terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O cineasta pernambucano

O que me nutre é o sêmen dessa urbe anônima e brutal, repleta de pequenos burgueses que tremem de medo detrás das grades de seus condomínios de merda, enquanto tentam desviar os olhos das vísceras expostas desse Brasil que meu cinema denuncia e condena. Me chamo Pedro Ivo e o Recife entrou na minha corrente sanguínea como uma catuaba selvagem, expandindo a minha mente e aguçando a minha sensibilidade. O bom gosto me enoja. Não tenho medo de chafurdar no pântano e me lambuzar de sangue e bílis. O cinema da minha terra é tão autoral e criativo que inventei um novo gênero: a cineautobiografia visceral. Antecipo o roteiro de Soluço Líquido, enquanto espero o resultado do Funcultura.





ATO I – O CANTO GUTURAL DE UM FREVO

Cena caseira filmada, em super-8, com os mesmos movimentos de câmera usados em Terra em Transe.

Uma mulher em trabalho de parto declama Uma Mulher Vestida de Sol,de Ariano Suassuna, aos berros, para se acalmar. O parto normal não caminha bem, mas o médico não sabe o motivo. O bebê não consegue sair. Decide fazer cesariana. Ao retirar a criança, o médico fica visceralmente estupefato.

MÉDICO: Descobri o que estava acontecendo. Seu filho nasceu de pau duro.

O pequeno cabra recebe a palmada e, em vez de chorar, entoa um trecho de O Barbeiro de Sevilha em ritmo de manguebeat.

MÉDICO: Parabéns, dona Armelinda, é um cineasta!

Dona Armelinda vai para o quarto e permanece estática. Num plano silencioso de quinze minutos, olha pela janela e reflete sobre as mudanças urbanísticas sofridas pelo Recife nesses últimos vinte anos.

MONTAGEM PARALELA

Corte seco: um tatuí é pisoteado no asfalto quente.

MONTAGEM PARALELA

Num puteiro, um latifundiário usa a primeira edição de Casa Grande & Senzala para seviciar uma puta. (Ponto de vista da lombada do livro.)

Inserção gratuita de entrevista de Lars von Trier, em dinamarquês sem legenda.



ATO II – A VALSA DA CARNE CRUA

Plano fechado de xoxota, imagem consagrada do cinema pernambucano. Fui eu, Pedro Ivo, que a incluí na Carta Visceral, nossa versão do Dogma 95, um conjunto de regras compilado pela Associação de Cineastas Viscerais de Boa Viagem.

A dita-cuja está com um baseado preso aos lábios. A brasa morre.

VAGINA (voz em off, sotaque pernambucano): Ô, Pedro Ivo, tu tem fogo?

Pedro Ivo, um jovem de 11 anos, abre o zíper.

PEDRO IVO: Serve?

A vagina não responde.

Magoado com o descaso, Pedro Ivo retalha o rosto com um canivete enferrujado, deixando uma cicatriz visceral que o acompanhará pelo resto da vida. Durante a cena, usa o próprio sangue para escrever na parede os nomes de John Cassavetes e Charles Mingus.

Pedro Ivo grita que o mar virará sertão até estourar cinco cordas vocais. Veste então uma camisa vermelha estampada com o rosto de Apichatpong Weerasethakul, ajeita o cabelo na boina cubana e, com um gesto visceral, pega o baseado, bate a porta e sai para desafiar o mundo. Está com uma ereção.



ATO III – EROS CICATRIZANTE

Bar Central. Cercado por críticos e donos de cineclube, Pedro Ivo, agora com 20 anos, bebe um coquetel de Natu Nobilis com benzina. Está com uma ereção. Quem o serve é uma garçonete sem calcinha com sotaque levemente francês.

CINECLUBISTA: Pedro Ivo, viste Tropa de Elite 2?

PEDRO IVO: Mais um desbunde de um bacana classe média que adora pobreza em contraluz. Coisa de caboclo que quer ser Hollywood, né, velho?

CINECLUBISTA: E O Palhaço?

CRÍTICO: Sentimentalismo burguês mascarado de filme de arte. Filme-anestesia, filme-Valium, filme-band-aid. Onde estão as entranhas, velho? O soco, o murro, o vômito?

Pedro Ivo vomita em cima do crítico.

CRÍTICO: Obrigado, velho.

CINECLUBISTA:O Cheiro do Ralo?

PEDRO IVO: O pior do lote. Estética radical chique, fingindo estar sob o cabresto de Tânatos quando não passa de angústia cheirosinha. Um Bukowski
de convento carmelita. Cinema é ereção, cacete. É uma vontade, uma necessidade. Glauber dizia que o cineasta verborrágico tem de estar no topo da cadeia alimentar de um povo. É um processo de seleção natural que Darwin descreveu a 24 quadros por segundo. Recife une o talento de Florença à tecnologia do Vale do Silício.

Os amigos fazem um brinde – “Foda-se o eixo Rio–São Paulo!”. Em seguida, pedem uma porção de coração de galinha. As aves são trazidas vivas e têm seus corações arrancados à mão diante de fregueses pequeno-burgueses.

Olhos pulando do rosto aterrorizado das galinhas para a bunda carnuda da garçonete, Pedro Ivo tem uma epifania e decide fazer seu primeiro filme.



ATO IV – A NOITE DA VAGINA LOUCA

Com a verba arrecadada com a rifa de suas vísceras, Pedro Ivo compra um DKV Vemag e viaja pelo interior do estado com uma câmera na mão e centenas de ideias na cabeça. Sem gasolina, abastece o carro misturando esterco com sua testosterona. No trajeto, descobre as entranhas do Brasil profundo. Há muita prostituição pelo caminho. Num ambiente eivado de miséria e prazer carnal, Pedro Ivo abandona todo resquício de moral burguesa e se envolve sexualmente com um liquidificador Arno, ao qual chama de “minha cabrita”. Na bem-aventurança que se segue ao coito, Pedro Ivo ouve uma batida de maracatu e, num milagre, é recompensado com a devolução de suas vísceras.

Ao retornar ao Recife, Pedro Ivo se depara com uma cena dantesca: uma placa na porta do cinema da Fundação Joaquim Nabuco anuncia que o local será demolido para dar lugar a um edifício projetado por Hans Donner com fachada de Romero Britto.

Irandhir Santos, Hermila Guedes, Dira Paes, Matheus Nachtergaele, João Miguel, Leona Cavalli e Chico Diaz se chicoteiam em torno do edifício. Pedro Ivo lidera um levante para ocupar a Fundação, no qual todos os invasores usam máscaras de Falconetti em A Paixão de Joana D’Arc, de Dreyer.

Preso e torturado pela polícia de Eduardo Campos, Pedro Ivo termina seus dias crucificado no alto de uma árida colina em Garanhuns. A seus pés, brota um pé de maconha.

Corte para preto e legenda: FINAL, PORRA.

por Renato Terra

piauí

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