Miller Jr. Reflete sua visão de mundo, marcada por um forte componente religioso – converteu-se ao catolicismo em 1947, aos 25 anos de idade, depois de uma passagem traumática pelo exército durante a Segunda guerra mundial na qual esteve presente em cerca de 53 bombardeios sobre a Itália e os Bálcãs. Num desses ataques foi destruído o Mosteiro Beneditino de Monte Cassino, o mais antigo do mundo ocidental.


Recentemente uma autora até então desconhecida por mim, a canadense Margareth Atwood, ganhou notoriedade ao ter um de seus romances distópicos, “O Conto da Aia”, adaptado para uma série de TV de grande sucesso. Fui conferir e virei fã! Trata-se de um libelo feminista e antifascista que se passa em Gilead, uma país imaginário que é, na verdade, uma parte dos Estados Unidos dominada por um governo cristão fundamentalista e totalitário que usou uma crise de fertilidade provocado por um colapso climático para impor uma interpretação da Bilblia relativamente semelhante à que os Talebans fazem do Alcorão.

 

Em Giléad as mulheres férteis têm que se tornar, obrigatoriamente, “aias”, numa nova ordem em que não são mais preceptoras encarregadas da educação doméstica das crianças de famílias nobres ou ricas, mas verdadeiras escravas sexuais a serviço não do prazer, mas da reprodução. Para isso são obrigadas a participar, no período fértil, de um ritual de estupro em que são colocadas no colo das esposas estéreis dos “comandantes” para serem inseminadas por estes. São cenas fortes, que uma amiga, em particular, me disse que não conseguiu assistir – também porque lhe pareceu, a meu ver acertadamente, que aquela distopia estava especial e perturbadoramente próxima de nossa realidade, A adaptação do livro se limita à primeira temporada, mas a série segue adiante, desdobrando a trama de modo bastante satisfatório.

 

O que pouca gente sabe – eu, pelo menos, não sabia – é que “The Handmaids Tale” já havia sido adaptado anteriormente para o cinema num filme de 1990 dirigido pelo alemão Volker Schlöndorff, ganhador de uma Palma de Ouro e um Oscar de filme estrangeiro por sua adaptação do romance O Tambor, do também alemão Gunter Grass. Apesar de contar com uma trilha sonora assinada por Ryuichi Sakamoto e de ter no elenco nomes como os de Robert Duvall e Faye Dunaway, fazendo o casal encarregado de inseminar a personagem principal, rebatizada Offred  (no filme ela se chama Kate, na série virou June e no livro a sua identidade pregressa não existe), fracassou nas bilheterias, em parte pelo tom equivocado, excessivamente erotizado, a meu ver. No Brasil atende por “A Decadência de uma Espécie” e está disponível em DVD como parte da sensacional coleção de películas Sci-fi da Versátil Home vídeo. Recomendo, no mínimo como curiosidade.

 

Meu interesse pela obra de Atwood, como era de se esperar, se estendeu para sua literatura, mas como se trata de alguém com uma vasta bibliografia a ser explorada – tem 81 anos de idade, 52 de carreira e 18 romances publicadas, além de obras poéticas, infantis e de não-ficção – resolvi não começar pelo mais óbvio e, seguindo uma recomendação de Bruno Torturra num de seus “boletins do fim do mundo”, li a trilogia composta por “Oryx e Crake”, “O Ano do dilúvio” e “Maddadão”.

 

No primeiro livro somos apresentados ao “Homem das neves”, o provável último sobrevivente de uma catástrofe provocada por uma pandemia(!!!!). Ele convive com os “Filhos de Crake”, humanóides de uma nova espécie criados artificialmente no mesmo laboratório de onde saiu o vírus letal. Aos poucos vamos entendendo o que aconteceu a partir de suas reminiscências, enquanto acompanhamos sua luta pela sobrevivência em um mundo devastado e povoado por assustadoras criaturas hibridas. O livro termina num momento crucial, o que me fez ter até pena de quem leu na época do lançamento e teve que esperar quatro anos pela continuação ...

 

... que nem é exatamente uma continuação: “O Ano do dilúvio” começa uma nova história, com novos personagens, mas que se passa no mesmo universo de “Oryx e Crake” e vai aos poucos estabelecendo as devidas conexões com a primeira narrativa até terminar no mesmo ponto onde paramos no primeiro volume, só que sob um ponto de vista diferente. É brilhante! “Maddadão”, a parte final, retoma finalmente o fio condutor e conclui essa impressionante epopéia distópica repleta de reflexões sobre a destruição ambiental provocada pela superexploração capitalista. Há boatos de que será, também, adaptada para a televisão. Essa eu poderei dizer que já conhecia.

 

Resumindo: acho que já deu pra entender que eu gosto muito de fantasias distópicas. Na literatura, no cinema – veja “Metropolis”, “Planeta dos macacos”(toda a série, incluindo os mais novos, sou fã), “soylent Green”, “Logan´s run”, “Rollerball”, “Laranja Mecânica” (li o livro também, mas prefiro o filme), “THX-1138” de George Lucas, “Brazil” de Terry Gillian – esse é genial -,“Terminator”, “Total Recall”, “Bacurau”, “Mad Max”, “Matrix”, “Her”, “Ensaio sobre a cegueira”, “Filhos da esperança”, até de “Jogos vorazes”, o primeiro, eu gosto.

 

Na vida real não. Não queria e não estou curtindo. Não pensei que fosse viver pra isso.


A

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sábado, 24 de julho de 2021

"Suicídio", da Karne Krua

Karne Krua é uma banda pioneira do punk rock hard core do nordeste do Brasil. Surgiu em Aracaju, capital de Sergipe, o menor estado da região , em 1985. Depois de um breve período inicial instável estabilizou-se com Silvio “suburbano” no vocal, Marcelo “Inseto” na guitarra, Marlio no baixo e Antonio “Almada” na bateria - uma formação considerada “clássica” por ter composto e gravado musicas que definiram sua identidade sonora e são tocadas até hoje em shows. Essa primeira fase está registrada nas três primeiras demo-tapes, todas gravadas de forma tosca e absolutamente improvisada: “As merdas do sistema”, de 1987, “Cenas de ódio e revolta”, de 1988 e “Labor operário”, de 1990.

 

Na virada da década bateu um cansaço e dois integrantes, Marcelo e Almada, resolveram sair, mas a banda acabou se renovando com a entrada de Fabio na guitarra e Valdeleno na bateria. Por essa época Silvio, um incansável agitador cultural “underground”, estava às voltas com o projeto “Cooperativa do caos”, que visava à produção de uma LP em vinil reunindo algumas das principais bandas do estilo das regiões norte e nordeste: Discarga Violenta, de Natal(RN);  Delinquentes, de Belém do Pará; C.U.S.P.E, de Campina Grande(PB) e Devotos do ódio, de Recife – além da própria Karne Krua. O projeto, infelizmente, acabou não vingando, mas o que foi gravado acabou sendo aproveitado no clássico primeiro EP/compacto em vinil de 7 polegadas “Cosmopolita”, da Discarga Violenta, e na primeira demo-tape com gravação profissional da Karne Krua, “suicídio”.  

 

“Suicidio” foi gravada em janeiro de 1991 no Estudio DB-3, de Recife, com mixagem dos amigos Nino e Pesado, da banda pernambucana Câmbio Negro HC. O repertório é composto basicamente de musicas já lançadas anteriormente, como “Rumores de guerra” e “America Latina now”(aqui com a participação de Pesado no refrão), ou já conhecidas de quem freqüentava os shows. A grande novidade, que surpreendeu a todos, foi a faixa título, que fugia um pouco da ortodoxia punk anarquista então em voga com uma letra de temática mais intimista e arranjos com solos de guitarra melódicos e minimalistas. Com suas 8 faixas distribuídas em menos de 10 minutos, na demo a banda ainda soava punk, mas com uma nítida preocupação em expandir seus horizontes. Este material está sendo agora, 30 anos depois de seu lançamento original, relançado em vinil, num EP/Compacto de 7 polegadas, pela No Gods No Masters Distro.

 

Essa nova fase se consolidou com o lançamento, em 1994, do primeiro LP, auto intitulado, já com Marcelo e Almada de volta a seus postos. A semente lançada em “Suicidio” frutificou num repertório impecável, que incluía dois poemas musicados de autoria do poeta, fanzineiro e capoeirista Nagir Macaô, “O vinho da história” e “A noite do deus morto”, e letras enigmáticas, beirando a abstração, como “Mancha de sangue”, além de uma notável evolução lírica e musical mesmo em faixas mais panfletárias, como “Hienas na carcaça”, “Brasil Heróico”(com seu tom épico), “Filhos do medo” e “Política da seca” – que tem frases dignas da melhor literatura, a meu ver (“pessoas castigadas pelo sol e pela fome lamentam a dor de mais um ano que passou”).

 

Karne Krua passou por várias outras fases, com trocas de integrantes e influências as mais diversas, do hard Core novaiorquino à musica regional do sertão nordestino, mas sempre preservando sua identidade, capitaneada pela figura de Silvio, único membro fundador remanescente. Segue viva e ativa até hoje! São 35 anos de atividade ininterrupta, fazendo shows e lançando novas demos, EPs e álbuns nos mais diversos formatos, em CD, k7, vinil e streaming, sempre fazendo musica radical e independente em um ambiente inóspito, periférico. Um feito e tanto!

 

por Adelvan Kenobi

 

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sábado, 10 de julho de 2021

Algumas dicas de quadrinhos produzidos por mulheres

Aproveito a pandemia para colocar a leitura em dia e tenho algumas dicas de quadrinhos escritos, desenhados e publicados por mulheres para apresentar aos poucos e bons leitores deste humilde blog que se recusa a deixar de existir ...

Começo com Alisson Bechdel e seu Fun Home: uma tragicomédia em família. Obra-prima! Sucesso de público e crítica. Ficou duas semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Um livro de memórias centrado numa controvertida figura paterna e em questões de identidade e repressão sexual. Ao contar a história de sua infância e adolescência, vivida na zona rural da Pensilvânia da década de 1970, marcada pelo mistério que ronda a verdadeira natureza da personalidade complexa e contraditória de seu pai, ela fala também do momento de transição entre o final de um período marcado pela revolução sexual e pela liberalização dos costumes e o revés provocado pelo surgimento da AIDS. A narrativa é fluida, sem tropeços, ilustrada por um traço elegante e rebuscado, todo desenhado a partir do estudo de fotos de referencia tiradas por ela mesmo. Brilhante.

Dela, li também Você é minha mãe?, uma espécie de continuação de Fun Home que avança por sua idade adulta e discute, de forma bastante profunda e analítica, sua relação com a mãe, ao mesmo tempo em que vai narrando o desabrochar de sua sexualidade. É uma leitura bem mais densa e auto centrada que a anterior. Tive bastante dificuldade com alguns trechos longos que discorrem detalhadamente sobre questões teóricas ligadas à psicologia, mas recomendo a leitura mesmo assim.

Rosa Luxemburgo é uma das personagens mais fascinantes da história do movimento socialista. Teórica brilhante e contestadora, mulher à frente de seu tempo, inclusive na vida pessoal e amorosa, além de pensadora independente e ousada. Teve embates antológicos com verdadeiros ícones do marxismo, como Lenin e Kautski. Sua vida é contada de forma poética e vibrante pela cartunista e ativista britânica Kate Evans em Rosa Vermelha,  lançado aqui pela editora Martins Fontes.

Apesar de ter sido produzida a convite da Fundação Rosa Luxemburgo, essa biografia quadrinizada passa longe do chapabranquismo e oferece um panorama bastante amplo de sua obra e de seu tempo a partir da escolha acertada de reproduzir integralmente diversos trechos de seus livros e cartas, sem descuidar do ritmo narrativo. Dá ao leitor menos apressado, inclusive, a oportunidade de se aprofundar ainda mais sobre o assunto ao disponibilizar um rico apêndice, em que diversas situações são melhor explicadas e contextualizadas e os trechos reproduzidos na história são novamente apresentados de forma ampliada.

De Kate Evans li também Refugiados: a última fronteira, editado com o capricho típico da editora Darkside – com direito a um marcador de páginas de tecido feito de renda, referência ao principal produto fabricado na cidade de Calais, na França, onde se passa a trama. Uma trama real e dramática, reproduzida a partir da experiência pessoal da autora com as ONGS que se dedicam a tentar aliviar a via crucis dos que ficam ilhados por lá, à espera de uma oportunidade de cruzar o canal da mancha. É uma história dura e revoltante, repleta de injustiça, que nos faz lembrar, inevitavelmente, os relatos de Joe Sacco sobre a Palestina e a guerra na Bósnia. O traço aqui é mais rabiscado e cartunesco, bem diferente do da biografia de Rosa, mas igualmente competente.

Por fim, recomendo Hoje é o último dia do resto de sua vida, um calhamaço de 464 páginas também lançado pela Martins Fontes e escrito pela austríaca Ulli Lust a partir das memórias que guardou de uma viagem punk e clandestina que fez à Itália na adolescência, na década de 1980. Literalmente punk, já que a autora freqüentava o submundo do movimento na época e foi com aquele espírito radical, arrojado e libertário que encarou a empreitada, acompanhada de uma nova melhor amiga que encontrou pelo caminho. Edi, a amiga, é uma daquelas figuras perigosamente sem noção que todo mundo que não se fecha no casulo falsamente protetor de uma vida regrada e careta acaba conhecendo, e que pode te meter em algumas roubadas caso você não esteja atento às armadilhas que fatalmente se armarão pelo caminho. Principalmente se for desenvolvido entre vocês o tipo de fidelidade e camaradagem que só a vida na estrada, sem eira nem beira, sem lenço e sem documento, pode proporcionar.

É o que acontece com Ulli, que é levada por Edi a enfrentar situações dignas de um filme de máfia dirigido por Martin Scorcese ou Quentin Tarantino. Máfia, aqui, também no sentido literal: elas vão parar na Sicilia, terra da organização “cujo nome você não deve mencionar”, e sentem na pele o preço pago por garotas que não conseguem se por no seu lugar: são repetidamente abusadas e violentadas. Edi, porra louca ao extremo, não tem muita noção disso, mas Ulli passa a ter, principalmente, a partir de um evento pra lá de traumático. A obra adquire, então, um tom mais sombrio, retratando uma certa perda de inocência da autora. Na verdade, uma ingenuidade bruta, inconseqüente, típica de quem está amadurecendo e não sabe ainda o preço que terá que pagar pela liberdade que já pensa ter, mas que na verdade precisa ser conquistada. O evento, divisor de águas da trama, a faz repensar suas atitudes frente a um mundo que é, com muito mais frequência e intensidade do que ela parecia pensar, hostil e implacável com quem não se enquadra nos moldes desejados por sociedades quase sempre são, em maior ou menor grau, machistas, violentas e castradoras. Ela, enfim, amadurece. Mas da melhor forma, a meu ver: sem se render aos que querem domar seu espírito.

Ao contrário do que se possa imaginar, no entanto, a narrativa passa longe do panfletarismo. É apenas a história honesta – de uma honestidade muitas vezes desconcertante, aliás – de uma viagem com momentos tensos e tragicômicos, mas também cheia de diversão regada a muito sexo, muita droga e algum rock and roll – há o registro de um megashow do The Clash ao qual elas têm acesso de forma clandestina, evidentemente. Uma história que valeu a pena ser vivida, com certeza. Tanto que rendeu um delicioso relato para ser degustado tanto tempo depois.

A

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sexta-feira, 25 de junho de 2021

DESDE 1985

Em 1988 fui ao meu primeiro show de rock underground, a segunda edição do Festcore de Aracaju, um encontro de bandas punk do norte e nordeste promovido por Silvio, vocalista da Karne Krua. Foi lá que os vi ao vivo pela primeira vez. Lembro de ter pensado “caralho, essa banda é tão boa quanto o cólera” – a minha principal referencia quando se fala em punk rock brasileiro.

Dizem que a primeira impressão é a que fica. Essa ficou. Até hoje, acho que se bandas como a Karne Krua, o Câmbio Negro HC, de Recife, ou a Dever de Classe, de Salvador, não tivessem surgido “longe demais das capitais” seriam tão lembradas e incensadas quanto seus pares paulistanos da década de 1980.

A primeira gravação de estúdio da Karne Krua só foi acontecer em 1991, com a demo tape Suicídio. Antes, a banda lançou apenas fitas demo caseiras, a partir gravações pra lá de precárias, como a primeira, As merdas do sistema, e a já clássica Labor Operário. Boa parte do repertório desses primeiros espasmos de vida foi regravado nos discos e demos posteriores, mas haviam lacunas a serem preenchidas.

Não há mais. Neste ano da desgraça de 2021, ano 2 da pandemia, veio à luz, em meio às trevas, um projeto ao qual a banda se dedicava há pelo menos 5 anos: Primitiva 1985, um disco de regravações com algumas das composições mais obscuras da banda, boa parte delas composta nos primeiros anos de atividade e que nunca haviam sido registradas com uma qualidade minimamente decente. É um verdadeiro testamento para a posteridade, evidenciando mais uma vez o talento de Silvio “Suburbano” e sua trupe de desajustados. 

Há desde crônicas urbanas locais – como Cirurgia, sobre o então principal hospital público do estado; Cidade Asilo, sobre o marasmo de Aracaju na década de 1980; e Fábrica de doenças, sobre uma fábrica de cimento que havia no bairro Siqueira Campos, à época –, até libelos revolucionários de apelo universal como Dia A  e seu refrão pegajoso, que pede morte aos opressores, patrões e senhores.

Uma de minhas favoritas desde sempre é Punk rock, que faz uma pertinente ligação entre aquela música rebelde e barulhenta surgida em meados de 1976, 77, e os primórdios do rock and roll, cuja fúria primal havia se transformado, diz a letra, em “protesto dos conscientes”. “Consciente” era um jargão bastante utilizado pelos punks para se destacar da malta imbecilizada e lobotomizada pelos veículos de comunicação de massa, mesmo que a formação política da maioria deles se restringisse a alguns panfletos anarquistas toscos recebidos em cópias apagadas pelo correio. Algo parecido com os memes de Whataspp de hoje. 

Algumas composições, como Vote nulo, soam realmente pueris em seu panfletarismo raso anarquista, mas já nos primórdios se notava um certo esforço intelectual e poético mais profundo, especialmente quando vislumbravam possibilidades utópicas para um futuro que não se imaginava, então, tão distante – 35 anos depois, o que temos é uma distopia, com essa pandemia sem fim e um candidato patético a fuhrer tupiniquim alojado no palácio do planalto. É o caso da já citada Dia A, de Projeto futuro e das clássicas Auge revolucionário e Revolta social futura, que provavelmente não estão aqui porque já haviam sido regravadas no álbum Em carne viva (2002).

Primitiva 1985 se beneficiou do fato de ter sido gravado por uma das melhores formações da banda, infelizmente já desfeita: Silvio no vocal, Alexandre Gandhi na guitarra, Ivo Delmondes no baixo e Oitchi, discípulo de Babalu, na bateria. Isso reflete nos arranjos, em geral fiéis aos originais, mas com um molho a mais, e na execução precisa, afiada. Além da qualidade técnica oriunda do natural avanço tecnológico, evidentemente.

Periga ser o melhor disco da banda. A lamentar, somente, a ausência da frase antológica que havia na gravação original de PMs espancadores: “vão espancar o cu das suas mães”.

A..

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quarta-feira, 23 de junho de 2021

PODRÃO ANIQUILAÇÃO

Pablo Carranza nasceu em Aracaju em 1986, portanto não tinha idade para viver o tempo do auge das videolocadoras. Seu “gibizão” PODRÃO ANIQUILAÇÃO, no entanto, reproduz com perfeição o espírito das sessões de filmes “trash” compartilhadas com os amigos em finais de semana modorrentos da década de 1980, cujas fitas eram invariavelmente alugadas na locadora do bairro usando o cadastro dos pais.  

 

O próprio formato do livro foi pensado para reproduzir o de uma fita VHS, inclusive no volume: são 288 páginas de ação, violência, escatologia e até sexo explícito! Uma delícia! É sério: esse quadrinho é uma obra-prima do gênero. A narrativa, fluida, descomplicada e enxuta, a despeito do volume de páginas, gira em torno dos perrengues vividos pelos quiosques de lanches populares com a concorrência das hamburguerias “gourmet”, que têm se reproduzido feito mosca pela cidade e abocanham uma boa fatia da clientela, aquela mais afeita a modismos.

 

A cidade, no caso, é Aracaju mesmo! Os sergipanos têm vários motivos a mais para degustar essa iguaria, pois reconhecerão  diversos personagens, lugares e situações, como o delegado Bareta e seu assistente Torroio, sempre às voltas com as confusões envolvendo uma maionese radioativa que se tornou um sucesso absoluto de vendas no Galego´s lanches e cuja fórmula, depois de roubada, acaba  servindo de base também para a fritura dos pastéis “shing ling” da concorrência – a essa altura ninguém nem lembra mais da hamburgueria hypada, cujo dono acaba se tornando vítima e principal suspeito, ao mesmo tempo, de misteriosos desaparecimentos. Só lendo pra crer. Leia! PODRÃO ANIQUILAÇÃO é um lançamento em parceria da MAU GOSTO PRODUÇÕES, do autor, com a ESCÓRIA COMIX, e está a venda nas piores lojas do ramo. Na loja do autor, http://maugosto.iluria.com , você encontra também diversos outros produtos personalizados, como camisetas, posters, adesivos, bonés, chaveiros , carteiras de despachante (!!!!!)  e as sensacionais figurihnas dos “xingamentos literais”.

 

XINGAMENTOS LITERAIS é uma das melhores publicações do Pablo, um livrinho minúsculo com representações iconográficas de impropérios como “casa do caralho”, “gordo escroto”, “puta merda”, “putaria da porra” e outras do mesmo “naipe”. De novo: Só vendo pra crer. Tempo desses encontrei vários espalhados entre os exemplares de publicações, digamos, convencionais, expostas nas prateleiras de uma respeitável cadeia de livrarias da cidade, num evidente ato de sabotagem cometido por algum guerrilheiro underground. Essa rede costuma vender as publicações do Pablo: “podrão aniquilação” está lá, na mesma prateleira dos mangás e publicações juvenis da Marcel e dc comics. Garanta o seu enquanto o gerente não resolve dar uma folheada e toma um susto com o conteúdo.

 

Pablo Carranza começou a desenhar sob a influência do que lia quando era criança, que era o que toda criança lia: Turma da Mônica, Disney, Marvel e DC. Até que, aos 20 anos, conheceu Marcatti, Harvey Pekar, Robert Crumb e Chiclete com Banana. Descobriu ali que nunca mais iria ganhar dinheiro fazendo quadrinhos, mas iria fazer os tipos de quadrinhos que passou a gostar de ler.

 

Apesar dessa opção radical ele tem uma carreira relativamente bem sucedida como ilustrador: publicou por mais de um ano num conhecido jornal semanal de classificados local e chegou a ficar em segundo lugar no tradicional e conceituado salão de humor  de Piracicaba – os apresentadores tomaram um susto ao vê-lo subir ao palco para pegar o troféu pois não imaginavam que ele estaria presente, já que era de Aracaju. Mas foi morar em São Paulo, onde publicou, com financiamento do PROAC, programa de ação cultural do governo do estado , o divertido livro  “Se a vida fosse como a internet”.

 

“Se a vida fosse como a internet” era divertido mas light, inofensivo. Não fosse assim não teria sido publicado com o apoio de uma lei de incentivo à cultura. Serviu para projetá-lo, pois ganhou o troféu “HQ Mix”, o mais conceituado dos quadrinhos brasileiros, na categoria “melhor publicação de humor gráfico”. Muito provavelmente por isso apareceu em matérias da grande imprensa e nas prateleiras da rede de livrarias local já citada, onde eu o conheci.

 

Serviu também para que ele entrasse no “cast” da Editora “Beleléu”, do Rio de Janeiro, para onde ele se mudou e onde pôde publicar com muito mais independência e sem amarras “morais”, digamos assim. Foi lá que criou a revista SMEGMA, onde pôde por pra fora todo o seu arsenal de infâmias em personagens antológicos como Rivalino e o “Playboy de Nazaré” – uma versão mimada e bombada de quem você está pensando mesmo. Publicou também sátiras implacáveis de sucessos do cinema, como Mad Max 2, e de alguns de seus pares mais bem sucedidos, como Fabio Moon e Gabriel Bá, Mauricio de Souza, Vitor Caffagi, Armandinho e Laerte que, curiosamente, foi a única a reclamar, via e-mail.

 

Carranza voltou a morar em Aracaju. Sua intenção era fugir do alto custo de vida da metrópole, para onde viajaria apenas para exposições em convenções e feiras de quadrinhos. Acabou ficando ilhado pela pandemia, como todos nós – os que têm bom senso, pelo menos. Mas como há males que vêm para o bem – ou não – isso deve ter ajudado na finalização de sua obra prima, o “podrão aniquilação”. Perguntei aqui a ele se foi isso mesmo, via whatsapp, mas ele ainda não me respondeu – provavelmente porque tem coisa melhor pra fazer do que ficar vendo mensagens desse aplicativo maldito. Fala aí você com ele, o número é +55 21 96900-6688 – não estou cometendo nenhuma indiscrição, o contato é publico, ta lá no site da loja. Só não coloque ele em nenhum grupo, por favor. Ele não quer. Faz muito bem. Fale somente o necessário e deixe o cara quieto pra ver se ele comete outra insanidade do mesmo calibre do “podrão”.


A.

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sábado, 5 de dezembro de 2020

Itabaiana calling

Nasci em Itabaiana, interior de Sergipe, em 1971. Sou “nascido e criado” lá, já que só me mudei definitivamente para a capital, Aracaju, aos 18 anos. Lá desenvolvi o hábito da leitura, através dos quadrinhos, principalmente de “Tex”, que meu irmão mais velho colecionava, e também o gosto pelo jornalismo, provavelmente a partir das revistas “Manchete” que um tio, que tinha um bar, tinha sempre a disposição para os clientes. Eram revistas sem capa – na época as distribuidoras, para baratear o frete, devolviam apenas as capas para as editoras, para comprovar que o exemplar não havia sido vendido.

 

Com o rock “underground” devo ter tido meu primeiro contato vendo a já célebre matéria sobre os punks paulistanos no Fantástico, sempre citada até hoje em documentários e entrevistas. Lembro que, a partir dali, o termo, antes desconhecido, virou uma espécie de xingamento no meu circulo de amigos: “Vôte, fulano parece que é punk, só vive fazendo ‘Indiagem”(termo evidentemente pejorativo e politicamente incorreto que era usado como sinônimo de bagunça na época).

 

Comecei a conhecer melhor e a me identificar com aquele novo universo quando a rede globo transmitiu ao vivo a primeira edição do rock in rio. Tinha um povo muito doido e diversificado ali, uns fazendo musica festiva e dançante com umas perucas estranhas, outros falando do diabo no palco ao som de guitarras distorcidas! Tinha até um coroa maluco que arrancou a cabeça de um morcego com a boca e cuspiu! Impossível ignorar. E tinha a Nina Hagen! Caralho, ela era bem louca, uma espécie de Cindy Lauper levada às ultimas conseqüências ...

 

Na Livraria Cunha – que na verdade era uma papelaria, mas funcionava também como banca de revistas – chegavam os quadrinhos de super heróis que eu tanto amava e também as revistas Bizz e Chiclete com banana. Em novembro de 1986 resolvi comprar minha primeira Bizz, a de numero 16, que tinha Matt Dillon, o ator, na capa . Foi nela que li pela primeira vez a respeito de bandas clássicas das quais nunca tinha ouvido falar, como The Doors e Velvet Underground, e do universo musical alternativo, notadamente o pós punk e a vanguarda paulistana. Notei que havia muito mais coisas entre o céu e a terra do que supunha a minha vã filosofia alimentada pelo radio e a televisão ...

 

O fascínio só aumentou quando conheci também o universo radical do metal, a partir da audição do álbum “Somewhere in time”, do Iron Maiden. Virei “metaleiro”, membro de uma “tribo” que em Itabaiana tinha pouquíssimos adeptos, só eu e mais dois ou três amigos – sendo que um se revelou um “poser” ao ficar com dor de cabeça durante a primeira audição do recém-lançado reign in blood do slayer, e foi devidamente enxotado da confraria. A necessidade de aumentar esse séquito fez com que eu tivesse a brilhante idéia de fazer uma “apostilha” com pequenas biografias de minhas bandas preferidas para distribuir pela cidade.

 

A primeira edição do NAPALM, a tal “apostilha” – que na verdade eu pensei como uma revistinha artesanal, portanto precisava de um nome – saiu em abril de 1988, com uma capa desenhada por mim mesmo a partir de uma arte de Libero Malavoglia para a banda Chave do Sol, de São Paulo. Eram cerca de 15 folhas de papel A4 datilografadas, xerocadas e grampeadas, frente e verso. O nome eu tirei de uma foto da apresentação da Legião Urbana na célebre casa noturna paulistana do início da década de 1980 que eu havia visto na Bizz, depois de descobrir que se tratava de uma bomba incendiária que havia sido usada no Vietnã.

 

Deu certo: começou a circular pelos corredores do colégio onde eu estudava e além - a noticia de que havia um fanzine – era esse o nome da criatura, soube depois -  circulando pelo interior do estado chegou à loja de discos Disturbios Sonoros, de Aracaju. Um dos sócios, Antonio Passos, ofereceu-se para conseguir uma tiragem maior, de cem cópias – nem sei mais quantas eram no inicio,  mas acho que não chegavam a dez – e passou a vender exemplares, o que fez com que Silvio “Suburbano”, vocalista da pioneira banda punk Karne Krua, me mandasse um pacotão recheado com publicações semelhantes vindas de todos os cantos do Brasil. Só ali percebi que havia toda uma rede de comunicação subterrânea circulando mundo afora divulgando uma vasta gama de assuntos que não chegavam à grande mídia.

 

Cheguei a entrar em contato timidamente com essa rede através dos endereços que constavam no pacotão de Silvio e na sessão de cartas da revista Rock Brigade, que começou como um fanzine mas a essa altura já chegava nas bancas de Aracaju – era a célebre Headbanger´s voice, imortalizada inclusive numa música da Gangrena Gasosa, banda do Rio de Janeiro. Mas a brincadeira foi interrompida pelas necessidades da vida: passei no vestibular e fui sugado pelo mundo acadêmico, me restando pouco tempo e dinheiro, principalmente, para dedicar ao Napalm, que teve ao todo seis edições.

por Adelvan


Horrores Humanos

Conheci a Karne Krua no II Festcore de Aracaju, o primeiro festival de rock que fui em minha vida, em 1987, aos 16 anos. Eu morava no interior do estado, em Itabaiana, e estava começando a mergulhar nesse universo totalmente novo pra mim. Fiquei impressionado! Lembro de ter pensado “caralho, essa banda é tão boa quanto o Cólera” – era minha principal referencia, pois tinha comprado o disco ao vivo na Europa através do CIC, Centro Informativo Cólera, e ouvia sem parar. Também porque tinha pouquíssimos outros discos para ouvir na época.

Fiquei amigo de Silvio, o vocalista, e cliente da loja de discos dele, a Lokaos. E fã da Karne Krua. De lá pra cá acompanhei todas as fases, fui a incontáveis shows e ensaios. E foram muitas, fases e shows e ensaios. Karne Krua tem 35 anos de existência ininterrupta! Nunca parou!

Conheci o rock, também, graças ao radio. Primeiro através dos hits de bandas como Legião, Titãs e Ultraje, que tocavam na programação normal. Depois por um programa específico, o “Rock Revolution”, que era produzido pelos caras da loja Disturbios Sonoros, de Aracaju, na radio Atalaia FM. Me marcou bastante. Sempre tive vontade de ter um programa de rádio. Ajudei a produzir um na Itabaiana FM já na década de 1990. Foi divertido, tocamos Napalm Death e Carcass no intervalo da transmissão da inauguração de um poço artesiano pelo então vice-governador do estado, que era o dono da emissora! Mas tinha pouquíssima audiência, evidentemente. Era uma excentricidade, quase uma molecagem. Em todo caso, cheguei a entrevistar a Karne Krua numa das raras ocasiões em que eles se apresentaram por lá.

Em 2007, 20 anos após a noite em que fui ao meu primeiro show de rock da vida, consegui finalmente um espaço no radio em Aracaju, na emissora publica do estado, a Aperipê FM. E em 2012 a Karne Krua se apresentou no meu programa de radio! A apresentação foi transmitida ao vivo, direto do estúdio. Foi meu “momento John Peel”. Memorável.

A apresentação foi também gravada e posteriormente lançada no CD Demo “Horrores Humanos”, que chega agora ao formato de streaming. São várias sessões de gravação registradas em diversos estúdios ao longo dos anos de 2011, 2012 e 2015. Um registro poderoso de uma formação marcante para a banda, com Ivo no Baixo, Alexandre Gandhi na guitarra e Adriano na bateria. Foi nessa fase que a lançaram seus excelentes dois últimos álbuns, “Inanição” e “Bem vindos ao fim do mundo”, em CD e LP de vinil, respectivamente, além do EP “split” com a banda brasiliense Besthoven, lançado em compacto de vinil de sete polegadas.

As duas ultimas faixas de “Horrores Humanos”, gravadas ao vivo no Bateras Beat, em 2015, já previam as novas mudanças pelas quais a banda passaria depois de um longo e produtivo período de estabilização na formação: Já contam com Oitchi, que substituiu Adriano, na bateria. Pouco tempo depois a banda perderia não somente Oitchi, mas também o guitarrista, Alexandre Gandhi. Seguem firmes, no entanto: os substitutos, Afonso, na bateria, e Lilo, na guitarra, já estão perfeitamente entrosados, com diversos shows no “currículo”, inclusive. Estão parados por conta da pandemia, mas prometem para breve um novo lançamento, “primitiva”, uma volta às raízes, com algumas musicas inéditas e outras antigas mas nunca editadas em álbuns ou demos.

por Adelvan Kenobi

Ouça AQUI

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o rock alivia

No último mês de julho, em plena pandemia, os perfis de redes sociais mais ligadas ao “underground” roqueiro foram tomados pela imagem de divulgação de uma megacoletânea que se propunha a mapear o momento atual da cena punk hardcore nordestina. São 101 bandas de todos os estados da região, organizadas em ordem alfabética – começando com o Autopse, de Alagoas, e terminando com a Olho por olho, de Sergipe. Uma verdadeira “tour de force” concebida a partir de Itabuna, no sul da Bahia, através do selo “Tocaia”, mas que chamou mesmo a atenção pela capa, uma recriação da icônica ilustração de HR Giger para o álbum “To Mega Therion”, da banda pioneiora do death metal suíço Celtic Frost. “Satan”, a obra do eterno criador do Alien, mostra o demônio usando uma imagem de Jesus crucificado como estilingue. Na coletânea da Tocaia vemos Lampião fazendo o mesmo com Bolsonaro.  O desenho é de Adilson Lima, ilustrador itabaianense que vem se destacando como um “capista” de mão cheia, a cada dia mais requisitado por bandas de rock “pauleira”.

A provocação serviu como uma luva para os que ainda têm fôlego para o “debate” político polarizado e nivelado por baixo que vemos se arrastar há pelo menos 10 anos e acabou se tornado mais uma evidencia de algo que eu sempre digo: se engana quem acha que o mundo do rock está tomado por hostes reacionárias de extrema direita. É certo que há os que comungam desse anacronismo, tanto no “mainstrean” – Lobão e Roger, do Ultraje a rigor, são os nomes que logo vêm à mente – quanto nos guetos do punk e do metal: Fabio,. Vocalista da icônica Olho Seco, de São Paulo, Digão, do Raimundos, Roosevelt “Bala”, do Stress, de Belém do Pará – a banda que lançou o primeiro disco de Heavy metal brasileiro – foram apenas alguns dos que “saíram do armário” recentemente. Mas isso faz parte de um fenômeno que estamos vendo se espalhar por todo o mundo, impulsionado em grande parte pelas redes sociais. Não é exclusividade do rock, definitivamente.

A mim causa estranheza este tipo de posicionamento, tendo em vista que o rock foi, em sua origem, a música que fez cair as barreiras entre pretos e brancos em plena América ainda dominada pela segragação racial legalizada. Mas a verdade é que sempre existiram roqueiros “de direita”: há, por exemplo, o episódio célebre em que Elvis, “The pelvis”, apareceu de surpresa na Casa Branca ocupada por Richard Nixon oferecendo-se como delator “infiltrado” a serviço do FBI. Temos também Ted Nugent, Dave Mustaine, e mais recentemente John Lydon e Krist Novoselic apoiando atitudes tresloucadas de Donald Trump. Mas eu, particularmente, sempre achei e continuo achando que são exceções. O rock na minha cabeça sempre foi uma subcultura de cunho libertário e progressista. Teve um impacto muito grande na minha vida e na de muita gente que eu conheço: eu tive uma formação católica tradicional e repressora, da qual me libertei, em grande parte, a partir da descoberta de todo aquele universo musical e cultural barulhento e contestador no qual passei a mergulhar a partir da transmissão do primeiro rock in rio pele TV aberta e pela leitura da revista Bizz, que chegava em minha cidade, Itabaiana.

Apesar de reconhecer que o gênero está estagnado, sem produzir nada de realmente novo e arrebatador há pelo menos vinte anos, ainda defendo o rock porque o rock, se não me salvou – porque quem salva é Deus, o rock só alivia, como dizia o Made in Brazil – aliviou bastante boa parte de minhas angustias ao longo dos últimos 35 anos.

Adelvan Kenobi

@pocaolho

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terça-feira, 7 de julho de 2020

Amaral Cavalcante

Na década de 1980 minha familia costumava "descer a serra" de Itabaiana ruma a Aracaju para se esparramar nas areias da Atalaia ou da praia dos artistas. Foi nessa época que tive meus primeiros contatos com o "pasquim sergipano", o jornal alternativo Folha da praia, distribuído farta e gratuitamente entre os que tostavam ao sol entre banhos de mar, farofa e cerveja gelada. Mais tarde, já universitário - e "fanzineiro" - fui convidado por um amigo, Antonio Passos, a escrever meu primeiro artigo para aquele mesmo jornal. Dois, na verdade: um sobre a chegada das TVs por assinatura a nosso país e outro sobre, veja só, perversão sexual!

Só fui conhecer seu editor, Amaral Cavalcante, cerca de 20 anos depois, quando participamos juntos de algumas edições do programa de debates "Contraponto" da TV Aperipê, a emissora pública do estado de Sergipe. Ele então me ofereceu uma coluna fixa sobre cultura naquele mesmo Folha da praia, que continuava circulando gratuitamente pela cidade. Aceitei, claro, e foi graças a Amaral, que quando eu menos esperava me ligava pedindo um novo texto longo ou notas para a coluna, que eu não parei completamente de escrever - quem um dia acompanhou esse blog e o visita esporadicamente certamente já notou isso: as poucas matérias publicadas com a minha assinatura nos últimos tempos foram reproduções de textos publicados originalmente no Folha da praia ou na revista Cumbuca, que ele também editava.

Amaral morreu hoje, aos 73 anos. Com a morte de Amaral é possível que este blog morra de vez, ou entre num longo períordo de hibernação. o tempo dirá. Segue um texto que o jornalista e poeta Jozailto Lima publicou hoje em seu site que faz jus à sua memória, muito mais que essas mal traçadas linhas que teclei de forma hesitante e atabalhoada até aqui.

Um beat. Um poeta. Um iconoclasta. Um lúdico. Um lírico. Um memorialista. Um passional. Um jornalista. Um arregimentador de desiguais e de diferentes. Um boêmio. Um que marcou.
Em diversas categorias de definições bem se encaixava o velho Antonio Amaral Cavalcante, que na madrugada deste dia 7 de julho juntou uma bota noutra com o bico pra cima e bateu às portas de São Pedro. 
Amaral Cavalcante lutou bravamente, entre uns e vinhos, contra um diabetes indelicado, um câncer de próstata, mas não quis prosa com a Covid-19 que Jair Bolsonaro batizara de uma gripinha. 
Amaral Cavalcante morreu nesta madrugada na Urgência do Hospital do Ipes e vai ser cremado na Caueira ainda durante esta terça-feira numa solenidade nada solene: só ele com seu fogo final. No atestado de óbito está contida a inscrição da Covid.
Antonio Amaral Cavalcante nasceu no dia 11 de julho de 1946 em Simão Dias - estava, portanto, a quatro dias de emplacar 74 anos. Foi avexado, e partiu  sem arredondar a conta.
Impossível pensar a cena da memória, da cultura beat e do jornalismo sergipano sem que se puxe uma cadeira cativa e fornida para Amaral Cavalcante. Nos anos 70 e 80 ele deu dois tiros certeiros nos agitos culturais do lugar.
Com um, funda o irreverente Folha da Praia, que foi laboratório jornalístico e da contracultura de muitos malucos sergipanos e aqui aportados. A Folha da Praia foi, em versão serigyzada, um Pasquim. Um monumento ao jornalismo destabacado, lírico, chutador de paus de barraca. Contestador.
Era um inferninho contra botas e quepes de milicos e adesistas da nada branda ditadura militar, hoje irresponsavelmente tão evocada com suspiros de saudade por alguns insanos. A Folha fez história e garantiu a existência e os vinhos de Amaral.
Ainda na mesma década, Amaral Cavalcante causou com "Instante Amarelo", seu único livro de poemas publicado em vida - bom livro, por sinal. Ele era, ao modo arrebentador, signatário da poesia marginal dos 70, que tinha uma visão dos beats bem ativada. 
Há em "Instante Amarelo" ecos de Cacaso, Leducha, Leminisk e de muitos dos seus contemporâneos, como Mário Jorge Menezes e Ilma Fontes, que reverberam a poesia dos 70 com dignidade na terra dos cajueiros e papagaios.
Neste milênio, convidado por mim a ser um cronista do falecido Cinform, Amaral Cavalcante surpreendeu com um jorro portentoso de escritos na esfera memorialista.
Destilou textos fantásticos, onde a linha do afeto memoralístico deu o ritmo, o compasso e a formação do livro "A vida me quer bem", uma reunião do melhor desta fase, que ele lançou dia 7 de novembro do ano passado.
Sim, a vida quis bem a Amaral Cavalcante e ele, inegavelmente, quis bem a ela. Uma pena que ambos tenham levantado o crachá do adeus assim tão cedomente. Tão precocemente.
E, ainda mais, em tempo de pandemia de Covid-19, que nos veda de afagar os cabelos ou beijar a testa dos que partem.
Mas incomode-se não, Amaral velho de guerra, e se sinta afagado. Que a terra - ou melhor -, o fogo lhe seja leve.
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