segunda-feira, 2 de março de 2015

BEM-VINDOS AO FIM DO MUNDO

O que faz o conceito de “álbum” tão caro à cultura pop é o fato de que o projeto é geralmente pensado como um todo, desde a concepção da arte da capa, do lay-out do encarte, da contracapa e do selo, até a posição em que as músicas são dispostas ao longo do disco. O novo disco da Karne Krua, “Bem-vidos ao fim do mundo”, é um álbum, na melhor acepção da palavra, com conceitos, no geral – há apenas uma exceção, sobre a qual discorreremos mais detalhadamente adiante - muito bem desenvolvidos e definidos. E o que é melhor: tudo realizado pelos próprios componentes da banda, como manda a tradição do “faça você mesmo”. “With a little help from their friends”, na produção – musical e executiva.

A capa é belíssima. Obra de Alexandre Gandhi, o guitarrista – que é também artista plástico. Nela, num círculo em que o centro é a morte, gravitam os males do mundo, das crianças famintas à repressão dos “pigs”, das favelas aos horrores da guerra. A capa é dupla, e dentro temos uma bela foto de Silvio, vocalista e único membro fundador remanescente. No encarte, uma foto tirada nos corredores da Aperipê FM na noite antológica – para mim, pelo menos – em que eles lançaram o disco anterior, “Inanição”, ao vivo no programa de rock. Tudo perfeitamente organizado numa diagramação elegante e de muito bom gosto, cortesia de Ivo Delmondes, o baixista.

Aí partimos para o que realmente importa – mentira, tudo é importante. Mas a música é a razão de tudo, então é nela que devemos nos ater. Começa de sopetão, numa “vibe” “Tudo ao mesmo tempo agora”, assim que os sulcos encontram as primeiras freqüências gravadas: é “Horrores humanos”, curtinha, simples e direta, perfeita como faixa de abertura. Na seqüência temos “Por enquanto sem coisas belas”, e aí já nos deparamos com outra característica marcante da Karne Krua: a construção coletiva. Letra e música de Alexandre Gandhi.

Na faixa seguimos quem dá as caras de forma vigorosa, com uma marcação poderosa e perfeitamente integrada ao arranjo, é o baixo de Ivo Delmondes. Segue assim em “Usinas de mortos”. A esta altura fica evidente o entrosamento dos músicos e a qualidade da gravação. Tudo feito aqui mesmo, em Aracaju. Gravado nos estúdios Rikeza e mixado e masterizado por Alex Prado, com o auxílio da própria banda. Impossível não comparar com o primeiro disco, de 1994, que teve que ser gravado em Recife, com um resultado infinitamente inferior. Outros tempos ...

Seguindo a audição chegamos à faixa título, que, a exemplo do que aconteceu com o álbum anterior, é uma pequena obra-prima! Tem uma estrutura muito bem pensada, com a letra perfeitamente encaixada na melodia nos levando por um cenário apocalíptico com imagens mais aterrorizantes que as que constam no último livro da Bíblia. Porque são reais! Estão lá, no dia a dia, pairando ao nosso redor e estampadas nas manchetes dos jornais. Terremotos, tsunamis, meteoros e “grandes balas de aço e pólvora com urânio enriquecido” causando morte e destruição generalizada – Sejam bem-vindos ao fim do mundo! O lado A poderia terminar alí, mas ainda tem mais: “O anti-herói”, de Ivo Delmondes (letra e música) e, fechando com chave de ouro, outra pequena pepita, já bastante executada ao vivo: “Terrorismo XXI”, de Alexandre Gandhi – letra e música – que nos alerta para o perigo real e imediato de que um desses grupos de fanáticos ensandecidos ponha as mãos num artefato atômico. Assustador, para dizer o mínimo ...

O inventário de desgraças prossegue de forma catártica já na abertura do lado B com outro grande momento: “Quando o homem vira um animal”. Perfeita. Hard Core na veia! A pancadaria prossegue sem descanso com “Grandes corporações”, dá uma pequena tropeçada na fraca “Direito à vida” – que, por sua letra, merecerá um parágrafo à parte – e volta a tomar fôlego com “Auto destruição” e “Pequena Sofia”, já conhecida do split 7 polegadas com a Besthoven. O disco se encerra com um belíssimo poema de Charles Bukowski musicado de forma primorosa, com destaque especial para os arranjos de guitarra, nos quais Alexandre Gandhi viaja nas melodias – ainda distorcidas – depois de nos bombardear com uma seqüência memorável de riffs matadores ao longo de todo o play ...

Mas peraí, não acaba não! Temos ainda três “bônus tracks”, com regravações músicas de fases distintas da banda. Dos primórdios temos “Rumors of wars”, na versão em inglês – não gosto, prefiro a original em português mesmo -, depois “Manchas de sangue”, um clássico de uma fase intermediária, início dos anos 1990, gravada no primeiro disco, e encerrando tudo, de vez, “As Crianças da usina nuclear”.

Mencionei bastante o primeiro disco, lançado, também em vinil – numa época em que o formato digital, em CD, começava a dominar o mercado – há exatos 20 anos, em 1994. Não foi por acaso. Muito bom terminar a audição deste verdadeiro petardo e poder guardá-lo em minha coleção, ao lado do primeiro. Com “Bem-Vindos ao fim do mundo” a Karne Krua fecha um ciclo, voltando às origens com um som cru, curto e grosso, registrado nos bons e velhos – e ravalorizados! - sulcos negros de um bolachão. A banda já está com uma nova formação – trocaram de baterista – e pronta para o futuro. Aos 30 anos, parece estar apenas começando ...

Dito isto, para encerrar, preciso falar sobre o “tropeço”: “Direito à vida” é uma música fraca, perfeitamente dispensável. Especialmente pela letra: ouvi a primeira vez com um assombro! Custava a acreditar no que estava sendo dito pelo meu velho camarada Silvio! Tanto que, a princípio, achei que se tratava de uma crítica ao nosso combalido sistema de saúde, de uma forma geral. Até que veio a terceira estrofe, que soou como um verdadeiro tapa na cara da luta pela emancipação feminina: “Vidas humanas em perfeita condição/Condenadas ao extermínio/Sentem dor e rejeição/E têm suas vidas decepadas/pelos médicos e suas mães”. Era uma música contra o aborto, não tinha mais dúvidas! E pior: dá a impressão de culpar as mulheres que se submetem ao procedimento de forma precária e clandestina, e que na verdade são vítimas, não apenas de assassinato, mas de um verdadeiro genocídio ...

Sou amigo de Silvio há quase 30 anos e não poderia deixar de questioná-lo sobre o conteúdo desta letra, agora imortalizada, já que consta de um disco lançado em vinil! Fui na Freedom e tivemos uma conversa franca na qual ele me explicou que a intenção não era esta. O que ele queria, na verdade, era denunciar a ganância de profissionais da medicina que se aproveitam da fragilidade e da ignorância de mulheres desesperadas para alimentar uma verdadeiro rede de açougues humanos clandestinos. Argumentei que o problema está, na verdade, na proibição legal, que alimenta a clandestinidade. Ele concordou, e se disse a favor da legalização do aborto nos termos propostos pelo Conselho Federal de Medicina, ou seja, que seja feito o procedimento de forma assistida e respaldada pela lei até a décima segunda semana de gestação, quando os riscos para a saúde da mulher são minimizados e o feto ainda não tem o seu sistema nervoso central formado, ou seja: NÃO SENTE DOR! É ainda, na verdade, um projeto de ser humano! Virá a se tornar um ser humano caso a gestação não seja interrompida. A interrupção da gravidez nestas condições não pode, portanto, ser considerada assassinato, e é cruel acusar de um crime tão grave as mulheres que passam por este drama.

Ele admitiu que, na busca por um minimalismo primal, típico dos primórdios do estilo no Brasil – volta às origens, como mencionei acima - deixou a mensagem muito em aberto e caiu na mesma armadilha de bandas como Ira!, Olho Seco e Garotos Podres, que têm letras que ainda hoje são questionadas e/ou mal interpretadas, tendo que se explicar eternamente sobre o seu conteúdo. Concordou, então, em fazer um texto de próprio punho detalhando melhor o que quis realmente dizer com esta letra. Reproduzo-os, texto e letra, abaixo ...

por Adelvan

“Eu, Silvio Campos, vocalista da banda Karne Krua, não sou contra a prática do aborto. Na letra da musica “Direito à Vida”, inserida no nosso último álbum, “Bem-Vindos ao Fim do Mundo”, o que quis enfatizar e evidenciar foi a forma fragilizada e os riscos em que as mulheres de forma geral, sejam elas com um nível de escolaridade alta ou não, se colocam diante da clandestinidade desse sistema e ato . Quando refiro- me a clinicas clandestinas não estou me referindo a nenhum centro de saúde com estruturas corretas e que possa passar segurança e confiança para a pratica do aborto, refiro-me a salas, quartos, pessoas sem condições estruturais e psicológicas de apoio às mulheres que buscam essa pratica. Também quando me refiro a médicos que decepam vidas estou falando de um tipo de profissional que, nesse caso, só esta interessado nos lucros que a clandestinidade do ato oferece, colocando sempre a mulher em situação de total  vulnerabilidade em relação a sua saúde. Mesmo que seja uma opção dela passar por isso, esse tipo de medico ou profissional (às vezes nem medico é) não está preocupado em salvar vidas, além do fato de ter que matar fetos em estado avançado de desenvolvimento - o que, às vistas da lei, seria caracterizado como crime, mesmo que o aborto saísse da clandestinidade, nos termos do que propõe o Conselho Federal de Medicina. Dai também a frase que digo “Medicina pra matar, carnificina eficaz, contradiz os princípios dessa profissão que se fez para salvar”, nesse caso (quando praticado por um medico) não sinto-me culpado pela frase.

Mais uma vez: quando falo que vidas humanas são decepadas pelas mães é pela opção que muitas vezes as próprias mulheres tem e cometem o aborto sem uma  informação mais concreta sobre o que isso pode gerar, algumas presas aos dogmas religiosos. Muitas também se arrependem, mas insisto no que diz respeito a direito e ética: o direito é das mulheres sobre seu corpo, o respeito sobre as vidas delas e do que elas podem ou não querer gerar ou ter, a ética em todo o processo, a regulamentação de tudo para o avanço na sociedade.

Sou casado há 30 anos e minha mulher passou por isso. Toda opção da pratica do aborto ficou por decisão dela mesma, naquele momento era o que ela achava melhor para ela. Ela decidiu pelo aborto, hoje ela não é favor do aborto (somente em situações diferenciadas é que ela concorda) e eu sou a favor do aborto. Desejo que os órgãos responsáveis regulamentem essa pratica para que não tenhamos de presenciar verdadeiros açougues humanos.

Me desculpo pelas falhas e brechas na minha fala que possam ter dado uma impressão equivocada do meu posicionamento.

Silvio Campos

Direito à vida

Letra: Silvio Campos/Música: Karne Krua

Clínicas clandestinas
Entidades assassinas
Interesses financeiros
Promovem um genocídio
Puro horror e desespero

Direito, respeito e ética
Falta de informação
Controvérsia e discussão
Reforça toda a idéia
Contra essa degradação

Vidas humana em perfeitas condições
Condenadas ao extermínio
Sentem dor e rejeição
E tem suas vidas decepadas
Pelos médicos e suas mães

Medicina pra matar
Carnificina eficaz
Contradiz um dos princípios
Desta velha profissão
Que se fez para salvar


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