quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Um filme que todo mundo deveria ver ...

"O Dia que durou 21 anos" detalha atividades norte-americanas no país antes e durante o golpe que vai completar 50 anos


Início de abril de 1964. O presidente constitucional, João Goulart, já foi derrubado e substituído pelo marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Na Casa Branca, um assessor (McGeorge Bundy) fala com o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, sobre o tom da mensagem de apoio ao recém-instalado governo brasileiro. O assessor lembra que o embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, prefere um texto amistoso, mas sugere um tom mais cauteloso, porque os novos donos do poder já estavam prendendo civis.

“Acho que algumas pessoas precisam ir para a cadeia. Aqui nos Estados Unidos e no Brasil também. Não estou numa cruzada contra eles, mas gostaria que muitas pessoas tivessem sido presas, antes de perder Cuba”, responde o presidente. O assessor insiste em uma mensagem padrão. “Prefiro enviar uma mensagem bem calorosa”, diz Johnson, fechando a questão

Kennedy e Gordon: articulação pelo golpe no Brasil foi gravada
O diálogo acima, documentado em áudio, é um trecho significativo do filme O Dia que durou 21 Anos, de Camilo Tavares, lançado no ano passado e agora disponível em DVD e blu-ray. A obra traz documentos e áudios e expõe com clareza um assunto que durante muito tempo foi negado, omitido ou pouco falado na historiografia sobre o golpe que está completando 50 anos: a participação norte-americana no movimento que depôs Jango, sob o pretexto básico de influência comunista no Brasil.

Assessor do embaixador, Robert Bentley, um dos entrevistados no filme, estava no gabinete presidencial quando o presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República – mesmo com João Goulart ainda em solo brasileiro. Lyndon Johnson quer saber se a operação foi feita legalmente, e Bentley recorda ter dito: “Parece que foi legal”.

Não foi. Jango ainda era presidente. A ilegalidade foi observada pelo próprio Lincoln Gordon, em livro publicado no Brasil em 2002: “Embora sem a sanção constitucional apropriada, o presidente do Senado declarou vaga a Presidência e acompanhou o sucessor constitucional – Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados – a uma cerimônia improvisada no prédio do Supremo Tribunal Federal, onde Mazzilli foi empossado como presidente em exercício”. Em 15 de abril, assume o primeiro dos presidentes militares do período 1964-1985, Castelo Branco.

Surpresa

Em seu A Segunda Chance do Brasil – A Caminho do Primeiro Mundo, o embaixador também admite surpresa pelo que viria logo depois: “Naquele momento ninguém podia prever o que aconteceria, embora ninguém imaginasse que o governo militar duraria 21 anos”. Ele dizia acreditar que a “ordem constitucional civil” fosse restaurada já em 1965, com a eleição de um novo presidente, “provavelmente Juscelino Kubitschek”. Isso aconteceria apenas em 1985, com uma eleição presidencial ainda indireta. E em 18 de dezembro do ano passado, o Congresso “devolveu”, simbolicamente, o mandato a João Goulart. Com a presença de Dilma Rousseff, de chefes das Forças Armadas e de João Vicente­, filho de Jango, o Parlamento anulou a sessão de 2 de abril de 1964, que declarou a vacância do cargo.

A preocupação norte-americana com os rumos do Brasil não surgiu de uma hora para outra. Outra gravação incluída no filme mostra um diálogo, em abril de 1962, entre o presidente John Kennedy (assassinado no ano seguinte) e Gordon. “Podemos fazer algo contra Goulart?”, pergunta o presidente. “Sim, acho que podemos”, responde o embaixador.

“Os Estados Unidos, depois da Revolução Cubana, voltaram suas atenções para a América Latina, com a decisão de impedir a qualquer custo o que eles chamavam de segunda Cuba”, diz o pesquisador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos entrevistados para o filme de Tavares. As ações norte-americanas incluíam financiamento de campanhas para as eleições de 1962 e “um serviço de informações muito antenado em relação ao que acontecia aqui”.

Segundo ele, Lincoln Gordon tornou-se personagem de nossa história política, ao convencer o governo norte-americano de que haveria um “risco comunista” no Brasil. Um risco improvável. “Que havia apoio da esquerda (a Jango), inclusive dos comunistas, é fato. Agora, que Goulart pretendia dar um golpe não há nenhuma evidência empírica. Foi uma iniciativa pautada pelo equívoco.” Estudioso de assuntos brasileiros, Gordon foi embaixador de 1961 a 1966. Morreu em 2009, aos 96 anos.

Em relato ao Departamento de Estado, Gordon também cita o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola: “Minha conclusão é que as recentes ações de Goulart e Brizola para reforma agrária levarão o Brasil a um governo comunista similar ao de Fidel Castro em Cuba”.

O historiador norte-americano Peter Kornbluh, analista-sênior do National Security Archive, organização não governamental criada em 1985 por jornalistas e estudiosos, observa no filme: “Os Estados Unidos queriam apresentar Goulart como um presidente de extrema-esquerda. A reforma agrária pela qual Goulart realmente lutava era mais um pretexto para apoiar esse argumento”. Ele fala em um “plano de contingência” prevendo inclusive ação armada, em caso de resistência – que não houve.

Brother Sam

A ação norte-americana sempre foi contestada pelos militares e pelo próprio Lincoln Gordon, ao escrever em seu livro que “a derrubada de Goulart foi obra dos militares brasileiros, sem assistência ou aconselhamento dos Estados Unidos”. Ele admite a existência da Operação Brother Sam, que consistia no envio de uma frota armada para a costa brasileira em março de 1964. “Nenhum brasileiro, militar ou civil, teve conhecimento dessa força-tarefa naquele momento”, assegura Gordon. Segundo o embaixador, um dos objetivos era “exercer pressão psicológica a favor do grupo que se opunha a Goulart”. Quaisquer que fossem os motivos, não houve necessidade de usar as forças armadas, porque o golpe foi consumado sem maior resistência.

“Ninguém admitiria (a presença dos Estados Unidos), porque seria um crime de traição à pátria. Mas os documentos disponíveis hoje mostram que os militares estavam acompanhando a Operação Brother Sam”, diz Carlos Fico, que aponta o general José Pinheiro de Ulhoa Cintra, homem de confiança de Castelo Branco, como contato brasileiro com os norte-americanos.

Em depoimento prestado para uma coleção intitulada História Oral do Exército – 1964/31 de Março, o coronel, ex-ministro e ex-senador Jarbas Passarinho é um dos que contestam a versão de ­auxílio externo para o golpe. “Trata-se de uma velha mentira. Não chamo calúnia, porque não é crime, mas é uma injúria que o grupo comunista jamais abriu mão, tentar transformar em verdade à força de repetir”, afirma, em livro de 2003. “Não houve, em nenhum momento, a atuação dos Estados Unidos, em termos militares, de apoio à derrubada de Goulart. Havia preocupação com João Goulart, mas a maior preocupação era com Allende, como comprovaram mais tarde”, acrescentou, referindo-se ao presidente do Chile Salvador Allende, deposto pelos militares em 1973.

Passarinho admite, no entanto, possíveis conversações entre Gordon e o então governador de Minas Gerais, o banqueiro Magalhães Pinto. “É provável que o Magalhães Pinto tenha mantido algum entendimento com o próprio embaixador Lincoln Gordon para o caso de a nossa ação militar durar muito tempo. Não teríamos porto para receber suprimentos para as tropas de Minas, a fim de prosseguir numa luta que assumisse contornos de guerra civil. Isso então, sim, teria explicado o famoso Brother Sam: embarcações americanas preparadas para vir ao Brasil, trazendo combustíveis para que as forças revolucionárias contra o Goulart não minguassem sem esse suprimento. É a única coisa em que acredito, e que pode ter ocorrido.”

Para Camilo Tavares, a descoberta da participação de Kennedy na “conspiração civil-militar” contra Jango é a “grande revelação” do filme, que consumiu cinco anos de pesquisa e um trabalho de garimpo que incluiu ouvir fitas do ex-presidente norte-americano ainda sem transcrição. Em circuito comercial, o longa de 77 minutos foi assistido por 30 mil pessoas em dez estados, o que ele considera bom resultado para um documentário. A preo­cupação, agora, é organizar um circuito de exibições em escolas e universidades, inclusive nos Estados Unidos.

Público jovem

Em novembro, o filme foi visto em Harvard, com a presença do diretor do filme e do historiador brasileiro Nicolau Sevcenko, que lecionava naquela universidade. “Pelo fato de o filme não ser maniqueísta, acho que provocou um debate interessante lá”, diz Camilo. “O desafio é chegar no circuito educativo. O filme tem essa característica de falar com o jovem.” Por enquanto, exibições estão previstas nas universidades Brown e de Columbia, além do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, na sigla em inglês).

Prestes a lançar um livro sobre o período, o jornalista Flávio Tavares, pai de Camilo, era colunista político do jornal Última Hora, “o único que apoiava as reformas de base”. Mesmo acompanhando Jango desde o período da chamada Cadeia da Legalidade (movimento liderado por Brizola no Rio Grande do Sul para garantir a posse de Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961), ele disse ter se surpreendido com informações divulgadas no filme, embora a ação norte-americana fosse conhecida. “Eu estava em Brasília e não conhecia a dimensão do golpe. Para mim, que estava no olho do furacão, foi mais surpresa ainda.”

A professora e historiadora Maria Aparecida de Aquino, da Universidade de São Paulo (USP), cita uma obra de Moniz Bandeira (Governo João Goulart – As Lutas Sociais no Brasil) para lembrar que a questão da presença norte-americana vem sendo estudada pelo menos desde a década de 1970, mostrando com clareza “a intenção de agir” dos Estados Unidos em relação ao Brasil. “E temos também uma participação muito forte através de duas instituições de fachada, o Ipes e o Ibad, que tinham como exclusiva proposta desestabilizar o governo João Goulart”, acrescenta.

O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) foi criado em 1962 e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), em 1959. No filme, a jornalista e escritora Denise Assis afirma que o Ipes foi montado “para ser o ovo da serpente do golpe”. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) chegou a ser criada em 1963 para investigar as atividades dos institutos, suspeitos de financiar deputados contrários a Jango com recursos vindos do exterior. O vice-presidente da CPI era Rubens Paiva, que seria sequestrado e morto durante a ditadura.

Também no filme, Plínio de Arruda Sampaio, à época eleito deputado e relator do projeto sobre reforma agrária, conta ter sido procurado por uma pessoa que lhe ofereceu dinheiro para a campanha eleitoral de 1962. Segundo Sampaio, seu interlocutor explicou: “Só queremos que o senhor defenda a democracia”. “Para isso não preciso de dinheiro”, replicou Plínio. Em depoimento para o documentário, o historiador James Green, da Brown University, chega a comparar: “Imagine se o governo brasileiro tivesse financiado Barack Obama (…) Imagine o escândalo”.

Maria Aparecida observa que a política norte-americana em relação ao Brasil só começaria a mudar de fato com a posse do presidente Jimmy Carter, em 1977. “Vai causar um mal-estar muito grande nos militares, porque vem com uma política de direitos humanos. Portanto, uma mudança de inclinação só acontece no final da década de 70”, diz a professora. Pouco antes disso, estava em curso a chamada Operação Condor, de colaboração entre governos autoritários na América Latina. O diplomata chileno Orlando Letelier, por exemplo, foi assassinado em Washington, em 1976. E há suspeitas sobre as circunstâncias que envolvem as mortes de Carlos Lacerda, João Goulart e Juscelino Kubitschek entre 1976 e 1977.

Estavam em questão, também, interesses de empresas norte-americanas no Brasil. Camilo Tavares lembra que o então governador Leonel Brizola já havia irritado os Estados Unidos ao encampar duas empresas, subsidiárias da ITT (telefonia) e da Amforp (energia elétrica). Outro episódio considerado “inaceitável”, desse ponto de vista, foi a regulamentação, sob a gestão João Goulart, da lei de remessa de lucros. “A legislação é totalmente justa, dá garantia de que parte do capital não vá para a matriz. Procura regulamentar os lucros das multinacionais”, diz Maria Aparecida de Aquino. “Isso não é ser contra os Estados Unidos, mas a favor dos interesses do Brasil. É uma lei de proteção que qualquer país precisa ter. Os Estados Unidos têm uma lei protecionista violenta.”

Para Carlos Fico, a “a equação da época” já é conhecida pela historiografia. “O que vai acontecer é a divulgação de nomes e detalhes, se trata da incorporação de detalhes e responsabilidades.” Ele vê um certo aspecto “perverso” na divulgação paulatina de documentação sigilosa. “Já se passaram muitos anos, e qualquer possibilidade de justiça ou responsabilização cai por terra.

Campanha deslavada

A pesquisadora Maria Aparecida de Aquino não vê consistência nem paranoia nos argumentos que justificaram a ação contra o governo João Goulart, classificada como “golpe preventivo” por muitos militares. “É má-fé”, reage, para então comentar o papel da imprensa. “Excetuando-se o Última Hora, de Samuel Wainer, todos os jornais faziam a campanha mais deslavada possível contra a autoridade presidencial.”

O caso do Correio da Manhã, “o mais prestigiado jornal da época, fundado em 1901”, também é lembrado. “Foi um dos mais virulentos contra Goulart”, diz Maria Aparecida, citando os editoriais “Basta!”, publicado em 31 de março de 1964, e “Fora!”, de 2 de abril. Mas praticamente em seguida o Correio já se posiciona contra os rumos do novo governo, “e por conta disso vai pagar muito caro”. O jornal vai mudar de mãos, definhar e fechar em 1975.

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Encontro com ex-carcereiro
Uma das passagens curiosas do filme é o diálogo entre Flávio Tavares e Newton Cruz. O general fala sobre a situação pré-golpe, com presença de bandeiras comunistas nas ruas, do CGT (entidade sindical), da UNE. Ao que o jornalista contrapõe: mas isso não é normal em uma democracia? E ouve um enfático “não”, não é normal. Mas o militar também comenta que ninguém leva 20 anos para “arrumar a casa”, referindo-se ao período autoritário.

“Foi um encontro cordial, muito franco”, afirma Flávio Tavares. Também foram assim as conversas com o almirante Júlio de Sá Bierrenbach e o coronel Jarbas Passarinho. Com algumas recordações. “Bierrenbach foi meu carcereiro na Marinha. Só que esse homem se portou muito bem comigo já na ocasião. Foi o único (nas prisões) a se portar com dignidade”, conta. Torturado em outros locais, Tavares diz ter recebido – pelo menos naquela ocasião – tratamento rígido, mas correto. O jornalista foi um dos presos políticos libertados em troca do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969. Camilo nasceu durante o exílio do pai, em 1971, no México.

Com Robert Bentley, o jornalista fala sobre tortura e deixa o ex-assessor de Lincoln Gordon constrangido. “Isso é difícil de justificar oficialmente. Mas lamento, lamento, de qualquer maneira”, reagiu.

No final do encontro com Passarinho (“Grande articulador político, não é um homem bronco”) para a gravação do depoimento, Tavares recorda que o militar foi quem assinou o decreto suspendendo seus direitos políticos. Ele já não se lembrava. O jornalista cita outro detalhe histórico: já na condição de ministro do Superior Tribunal Militar, Bierrenbach votou pelo desarquivamento do inquérito do Riocentro. Em 1981, uma bomba estourou dentro de um carro no estacionamento do centro de eventos, matando um sargento e ferindo um capitão – seria mais uma operação para minar o processo de abertura política. O almirante foi voto vencido, mas chamou o caso – que seria tentativa de atentado a um show de 1º de Maio – de “crime nefasto”.

por Vitor Nuzzi

RBA

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