domingo, 8 de junho de 2014

Cabo Anselmo - A Face da traição

Estava folheando descompromissadamente um livro ontem quando me deparo com uma informação que me deixou chocado: o Cabo Anselmo, maior símbolo do que pior existe no espírito humano, o traidor, é sergipano! De Itaporanga DAjuda! Juro que não sabia! Mais: ele talvez se esconda por aqui mesmo, nas antigas terras do Cacique Serigy. Foi o que me disse George, vocalista da Warlord – que está voltando. Há boatos de que ele freqüentava sempre um bar, "El Capitan", situado à beira mar na Rodovia José Sarney.

Que a infâmia o persiga sempre! Um homem que entregou, dentre muitos outros, sua própria companheira, grávida de seu filho, à sanha assassina do delegado Sergio Paranhos Fleury não merece viver – nem morrer! – em paz. Ele voltou a aparecer depois de, cinicamente, solicitar indenização – negada por unanimidade – à comissão de anistia. Deu, inclusive, pelo menos duas longas entrevistas à televisão, que se você tiver estômago forte pode assistir AQUI e AQUI. Vale uma olhada, nem que seja para fixar na mente a face da infâmia. Para que, caso seja reconhecido em público, que seja, pelo menos, insultado. Para que não viva em paz!

Abaixo, reproduzo duas matérias que o ajudarão a saber quem é o Cabo Anselmo e quem foi sua principal vítima, Soledad Barret – a mãe de Ñasaindy, cuja história também reproduzi, num post anterior que você pode acessar clicando aqui.

(**)Em 1970, de volta ao Brasil, Anselmo foi preso pela ditadura militar. Em troca da liberdade, delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. A lista de denunciados incluía sua namorada, Soledad Viedma, que acabou morta devido à tortura.

Quem lê “Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza da minha relação com Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a amo, de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então os leitores voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: “mas você não a conheceu?”. E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E explico, ou tento explicar.

Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo.

Entre os assassinados existem pessoas inimagináveis a qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques, vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a fugir, para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele dizia. Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza?

E Soledad Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes. Ainda que não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento da guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario Benedetti; ainda que não fosse a socialista marcada a navalha aos 17 anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda assim... ainda assim o quê?

Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe dá a sentença: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século”. Porque olhem só como sofre um coração. Para recuperar a vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro povos, tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar dele a maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe igual, na altura de covardia e frieza, em toda a literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele superou os agentes duplos, capazes sempre de crimes realizados com perícia e serenidade. Mas para todos eles há um limite: os espiões não chegam à traição da própria carne, da mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam da perversão, acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista, ex-preso político:

“É impressionante o informe do senhor Anselmo sobre aquele grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do Paraná. É algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as ignomínias que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao assunto.

Depois de descrever e informar sobre cada um dos cinco outros camaradas que seriam assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o histórico de família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:

‘É verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela e, nesse caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução final’.

Ao longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a metabolizar (sem perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante umas três semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo, essa voragem”.

Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem agora por que o livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato apaixonado. Não seria possível recriar Soledad de outra maneira. No título, lá em cima, escrevi Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens brasileiros. Ou Soledad, a mulher que apredemos a amar.

(**) Publicado originalmente em www.cartamaior.com.br. Texto por Urariano Mota, 59 anos, natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997), um romance de formação, que se passa sob a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), e de Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009)


(*)José Anselmo dos Santos é um enigma da história recente do Brasil. Ele desapareceu há 26 anos e, desde então, muito pouco se ouviu falar do jovem marinheiro que num discurso explosivo, pronunciado na solenidade de aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, em 25 de março de 1964, acabou precipitando a queda do governo João Goulart, o golpe dos militares e, quatro anos depois, o mergulho do Brasil no longo período da ditadura do AI-5. O pretexto do golpe - a quebra da hierarquia militar - teve no marinheiro um de seus personagens principais, a ponto de muitos terem preferido vê-lo como um espião infiltrado da CIA, a agência de informações dos Estados Unidos.

Imaginava-se o cabo Anselmo morto ou vivendo em outro país. Ele saíra da sombra pela primeira e última vez em março de 1984, numa entrevista dada ao jornalista Octavio Ribeiro e publicada pela revista ISTOÉ. Naquele depoimento, Anselmo fornecia sua versão de como mudara de lado - da militância política na luta armada de esquerda ao extremo oposto, a colaboração com a polícia do delegado Sérgio Paranhos Fleury. De lá para cá, o cabo sumiu. Nem mesmo os próprios familiares pensavam que ele ainda pudesse estar vivo. Época o localizou. Esteve com ele numa visita-surpresa a parentes e amigos de infância na pequena Itaporanga d'Ajuda, a 26 quilômetros de Aracaju, em Sergipe. Quando ele chegou, sem aviso prévio, alguns pensaram assustados que fosse assombração. Diz o amigo de infância José Jessé de Oliveira, 60 anos, hoje vereador pelo PFL: "Como todo mundo por aqui, achei que já o tivessem assassinado". Ele está vivo, mas tem medo de morrer. Sabe que o ódio o cerca.

Em 1964, Anselmo era o marinheiro insuflador que levou à rebelião colegas da Marinha e conseguiu até a adesão espetacular de uma tropa de fuzileiros navais destacada para prendê-los. Foragido, depois de passar algum tempo preso numa delegacia e refugiar-se na embaixada do México, passou a usar o codinome Jônatas (na Bíblia, o leal amigo de Davi). Já era um ativo membro da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, organização de esquerda que montou um ambicioso esquema de ações de guerrilha para derrubar o regime militar.

O que ocorreu com Anselmo, depois da prisão de 1964 - fuga do Brasil, curso de guerrilhas em Cuba, passagens pela Europa e missões como montar uma base de guerrilhas da VPR no Nordeste -, nunca se soube exatamente. Os órgãos de segurança silenciaram completamente e nenhuma pista ficou em seus arquivos. Documentos secretos foram destruídos. Os militantes de esquerda sabiam de alguma coisa, desconfiavam de uma infiltração fatal, de traição e delação, mas ignoravam o real papel desempenhado por Anselmo nos anos de chumbo. Nesta reportagem, ele aceitou narrar detalhes de sua trajetória até então desconhecidos ou mal explicados.

Anselmo conta tudo o que sabe, o que viu, como mudou de lado e como a polícia do delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury o manteve como delator. A entrevista foi realizada em duas etapas - Aracaju e Itaporanga d'Ajuda, em Sergipe, e depois em Recife, Olinda e num sítio no pequeno município de Abreu e Lima, Pernambuco, palco de uma operação mista do Exército e do Dops de São Paulo, em janeiro de 1973, que resultou na morte simultânea de seis guerrilheiros e um golpe mortal dentro da VPR, privada abruptamente dos seus principais líderes. Nessa operação, desencadeada por Anselmo, foi assassinada Soledad Barret Viedma, a Sol, paraguaia, companheira do cabo, com sete meses de gravidez.

Antes da operação policial-militar em Pernambuco, Anselmo havia sido preso em São Paulo, em 1971. Dentro do Dops, ele passou por uma conversão política que teve a força de lavagem cerebral, feita pelo delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, o temível chefe do Departamento de Ordem Política e Social. Foi quando aconteceu a grande transformação: Jônatas, o guerrilheiro combatente, passou a ser um privilegiado agente secreto do Dops infiltrado dentro da própria organização de luta armada, mantendo contatos normais, fazendo planejamentos e promovendo encontros. Até então, ele não era um militante qualquer. O ex-deputado pelo PCB, Carlos Marighella, o ajudara a escrever o discurso, em 1964, que tanto inflamara os militares. Marighella, já na guerrilha, ajudaria também a escrever, em Havana, o texto lido por Anselmo num encontro de revolucionários na conferência da OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, que "autorizou" a luta armada na América Latina. Essa perigosa vida dupla permitiu que os agentes da repressão política pudessem capturar - e em muitos casos matar - os quadros da liderança e militância, atônitos em perceber que, aos poucos, as organizações de esquerda, em particular a VPR, estavam sendo pulverizadas.

Como se deu a destruição? Era um grande segredo partilhado apenas por poucos membros do antigo Dops e dos serviços de informação do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Em conjunto, essas quatro forças da repressão promoveram ações simultâneas nos principais pontos da ação de guerrilha urbana - São Paulo, Rio de Janeiro e Recife - graças a uma estratégia que, sabe-se agora, parecia coisa de cinema. Anselmo passou a morar dentro do próprio Dops, um prédio de cinco andares, todo de tijolos avermelhados, construído em 19l0 pelo engenheiro Ramos de Azevedo. O edifício, um dos grandes símbolos da repressão política em São Paulo, fica no Largo General Osório. Ali, no inacessível quinto andar, o ex-marinheiro passou a residir numa sala especial, bem ao lado do Serviço de Informações - chamado de Serviço Secreto dentro do Dops e das Forças Armadas -, e tendo como vizinho cordial o delegado Romeu Tuma. Era esse o lugar onde se cruzavam as informações entre Dops e DOI-CODI, eram analisados os documentos apreendidos, planejadas as invasões de aparelhos da organização e orientados os agentes que iriam participar dos interrogatórios para arrancar confissões que permitiriam desdobramentos de outras operações policiais e militares. A luta armada no Brasil começava a ser minada por dentro - com o apoio de um homem que iniciou sua carreira política num campo e mudara de lado.

Nas horas de folga, Anselmo passou a distrair-se com tapeçaria. Mas dispunha de pouco tempo para isso, pois logo também foi requisitado para tornar-se um arremedo de professor exclusivo para os policiais dos segredos das organizações revolucionárias. Os agentes de polícia aprenderam como comportar-se nos contatos, usar codinomes para maior segurança pessoal e adotar um linguajar próprio dos militantes quando eram destacados para "cobrir pontos" - ou seja, comparecer a lugares públicos onde os encontros dos guerrilheiros urbanos e rurais eram previamente combinados. Desse modo, Anselmo substituiu o único teórico de análise marxista que o Dops possuía, o delegado Alcides Cintra Bueno.

A permanência de Anselmo no Dops foi devastadora. Quando a VPR estava praticamente aniquilada e da ALN - Ação Libertadora Nacional - nada mais restava, Anselmo retirou-se estrategicamente do cenário. O sistema mostrou-se reconhecido: montou um aparato secreto para que Anselmo, segundo seu relato, fosse internado com nome falso no Hospital Albert Einstein, no bairro do Morumbi, em São Paulo, para submeter-se a uma cirurgia plástica que iria mudar-lhe completamente o rosto. O médico também foi escolhido cuidadosamente pelo sistema: fez os exames preliminares em seu consultório, na Rua Groenlândia, e providenciou a internação, sem fazer perguntas ou pedir explicações. Fleury cuidou pessoalmente de tudo, até mesmo da escolta que o Dops realizou dia e noite no quarto do hospital. Tudo com o amparo de uma verba secreta. Feita a cirurgia, Anselmo ficou de quarentena de recuperação no apartamento de um delegado do Dops na Rua Mauá, no centro de São Paulo. Depois, o arremate do plano para Anselmo sair de cena e nunca mais ser reconhecido por ninguém: o fornecimento de uma carteira de identidade com o nome trocado e um cadastro de pessoa física, documentos que Anselmo usa até hoje. O Estado, conscientemente, usou o seu poder invisível para cometer crimes de falsidade ideológica. Todos esses cuidados foram considerados necessários porque suspeitou-se que Anselmo pudesse ser alvo de vingança.

Os serviços secretos das Forças Armadas, que o usaram ao máximo, também passaram a considerá-lo como um homem incômodo, perigoso, muito mais interessante morto do que vivo porque sabia de tudo e demais. Fleury, porém, foi grato - garantiu a segurança do delator e ainda arranjou-lhe um emprego na empresa particular de um delegado do Dops, que prestava assessorias para empresas e indústrias interessadas em descobrir funcionários com tendências políticas que consideravam perigosas.

Anselmo vai se lembrando de todas essas histórias aos poucos. Durante dez dias consecutivos, a entrevista se desenrola num apartamento em Aracaju, andanças pela Praia de Atalaia, nas emoções das reminiscências da infância e adolescência em Itaporanga d'Ajuda, numa viagem de carro para Recife, na lembrança do aparelho em Olinda. "Estou abrindo o meu coração", diz, em tom de desabafo, aparentemente querendo pôr os fantasmas para fora, como se pudesse se livrar deles.

Em plena praça central de Itaporanga, Anita dos Santos, 70 anos, amiga da família, fita demoradamente aquele homem aturdido no meio de tantas lembranças.

- A senhora se lembra do nome dele? Ela responde, sem vacilar:  "Anselmo!"

A mesma reação - "Anselmo!" - parte de um dos primos, Francisco dos Santos, 63 anos, eufórico como se estivesse diante de uma personalidade . "Quem diria, hein?", comenta. Na cena familiar, vagas menções sobre o movimento dos marinheiros e o golpe de 1964. Nada mais. Anselmo conhece um sobrinho, que está terminando o curso de história e conta que na faculdade, em Aracaju, os jovens alunos demonstram muito interesse pelos movimentos de camponeses, antes de 64, e pelos sem-terra. Anselmo fica a sós com ele num dos cômodos da casa para fazer um pequeno resumo de sua vida. Na saída, dá-lhe de presente um exemplar do livro História Indiscreta da Ditadura e da Abertura, de Ronaldo Costa Couto. Faz uma dedicatória carinhosa. O sobrinho agradece, mas o tema de sua monografia é outro, bem diferente: a longa história da Igreja na cidade. "Quem sabe ainda há tempo de mudar?", brinca Anselmo, que se lembra, nesse instante, do avô José Balbino, que caminhou pelo Rio Vaza-Barris, leito seco no final do século, para fugir do arraial de Canudos, no sertão da Bahia, onde a fama de Antonio Conselheiro, seguido por 25 mil adeptos, havia atraído a ira da República recém-proclamada. O governo mandaria quatro expedições militares para destruir o arraial de Conselheiro. Anselmo se lembra, então, do velho Balbino contando para ele e outros meninos como eram as rezas do Conselheiro, prometendo para os mal-aventurados de Canudos que naquele lugar, um dia, as barrancas seriam de cuscuz e as águas do rio se transformariam em leite.

Anselmo revela a vontade de visitar o túmulo da mãe, Joana. Mas já se passaram mais de dez anos desde que ela morreu e no pobre cemitério local é difícil identificar o lugar certo do sepultamento. Não há mais como saber onde o corpo de dona Joana foi colocado. Anselmo se contenta em saber, aos poucos, como foram seus últimos dias. Joana faleceu pensando que o filho tinha morrido. Depois do desaparecimento da mãe, um advogado amigo da família vendeu a casa, ficou com o dinheiro, apoderou-se das jóias. Anselmo se irrita, confirma a história com pessoas diferentes e acaba concluindo que nada mais se pode fazer: depois da rapinagem, o advogado também morreu.

Chegar a Olinda foi contemplar o edifício Solemar, em Rio Doce, onde o aparelho da VPR não era outra coisa senão uma central de escuta da repressão. Dois dormitórios, sala de jantar, cozinha e um telefone sempre grampeado, de onde se ligava para todos os cantos, até para o Chile. Para salvar as aparências, o casal Anselmo e Soledad Barret montou uma butique, em Olinda, para disfarçar uma vida legal - Anselmo já não era mais Jônatas, e sim Daniel. A butique Mafalda vendia blusas bordadas à mão, trabalho de Soledad, e a tapeçaria hobby de Anselmo. Ainda possuía uma minigaleria para expor quadros de artistas locais. Helena Lundgreen, dona das Casas Pernambucanas, convidou-os para promover um desfile fechado das blusas feitas por Soledad. O casal também esteve numa recepção na casa de Gilberto Freyre, estreando como pintor. A butique funcionava na Avenida Sigismundo Gonçalves, bem perto dos pontos que transformaram Olinda em patrimônio histórico da humanidade. O negócio da butique não prosperou e a VPR insistia em instalar por ali suas bases nordestinas.

A essa altura, Anselmo e o agente do Dops que fazia parceria com ele, usando o codinome César, recepcionavam os militantes que chegavam para reconhecimento do terreno, conduzindo-os diretamente para o aparelho. O trabalho de César era transportá-los "fechados", com os olhos vendados, e depois providenciar documentação falsa para todos. Houve um dia em que um delegado da Polícia Federal relutou em fornecer um passaporte. O delegado Fleury deixou claro que era questão de segurança nacional. "Só se o Comando do Exército autorizar", desafiou. O ministro do Exército telefonou em 40 minutos e o passaporte foi expedido na hora. Dops e Exército gastaram quase três anos nessa operação para que a cúpula dirigente da VPR ganhasse confiança e fosse sendo atraída aos poucos, sem desconfiar da arapuca armada. Jônatas enganara seus companheiros de militância. Jônatas transformara-se, definitivamente, no mais célebre caso de traição política da história recente do Brasil. 

A história da cirurgia plástica

O cabo Anselmo diz ter feito a cirurgia plástica que lhe mudou as feições no Hospital Albert Einstein, em 1973, em São Paulo. Internou-se no início da noite e na manhã seguinte já tinha um novo rosto. Um dia a mãe foi visitá-lo em São Paulo. Ela não o reconheceu quando Anselmo foi esperá-la no aeroporto. Somente depois que ele a chamou - "mãe!" - e a tocou nos ombros, Joana virou-se, surpresa: "Meu filho, o que fizeram com você?" Naquele momento, o cabo achou que havia feito o grande teste de sua nova vida: acabava de comprovar que depois da plástica ninguém mais poderia identificá-lo. "No início, meus companheiros diziam que eu estava parecendo um Frankenstein", afirma. "Depois da quarentena, sem luz do sol e remédios, voltei ao normal. Minha cara podia ser qualquer uma, desde que ela me permitisse circular sem ser reconhecido."

Como achei o Cabo Anselmo 

O périplo do repórter Percival de Souza para localizar o marinheiro

Não fazia a menor idéia de que o cabo Anselmo apareceria no meu caminho quando reiniciei o projeto de escrever um livro sobre a vida do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Numa das entrevistas, um policial falou-me do Dr. Kimble, numa referência ao personagem de uma antiga série de TV, O Fugitivo, que depois viraria também um filme com Harrison Ford. Dr. Kimble era o apelido dado ao cabo Anselmo pelos agentes do Dops que asseguravam o seu sustento em troca das delações.

Não foi fácil: quatro meses de negociações por meio de um antigo agente do Dops, homem de confiança de Anselmo, foram necessárias para que ele concordasse com um primeiro encontro. Esta conversa aconteceu no bar de um hotel na Avenida São Luís, em São Paulo. Ele ficou de pensar e desapareceu por outros dois meses. O segundo encontro aconteceu na biblioteca da Assembléia Legislativa de São Paulo. Finalmente ele aceitara conceder a entrevista.

A princípio, não quis fotografias, mas terminou por acatá-las, desde que posasse com óculos escuros. Para garantir a identificação de Anselmo, convenci o delegado paulista Carlos Alberto Augusto, que o prendera e o ajudara a mudar de lado, a me encontrar no Nordeste com o cabo. O delegado o reconheceu: "É ele". Ao término das conversas Anselmo arrumou as malas e partiu.

Os aparelhos 

Os dois principais apartamentos montados pelo Dops para auxiliar o trabalho de Anselmo

Os militantes da esquerda em armas freqüentavam apartamentos que pensavam ser aparelhos da organização, mas que, na verdade, eram apartamentos montados pelo Dops com um sistema de escuta para flagrar conversas e registrar com fotografias os hóspedes. Um dos aparelhos estava instalado na Rua Apinagés 622, primeiro andar, no bairro das Perdizes, em São Paulo. Outro foi alugado em Olinda, no número 1101 da Avenida Cláudio Gueiros Leite. Nos dois lugares, os militantes chegavam "fechados", norma de segurança que os obrigava a ir aos locais com os olhos vendados. Precaução que se mostrou inútil diante das delações do cabo Anselmo.

A luta armada 

As principais organizações da guerrilha urbana e rural entre 1964 e o início dos anos 70

PCdoB
Partido Comunista do Brasil.
Comandou a Guerrilha do Araguaia, iniciada em 1972.

PCBR
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.
Principais nomes: Apolônio de Carvalho e Mário Alves.

MNR
Movimento Nacionalista Revolucionário.
Articulado pelos exilados no Uruguai e pelos adeptos de Brizola, em 1964.

MR-8
Movimento Revolucionário 8 de Outubro.
Antiga Dissidência da Guanabara, racha do PCB. Os líderes: Daniel Aarão Reis e Cláudio Torres.

ALN
Ação Libertadora Nacional.
Nasceu de um racha do PCB. Seu fundador e principal líder foi Carlos Marighella, morto em 1969.

VPR
Vanguarda Popular Revolucionária.
Seus dirigentes: Carlos Lamarca, Ladislao Dowbor e Onofre Pinto. Liquidada em 1972

Um tempo de confronto
Os 15 anos de guerra política no Brasil, período em que o cabo Anselmo mudou de lado

13/3/1964 - CENTRAL DO BRASIL
O presidente João Goulart (na foto com a mulher, Maria Tereza) comanda o comício das Reformas de Base em frente à Central do Brasil. Era o confronto entre a esquerda e a direita em seu apogeu.

25/3/1964 - MARINHEIROS
José Anselmo dos Santos, presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, lidera um motim contra a prisão de 12 de seus companheiros.

31/3/1964 - MILITARES
Um golpe de Estado derruba o presidente João Goulart. Os militares assumem o poder.

12/10/1968 - ESTUDANTES
Cai o congresso da UNE, em Ibiúna. As principais lideranças estudantis do país vão para a cadeia.

13/12/1968 - ESCURIDÃO
O governo de Costa e Silva decreta o AI-5.

4/9/1969 - ELBRICK
Um conjunto de organizações de esquerda seqüestra, no Rio de Janeiro, o embaixador americano Charles Burke Elbrick.

6/9/1969 - EXÍLIO
O governo cede às exigências dos seqüestradores e aceita a troca do embaixador dos EUA por 15 presos políticos. O grupo viaja para o México.

4/11/1969 - MARIGHELLA
A polícia, comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, mata, em São Paulo, o líder da Ação Libertadora Nacional, Carlos Marighella.

17/9/1971 - LAMARCA
Morre no interior da Bahia, numa operação do Exército, o capitão Carlos Lamarca, um dos líderes da VPR.

15/3/1974 - GEISEL
O presidente Ernesto Geisel toma posse. Ele comandaria o processo de abertura política lenta e gradual.

25/10/1974 - TORTURA
O jornalista Vladimir Herzog é torturado e morto nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo.

27/6/1979 - ANISTIA
O presidente João Figueiredo assina o projeto de Anistia que seria enviado ao Congresso e aprovado dois meses depois.

* Revista Época

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