Estava folheando descompromissadamente um livro ontem quando
me deparo com uma informação que me deixou chocado: o Cabo Anselmo, maior símbolo
do que pior existe no espírito humano, o traidor, é sergipano! De Itaporanga DAjuda!
Juro que não sabia! Mais: ele talvez se esconda por aqui mesmo, nas antigas terras
do Cacique Serigy. Foi o que me disse George, vocalista da Warlord – que está
voltando. Há boatos de que ele freqüentava sempre um bar, "El Capitan", situado à beira mar na
Rodovia José Sarney.
Que a infâmia o persiga sempre! Um homem que entregou,
dentre muitos outros, sua própria companheira, grávida de seu filho, à sanha
assassina do delegado Sergio Paranhos Fleury não merece viver – nem morrer! – em paz. Ele voltou a
aparecer depois de, cinicamente, solicitar indenização – negada por unanimidade
– à comissão de anistia. Deu, inclusive, pelo menos duas longas entrevistas à
televisão, que se você tiver estômago forte pode assistir
AQUI e
AQUI. Vale uma
olhada, nem que seja para fixar na mente a face da infâmia. Para que, caso seja
reconhecido em público, que seja, pelo menos, insultado. Para que não viva em
paz!
Abaixo, reproduzo duas matérias que o ajudarão a saber quem é
o Cabo Anselmo e quem foi sua principal vítima, Soledad Barret – a mãe de Ñasaindy, cuja história também reproduzi, num post anterior que você
pode acessar clicando
aqui.
(**)Em 1970, de volta ao Brasil, Anselmo foi preso pela
ditadura militar. Em troca da liberdade, delatou perseguidos políticos ao
delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. A lista de denunciados incluía sua
namorada, Soledad Viedma, que acabou morta devido à tortura.
Quem lê “Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza
da minha relação com Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do
Cabo Anselmo. Eu sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos
namorados. Mas que a amo, de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu
tiver. Então os leitores voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo:
“mas você não a conheceu?”. E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua
morte. E explico, ou tento explicar.
Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e
drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi
a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem
dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco
militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da
granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais
eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo.
Entre os assassinados existem pessoas inimagináveis a
qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como
um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o
irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques,
vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não
sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de
apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a
fugir, para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele
dizia. Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza?
E Soledad Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o
centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes.
Ainda que não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas
rústicas no treinamento da guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse
transtornado o poeta Mario Benedetti; ainda que não fosse a socialista marcada
a navalha aos 17 anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda
que não fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da
literatura paraguaia; ainda assim... ainda assim o quê?
Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos
Santos e lhe dá a sentença: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha.
Aqui e além deste século”. Porque olhem só como sofre um coração. Para
recuperar a vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro
povos, tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a
face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar dele a
maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer
enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe igual, na altura de
covardia e frieza, em toda a literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele
superou os agentes duplos, capazes sempre de crimes realizados com perícia e
serenidade. Mas para todos eles há um limite: os espiões não chegam à traição
da própria carne, da mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam
da perversão, acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista,
ex-preso político:
“É impressionante o informe do senhor Anselmo sobre aquele
grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do Paraná. É
algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as ignomínias
que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao assunto.
Depois de descrever e informar sobre cada um dos cinco
outros camaradas que seriam assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual
dá o histórico de família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:
‘É verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com
ela e, nesse caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução
final’.
Ao longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a
metabolizar (sem perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante
umas três semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo,
essa voragem”.
Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais
eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem agora por que o
livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato apaixonado. Não seria
possível recriar Soledad de outra maneira. No título, lá em cima, escrevi
Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor seria ter escrito, Soledad, a mulher
de todos os jovens brasileiros. Ou Soledad, a mulher que apredemos a amar.
(**) Publicado originalmente em
www.cartamaior.com.br. Texto por Urariano Mota, 59 anos, natural de Água Fria, subúrbio
da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento,
Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente,
é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As
revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos.
Autor de Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997), um romance de formação,
que se passa sob a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), e de
Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009)
(*)José Anselmo dos Santos é um enigma da história recente do Brasil. Ele
desapareceu há 26 anos e, desde então, muito pouco se ouviu falar do jovem
marinheiro que num discurso explosivo, pronunciado na solenidade de aniversário
da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, em 25 de março de
1964, acabou precipitando a queda do governo João Goulart, o golpe dos
militares e, quatro anos depois, o mergulho do Brasil no longo período da
ditadura do AI-5. O pretexto do golpe - a quebra da hierarquia militar - teve
no marinheiro um de seus personagens principais, a ponto de muitos terem
preferido vê-lo como um espião infiltrado da CIA, a agência de informações dos
Estados Unidos.
Imaginava-se o cabo Anselmo morto ou vivendo em outro país. Ele saíra da sombra
pela primeira e última vez em março de 1984, numa entrevista dada ao jornalista
Octavio Ribeiro e publicada pela revista ISTOÉ. Naquele depoimento, Anselmo
fornecia sua versão de como mudara de lado - da militância política na luta
armada de esquerda ao extremo oposto, a colaboração com a polícia do delegado
Sérgio Paranhos Fleury. De lá para cá, o cabo sumiu. Nem mesmo os próprios
familiares pensavam que ele ainda pudesse estar vivo. Época o localizou. Esteve
com ele numa visita-surpresa a parentes e amigos de infância na pequena
Itaporanga d'Ajuda, a 26
quilômetros de Aracaju, em Sergipe. Quando
ele chegou, sem aviso prévio, alguns pensaram assustados que fosse assombração.
Diz o amigo de infância José Jessé de Oliveira, 60 anos, hoje vereador pelo
PFL: "Como todo mundo por aqui, achei que já o tivessem assassinado".
Ele está vivo, mas tem medo de morrer. Sabe que o ódio o cerca.
Em 1964, Anselmo era o marinheiro insuflador que levou à rebelião colegas da
Marinha e conseguiu até a adesão espetacular de uma tropa de fuzileiros navais
destacada para prendê-los. Foragido, depois de passar algum tempo preso numa
delegacia e refugiar-se na embaixada do México, passou a usar o codinome
Jônatas (na Bíblia, o leal amigo de Davi). Já era um ativo membro da Vanguarda
Popular Revolucionária, a VPR, organização de esquerda que montou um ambicioso
esquema de ações de guerrilha para derrubar o regime militar.
O que ocorreu com Anselmo, depois da prisão de 1964 - fuga do Brasil, curso de
guerrilhas em Cuba, passagens pela Europa e missões como montar uma base de
guerrilhas da VPR no Nordeste -, nunca se soube exatamente. Os órgãos de
segurança silenciaram completamente e nenhuma pista ficou em seus arquivos.
Documentos secretos foram destruídos. Os militantes de esquerda sabiam de
alguma coisa, desconfiavam de uma infiltração fatal, de traição e delação, mas
ignoravam o real papel desempenhado por Anselmo nos anos de chumbo. Nesta
reportagem, ele aceitou narrar detalhes de sua trajetória até então desconhecidos
ou mal explicados.
Anselmo conta tudo o que sabe, o que viu, como mudou de lado e como a polícia
do delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury o manteve como delator. A
entrevista foi realizada em duas etapas - Aracaju e Itaporanga d'Ajuda, em
Sergipe, e depois em Recife, Olinda e num sítio no pequeno município de Abreu e
Lima, Pernambuco, palco de uma operação mista do Exército e do Dops de São
Paulo, em janeiro de 1973, que resultou na morte simultânea de seis
guerrilheiros e um golpe mortal dentro da VPR, privada abruptamente dos seus
principais líderes. Nessa operação, desencadeada por Anselmo, foi assassinada
Soledad Barret Viedma, a Sol, paraguaia, companheira do cabo, com sete meses de
gravidez.
Antes da operação policial-militar em Pernambuco, Anselmo havia sido preso em São Paulo, em 1971.
Dentro do Dops, ele passou por uma conversão política que teve a força de
lavagem cerebral, feita pelo delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, o
temível chefe do Departamento de Ordem Política e Social. Foi quando aconteceu
a grande transformação: Jônatas, o guerrilheiro combatente, passou a ser um
privilegiado agente secreto do Dops infiltrado dentro da própria organização de
luta armada, mantendo contatos normais, fazendo planejamentos e promovendo encontros.
Até então, ele não era um militante qualquer. O ex-deputado pelo PCB, Carlos
Marighella, o ajudara a escrever o discurso, em 1964, que tanto inflamara os
militares. Marighella, já na guerrilha, ajudaria também a escrever, em Havana,
o texto lido por Anselmo num encontro de revolucionários na conferência da
OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, que "autorizou"
a luta armada na América Latina. Essa perigosa vida dupla permitiu que os
agentes da repressão política pudessem capturar - e em muitos casos matar - os
quadros da liderança e militância, atônitos em perceber que, aos poucos, as
organizações de esquerda, em particular a VPR, estavam sendo pulverizadas.
Como se deu a destruição? Era um grande segredo partilhado apenas por poucos
membros do antigo Dops e dos serviços de informação do Exército, da Marinha e
da Aeronáutica. Em conjunto, essas quatro forças da repressão promoveram ações
simultâneas nos principais pontos da ação de guerrilha urbana - São Paulo, Rio
de Janeiro e Recife - graças a uma estratégia que, sabe-se agora, parecia coisa
de cinema. Anselmo passou a morar dentro do próprio Dops, um prédio de cinco
andares, todo de tijolos avermelhados, construído em 19l0 pelo engenheiro Ramos
de Azevedo. O edifício, um dos grandes símbolos da repressão política em São Paulo, fica no Largo
General Osório. Ali, no inacessível quinto andar, o ex-marinheiro passou a
residir numa sala especial, bem ao lado do Serviço de Informações - chamado de
Serviço Secreto dentro do Dops e das Forças Armadas -, e tendo como vizinho
cordial o delegado Romeu Tuma. Era esse o lugar onde se cruzavam as informações
entre Dops e DOI-CODI, eram analisados os documentos apreendidos, planejadas as
invasões de aparelhos da organização e orientados os agentes que iriam
participar dos interrogatórios para arrancar confissões que permitiriam
desdobramentos de outras operações policiais e militares. A luta armada no
Brasil começava a ser minada por dentro - com o apoio de um homem que iniciou
sua carreira política num campo e mudara de lado.
Nas horas de folga, Anselmo passou a distrair-se com tapeçaria. Mas dispunha de
pouco tempo para isso, pois logo também foi requisitado para tornar-se um
arremedo de professor exclusivo para os policiais dos segredos das organizações
revolucionárias. Os agentes de polícia aprenderam como comportar-se nos
contatos, usar codinomes para maior segurança pessoal e adotar um linguajar
próprio dos militantes quando eram destacados para "cobrir pontos" -
ou seja, comparecer a lugares públicos onde os encontros dos guerrilheiros
urbanos e rurais eram previamente combinados. Desse modo, Anselmo substituiu o
único teórico de análise marxista que o Dops possuía, o delegado Alcides Cintra
Bueno.
A permanência de Anselmo no Dops foi devastadora. Quando a VPR estava
praticamente aniquilada e da ALN - Ação Libertadora Nacional - nada mais
restava, Anselmo retirou-se estrategicamente do cenário. O sistema mostrou-se
reconhecido: montou um aparato secreto para que Anselmo, segundo seu relato,
fosse internado com nome falso no Hospital Albert Einstein, no bairro do
Morumbi, em São Paulo,
para submeter-se a uma cirurgia plástica que iria mudar-lhe completamente o
rosto. O médico também foi escolhido cuidadosamente pelo sistema: fez os exames
preliminares em seu consultório, na Rua Groenlândia, e providenciou a
internação, sem fazer perguntas ou pedir explicações. Fleury cuidou
pessoalmente de tudo, até mesmo da escolta que o Dops realizou dia e noite no
quarto do hospital. Tudo com o amparo de uma verba secreta. Feita a cirurgia,
Anselmo ficou de quarentena de recuperação no apartamento de um delegado do
Dops na Rua Mauá, no centro de São Paulo. Depois, o arremate do plano para
Anselmo sair de cena e nunca mais ser reconhecido por ninguém: o fornecimento
de uma carteira de identidade com o nome trocado e um cadastro de pessoa
física, documentos que Anselmo usa até hoje. O Estado, conscientemente, usou o
seu poder invisível para cometer crimes de falsidade ideológica. Todos esses
cuidados foram considerados necessários porque suspeitou-se que Anselmo pudesse
ser alvo de vingança.
Os serviços secretos das Forças Armadas, que o usaram ao máximo, também
passaram a considerá-lo como um homem incômodo, perigoso, muito mais
interessante morto do que vivo porque sabia de tudo e demais. Fleury, porém,
foi grato - garantiu a segurança do delator e ainda arranjou-lhe um emprego na
empresa particular de um delegado do Dops, que prestava assessorias para
empresas e indústrias interessadas em descobrir funcionários com tendências
políticas que consideravam perigosas.
Anselmo vai se lembrando de todas essas histórias aos poucos. Durante dez dias
consecutivos, a entrevista se desenrola num apartamento em Aracaju, andanças
pela Praia de Atalaia, nas emoções das reminiscências da infância e
adolescência em Itaporanga d'Ajuda, numa viagem de carro para Recife, na
lembrança do aparelho em Olinda. "Estou abrindo o meu coração", diz,
em tom de desabafo, aparentemente querendo pôr os fantasmas para fora, como se
pudesse se livrar deles.
Em plena praça central de Itaporanga, Anita dos Santos, 70 anos, amiga da
família, fita demoradamente aquele homem aturdido no meio de tantas lembranças.
- A senhora se lembra do nome dele? Ela responde, sem vacilar:
"Anselmo!"
A mesma reação - "Anselmo!" - parte de um dos primos, Francisco dos
Santos, 63 anos, eufórico como se estivesse diante de uma personalidade .
"Quem diria, hein?", comenta. Na cena familiar, vagas menções sobre o
movimento dos marinheiros e o golpe de 1964. Nada mais. Anselmo conhece um
sobrinho, que está terminando o curso de história e conta que na faculdade, em
Aracaju, os jovens alunos demonstram muito interesse pelos movimentos de
camponeses, antes de 64, e pelos sem-terra. Anselmo fica a sós com ele num dos
cômodos da casa para fazer um pequeno resumo de sua vida. Na saída, dá-lhe de
presente um exemplar do livro História Indiscreta da Ditadura e da Abertura, de
Ronaldo Costa Couto. Faz uma dedicatória carinhosa. O sobrinho agradece, mas o
tema de sua monografia é outro, bem diferente: a longa história da Igreja na
cidade. "Quem sabe ainda há tempo de mudar?", brinca Anselmo, que se
lembra, nesse instante, do avô José Balbino, que caminhou pelo Rio Vaza-Barris,
leito seco no final do século, para fugir do arraial de Canudos, no sertão da
Bahia, onde a fama de Antonio Conselheiro, seguido por 25 mil adeptos, havia
atraído a ira da República recém-proclamada. O governo mandaria quatro
expedições militares para destruir o arraial de Conselheiro. Anselmo se lembra,
então, do velho Balbino contando para ele e outros meninos como eram as rezas
do Conselheiro, prometendo para os mal-aventurados de Canudos que naquele
lugar, um dia, as barrancas seriam de cuscuz e as águas do rio se
transformariam em
leite.
Anselmo revela a vontade de visitar o túmulo da mãe, Joana.
Mas já se passaram mais de dez anos desde que ela morreu e no pobre cemitério
local é difícil identificar o lugar certo do sepultamento. Não há mais como
saber onde o corpo de dona Joana foi colocado. Anselmo se contenta em saber,
aos poucos, como foram seus últimos dias. Joana faleceu pensando que o filho
tinha morrido. Depois do desaparecimento da mãe, um advogado amigo da família
vendeu a casa, ficou com o dinheiro, apoderou-se das jóias. Anselmo se irrita, confirma
a história com pessoas diferentes e acaba concluindo que nada mais se pode
fazer: depois da rapinagem, o advogado também morreu.
Chegar a Olinda foi contemplar o edifício Solemar, em Rio Doce, onde o aparelho
da VPR não era outra coisa senão uma central de escuta da repressão. Dois
dormitórios, sala de jantar, cozinha e um telefone sempre grampeado, de onde se
ligava para todos os cantos, até para o Chile. Para salvar as aparências, o
casal Anselmo e Soledad Barret montou uma butique, em Olinda, para disfarçar
uma vida legal - Anselmo já não era mais Jônatas, e sim Daniel. A butique
Mafalda vendia blusas bordadas à mão, trabalho de Soledad, e a tapeçaria hobby
de Anselmo. Ainda possuía uma minigaleria para expor quadros de artistas
locais. Helena Lundgreen, dona das Casas Pernambucanas, convidou-os para
promover um desfile fechado das blusas feitas por Soledad. O casal também
esteve numa recepção na casa de Gilberto Freyre, estreando como pintor. A
butique funcionava na Avenida Sigismundo Gonçalves, bem perto dos pontos que
transformaram Olinda em patrimônio histórico da humanidade. O negócio da
butique não prosperou e a VPR insistia em instalar por ali suas bases
nordestinas.
A essa altura, Anselmo e o agente do Dops que fazia parceria com ele, usando o
codinome César, recepcionavam os militantes que chegavam para reconhecimento do
terreno, conduzindo-os diretamente para o aparelho. O trabalho de César era
transportá-los "fechados", com os olhos vendados, e depois
providenciar documentação falsa para todos. Houve um dia em que um delegado da
Polícia Federal relutou em fornecer um passaporte. O delegado Fleury deixou
claro que era questão de segurança nacional. "Só se o Comando do Exército
autorizar", desafiou. O ministro do Exército telefonou em 40 minutos e o
passaporte foi expedido na hora. Dops e Exército gastaram quase três anos nessa
operação para que a cúpula dirigente da VPR ganhasse confiança e fosse sendo
atraída aos poucos, sem desconfiar da arapuca armada. Jônatas enganara seus
companheiros de militância. Jônatas transformara-se, definitivamente, no mais
célebre caso de traição política da história recente do Brasil.
A história da cirurgia plástica
O cabo Anselmo diz ter feito a cirurgia plástica que lhe mudou as feições no
Hospital Albert Einstein, em 1973, em São Paulo. Internou-se
no início da noite e na manhã seguinte já tinha um novo rosto. Um dia a mãe foi
visitá-lo em São Paulo.
Ela não o reconheceu quando Anselmo foi esperá-la no
aeroporto. Somente depois que ele a chamou - "mãe!" - e a tocou nos
ombros, Joana virou-se, surpresa: "Meu filho, o que fizeram com
você?" Naquele momento, o cabo achou que havia feito o grande teste de sua
nova vida: acabava de comprovar que depois da plástica ninguém mais poderia
identificá-lo. "No início, meus companheiros diziam que eu estava
parecendo um Frankenstein", afirma. "Depois da quarentena, sem luz do
sol e remédios, voltei ao normal. Minha cara podia ser qualquer uma, desde que
ela me permitisse circular sem ser reconhecido."
Como achei o Cabo Anselmo
O périplo do repórter Percival de Souza para localizar o marinheiro
Não fazia a menor idéia de que o cabo Anselmo apareceria no meu caminho quando
reiniciei o projeto de escrever um livro sobre a vida do delegado Sérgio
Paranhos Fleury. Numa das entrevistas, um policial falou-me do Dr. Kimble, numa
referência ao personagem de uma antiga série de TV, O Fugitivo, que depois
viraria também um filme com Harrison Ford. Dr. Kimble era o apelido dado ao
cabo Anselmo pelos agentes do Dops que asseguravam o seu sustento em troca das
delações.
Não foi fácil: quatro meses de negociações por meio de um antigo agente do
Dops, homem de confiança de Anselmo, foram necessárias para que ele concordasse
com um primeiro encontro. Esta conversa aconteceu no bar de um hotel na Avenida
São Luís, em São Paulo.
Ele ficou de pensar e desapareceu por outros dois meses. O
segundo encontro aconteceu na biblioteca da Assembléia Legislativa de São
Paulo. Finalmente ele aceitara conceder a entrevista.
A princípio, não quis fotografias, mas terminou por acatá-las, desde que
posasse com óculos escuros. Para garantir a identificação de Anselmo, convenci
o delegado paulista Carlos Alberto Augusto, que o prendera e o ajudara a mudar
de lado, a me encontrar no Nordeste com o cabo. O delegado o reconheceu:
"É ele". Ao término das conversas Anselmo arrumou as malas e partiu.
Os aparelhos
Os dois principais apartamentos montados pelo Dops para auxiliar o
trabalho de Anselmo
Os militantes da esquerda em armas freqüentavam apartamentos que pensavam ser
aparelhos da organização, mas que, na verdade, eram apartamentos montados pelo
Dops com um sistema de escuta para flagrar conversas e registrar com
fotografias os hóspedes. Um dos aparelhos estava instalado na Rua Apinagés 622,
primeiro andar, no bairro das Perdizes, em São Paulo. Outro
foi alugado em Olinda, no número 1101 da Avenida Cláudio Gueiros Leite. Nos
dois lugares, os militantes chegavam "fechados", norma de segurança
que os obrigava a ir aos locais com os olhos vendados. Precaução que se mostrou
inútil diante das delações do cabo Anselmo.
A luta armada
As principais organizações da guerrilha urbana e rural entre 1964 e
o início dos anos 70
PCdoB
Partido Comunista do Brasil.
Comandou a Guerrilha do Araguaia, iniciada em 1972.
PCBR
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.
Principais nomes: Apolônio de Carvalho e Mário Alves.
MNR
Movimento Nacionalista Revolucionário.
Articulado pelos exilados no Uruguai e pelos adeptos de Brizola, em 1964.
MR-8
Movimento Revolucionário 8 de Outubro.
Antiga Dissidência da Guanabara, racha do PCB. Os líderes: Daniel Aarão Reis e
Cláudio Torres.
ALN
Ação Libertadora Nacional.
Nasceu de um racha do PCB. Seu fundador e principal líder foi Carlos
Marighella, morto em 1969.
VPR
Vanguarda Popular Revolucionária.
Seus dirigentes: Carlos Lamarca, Ladislao Dowbor e Onofre Pinto. Liquidada em
1972
Um tempo de confronto
Os 15 anos de guerra política no Brasil, período em que o cabo
Anselmo mudou de lado
13/3/1964 - CENTRAL DO BRASIL
O presidente João Goulart (na foto com a mulher, Maria Tereza) comanda o
comício das Reformas de Base em frente à Central do Brasil. Era o confronto
entre a esquerda e a direita em seu apogeu.
25/3/1964 - MARINHEIROS
José Anselmo dos Santos, presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros
Navais, lidera um motim contra a prisão de 12 de seus companheiros.
31/3/1964 - MILITARES
Um golpe de Estado derruba o presidente João Goulart. Os militares assumem o
poder.
12/10/1968 - ESTUDANTES
Cai o congresso da UNE, em
Ibiúna. As principais lideranças estudantis do país vão para
a cadeia.
13/12/1968 - ESCURIDÃO
O governo de Costa e Silva decreta o AI-5.
4/9/1969 - ELBRICK
Um conjunto de organizações de esquerda seqüestra, no Rio de Janeiro, o
embaixador americano Charles Burke Elbrick.
6/9/1969 - EXÍLIO
O governo cede às exigências dos seqüestradores e aceita a troca do embaixador
dos EUA por 15 presos políticos. O grupo viaja para o México.
4/11/1969 - MARIGHELLA
A polícia, comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, mata, em São Paulo, o líder da
Ação Libertadora Nacional, Carlos Marighella.
17/9/1971 - LAMARCA
Morre no interior da Bahia, numa operação do Exército, o capitão Carlos
Lamarca, um dos líderes da VPR.
15/3/1974 - GEISEL
O presidente Ernesto Geisel toma posse. Ele comandaria o processo de abertura
política lenta e gradual.
25/10/1974 - TORTURA
O jornalista Vladimir Herzog é torturado e morto nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo.
27/6/1979 - ANISTIA
O presidente João Figueiredo assina o projeto de Anistia que seria enviado ao
Congresso e aprovado dois meses depois.
*
Revista Época