terça-feira, 31 de março de 2015

Noite sinistra ...

A noite prometia: era apenas a segunda apresentação do Ratos de porão, lendária banda de Hard Core paulistana, há mais de 30 anos na ativa, em Aracaju. Terceira vinda deles aqui, se contarmos a vez em que vieram mas não tocaram porque tomaram um calote do “produtor”. Ficou apenas numa tarde de autógrafos no shopping Riomar e num acesso de furia coletiva do publico, que destruiu e saqueou a loja do pilantra. Que pouco tempo depois foi preso em flagrante por estupro, mas fugiu da cadeia e hoje é procurado até pela Interpol! Mas isso foi há muito tempo atrás. Coisa de 20 anos. Tocaram, finalmente, há cerca de 7 anos, na finada – e saudosa – ATPN, na Atalaia. E, que eu saiba, foi tudo mais ou menos ok ...


Mais ou menos porque aquela noite marcou a saída de cena da Terrozone produções, que vinha trazendo grandes nomes do cenário nacional à cidade, sob a alegação de prejuízos na bilheteria. Não parecia o caso, agora: um bom público compareceu à Casa Rua da Cultura na noite de sábado, 28 de março de 2015.

Cheguei por volta das 22:00H à recém-reformada Praça Camerino, no centro da cidade, àquela altura já tomada pelo tradicional “pretume” dos freqüentadores deste tipo de evento. A tempo de presenciar, logo de cara, uma cena inusitada: a primeira pichação, no monumento central da praça! Pelo menos havia uma mensagem, digamos, “edificante”: “A Rua é nossa! Fora fascistas”. Ah se a “wannabe” “puliça” (não mais uma “simples” guarda municipal) de sua excelência João Alves primeiro e único, o eterno, pega uma coisa dessas! Ia ser bomba de gás pra todo lado! A festa ia acabar ali mesmo ...

Não foram pegos, os pichadores - a guarda municipal certamente estava brincando de ser PM em algum outro lugar, ao invés de cumprir sua obrigação original, que é a de garantir a preservação do patrimônio público -, e a noite prosseguiu relativamente tranqüila. Mas não por muito tempo. Já na entrada estranhei: não havia revista! Era pagar, apresentar o ingresso e entrar, livremente. Não me lembro de ter visto, também, nenhuma sinalização de saída de emergência. A  área pela qual o público tinha que passar para circular entre os ambientes era estreita e estava sempre congestionada. Não quero nem imaginar o que teria acontecido caso houvesse algum tumulto ou incidente sério durante as apresentações. O mesmo vale para vários outros espaços de eventos da cidade. A tragédia da Boate Kiss já parece ter sido esquecida e voltamos à velha rotina de negligencia com a segurança e a vida das pessoas. Péssimos sinais. Mas tudo bem, vai dar tudo certo ...

Não deu. Mas a gente chega já lá. Nem tudo foi “treta” nesta noite antológica que foi aberta pela Cessar Fogo, banda já não tão nova mas que acaba sendo, se comparada à “headliner” e à Karne Krua, que tocaria em seguida e já está há 30 anos na estrada. Since 1985.

Cessar Fogo mandou muito bem! Fazem um som com uma pegada bem tradicional aliada a algumas firulas na guitarra, o que dá ao "molho" um sabor especial, inusitado, fugindo um pouco do "feijão com arroz" do punk rock. Estão com uma nova formação, novamente com dois guitarristas, o que ajuda a reproduzir os arranjos de seu primeiro – e excelente – disco, “conflitos mundanos”. Muito bem ensaiados, entregaram uma perfomance precisa e energética sob o comando do carismático “frontman” Luiz. O publico prestigiou e já se apresentava em bom número no recinto, agitando bastante, muito embora já se fizesse presente, também, o tradicional palhaço que pensa que show de rock é um picadeiro no qual pode extravasar suas frustrações na base da violência gratuita. Lamentável, mas o imbecil era um só e foi devidamente identificado – não pela segurança, que não existia, mas pela própria intervenção dos presentes, que trataram de colocá-lo em seu devido lugar. Ânimos acalmados, tudo transcorreu na paz.

Na apresentação seguinte, da Karne Krua, os problemas com o som começaram a se tornar evidentes: a guitarra estava baixa e mal se ouvia a voz de Silvio. Melhorou quando ele trocou de microfone. Foi uma apresentação curta e grossa, que se encerrou em grande estilo com “inanição”. Em todo caso, muito boa, como sempre.

Os ânimos voltaram a se exaltar no meio do público quando a Edose estava no palco. Fazem um som que remete a Matanza e Raimundos, com letras que falam de cerveja, mulher e ... briga! “Não sei ainda o que penso da vida/Mas o que me incomoda eu resolvo na briga”, diz uma delas. “Rock testosterona", eu diria. A pista foi tomada por caras “fortões” exalando “masculinidade”. Não é, definitivamente, a minha praia, então fui tomar um ar, porque o calor dentro do recinto era insuportável ...

Piorou, e muito, quando o Ratos subiu, finalmente, ao palco. Haviam cerca de 400 cabeças na casa – relativamente pequena - e todo mundo entrou pra ver, evidentemente – a Casa Rua da Cultura tem vários ambientes, um deles externo, onde todos se concentravam nos intervalos, já que não era permitido sair para a praça. O caos se formou, com algumas rodas de pogo mais insanas já registradas aqui neste cantinho do mundo, além das já tradicionais invasões de palco e "stage dives".  E o Gordo já foi logo mandando o papo reto, confirmando a suspeita de que havia algo errado no ar: “o patrão aí diz que não tem grana pra pagar a gente, e ainda vamos ter que pegar uma van até Salvador pra descer a duas horas de SP pra voltar pra casa. Mas vamos tocar, em respeito a vocês, do público. Se isso não for amor, não sei mais o que é”. E tome cacetada atrás de cacetada no pé do ouvido! Um repertório eclético, que misturou músicas de praticamente todas as fases da banda tocadas numa velocidade insana, além de dois covers, do Anti Cimex e do Extreme Noise Terror. Grande show, com um som bem melhor equalizado que o das bandas de abertura. Deu pra ouvir tudo em alto e relativamente bom som.

Teria sido tudo, se não perfeito, de excelente tamanho, não fosse o que veio a seguir, na praça, quando o evento já havia acabado e o público se dispersava: uma briga estúpida que terminou, literalmente, em sangue. Muito sangue! Nunca tinha visto nada parecido, parecia cena de Kill Bill. Estranho, pois não vi nenhum objeto cortante na mão de nenhum dos “gladiadores”. Mas havia, certamente, porque o corte foi feio. Com as unhas é que não foi feito ...

O cara foi socorrido e consta que passa bem. O autor da “proeza”, velho conhecido da cena, fugiu do flagrante mas não demonstra arrependimento, já que chegou a postar novas ameaças no facebook! Facebook que também foi usado pelo Ratos para lavar a roupa suja, numa sequencia de troca de ofensas lamentável. Eles reclamam da falta de pagamento e do não cumprimento das exigências técnicas previamente acordadas relativas ao som de palco. Acompanhe a polêmica clicando aqui, caso tenha estômago para mais uma daquelas discussões intermináveis, com direito a ameaças de morte e linchamento virtual coletivo.

E foi isso. Dentre mortos e feridos, salvaram-se todos. Lamentáveis os contratempos, mas eu me diverti, devo admitir. E diversão é solução, sim. É solução pra mim. Que a crise nacional e mundial seja contornada, que o Estado Islâmico seja derrotado, que os produtores produzam e as bandas sejam pagas! Que venham mais e melhores shows ...

Mas o DOOM, que ia rolar no lançamento do novo disco da Karne Krua, já era. Foi cancelado.

"O sonho acabou". De novo.

Sonhar é de graça.

Realizar ...

A.

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segunda-feira, 23 de março de 2015

MINISTRY, PORRA !!!!!!!!!!!!!!!

Foto: Edi Fortini
Cerca de 700 pessoas compareceram no dia 06 de março de 2015 ao Audio Club, em São Paulo, para presenciar a primeira passagem do Ministry, banda pioneira do rock industrial, pelo Brasil. “Banda” em termos: trata-se da lenda-viva (há quem diga que por pouco tempo) Al Jourgensen acompanhado de uma competentíssima “trupe”que ele definiu numa entrevista à revista Rodie Crew como, basicamente, “o Prong com um vocalista melhor”: Tony Campos (que também toca no Soufly) no baixo, Aaron Rossi na bateria, John Bechdel (Fear Factory, Killing Joke) nos teclados e Monte Pittman – que, acredite, toca há anos com a Madonna! – numa das guitarras. Na outra guitarra a única exceção, o californiano - com cara de mexicano - Sin Quirin. Que nunca tocou no Prong.

Foto: Edi Fortini
A platéia, por conta dos mais de 20 anos de atraso, se transformou num verdadeiro ponto de encontro de roqueiros doidões de meia-idade vindos de todas as partes do Brasil. Dentre eles, alguns “pesos-pesados” do jornalismo musical safra década de 1990, como Regis Tadeu(ok, nem tanto) e os Andrés Barcinsky e Forastieri. Eu revi amigos de longa data do Rio – Hudson, eterno ex-INP$ - Goiânia – Marcio Jr., do Mechanics e da Monstro Discos – e de SP mesmo – Eduardo Abreu, ex-diretor de filmes pornô e editor da revista 100Tribos. Uma verdadeira festa de confraternização de luxo, com sonorização de primeira.

Não teve discotecagem, apesar de João Gordo constar no “cardápio”. A julgar pelo que eu havia visto na noite anterior não perdemos muita coisa. Nem banda de abertura. Teve atraso, o que na verdade veio a calhar, pois contribuiu para que acontecessem os encontros descritos no parágrafo anterior. Nevermind: o que importa é que os caras estavam lá, fizeram um puta show e deu pra ver tudo de forma confortável, relativamente perto do palco mas a uma distancia segura da insanidade que, previsivelmente, se materializou na “linha de frente” ...

A visão de quem entrava na casa já era de arrepiar: o característico pedestal com osssadas à frente e um telão com o nome da banda ao fundo. Telão que passou a mostrar imagens muito bem editadas que ilustravam as letras das músicas à medida que estas iam sendo  executadas - em alto e bom som! Não tão alto, nem tão bom, mas ok.  Tudo quase perfeito, da perfomance ao repertório, que ignorou o fato de que aquela era a primeira vez deles por aqui e seguiu o roteiro da tour, com destaque para músicas do disco mais recente, “From Beer to eternity”. Blocos de músicas de álbuns específicos executados em sequencia, na verdade. Às vezes na exata sequencia em que estão nos discos, como no caso das quatro primeiras, “Hail to His Majesty”,  “Punch in the Face”, “PermaWar” e “Fairly Unbalanced”. Do “Rio Grande Blood”, por exemplo, tivemos faixa-título e as matadoras “Señor Peligro” e “LiesLiesLies”, esta última com o refrão cantado a plenos pulmões pela platéia.

Saltava aos olhos – e ouvidos – à esta altura a qualidade técnica dos músicos, especialmente de Quirin, que debulhava a guitarra em solos fantásticos sob o olhar de aprovação do “Uncle” Al. A massaroca sonora era precisa, opressiva e impiedosa, mas soava como um bálsamo auditivo para quem esperou quase que uma vida inteira pra ver – e ouvir! - aquela desgraça ao vivo.  O show prossegue com duas “dobradinhas”: “Waiting” e “Worthless”, do “Houses of the Molé”(2004), e “Watch Yourself” e “Life Is Good”, do “The Last Sucker”(2007). E então o mundo acabou ...

... porque eles entraram, finalmente, na fase áurea da banda, do final dos anos 80 ao início dos 90, com uma sequencia absolutamente matadora: “NWO”, “Just One Fix”, “Thieves” e “So What”. Sangue, suor e lágrimas. Por todos os lados.

Já teria valido a pena só por estes quatro petardos, o que torna passível de perdão o bis preguiçoso e anticlimático, com a arrastada “Khyber Pass”, do “Rio Grande Blood”, e “Enjoy the quiet”, uma colagem de ruídos que serviu de trilha sonora para uma decida de Al até a platéia para cumprimentar os que estavam colados na grade.

Aquele foi o tipo de noite que se recusa a acabar, então saímos eu e meus camaradas Reinaldo, Hudson e Marcio Jr. atrás de um boteco para comemorar o feito. Encontramos. Bebemos. Comemoramos.

E nunca esqueceremos.

A.

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Set list:

Hail to His Majesty
Punch in the Face
PermaWar
Fairly Unbalanced
Rio Grande Blood
Señor Peligro
LiesLiesLies
Waiting
Worthless
Watch Yourself
Life Is Good
N.W.O.
Just One Fix
Thieves
So What

Khyber Pass
Enjoy the quiet

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sexta-feira, 20 de março de 2015

The Sonics em São Paulo ...

Foto: Luisa Migueres / Terra
The Sonics é uma daquelas bandas que surgiram, fizeram algum barulho – tiveram pelo menos um hit "underground", “The Witch” – e depois sumiram na poeira da história. Ficariam para sempre no limbo do esquecimento se não estivessem, também, muito à frente do seu tempo, o que fez com que se tornassem um objeto de culto extremamente influente. Só para que se tenha uma idéia, Iggy Pop já disse uma vez que se não fosse pelos Sonics, o Stooges não teria existido. Não precisaria dizer mais nada, mas digo: The Cramps gravou “strychnine” em seu álbum de estréia, “Songs the Lord Tought us”. The Fall a incluiu numa “peel session”. Kurt Cobain era fã. Eles são de Tacoma, Washington. Na região de Seattle. Desnecessário dizer que são, também, uma espécie de padrinhos, ou “avôs”, do grunge.

Foto: Luisa Migueres / Terra
É protopunk, rock de garagem sujo e distorcido produzido muito antes da sujeira e da distorção tomarem conta do mundo. Falavam sobre sexo, drogas e insanidade – “psycho”! - entre acordes minimalistas e ritmos primais quando o mundo se preparava para mergulhar na psicodelia – que logo levaria ao rock progressivo – e no verão do amor hippie. Deram seu recado e se separaram, em 1968. Uns foram para a universidade, outros entraram em outras bandas. O saxofonista Rob Lind foi para o Vietnã. Combater. Fizeram aparições esporádicas com formações improvisadas ao longo do tempo, até decidirem voltar definitivamente no final da primeira década do século XXI. Em 2010 lançaram um EP, “8”, com quatro musicas inéditas gravadas em estúdio – de Seattle, com produção de Larry Parypa e Jack Endino - e quatro clássicos de seu repertório registrados ao vivo. Anunciam para o próximo dia 31 de março o primeiro álbum de inéditas em mais de 40 anos. Para comemorar, saíram em turnê pelo mundo. E começaram pelo Brasil ...

Foto: Luisa Migueres / Terra
Por São Paulo, mais precisamente. Show único e exclusivo. Imperdível! Eu não perdi – por sorte, estava de viagem marcada para ver o Ministry, que se apresentaria na mesma casa – Audio, na Barra Funda – na noite seguinte. Também pela primeira vez no Brasil e com um único show. Duas noites que prometiam. Muito.

A primeira promessa foi cumprida com louvor. Cheguei atrasado mas consegui ingresso. A entrada foi tranqüila – havia fila apenas para as cortesias. Era uma festa da Levi´s. Lá dentro, pouca gente – e olha que a casa é pequena. Mas não por muito tempo: logo o ambiente estava completamente tomado por um público ansioso que, no entanto, curtiu numa boa a apresentação do Legendário Chucrobilly, de Curitiba. Bom show. Extremamente minimalista – é uma “one man band” – e com uma sonoridade totalmente “hillbilly”. Na sequencia, uma discotecagem – fraca – de João Gordo.Muita musiquinha japonesa esquisitinha. Achei chato.

Foto: Luisa Migueres / Terra
Um “coroa” sobe ao palco para averiguar as instalações – eu estava colado lá, com meu camarada Andhye Iore, de Maringá. Uma garota mostra um LP, em vinil, e dá a entender que quer autógrafos. Ele explica que não é da banda, mas ela pede, por gestos, que ele leve o disco para os caras assinarem. Ele leva. E trás, com as assinaturas. Ela fica feliz. Eu também. Estamos todos felizes. E a felicidade explode de vez quando eles sobem finalmente ao palco, com um visual totalmente antiquado – roupas indênticas, estilo “country” – mas um som poderoso,  apesar dos problemas técnicos com o amplificador da guitarra. Começaram com “Cinderella” sendo berrada a plenos pulmões pelo vocalista/baixista Freddie Dennis, ex-Freddie and the Screamers, the Kingsmen e  the Liverpool 5. Ele não é da formação original, como o baterista, mas foda-se: puta vocal ácido! Perfeitamente integrado. O outro vocal, mais “encorpado” e técnico, fica por conta do tecladista, Gerry Rosile – este, sim, membro fundador. Assim como o guitarrista, Larry Parypa, e o ex-soldado e saxofonista Rob Lind. Que não se fez de rogado e já foi logo sacando do bolso uma gaita que tocou de forma visceral. A casa quase veio abaixo ...

Foto: Luisa Migueres / Terra
Já na segunda ou terceira música o palco foi invadido por garotas que dançavam ao som da banda, sem atrapalhar o show. Coisa linda de se ver. Pena que a festa não duraria: a equipe de segurança tratou de por ordem na casa. Na medida do possível, pois o público estava realmente insano e conseguiu passar a energia para o palco. Com direito, inclusive, a vários “crowd surfing”! Parecia show de Hard Core! Lind, o saxofonista, era também o encarregado de se comunicar com a platéia e não conseguia esconder a cara de satisfação.  Se despediu com um “goodbye, crazy  people”, depois de uma apresentação histórica em que standards – tipo “loui loui” - foram executados ao lado de composições próprias cantadas por todos a plenos pulmões. Algumas novas, e muito boas. Inclusive nos títulos: uma delas foi anunciada como “I don´t need no fucking doctor”! Mais apropriado, impossível.

Uma daquelas noites para lavar a alma e ficar na memória de quem presenciou.

Foto: Luisa Migueres / Terra
Para sempre!

A.

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segunda-feira, 2 de março de 2015

BEM-VINDOS AO FIM DO MUNDO

O que faz o conceito de “álbum” tão caro à cultura pop é o fato de que o projeto é geralmente pensado como um todo, desde a concepção da arte da capa, do lay-out do encarte, da contracapa e do selo, até a posição em que as músicas são dispostas ao longo do disco. O novo disco da Karne Krua, “Bem-vidos ao fim do mundo”, é um álbum, na melhor acepção da palavra, com conceitos, no geral – há apenas uma exceção, sobre a qual discorreremos mais detalhadamente adiante - muito bem desenvolvidos e definidos. E o que é melhor: tudo realizado pelos próprios componentes da banda, como manda a tradição do “faça você mesmo”. “With a little help from their friends”, na produção – musical e executiva.

A capa é belíssima. Obra de Alexandre Gandhi, o guitarrista – que é também artista plástico. Nela, num círculo em que o centro é a morte, gravitam os males do mundo, das crianças famintas à repressão dos “pigs”, das favelas aos horrores da guerra. A capa é dupla, e dentro temos uma bela foto de Silvio, vocalista e único membro fundador remanescente. No encarte, uma foto tirada nos corredores da Aperipê FM na noite antológica – para mim, pelo menos – em que eles lançaram o disco anterior, “Inanição”, ao vivo no programa de rock. Tudo perfeitamente organizado numa diagramação elegante e de muito bom gosto, cortesia de Ivo Delmondes, o baixista.

Aí partimos para o que realmente importa – mentira, tudo é importante. Mas a música é a razão de tudo, então é nela que devemos nos ater. Começa de sopetão, numa “vibe” “Tudo ao mesmo tempo agora”, assim que os sulcos encontram as primeiras freqüências gravadas: é “Horrores humanos”, curtinha, simples e direta, perfeita como faixa de abertura. Na seqüência temos “Por enquanto sem coisas belas”, e aí já nos deparamos com outra característica marcante da Karne Krua: a construção coletiva. Letra e música de Alexandre Gandhi.

Na faixa seguimos quem dá as caras de forma vigorosa, com uma marcação poderosa e perfeitamente integrada ao arranjo, é o baixo de Ivo Delmondes. Segue assim em “Usinas de mortos”. A esta altura fica evidente o entrosamento dos músicos e a qualidade da gravação. Tudo feito aqui mesmo, em Aracaju. Gravado nos estúdios Rikeza e mixado e masterizado por Alex Prado, com o auxílio da própria banda. Impossível não comparar com o primeiro disco, de 1994, que teve que ser gravado em Recife, com um resultado infinitamente inferior. Outros tempos ...

Seguindo a audição chegamos à faixa título, que, a exemplo do que aconteceu com o álbum anterior, é uma pequena obra-prima! Tem uma estrutura muito bem pensada, com a letra perfeitamente encaixada na melodia nos levando por um cenário apocalíptico com imagens mais aterrorizantes que as que constam no último livro da Bíblia. Porque são reais! Estão lá, no dia a dia, pairando ao nosso redor e estampadas nas manchetes dos jornais. Terremotos, tsunamis, meteoros e “grandes balas de aço e pólvora com urânio enriquecido” causando morte e destruição generalizada – Sejam bem-vindos ao fim do mundo! O lado A poderia terminar alí, mas ainda tem mais: “O anti-herói”, de Ivo Delmondes (letra e música) e, fechando com chave de ouro, outra pequena pepita, já bastante executada ao vivo: “Terrorismo XXI”, de Alexandre Gandhi – letra e música – que nos alerta para o perigo real e imediato de que um desses grupos de fanáticos ensandecidos ponha as mãos num artefato atômico. Assustador, para dizer o mínimo ...

O inventário de desgraças prossegue de forma catártica já na abertura do lado B com outro grande momento: “Quando o homem vira um animal”. Perfeita. Hard Core na veia! A pancadaria prossegue sem descanso com “Grandes corporações”, dá uma pequena tropeçada na fraca “Direito à vida” – que, por sua letra, merecerá um parágrafo à parte – e volta a tomar fôlego com “Auto destruição” e “Pequena Sofia”, já conhecida do split 7 polegadas com a Besthoven. O disco se encerra com um belíssimo poema de Charles Bukowski musicado de forma primorosa, com destaque especial para os arranjos de guitarra, nos quais Alexandre Gandhi viaja nas melodias – ainda distorcidas – depois de nos bombardear com uma seqüência memorável de riffs matadores ao longo de todo o play ...

Mas peraí, não acaba não! Temos ainda três “bônus tracks”, com regravações músicas de fases distintas da banda. Dos primórdios temos “Rumors of wars”, na versão em inglês – não gosto, prefiro a original em português mesmo -, depois “Manchas de sangue”, um clássico de uma fase intermediária, início dos anos 1990, gravada no primeiro disco, e encerrando tudo, de vez, “As Crianças da usina nuclear”.

Mencionei bastante o primeiro disco, lançado, também em vinil – numa época em que o formato digital, em CD, começava a dominar o mercado – há exatos 20 anos, em 1994. Não foi por acaso. Muito bom terminar a audição deste verdadeiro petardo e poder guardá-lo em minha coleção, ao lado do primeiro. Com “Bem-Vindos ao fim do mundo” a Karne Krua fecha um ciclo, voltando às origens com um som cru, curto e grosso, registrado nos bons e velhos – e ravalorizados! - sulcos negros de um bolachão. A banda já está com uma nova formação – trocaram de baterista – e pronta para o futuro. Aos 30 anos, parece estar apenas começando ...

Dito isto, para encerrar, preciso falar sobre o “tropeço”: “Direito à vida” é uma música fraca, perfeitamente dispensável. Especialmente pela letra: ouvi a primeira vez com um assombro! Custava a acreditar no que estava sendo dito pelo meu velho camarada Silvio! Tanto que, a princípio, achei que se tratava de uma crítica ao nosso combalido sistema de saúde, de uma forma geral. Até que veio a terceira estrofe, que soou como um verdadeiro tapa na cara da luta pela emancipação feminina: “Vidas humanas em perfeita condição/Condenadas ao extermínio/Sentem dor e rejeição/E têm suas vidas decepadas/pelos médicos e suas mães”. Era uma música contra o aborto, não tinha mais dúvidas! E pior: dá a impressão de culpar as mulheres que se submetem ao procedimento de forma precária e clandestina, e que na verdade são vítimas, não apenas de assassinato, mas de um verdadeiro genocídio ...

Sou amigo de Silvio há quase 30 anos e não poderia deixar de questioná-lo sobre o conteúdo desta letra, agora imortalizada, já que consta de um disco lançado em vinil! Fui na Freedom e tivemos uma conversa franca na qual ele me explicou que a intenção não era esta. O que ele queria, na verdade, era denunciar a ganância de profissionais da medicina que se aproveitam da fragilidade e da ignorância de mulheres desesperadas para alimentar uma verdadeiro rede de açougues humanos clandestinos. Argumentei que o problema está, na verdade, na proibição legal, que alimenta a clandestinidade. Ele concordou, e se disse a favor da legalização do aborto nos termos propostos pelo Conselho Federal de Medicina, ou seja, que seja feito o procedimento de forma assistida e respaldada pela lei até a décima segunda semana de gestação, quando os riscos para a saúde da mulher são minimizados e o feto ainda não tem o seu sistema nervoso central formado, ou seja: NÃO SENTE DOR! É ainda, na verdade, um projeto de ser humano! Virá a se tornar um ser humano caso a gestação não seja interrompida. A interrupção da gravidez nestas condições não pode, portanto, ser considerada assassinato, e é cruel acusar de um crime tão grave as mulheres que passam por este drama.

Ele admitiu que, na busca por um minimalismo primal, típico dos primórdios do estilo no Brasil – volta às origens, como mencionei acima - deixou a mensagem muito em aberto e caiu na mesma armadilha de bandas como Ira!, Olho Seco e Garotos Podres, que têm letras que ainda hoje são questionadas e/ou mal interpretadas, tendo que se explicar eternamente sobre o seu conteúdo. Concordou, então, em fazer um texto de próprio punho detalhando melhor o que quis realmente dizer com esta letra. Reproduzo-os, texto e letra, abaixo ...

por Adelvan

“Eu, Silvio Campos, vocalista da banda Karne Krua, não sou contra a prática do aborto. Na letra da musica “Direito à Vida”, inserida no nosso último álbum, “Bem-Vindos ao Fim do Mundo”, o que quis enfatizar e evidenciar foi a forma fragilizada e os riscos em que as mulheres de forma geral, sejam elas com um nível de escolaridade alta ou não, se colocam diante da clandestinidade desse sistema e ato . Quando refiro- me a clinicas clandestinas não estou me referindo a nenhum centro de saúde com estruturas corretas e que possa passar segurança e confiança para a pratica do aborto, refiro-me a salas, quartos, pessoas sem condições estruturais e psicológicas de apoio às mulheres que buscam essa pratica. Também quando me refiro a médicos que decepam vidas estou falando de um tipo de profissional que, nesse caso, só esta interessado nos lucros que a clandestinidade do ato oferece, colocando sempre a mulher em situação de total  vulnerabilidade em relação a sua saúde. Mesmo que seja uma opção dela passar por isso, esse tipo de medico ou profissional (às vezes nem medico é) não está preocupado em salvar vidas, além do fato de ter que matar fetos em estado avançado de desenvolvimento - o que, às vistas da lei, seria caracterizado como crime, mesmo que o aborto saísse da clandestinidade, nos termos do que propõe o Conselho Federal de Medicina. Dai também a frase que digo “Medicina pra matar, carnificina eficaz, contradiz os princípios dessa profissão que se fez para salvar”, nesse caso (quando praticado por um medico) não sinto-me culpado pela frase.

Mais uma vez: quando falo que vidas humanas são decepadas pelas mães é pela opção que muitas vezes as próprias mulheres tem e cometem o aborto sem uma  informação mais concreta sobre o que isso pode gerar, algumas presas aos dogmas religiosos. Muitas também se arrependem, mas insisto no que diz respeito a direito e ética: o direito é das mulheres sobre seu corpo, o respeito sobre as vidas delas e do que elas podem ou não querer gerar ou ter, a ética em todo o processo, a regulamentação de tudo para o avanço na sociedade.

Sou casado há 30 anos e minha mulher passou por isso. Toda opção da pratica do aborto ficou por decisão dela mesma, naquele momento era o que ela achava melhor para ela. Ela decidiu pelo aborto, hoje ela não é favor do aborto (somente em situações diferenciadas é que ela concorda) e eu sou a favor do aborto. Desejo que os órgãos responsáveis regulamentem essa pratica para que não tenhamos de presenciar verdadeiros açougues humanos.

Me desculpo pelas falhas e brechas na minha fala que possam ter dado uma impressão equivocada do meu posicionamento.

Silvio Campos

Direito à vida

Letra: Silvio Campos/Música: Karne Krua

Clínicas clandestinas
Entidades assassinas
Interesses financeiros
Promovem um genocídio
Puro horror e desespero

Direito, respeito e ética
Falta de informação
Controvérsia e discussão
Reforça toda a idéia
Contra essa degradação

Vidas humana em perfeitas condições
Condenadas ao extermínio
Sentem dor e rejeição
E tem suas vidas decepadas
Pelos médicos e suas mães

Medicina pra matar
Carnificina eficaz
Contradiz um dos princípios
Desta velha profissão
Que se fez para salvar


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