terça-feira, 31 de dezembro de 2013

"Sina" em glorioso vinil ...

““Enceguerado”. Movido por um desejo irracional, sem fundamentos, indomável. Ímpeto que não conhece bem ou mal – estende a mão a um Zé Ninguém, passa a rasteira noutro amigo, se desculpa e alega que o amor mata diariamente. Numa cidade pacata por natureza, um homem caindo de velho senta na porta de casa todas as tardes para ouvir as histórias trazidas pela brisa. Ela sopra “fuga”. Brisa que amansa e atiça. Uma intelectual se entrega à religião; o garoto troca o futebol pelos acordes envenenados do blues; o papudinho abraça a garrafa; o pescador joga a rede na esperança de estrelas e acordes. É sempre a brisa. Brisa que pariu “Baggios”, “Zorrões”, “Leões”. Sonhadores, almas em busca, vítimas do mapa rasgado na palma da mão direita. A vida é um nó cego, não desata por força da insistência. Somos todos reféns da própria SINA.”

O belíssimo texto acima, sem indicação de autoria, está no também plasticamente belo encarte da versão em vinil de “sina”, segundo disco da banda sergipana de blues/rock The Baggios. Estou com o bolachão, verdinho, em mãos. Depois de apreciar mais uma vez a capa, excelente trabalho da dupla “snapic” tendo o maluco beleza Agapito e a estação de trem desativada de São Christóvão como modelos, repouso-o no prato de meu 3em1 velho de guerra, que tantas alegrias me proporcionou nesses mais de 20 anos de uso ininterrupto, sem nunca precisar de pausa para conserto, e conduzo o braço com a agulha aos primeiros sulcos, que me disseram o seguinte:

Uma batida percussiva ao mesmo tempo tribal e moderna abre “Afro” – e o disco – como que avisando ao ouvinte que a mesma banda estava de volta, mas com vários “algo” a mais. Nem tanto no ritmo, que continua deliciosamente calcado no blues com sotaque brasileiro e, quiçá, nordestino. E SERGIPANO, ouso dizer! Me causou estranheza à primeira ouvida, mas isto é, muitas vezes, um bom sinal. Foi o caso, aqui. Está totalmente assimilada e é, sem sombra de dúvidas, uma belíssima musica.

É seguida por “Blues do aperreio”, mais na linha do que os Baggios vêm desenvolvendo já há mais de uma década como sonoridade. E por “Sem condição”, o primeiro “single” – uma pepita lapidada com esmero à base de riffs de guitarra poderosíssimos acompanhados por uma bateria potente e precisa. Perfeita.

Em “Salomé me disse”, mais um pouco de estranheza: Em ritmo de valsa, Julico desfia mais uma de suas letras sobre perdas amorosas, aqui num clima de “mea culpa”. Se é um pedido de desculpas por algo, fosse eu a Salomé do título, teria chorado ao ouvir. E perdoado, evidentemente.

E então temos “sina”, a música, cuja letra – todas elas, pelo menos aparentemente, autobiográficas e/ou confessionais – emula a de “o azar me consome”: fala das desventuras de quem quer apenas ser honesto num mundo cheio de perfídia e falsidade. Mas sem melancolia ou baixo astral. O clima está mais para o confronto, a persistência. Ele não vai desistir, apesar das coisas não darem certo para ele, em muitos momentos.

Fechando com chave de ouro o lado A – lembrem-se, estou resenhando o vinil! – “Esturra leão” e seus sensacionais arranjos de sopro. Aqui Julico discorre sobre outro tema recorrente em suas letras: o retrato das figuras folclóricas das Terras do Cacique Serigy. “Leão”, segundo me consta – não o conheço – é um personagem real – e fascinante, a julgar pelo que está escrito. Fugiu de Estância – cidade sergipana bastante citada na literatura de Jorge Amado, que costumava passar férias por lá – depois de confessar ter assassinado e enterrado sua amada. Seu pedido de perdão hoje ecoa nos sulcos do vinil, cujo primeiro lado se encerra num “fade” sensacional. Perfeito.

Numa bem sacada noção de continuidade, o lado B começa focando em outro “figura”, “Zorrão”. Também fascinante, deu até vontade de conhecer. A segunda, “Vagabundo arrependido”, é uma espécie de segunda parte de “Salomé me disse”, já que tem praticamente o mesmo ritmo. Gostei. Rebuscado, parece coisa de disco conceitual.

Depois de “De malas prontas” – mais um tema recorrente, a partida, quase sempre triste – o disco se encerra com uma sequencia de três músicas praticamente perfeitas: “Domingo”, com seu delicioso ritmo “roots” arrastado; “Tardes amenas”, com um sensacional arranjo de órgão de Rafael Ramos; e “Descalso”, levado na base da viola e do “slide guitar”. De bônus, uma emocionante homenagem ao Baggio, andarilho da cidade histórica de São Cristóvão, onde Julico, o mentor da parada, ainda reside.

E é isso. Nada mais a declarar sobre esta pequena obra-prima do rock independente – MESMO! – brasileiro. Um chute no saco da mediocridade que impera ao nosso redor.

Quem ainda não conhece está TOTALMENTE por fora ...


por Adelvan

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HOw cAn yOu Be sUre Today?

Foi uma festa simples, como sempre. “Indie”, “underground”, “alternativa”. Nem tão estranha, nem com gente tão esquisita. Poderia ter sido morna. Mas não foi. Nunca é. Porque a banda é foda, um verdadeiro clássico do rock sergipano, e aproveita a ocasião estratégica – férias, festas de fim de ano - pra reunir as pessoas que cresceram embaladas por seus discos e que hoje estão morando fora, espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, numa grande celebração.

O show deste ano em especial trouxe lembranças para os um pouco mais velhos que a maioria dos presentes, a velha guarda da velha guarda, digamos assim, porque eles tocariam pela primeira vez na íntegra e ao vivo o primeiro disco, “Waking up... waking down”. Foi lançado há 15 anos, numa época em que a internet ainda era uma coisa distante, da qual eu, pessoalmente, já tinha ouvido falar, mas não tinha tido nenhum contato, e a maioria dos presentes – a “geração” de fãs mais fiéis da snooze - ainda era novinho(a) demais pra ir a shows de rock. Antes do “Rock-se”, festival divisor de águas que aconteceu naquele mesmo ano de 1998, só que no final. Me lembrou, por exemplo, a festa de despedida de Daniel, o hoje falecido guitarrista do então “Power trio”, na casa dos Irmãos “snoozers”. Antológica. Ou a vez em que nos reunimos todos num domingo à noite, na mesma “Casa dos vinhos”, para assistir à estréia do clip de “Life is good” no célebre LADO B da MTV, apresentado pelo “reverendo” Fábio Massari.

E foi lindo. Bom público, empolgado, como sempre, e banda afiada, em formato de quarteto – com Duardo na outra guitarra – desfilando clássico atrás de clássico. Com direito a encerramento apoteótico com a primeira música da primeira demo tocada como se tivesse sido composta ontem.

Abrindo a noite tivemos “Os Adolescentes da Vovó” com um ótimo show de covers que contemplou a íntegra do clássico “Badwagonesque”, do Teenage Fanclub, e um “revival” da Road To Joy, excelente banda local que teve vida curta porém gloriosa e é um dos maiores potenciais não-realizados da cena local.

Só faltou mesmo o ventilador. Na próxima vou levar o meu. Prometo compartilhar com todos.


Foto por Julio Andrade, da The Baggios
Calor do CARAAAALHOOOOOO !!!!!!!!!!

Ah: faltou Mauro “space boy” gritando por “Jesus Christ”, também, mas Luiz deu conta do recado com louvor.


"Give me the gun my friend".

A.

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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

VIVA TROTSKI!

“Durante quarenta e três anos de minha vida consciente fui revolucionário e durante quarenta e dois lutei sob a bandeira do marxismo. Se tivesse de começar tudo de novo eu tentaria evitar um ou outro erro, mas o curso principal de minha vida continuaria inalterado. Morrerei como revolucionário proletário, como marxista, como materialista dialético e, consequentemente, como um ateu irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é menos ardorosa, na verdade é hoje mais forte do que nos dias de minha juventude. Natascha acabou de chegar pelo pátio até a janela e abriu-a completamente para que o ar possa entrar mais livremente em meu quarto. Posso ver a larga faixa de verde sob o muro, sobre ele o claro céu azul, e por todos os lados, a luz solar. A vida é bela! Que as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda opressão, de toda violência, e possam gozá–lá plenamente.” – Trotski, em seu testamento.

A morte ocorreu em 21 de agosto de 1940, às 7 horas e 25 minutos. A autópsia mostrou um cérebro “de dimensões extraordinárias” pesando 4 quilos e 777 gramas. “Também o coração era muito grande”.

Em 22 de agosto, de acordo com um costume mexicano, um grande cortejo fúnebre marchou lentamente atrás do caixão, carregando o corpo de Trotski pelas principais ruas da cidade, e também pelos subúrbios proletários, onde multidões andrajosas e descalças enchiam as ruas. Os trotskistas norte-americanos quiseram levar o corpo para os Estados Unidos, mas o Departamento de Estado recusou o visto até mesmo ao morto. Durante cinco dias o corpo ficou em exposição e cerca de trezentas mil pessoas desfilaram ante ele, enquanto nas ruas soava o Gran corrido de Leon Trotski, balada folclórica composta por um poeta anônimo.

Em 27 de agosto o corpo foi cremado e as cinzas enterradas nos terrenos da “pequena fortaleza” de Coyoacán. Uma pedra retangular branca foi colocada sobre a sepultura e uma bandeira vermelha desdobrada sobre ela.

Natália (Sedova, viúva de Trotski) continuaria vivendo na mesma casa por outros 20 anos, e todas as manhãs, ao se levantar, seus olhos se voltavam para a pedra branca no pátio.

“Trotski, o profeta banido”, de Isaac Deutscher
Tradução de Waltensir Dutra
Editora Civilização Brasileira
Rio de Janeiro
2006

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Natal com o juiz Dredd ...

Tivemos, eu e os fãs de quadrinhos "adultos", um inesperado presente de natal este ano: a Editora Mythos colocou nas bancas um especial natalino da revista Juiz Dredd! Me fez lembrar os tempos em que acompanhava TODAS as publicações de super-heróis da Abril nos anos 80, inclusive "Grandes Heróis Marvel número 2, o Natal do Homem Aranha", provavelmente o primeiro "gibi" do tipo que li na vida.

A edição veio no mesmo formato e qualidade da revista mensal: grande, "magazine" mesmo - o que a faz se destacar mas ao mesmo tempo ficar isolada das demais publicações de quadrinhos na maioria das bancas, portanto fique ligado! Começa com uma boa história magnificamente desenhada Jim Murray e prosegue alternando-se entre coisas novas e mais antigas escritas e desenhadas por gente do quilate de Alan Moore - num interessante conto de ficção científica de apenas duas páginas, em preto e branco - Mark Millar, Garth Ennis - num argumento que revisita o velho conto de natal de Charles Dickens, só que com um nível de violência e a infâmia que só ele é capaz de acrescentar sem soar "forçado", apelativo - John Wagner, Al Ewing - que escreveu uma das histórias mais criativas, na qual você tem que, supostamente, avançar ou retornar nos quadros de acordo com suas escolhas, o que permite uma inédita identificação com o protagonista - e um jovem Steve Dillon em início de carreira.

Não espere nada muito rebuscado ou profundo nos roteiros: as histórias são curtas e, em todo o caso, não é esta a proposta do personagem em si, um dos mais "casca-grossa" e politicamente incorretos dos quadrinhos, disputando pau a pau com Lobo, "o maioral". Criatividade, no entanto, transborda pelas páginas. A diversão baseada no humor negro e o banquete visual proporcionado pelos excelentes desenhistas também são garantidos. Não é por acaso que o personagem faz tanto sucesso mundo afora: já foi tema de uma musica, "I Am the law", da banda de thrash metal Anthrax, e de duas adaptações para o cinema - uma - horrível - estrelada por Sylvester Stallone e outra - não vi ainda - por Karl Urban. A publicação na qual estreou, 2000 AD, é publicada SEMANALMENTE desde 1977! São 1.861 edições regulares ...

Além disso o personagem hoje tem sua própria revista, "Judge Dredd Megazine", atualmente no número 343. No Brasil foi publicado pela EBAL em "Capitão Z Apresenta: Ano 2000" e em "crossovers" com personagens mais famosos por aqui, como o Batman. A revista própria, mensal, começou a sair este ano e tem uma boa distribuição em bancas. Está na sétima edição.

O Juiz Dredd foi criado por John Wagner e Carlos Ezquerra. É um oficial da lei de uma violenta cidade do futuro onde a função acumula os cargos de policial, juiz, júri e executor (quando necessário). É tudo o que o Justiceiro, da Marvel, gostaria de ser - mas não é ...

A Mythos Editora, empresa irmã do estúdio Art & Comics International, foi criada em 1996 e estreou na área de quadrinhos com títulos da DC Comics e outras editoras, além da linha italiana Sergio Bonelli Editore (de TEX), que herdou da Editora Globo no final de 1998. Atualmente também é a casa de Conan e Hellboy. Além das publicações próprias é, desde janeiro de 2002, a produtora dos títulos da Panini Comics no Brasil.

Juiz Dredd Especial de Natal
Mythos Editora
Roteiro: John Wagner, Alan Grant, Garth Ennis, Mark Millar e Al Ewing
Arte: Jim Murray, Steve Dillon, John Higgins, Carlos Ezquerra, Jesus Redondo e Dave Taylor
Formato Magazine
68 páginas
R$ 10,90

A

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domingo, 22 de dezembro de 2013

Leonardo Padura, duas entrevistas.

(1) Socialista Morena– Como foi possível que os cubanos até recentemente não soubessem nada de Trotski?
Leonardo Padura – Não se sabia praticamente nada porque se aplicou aqui a mesma política da União Soviética. Havia uma aliança tão estreita que não podia ser diferente. Trotski era o inimigo inominável. Não se publicavam obras dele nem sobre ele, ninguém sabia quem era realmente. Só há poucos anos, quando, em algumas feiras literárias, a editora norte-americana Pathfinder, que é trotskista, trouxe alguns livros dele, e uma editora argentina trouxe sua biografia, é que a informação passou a circular mais. Mas foi com o meu romance que os cubanos o conheceram. 

SM – Seu próprio interesse por Trotski começou como?
LP – Na época da universidade ouvi falar algo, mas não se mencionava ele nas aulas. Esse fato aumentou ainda mais minha curiosidade a respeito de Trotski, e, em 1989, na primeira vez que fui ao México, conheci a casa dele em Coyoacán. Fiquei muito emocionado. Era um lugar escuro, sombrio… Claro que nem imaginava que um dia iria escrever um livro a seu respeito. Uns anos depois dessa visita, soube que Mercader viveu em Cuba, mas ninguém tampouco falava disso. Em 2005, 2006, quando decidi escrever o romance, procurei alguém que sabia que o conhecera pessoalmente e a resposta que recebi foi um rotundo “não”. 

SM – O que há de ficção e realidade na trama?
LP – Há muito dos dois. A vida de Trotski está toda biografada, cada minuto de sua vida, então tem muito de investigação histórica nas cenas narradas. Com Mercader é diferente porque se conhece muito pouco da vida dele. Sua vida é uma mentira, uma criação dos órgãos de inteligência soviéticos. O terceiro protagonista, o cubano que conduz a narrativa, também está documentado. Tudo que acontece com ele aconteceu com pessoas da minha geração. 

SM – Se deixa notar no livro que você sente simpatia por Trotski…
LP – Creio que existe uma simpatia natural pelos derrotados, pelos que perderam. Além disso, como Trotski tem a figura de Stalin como antagonista, ele se torna um dos personagens mais simpáticos do mundo… Stalin é monstruoso. Trotski manteve sempre esse pensamento utópico de que a revolução era possível. 

SM – Me parece uma pena que os cubanos não tenham conhecido o outro lado dessa história.
LP – Sim, é um personagem que talvez pudesse dar aos cubanos uma alternativa de pensamento socialista. 

SM – Há quem ache que não faria diferença se fosse Trotski o vencedor diante de Stalin. Você concorda?
LP – Essa seria uma especulação histórica e a história se analisa com o que ocorreu, não com o que poderia ter ocorrido. Trotski talvez pudesse fazer a mesma política, mas talvez não achasse necessário matar 20 milhões de pessoas para isso. Trotski era um político, Stalin era um psicopata. Trotski poderia ser duro, reprimir, mas não de uma maneira doentia. 

SM – Você se incomoda de falar sobre a política em seu país?
LP – Eu sempre prefiro falar de literatura, mas no caso de Cuba é inevitável. É um país onde existe um governo e um partido que são a mesma coisa e onde todas as decisões são políticas, então é impossível não falar. 

SM – Há mais liberdade hoje em Cuba?
LP – Há mais do que há alguns anos. Há alguns anos eu não poderia ter publicado este livro, por exemplo. O que não quer dizer que haja absoluta liberdade de expressão, continua existindo censura. Em nível econômico houve muitas mudanças importantes, imprescindíveis. Chegamos a um ponto de imobilismo e crise insustentáveis. Se está movimentando economicamente o país. Mas as mudanças têm que ser mais profundas. Tem de haver mais abertura comercial, mais convênios com investidores estrangeiros, porque o país não tem capital para se modernizar. Tem que ter também mais espaço para a crítica, um diálogo crítico mais aberto para que se possa encontrar soluções, chegar ao consenso. 

SM – O caminho está aberto?
LP – Está demarcado, mas a entrada é muito estreita… O modelo está mudando, mas tem que mudar muito mais para que as pessoas que pensam diferente também tenham direito à opinião.

(2) O homem é tranquilo, mas deixa escapar algum “que merda” de vez em quando, principalmente quando fala da liberdade crítica e, nesse momento, seu semblante se faz mais enérgico. A Leonardo Padura (Havana, 1955) os cubanos se aproximam para perguntar por Mario Conde, seu personagem de policial negro, como se fosse alguém de carne e osso. Outros, dentro e fora de Cuba, continuam intrigados pelo livro El hombre que amaba a los perros, publicado pela Editora Tusquets em 2009. O fio condutor é a perseguição de León Trotsky até seu assassinato no México, mas a novela excede longamente o magnicídio cometido por Stalin. Um dos grandes temas do livro é o fanatismo. O de Stalin, que manda assassinar León Trotsky. O de Kotov, encarregado pela KGB de conceber o plano e executá-lo. E o de Ramón Mercader, que o assassina. O que é um fanático?
–A exacerbação de uma ideia, de um sentimento ou de uma preferência. O fanatismo esportivo é o primeiro que vem à mente. É o mais massivo, mas pode ser o menos problemático. Já o fanatismo político sim pode ser muito daninho. Acho que as pessoas têm o direito de ter uma crença política, sempre e quando essa ideia política não seja agressiva, prejudicial. Tampouco lesiva da dignidade, da liberdade ou da integridade de outra pessoa. Tu podes ser de esquerda ou de direita, ou mais comunista ou menos comunista, mas não tens direito a impor-te aos demais e, do teu fanatismo, da tua crença absoluta, conceber que os demais devem pensar igual a ti.
A esquerda tem uma forma própria de fanatismo?
– Há uma forma de fanatismo socialista ou comunista que é muito complicada: a ideia de que, por teu bem, tens que ser obediente e tens que aceitar a opinião da maioria. Isso vai contra a liberdade de opção. No livro, Trotsky também é outro fanático.
Por quê?
– Até o final de sua vida teve apenas uma convicção e não mudou. Inclusive foi capaz de sacrificar a sua família. Estava tão convencido de que o socialismo era a solução para os problemas da humanidade, que nem sequer quando pôde comprovar que a prática socialista à maneira de Stalin, que foi a única que se pôs em prática, podia levar aos desastres e aos crimes que levou, mudou de ideia. Era anti-stalinista, mas nunca deixou de ser um comunista convencido e o escreveu e o expressou.
Coloco-me como advogado do diabo e digo: “Stalin foi a deformação monstruosa de uma essência nobre”. E posso dizer o mesmo do próprio Lênin.
–Também se pode dizer, e tens razão ao dizê-lo. O que acontece é que toda a razão e todas as verdades podem ser relativas, discutidas. E a posição de advogado do diabo te da a vantagem de poder encontrar o ângulo do qual uma verdade pode parecer absoluta ou uma afirmação pode ser rebatida. Mas sim, acho que, em essência, Trotsky foi também um fanático e que Stalin não foi só uma ideia, mas uma prática.
Sabemos o final do homem que amava os cachorros. Trotsky será assassinado. Mas, inclusive sabendo, o efeito é desesperante para o leitor: é a história de uma vítima perpétua.
E como seriam os fanatismos de Stalin, de Kotov e de Mercader?
– O de Stalin, doentio. Era um homem doente de poder que se achava um predestinado. O de Kotov é um fanatismo cínico: sabia o que estava fazendo, porque o estava fazendo. Obedecia, mas sempre com uma posição na qual sabia que estava transgredindo determinados princípios. Ramón ostenta um fanatismo obediente, quase canino, e que os cachorros me perdoem. O de Ramón é um fanatismo simples, tanto que no final, Iván duvida se deve sentir compaixão por ele ou não. Pergunta-se se este homem não havia sido tão vítima como o próprio Trotsky, que ele havia vitimado. Essa foi também minha dúvida.
Ainda o é?
– Veja bem, não tenho uma resposta definitiva, apesar de ter convivido com este personagem cinco anos, investigando e escrevendo. Acho que isso faz mais interessante o personagem. Humanamente, a opção de Mercader não tem perdão. É possível compadecer-se de um pecador, de um assassino, mas também tem que ter uma análise diferente quando está frente a culpas, não?
Falavas, recém, da investigação.
– O livro me obrigou a um estudo muito profundo de fenômenos históricos que se revisaram a partir dos anos 90. Também o fato de que Ramón Mercader fosse um personagem histórico sem história me obrigou a completar a imagem de Ramón lendo pelos arredores para ter uma ideia de onde estava, de como podia comportar-se, de que coisas haviam acontecido com ele... E fechei o período de investigação no momento em que Ramón assassina Trotsky. O trotskismo é um fenômeno que, em suas origens, inclusive, não existia. Era uma invenção de Stalin, que o necessitava para converter Trotsky no inimigo.
Em que medida o fanatismo de Stalin, que definias como doentio, era doença ou era sistema?
– Era as duas coisas. Stalin, de sua convicção, sua experiência, seu fanatismo, de sua crença e da situação histórica em que chega a ter a possibilidade de armar-se de poder na URSS, cria um sistema que não só tem um fundamento filosófico no marxismo ou nas contribuições do leninismo. É praticamente construído pelo pensamento e pela obra de Stalin. São chaves todos os processos que começam a ocorrer desde 1929: a coletivização, a própria perseguição de Trotsky e de todos os velhos bolcheviques, estivessem ou não, em seu pensamento, mais próximos a Trotsky ou a Stalin. Também assassinou stalinistas. Stalin não era nenhum pensador. Queria sê-lo: escrevia livros, filosofava, fazia teorias e estudava a linguística. Tentava ser como Lênin e Trotsky, queria ser culto. Mas a cultura se negava pela fanatização e pela criminalização a que submeteu a sociedade soviética.
Ou seja, que Stalin não sentia culpa nem esgrimia uma atitude cínica
– O cinismo supõe um olhar um pouco distante das coisas. Kotov o tinha. E ao mesmo tempo era uma destas criaturas que assumem a função de carrasco social com uma tranquilidade e uma rapidez tremendas. Houve muitos como ele. Orlov, por exemplo. É interessante que Kotov entra na proto-KGB dos primeiros tempos porque lhe davam uma quota adicional de cigarros e um par de botas e porque também lhe concediam licença para matar. Depois vai trabalhar no estrangeiro e se cultiva. É um homem de grande inteligência. O plano para assassinar Trotsky foi um dos mais elaborados e mais rebuscados que se possam imaginar. Quando veio a morte de Stalin e o encarceram, vive doze anos em uma espécie de gulag para agentes da KGB. Nunca perdeu o cinismo e tampouco perdeu algo que talvez seja o único que o humaniza: seu desejo de seguir vivendo. Há um elemento histórico real e é que, em um campo de concentração, foi operado a sangue frio, sem anestesia, de câncer de cólon. E sobreviveu.
Fica claro que “O homem que amava...” não é um livro de história. Como te chega isso? Que ruído te produz a tensão entre a História e a história que você conta? Falando de Tinissima, seu livro sobre Tina Modotti, Elena Poniatowska me disse em uma entrevista que ela primeiro investigava muito porque era um hábito jornalístico do qual não podia desprender-se.
– A investigação é uma disciplina que me atrai muitíssimo e desfruto cada vez mais, tanto da investigação como da escrita. Na escrita tenho absoluta liberdade. Na investigação tens a liberdade de escolher o que outros te propõem. Na investigação, os descobrimentos têm um atrativo muito grande e a gente vai mudando os preconceitos graças às evidências. Nesta história específica, como no caso da história de Tina, acontece algo que complica a relação do investigador com os fatos. Enquanto lia autores e testemunhos, eu tinha a convicção de que podiam estar mentindo. O assassinato de Trotsky e seus arredores estão cheios de mentiras. Tantas que se escreveu uma história, que depois foi reescrita, se continuará reescrevendo e se poderá voltar a reescrever na medida em que apareçam documentos, evidências e análises que permitam ter outra perspectiva. Por isso, neste caso, sempre se tinha que suspeitar da fonte, e isso fazia tudo mais atrativo.
No momento de escrever, como você faz para se desprender da investigação?
– É difícil. Tens que desprender-te da investigação e começar a ter um enfoque de fora para fazer teu exercício como romancista. De todas as formas, há um processo em minha escrita que me leva a fazê-lo, e é que a primeira versão que eu escrevo de meu romance está muito apegada à investigação. Mas, a partir daí, eu prescindo da investigação. Já sei que tenho datas que coincidem historicamente, lugares nos quais estão os personagens que coincidem com a realidade e tenho montada uma trama que historicamente se sustenta. Mas a partir daí começo a reescrever o livro, a fazer versões do romance e, no final, chega o ponto em que estou tão longe que inclusive me custa saber se o que estou dizendo é uma verdade historicamente comprovada ou se é uma verdade novelesca.
Nesse ponto terminaste
– Não, os romances nunca se terminam. Abandonam-se. Chega um ponto em que estás tão cansado dessa história, que te dizes “até aqui cheguei”.
Voltando ao grande tema do fanatismo, em que fanatismo pensou antes de escrever?
– Pensei muito nos fanatismos religiosos. Como uma pessoa, por uma crença religiosa, pode chegar a fazer o mesmo que faz Ramón Mercader? Existem pessoas que, por acreditarem em Deus ou por crerem no mundo melhor, são capazes de assassinar outros. Inevitavelmente, o fanatismo nos conduz ao fundamentalismo. Um fundamentalista é alguém que crê que é dono da verdade e, por essa verdade, é capaz de fazer qualquer coisa, inclusive as que a maioria das pessoas considera eticamente reprováveis.
Matar
– Entre outras coisas.
E morrer?
– A cultura da morte é muito mais complicada e é também parte do fanatismo. No caso específico cubano, por exemplo, no hino nacional se canta à morte. Morrer pela pátria é viver.
Mas ali existe uma concepção romântica
– Claro, é a época. Talvez a decisão do indivíduo, da imolação, pode ter um elemento, como tu dizes, perfeitamente romântico, no sentido histórico, mas no sentido contemporâneo também, que o faz menos agressivo. Não é o mesmo tu decidindo por tua vida que se tu decidires pelas vidas dos outros.
Ao falar do comportamento canino de Mercader, você pediu perdão aos cachorros. Como são teus cachorros? Os reais, digo.
– Tive tantos cachorros na minha vida... Uns duraram muitos anos, outros menos. Uns chegaram pequenos, outros adultos. Uns foram recolhidos das ruas, outros decidiram que a casa onde queriam morar era a minha casa. Quase nenhum de alguma raça legítima. Todos eles bastardos. Enquanto escrevia este romance, tinha dois. Uma cadela que morreu há cinco meses, Natalia. E não por Natalia Sedova, a mulher de Trotsky. Era uma senhora gorda que dormia todo o tempo no sofá, muito placidamente. E, desde antes de Natalia, temos um cachorro que tem dezesseis anos agora, que se chama “Chorizo” e que foi como uma criança em minha casa, e agora é uma criança que se tornou um ancião, e é um ancião em tudo, mas tratamos de dar a melhor vida possível aos nossos cachorros.
Cuba é o cenário fixo sobre o qual gira o romance. Como é a tua Cuba real?
– Sou essencialmente crítico com respeito à realidade cubana. Isto significa que tenho uma responsabilidade, porque posso usar a palavra e que a minha palavra seja lida. Tenho que cumprir com essa responsabilidade civil, intelectual e cidadã. Supostamente Cuba é um país socialista, o direito à palavra é fundamental. No caso cubano todos, querendo ou não, tivemos que participar nas vicissitudes da vida cubana. Eu, com 16 anos, estava em um campo de cana, cortando cana para o grande salto econômico do país. Cumpri meus 30 anos na Angola, na guerra, como correspondente civil. Ao lado da minha cama tinha um AK-47 com quatro carregadores para se, em algum momento, acontecesse qualquer coisa. Nos cinco anos do período especial, até 1995, quando deixei de trabalhar na revista e já fiquei trabalhando em casa, ia e vinha do trabalho de bicicleta, com chuva, sol, calor ou frio, 20 km de ida e 20 de volta. Fizemos todos esses sacrifícios durante todos esses anos, e decidimos permanecer em Cuba. Se os sacrifícios não me dão direito a falar sobre Cuba, que merda pode me dar direito de falar sobre meu país? Portanto, acho que se pode fazer essa crítica e inclusive se pode ser muito duro nessa crítica. Os governos não são infalíveis, sejam socialistas, comunistas, se chame Fidel Castro, Raúl Castro, ou como quer que se chame, e se tem que ter direito a essa opinião, e eu o pratico.
Termine de contar isto: “Decidimos permanecer”
– Sim, porque foi uma decisão pensada. No princípio dos anos noventa, a situação em Cuba estava em umas condições que o mais lógico era deixar o país. Não sabíamos se no dia seguinte íamos comer algo, se íamos ter eletricidade, o que ia acontecer com a vida e com tudo o que constitui a existência das pessoas. E eu, racionalmente, decidi permanecer em Cuba. Estive nos Estados Unidos, na França, na Espanha, na Itália. Disse: “Não, eu fico aqui porque sou um escritor cubano e quero escrever sobre Cuba, e quero fazer minha carreira aqui, apesar dessas dificuldades”. A partir de certo momento, tive possibilidades econômicas muito superiores ao resto da sociedade cubana, mas foi resultado de meu trabalho. Não foi algo que me caiu do céu. Tenho que mandar dinheiro ao meu irmão de Miami, não é ele que me manda. E tudo isso faz com que, apesar de que minha situação econômica mude, minha posição civil continue sendo a mesma e minha posição política também. Não milito nem nunca militei em um partido. Não sou militante de nenhum partido, nem oficial nem da dissidência porque, sobretudo, lutei pela minha independência, e desde essa independência quero expressar minha crítica com respeito à realidade cubana e inclusive ao governo cubano.
Por que a realidade cubana tem aspectos, em seu juízo, tão críticos e realidades como a formação de médicos muito competentes? Não só a Bolívia e a Venezuela apelam aos médicos cubanos. O Brasil acaba de firmar um acordo para receber seis mil médicos em planos de ajuda
– Sem dúvida Cuba é um país muito peculiar, desde suas origens. E a revolução potencializou essa peculiaridade cubana. É verdade que em Cuba existem planos sociais que permitiram que a pobreza, ainda que generalizada, não seja miséria. Em Cuba não morre ninguém de fome. Conseguiu-se que a medicina seja universal e gratuita. Às vezes te custa mais conseguir uma aspirina que uma ressonância magnética. Essas contradições são muito visíveis em Cuba. E não se pode discutir que houve uma grande quantidade de progressos sociais com respeito à mulher, ao negro, ainda que o tema do negro continue sendo um assunto que não se resolveu completamente em Cuba. Não há discriminação racial, mas o racismo é algo que está na mente das pessoas. Superaram-se, afortunadamente, políticas restritivas aos homossexuais e aos crentes. Eu lembro que, há muitos anos, havia um jogador de beisebol que era católico e, quando ia bater, fazia um movimento estranho. Era porque estava se benzendo e não podia fazê-lo abertamente. Agora não. Agora é comum os os atletas se benzerem. Todos andam com seu colar no pescoço ou uma pulseira. E os homossexuais fazem sua vida da maneira que querem.
Ou seja, não há sanção do Estado, mas sim social
– Com respeito à homossexualidade, sim. Em um país onde o pensamento religioso é muito heterodoxo, mas cuja base é católica, e também em um país machista, é complicado temas como homossexualidade ou racismo. Mas tudo isso deveria ser acompanhado ou tem que ser acompanhado de uma maior liberdade individual. Agora, por sorte, foi aprovada a lei que autoriza os cubanos a viajar livremente. Também se pode vender a casa a quem queira. Mas ainda faltam espaços de expressão, de liberdade. A palavra “dissidência” se carregou de um significado muito pejorativo. Um dos vazios fundamentais é o que produz a inexistência de uma imprensa normal. Não chega com certos blogs.
Existe alguma pesquisa que indique tendências de voto para Raúl Castro se as eleições fossem como em outros países da América Latina?
–Não. Mas acho que o consenso em torno de Raúl Castro é maior hoje que há cinco ou seis anos. Eliminou restrições e reconheceu que quem exerce o poder não deve ser eterno. Em uma idade bastante avançada descobriu, mas pelo menos descobriu, que somente haja dois períodos de cinco anos. Como está no segundo mandato, Cuba está começando a viver um último período de um Castro no governo. Assim que teremos um futuro um pouco difuso, um pouco difícil de poder desenhar frente a nós. O atual vice-presidente cubano, que se supõe que seja o primeiro presidente pós-Castro, Miguel Díaz-Canel, ultimamente fez três ou quatro declarações muito esperançadoras: falou, por exemplo, do tema da imprensa e da necessidade de lutar contra o silêncio. Porque em Cuba tudo se cozinha de maneira misteriosa, em nível de governo. Não se faz política. E eu não acho que fazer política seja só sair pelos bairros dando bonés e bandeirinhas, mas também convencer as pessoas de um programa de governo com o qual se sintam identificadas. O fato de que uma pessoa como Yoani Sánchez tenha saído de Cuba, tenha feito seu giro pelo mundo e espero, possa regressar a Cuba normalmente, é uma mudança social e política inimaginável. E acho que isso é importante, porque significa a possibilidade de que cada cubano tenha seu espaço. Existe algo que sempre está no fundo da questão do futuro de Cuba e é a relação com os Estados Unidos. Esse é um ponto álgido que não se pode desestimar, porque é uma relação traumática desde o século XIX. E a política norte-americana tem sido, e é neste momento, muito torpe. Um governo norte-americano com um mínimo de inteligência o que deveria fazer é levantar o embargo e dizer: “Vamos ver o que acontece”. Esse é um tema que está gravitando sobre a realidade de Cuba e que vai definir muito como será o futuro cubano.
Qual é sua relação com os leitores cubanos?
– Muito intensa. Devo ter sido o escritor que mais vezes ganhou o prêmio dos leitores que se dá nas bibliotecas públicas de Cuba por votação. Com respeito às novelas de Mario Conde, há uma identificação absoluta, tanto que Conde deixou de ser um personagem para converter-se em uma pessoa. Me perguntam por Mario Conde como se fosse alguém que vive comigo. Se casou? Não se casou? Continua vendendo livros velhos? E quando volta? Com El hombre que amaba a los perros aconteceu algo diferente: foi uma relação mais cerebral. Tenho em casa várias mensagens que me chegaram por e-mail que me agradecem por haver escrito a novela. Diziam-me que, graças ao livro, haviam tido ideia, não somente do que havia acontecido fora de Cuba, mas do que havia acontecido com suas próprias vidas sem que eles soubessem. Esse sentimento de gratidão é a maior recompensa que se pode receber por parte dos leitores.
Os ajudaste a viver?
– Os ajudei a entender.

(1) "Socialista Morena", Cynara Menezes
(2) [Martín Granovsky – Página 12]
Tradução de Libório Junior
Diário da Liberdade
Carta Maior

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terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Burying my dreams ...

Em “Burying my dreams”, EP 7 polegadas lançado recentemente pela banda santista No Sense, pioneira do grindcore em terras tupiniquins, tudo é “old school”. A começar pela capa, que nos remete à do clássico eterno “scum”, do Napalm Death: um desenho da morte carregando as cabeças dos membros da banda – deduzi pela silhueta de uma delas, de bigodão e óculos escuros, o visual usual de Paulinho, baterista. O próprio formato do disco, em si, o bom e velho "compacto", é típico de quem não se rende completamente às dinâmicas da “modernidade”. Destinado a colecionadores, àqueles que amam mesmo a música e não se contentam em tê-la armazenada numa pasta em seu HD.

E é realmente gostoso abrir a capa, tirar de lá a bolachinha, apreciar o selinho com o já clássico logo “zoado”, pousar suavemente a agulha, ouvir o barulhinho da poeira nos sulcos e sentir, finalmente, o som explodir nos auto-falantes. E aí sim, vamos ao que interessa: o som!


Continua muito bom. A primeira faixa é bem minimalista: quando parece que a música vai começar, ela termina. E dá lugar a uma um pouco mais elaborada, no sentido “No Sense” do termo: “Spilling the holy shit”. Boa letra, muito bem encaixada na melodia. E, acompanhando pelo encarte, dá pra notar que Marly pronuncia perfeitamente as palavras, por trás do vocal “gutural”. Marly que, diga-se de passagem, está ainda melhor, como vocalista, que na primeira fase da banda, do início dos anos 1990.

Não se pode dizer o mesmo da faixa título, “Burying my dreams”, que vem a seguir: eu, pelo menos, não consegui acompanhar a letra pelo encarte. Ok, tá na tradição do estilo: até hoje me lembro que precisei de umas três audições pra sacar que Lee Dorian não pronuncia praticamente nada do que está escrito no encarte de “From slavement to obliteration”.

O lado B é ainda mais “enxuto”: começa com outro som curtinho e minimalista e prossegue com outra mais elaborada, só que desta vez com uma novidade: a letra é em português! E ficou bacana. Deu um toque mais “brasileiro”, realmente, à banda, lembrando os primórdios do metal em terras tupiniquins. E acaba por enfatizar o fato de que o No Sense é, realmente, uma espécie de “protótipo” de banda grind por aqui, ao unir o “sotaque” metálico, presente principalmente nos riffs e na afinação da guitarra, à estrutura das musicas em si, sempre enxutas, sem “gorduras”. Punk.

Encerrando o disco, outra tradição: uma “musiquinha” vapt vupt, “ignorance and death”, onde só a frase é pronunciada sobre um “papôco” instrumental. Pode soar meio clichê, mas acaba reforçando ainda mais o caráter “tradicional”, “old school”, da bolachinha.

Vida de vocalista de grindcore é difícil como o que ...
Conheci o No Sense em seus primórdios, ainda no início dos anos 1990, quando ouvi falar de uma banda “grind” da baixada santista que tinha uma garota de apenas 13 anos nos vocais. Só isso já era mais do que suficiente para chamar a atenção, mas ao ouvir a primeira demo fiquei impressionado: faziam um som que ia além do barulho pelo barulho e conseguiam compor bem com arranjos criativos. Virou “Cult”. Lembro que o primeiro EP que chegou na Lokaos – loja de Silvio, da Karne Krua, especializada em rock “underground” – foi disputado a tapas por aqui. Eu ganhei a disputa, e guardo até hoje o “troféu”. Depois lançaram um “full lenght”, “Cerebral cacophony”, ainda mais brutal e “anti-musica”, pela tradicional gravadora Cogumelo, de Belo Horizonte.

Acabei virando amigo dos caras – principalmente de Marly e de Ângelo, então guitarrista - , porque no underground é assim: “no gods, no masters, only friends”. Bom, nem sempre – friends. O fato é que eu sempre dava uma descida a Santos quando ia a São Paulo para vê-los. Não esqueço um fim de semana que passei na casa do Ângelo onde experimentei pela primeira vez as delícias da comida vegetariana. Despedi-me dele num domingo: eu ia voltar pra casa de minha tia em São Paulo, ele ia ajudar a organizar um protesto em frente ao Mcdonalds.

Inesquecível também o dia em que perdi o show do Nirvana porque me desencontrei da garota que havia comprado meus ingressos devido a um engarrafamento que peguei na subida da serra – havia descido pra ver um ensaio do No Sense. Não me arrependo, foi excelente o ensaio, tenho as fotos até hoje. Mas perder o show do Nirvana foi traumático ...

A banda acabou logo depois mas, para surpresa geral, voltou com força total, já no século XXI, e segue firme fazendo shows e lançando discos – antes deste compacto lançaram o EP “Obey”, em CD. Seu próximo lançamento será a reedição da primeira demo-tape em vinil, num split dividido com os cearences do Obskure.

Imperdível!

A

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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

2001, Odisséia revisitada

Em 1968, um filme e um livro jogaram mais lenha na fogueira de revoluções por minuto que marcou aquele ano. 45 anos depois, pouco sobrou de tantos ideais. Mas aquele filme e aquele livro sobreviveram. Para comemorar o quase meio século de espanto contínuo, a Editora Aleph lançou uma edição especial do livro em questão.

2001: Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke (1917-2008) , ganhou uma belíssima edição acondicionada em uma caixa adornada com o “rosto” do supercomputador HAL 9000 – um círculo vermelho com uma lâmpada no centro. Quando se retira o livro da caixa, a surpresa: ele é uma réplica perfeita do misterioso Monolito Negro que dá início à trama, com capa, contracapa e  laterais em imaculado preto fosco – e  mais nada impresso. Para completar, a edição traduzida por Fábio Fernandes tem o cuidado de incluir os dois contos do próprio Clarke nos quais livro e filme se inspiraram: A Sentinela (de 1951) e Encontro no Alvorecer (1953). O lançamento traz ainda uma nota de Clarke escrita em 1999, in memoriam para Stanley Kubrick (1928-1999, diretor do filme 2001) e dois prefácios do próprio autor. Um escrito no próprio ano de 2001 e outro da edição original. Uma verdadeira celebração.

Grandeza mítica

Em quadrinhos, por Jack kirby
Epíteto da chamada ficção científica hard – subgênero que leva a sério os detalhes técnicos e científicos, até por que o autor era formado em Matemática e Física – 2001 não foi um livro que gerou um filme. Ambos foram criados quase que simultaneamente, ao longo de parte da década de 1960, por Clarke e Kubrick.

Tudo começou em 1964, quando Kubrick, ainda quente do sucesso de  Dr. Fantástico (1964), “iniciou sua jornada em busca do proverbial ‘bom filme de ficção científica’”,  nas palavras de Clarke. Com a corrida espacial acelerada pela Guerra Fria, Kubrick não queria um filme que se tornasse obsoleto pelos fatos dos anos seguintes. “O que eu quero é um tema de grandeza mítica”, disse ele, citado por Clarke.

Depois de entrar em contato com o escritor, o cineasta recebeu do primeiro uma pilha de seus contos. Kubrick gostou daqueles dois já citados. E aí sugeriu a Clarke que, a partir daquelas ideias básicas, criasse um romance – o qual, por sua vez, seria a base para o roteiro do seu filme.

Livro versus filme


Digam o que quiserem de Kubrick, o homem não tinha pressa para criar suas obras-primas.O resultado está no livro e no filme: duas obras abertas que dificilmente encontrarão a obsolescência e seguem firmemente encravadas no imaginário popular com seus ícones.

O escritor baiano Mayrant Gallo dedicou parte de sua produção à ficção científica. Seus contos de FC estão no livro "Brancos reflexos ao longe" (Lauro de Freitas: Livro.Com, 2011) e são: "Invasores" (incluído na antologia das revistas de Nelson de Oliveira), "Todos os portais, realidades expandidas", (São Paulo:Terracota, 2012), "A nova ordem das coisas", "Gigantes" e "A paz forçada". No livro há ainda outro conto de FC, "A máquina do Dr. K", que não saiu nas revistas do Nelson de Oliveira. Abaixo, ele fala sobre 2001 em entrevista publicada no jornal A Tarde, da Bahia.

P - Tantos anos depois do próprio ano de 2001, o livro de Clarke mantém sua aura? Ou já é uma FC do pretérito, como tantas outras?

A caprichada reedição do livro
Mayrant Gallo - Creio que mantém sim. Não podemos ler os livros imaginando que nossa evolução tecnológica os superou, a não ser que sua trama se limite a apresentar o que de inovador o futuro nos prometia. Não é isso o que está no entrecho de "2001", nem no livro, nem no filme. Li o livro uma única vez e vi o filme umas cinco ou seis. Do que me lembro do livro, ele é perene e intenso; do filme, que é, sem dúvida, com "Solaris", "Sinais", "Blader runner" e "Vampiros de almas", um filme maravilhoso, cifrado, polissêmico, que a cada vez nos desperta mais interesse e nos convida a refletir e tentar decifrá-lo, como precisamos decifrar a vida. Ora, este é o sentido da arte.

P - Diferente do que muitos pensam, o filme de Kubrick e o livro de Clarke foram criados quase que simultaneamente. A diferença é que o livro, até pela sua própria natureza verbal, "explica" melhor o que no filme fica muito no ar, ao sabor da interpretação de quem assiste. Qual é o 2001 definitivo? O essencialmente imagético de Kubrick ou verborrágico de Clarke? Ou uma obra completa a outra?

MG - Se não estou enganado, e para ser exato precisaria consultar minhas leituras, romance e filme desenvolvem a ideia de um conto de Clarke. O fato de o filme ocultar muito do que o romance expõe está, a um só tempo, na natureza do cinema e no estilo de Kubric, que era, parodoxalmente, muito literário. A sci-fi tem, às vezes, o defeito de explicar demais. Todos os autores, em geral, padecem dessa falta de contenção (eu excetuaria Ray Bradbury, que sempre optava por uma narrativa mais poética, mais artística), e Kubric, com seu olhar arguto, optou por uma trama mais metafórica. Isso, no entanto, não nos faz prescindir do livro, que, em sua essência verbal, com descrições e análises de um mundo que "ainda" nos é desconhecido, nos oferece horas e horas de prazer, diversão, conhecimento e imaginação.

P - Muita gente não entendeu até hoje do que se trata 2001. É sobre a evolução humana? É sobre Deus? Sobre a pequenez do ser humano diante do infinito? Qual sua aposta?

MG - Todos estes assuntos e outros mais, pois, como em qualquer obra de arte, seu sentido está se atualizando a cada olhar e a cada época que "dirige" este ou aquele olhar. Metáforas não envelhecem, se atualizam. O maior exemplo é "Vampiros de almas" (filme e livro): o que antes parecia uma alegoria do comunismo nos sugere, hoje, a ideia de que o mundo em que vivemos, voltado para o consumo e o espetáculo, para o fútil e o perecível, nos transforma em seres falsos, triviais, sem estofo e sem sentimentos, consequentemente frios e meio embotados, quase robotizados. "2001" é um filme que, em certos momentos, toca o abstrato. E é por isso que ele é um desafio à percepção e ao entendimento das pessoas. Compreendê-lo é o de menos; antes de mais nada, importa apreciá-lo e aceitar que, no fundo e na forma, ele encerra uma reflexão profunda sobre a existência humana, sobre o que está para além de nós mesmos e de nossa compreensão. É uma metonímia da complexidade do próprio Universo, que comporta tudo: Deus, o Inexplicável e os Seres.

P - Você chegou a ler as continuações 2010, 2061 e 3001? Geralmente, elas são consideradas obras bem inferiores. Qual a sua avaliação, caso tenha lido pelo menos alguma delas?

MG - Não, não li nenhuma. Se bem me lembro, 2010 foi sugerido por um autor brasileiro, em carta a Clarke. Não gosto muito das continuações e sou muito seletivo quanto à  literatura, mesmo a sci-fi, que seria mais de entretenimento, a princípio, e talvez por isso não me interessei pelos demais livros. Tenho o "2010" há anos, mas, ao pegá-lo para ler, tenho receio de me decepcionar. Então vou ler outra obra. Ou reler "Solaris" ou "As crônicas marcianas" ou "O homem ilustrado". O filme "2010", por sua vez, não me empolgou. É como o grosso da produção de filmes de ficção científica: vemos só uma vez.

por Franchico

rock loco

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quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A Despedida.

por Arthuro Paganini
Sob um sol escaldante as pessoas esperavam, pacientemente, pela despedida do líder. Ao meio dia, em ponto, o caixão foi depositado sob um toldo em frente ao Palácio Olímpio Campos, antiga sede do governo do estado, hoje transformado num charmoso museu. Orações são ouvidas, antigos slogans de campanha entoados, mas nada do corpo ser conduzido até o carro dos bombeiros, como programado. O povo – eu incluso – começa a perder a paciência. Ouço rumores de que a partida havia sido adiada, para as 4 da tarde. Uma movimentação intensa de operários rearrumando as estruturas de isolamento parecia confirmar a notícia. Ligo o radio e ouço que era isso mesmo. Por decisão da família, atendendo a um pedido expresso pelo próprio governador, que havia dito à primeira dama que queria ser visto pelo povo em sua hora final. Só que eu e a maioria dos presentes, por trás do cordão de isolamento, não estávamos conseguindo ver nada! Por sorte tinha coisas a resolver no centro, então fui “cuidar na vida”, com a promessa, para mim mesmo, de voltar a tempo do último adeus.  

por Sergio de Jesus
Voltei a tempo de assistir à salva de tiros, seguida pela condução solene do ataúde ao início de sua última viagem, sob aplausos efusivos dos presentes. Os bombeiros depositam coroas de flores e uma bandeira do Flamengo por sobre o caixão e o cortejo tem início. Comoção geral. Acompanho o carro até que ele vire a esquina da Assembléia legislativa para pegar a “rua da frente”, rumo ao aeroporto – seria conduzido até Salvador, pois Aracaju não possui a estrutura necessária para a cremação. Estava quase chorando – sim, eu gostava mesmo dele – quando uma cena inusitada me faz soltar uma gargalhada: Sapulha, um dos mais notórios malucos que povoam a cena “underground” da cidade, acompanhava o cortejo na linha de frente, em meio às autoridades “engravatadas”, visivelmente constrangidas. Tentava, inclusive, empurrar, ou subir, no carro, sendo repelido de seu intento pelos soldados do corpo de bombeiros. Parecia uma cena de novela de Dias Gomes – só faltou ele gritar “VIVA ODORICO!” ou algo do tipo. Para além da comicidade involuntária, o episódio serve para ilustrar o caráter popular da cerimônia, o que está perfeitamente de acordo com o espírito do falecido. Como um amigo observou no Facebook, o próprio Deda, se tivesse presenciado a cena – de repente presenciou, de outro plano, não sei – teria esboçado um sorriso.

por Arthuro Paganini
Caráter popular que se revela, também, nas conversas que ouvi enquanto esperava e que, no meu entender, dizem algo sobre o longo caminho a ser ainda percorrido para que as pessoas se libertem das estruturas arcaicas de pensamento a que estão presas: ao meu lado uma senhora, emocionada, decreta que, tendo Deda partido, nunca mais daria seu voto a nenhum candidato. A não ser Valadares, que deu a ela uma casa para morar. “E se Valadares pedir pra senhora votar em alguém?”, alguém pergunta. “Aí eu voto”, ela responde, se contradizendo. "Pois ele vai pedir, tenha certeza". "Ah, mas em "Jaqueline" eu não voto não, de jeito nenhum". Um outro alguém, homem, aparentando ter entre 40 e 50 anos, “trepado” num poste, tripudia de quem chora pelo homem que se vai, dizendo que ele mesmo não chora por ninguém, só por Valadares, que também havia lhe dado uma casa para morar. Se toda aquela gratidão é fruto de uma política habitacional consistente, é legítima e deve ser realmente louvada. Há, no entanto, um que de "voto de cabresto” no ar, mas quem sou eu para julgar aquelas pessoas, legitimamente fiéis a quem as socorreu num momento de necessidade? Não vou transformar este artigo num tratado sociológico, até porque não tenho competência para tanto. Apenas conto, aqui, o que vi e ouvi.

por Arthuro Paganini
Ouvi também uma outra conversa que louvava valores arcaicos e que procurarei reproduzir da maneira mais fiel possível: em outro ponto da praça no qual parei para pegar uma sombra dois senhores conversavam sobre os supostos “bons tempos” de polarização radical e intransigente pré “revolução” de 1964 ...

- Hoje em dia é uma putaria, com o perdão da palavra. Um sobrinho meu, que mora em Brasília, me disse “tio, nunca entre em nenhuma briga por causa de político, porque enquanto vocês brigam aqui por um lado ou por outro, lá eles vivem abraçados, às gargalhadas. São todos amigos. Só brigam quando estão aqui.

- É verdade. No meu tempo era preto no branco. Se você era PSD, era PSD, se era UDN, era UDN. Não tinha esse “coloio” não, era cada um na sua, quando se encontrava era só pra trocar tiro.

- Verdade. Me lembro que na eleição de Lot contra Janio o povo do lado vencedor prometia mandar bala no adversário assim que a eleição terminasse, e salve-se quem puder.

por Arthuro Paganini
- Uma vez mandaram um pistoleiro matar meu pai, que era chefe político. Ele perguntou quem tinha sido o mandante e por quanto o contratou, daí ofereceu o dobro pro pistoleiro apagar quem mandou ...

- Mas isso é coisa de quem tem bala na agulha, heim, seu pai devia ser rico, então ...

- Oxe, mas era. Aqueles terrenos todos ali no (vou omitir o nome do bairro pra evitar uma possível identificação das pessoas, já que não tenho como comprovar a veracidade dos fatos narrados) eram dele, era tudo sítio, fazenda. Mas então, mandou matar e quando o matador chegou dizendo que havia feito o serviço, pediu comprovação, perguntou: “tirou foto do cabra safado sangrado?”, e não é que o peste tinha a foto mesmo? Eu vi, lembro como hoje, e olhe que eu era pequenininho, criança ainda. Aí meu pai disse “fique por aqui mesmo, num de meus sítios, até as coisas se acalmarem. Não se preocupe que ninguém vai lhe procurar aqui não”. E assim foi. Algum tempo depois eu era delegado em (omito, pelo mesmo motivo) e um cabra vem falar comigo e me pergunta se era eu mesmo o responsável pelo policiamento na cidade. Eu disse que sim e ele me diz que haviam mandado ele pra me matar, mas que não iria fazer isso não porque havia sido criado na fazenda de meu pai e que pra ele eu era como se fosse um irmão. Me perguntou inclusive se eu não queria que ele ficasse por ali, fazendo minha segurança, mas eu disse que não carecia não, que tinha três guardas sob o meu comando.

por Arthuro Paganini
- Pois é, nesse tempo as pessoas honravam a palavra, não é essa putaria de hoje em dia não.

Pois é ...

A.

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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

dep* Marcelo Déda

O governador de Sergipe, Marcelo Déda, de 53 anos, morreu às 4h45 desta segunda-feira (2) no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde estava internado para tratar de problemas decorrentes de câncer no estômago e no pâncreas. Ele lutava contra a doença havia quatro anos.

Para além das divergências e da decepção com sua atuação à frente do governo do estado, fica, na minha memória, a imagem de um brilhante orador e militante político, que muito me inspirou, por muito tempo, em minhas tomadas de posição no campo ideológico. Foi um dos fundadores e um dos mais combativos quadros do Partido dos Trabalhadores em nosso estado. Eleito Deputado Estadual em 1986 com votação recorde, repetiu o feito em 1994, desta vez disputando o cargo em nível federal. Teve uma atuação impecável em Brasilia, onde exerceu a liderança do partido na Câmara, no enfrentamento do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso.

Iniciou a campanha para a prefeitura de Aracaju, em 2000, em último lugar nas pesquisas, e terminou eleito no primeiro turno com votação consagradora. Assumiu ao som da Internacional Socialista. Eu estava lá, na festa da posse. Cantei junto. Ele já havia, na verdade, feito uma tentativa anterior, sem sucesso, em 1985, com o objetivo de firmar o nome do partido no cenário local. Na época, com 25 anos e sem recursos para a campanha, o candidato fez todos os programas eleitorais gratuitos de televisão ao vivo e apenas com a bandeira do PT na parede do cenário, montado no Tribunal Regional Eleitoral (TRE). “A lei me facultava fazer ao vivo, então eu ia cru, pregava uma bandeira com durex e estava pronto o cenário do ‘ao vivo’. Aquilo que era uma desvantagem virou uma vantagem porque me transformei no âncora do programa eleitoral”, relatou o governador de Sergipe em sua página oficial na internet.

Fez uma excelente administração, que mudou a cara da cidade. Foi reeleito em 2004 com 71,38% dos votos válidos. Seu segundo mandato, no entanto, foi contaminado pelo projeto de chegar ao governo do estado. Em 31 de março de 2006 renunciou ao cargo de prefeito de Aracaju, sendo substituído por seu vice, Edvaldo Nogueira, do PCdoB. Conseguindo uma vitória histórica, que simbolizou uma mudança no cenário político sergipano, Marcelo Déda é eleito governador com 52,48% dos votos. Derrotou João Alves Filho, do DEM, ainda no primeiro turno. O feito seria repetido em 2010, contra o mesmo adversário - que hoje, graças ao desgaste do projeto político de centro/esquerda por ele comandado e costurado à base de concessões e alianças com setores conservadores da política estadual e municipal, é o prefeito de Aracaju.

Não deixará, no entanto, uma grande marca, como governador. Apesar da brilhante reformulação das emissoras publicas educativas e dos esforços empreendidos no campo da infraestrutura, com destaque para a recuperação da malha viária do interior do estado; da segurança pública, com o "upgrade" no soldo e o reaparelhamento da polícia; e da saúde, com a construção de dois novos hospitais regionais e de cerca de outros 12 hospitais municipais, com o objetivo de desafogar o atendimento precário do HUSE(Hospital de Urgência de Sergipe) - tem patinado nos resultados. Especialmente nesta área e na da educação, cuja situação continua calamitosa, com constantes enfrentamentos entre o governo e o Sindicato dos professores da rede estadual de ensino. Além disso, apesar da vitória de seu sucessor, Edvaldo Nogueira, na eleição de 2008 para a prefeitura de Aracaju, viu seu projeto político naufragar na cidade, com seu principal adversário se sagrando vencedor no pleito do ano passado.

Avanços pontuais importantes aconteceram e precisam ser valorizados e preservados, pois a conjuntura política é muito adversa, e tudo pode ser posto a perder. As "forças ocultas" são terríveis, e é preciso muito estômago, inteligência e jogo de cintura para se equilibrar neste lamaçal. Nem Déda conseguiu, infelizmente: fez um pacto com o diabo em nome do pragmatismo, e foi traído, como previsto, o que causou um sério revés em seu projeto político. Mas ele tentou. Acredito nisso, sinceramente. E continuaria tentando, não tivesse sido pego numa armadilha do destino.

Fará falta. Como político - apesar dos pesares - e como ser humano. Para atestar a última afirmativa, reproduzo aqui o depoimento de um amigo, Bruno Aragão, que tinha contato pessoal com ele e com sua família:

"Tenho aqui na minha pequena biblioteca particular duas edições de "Cem Anos de Solidão", um dos meus livros preferidos. A primeira é uma bonita e completíssima edição em capa dura comemorativa dos 40 anos da obra-prima de García Márquez, lançada pela Real Academia Española. Um pequeno parágrafo nas últimas páginas do livro, que traz até a árvore genealógica dos Buendía, informa, à guisa de curiosidade, que aquela edição acabou de ser impressa no exato dia em que "Gabo" completava oitenta anos. Luxuosa e algo mística edição.

A outra edição não tem nada de especial em si. É uma brochura pequena e surrada lançada pela Record nos anos 80, com páginas em papel-jornal há muito amareladas e capa em papel-cartão; o tipo de edição popular que um estudante quebrado compraria em um sebo qualquer ou nas banquinhas dos corredores de sua universidade, e que era, senão um "livro de bolso", um "livro de bolsa". É dessa última edição que eu gosto mais.

Lembro que ainda quando iniciava minha própria carreira de universitário quebrado, em alguma tarde ociosa dessas que a gente tem quando é universitário quebrado, eu puxei esse livro, cheio de apetite literário, da estante de minha mãe. Mas antes que eu pudesse mergulhar nas agruras da família Buendía, a mera folha de rosto do livro me lançou de imediato à história da minha própria família. Não era ali a assinatura de um familiar, mas de certo modo era: "Marcelo Déda, abril 1986".

Quando firmada, aquela não era ainda, por questão de meses, a assinatura de um deputado estadual. Não era a assinatura de um deputado federal recordista em votos e atuação coroada de louros. Não era a assinatura do prefeito de candidatura ridicularizada eleito em primeiro turno, nem do governador de adversário "imbatível" eleito, uma e outra vez, em primeiro turno. Era a assinatura de um dos mais próximos amigos de meus pais, ao lado dos quais o dono do livro, àquela altura de seus 26 anos, já tinha vivido muita coisa.

De verdade um dos amigos mais próximos: não bastasse o fato de nossas famílias habitarem juntas, naqueles anos, muito mais passeatas, comícios e plenárias do que nossos respectivos apartamentos, durante algum tempo eles, os apartamentos, ocuparam o mesmo edifício, separados apenas por três ou quatro lances de escada muito comunicantes. Temporadas havia em que minha irmã só voltava para o nosso andar (o sexto) para dormir – quando voltava. No condomínio e na escola em que estudávamos todos juntos, não faltava quem acreditasse que Manuella e Marcella eram irmãs, e a quem perguntasse eu afiançava que sim.

O dono da assinatura, o dono do livro que minha mãe tomou emprestado e jamais devolveu – em troca, a defesa gostaria de frisar, de obras completas da Mafalda também jamais devolvidas – já tinha então emparelhado ombros com meus pais no mesmo DCE da UFS, na coleta de assinaturas para fundar um tal partido de trabalhadores, nos primeiros enfrentamentos pós-ditadura a coronéis mais senhores-de-toda-criação do que aqueles que habitavam Macondo. E começavam a criar seus filhos em meio a suas batalhas políticas e pessoais.

Meus pais se separaram; mais tarde, se separaram do PT. Muita coisa aconteceu desde abril de 1986. Mas a assinatura do livro, a mesma registrada em quase todos os termos de posse que um homem público pode assinar nesta vida, e todos os atos públicos importantes que decorrem disso, esta seguiu igual. E renderia muito estudo a um grafologista de plantão.

É uma assinatura horizontal e dianteira, que tem algo de flecha lançada no ar. Mas muito leve, orgânica, quase feminina. Começa numa linha reta, revela o nome daquele que assina, com uma letra curvilínea, e prossegue em linha reta. Tem algo de ramo de planta se enroscando num fio de arame à disposição e inventando um jeito de florescer. Ou de onda que a brisa marinha desperte fazendo cócegas no mar sereno, abrindo do mar seu sorriso branco, e retorne, sob o afago da mesma brisa, à serenidade primeva. É a assinatura de alguém que quer ser inscrito no curso da História. Mas há nela, me parece, mais lirismo que grandiloquência. É menos a assinatura de um político do que a assinatura de um poeta.

Pensar nisso me faz lembrar que nos dias da minha infância o deputado aclamado pelas massas tinha sempre caráter suficiente para ser, intramuros, um folgazão completo em performances domésticas com filhos ou quase-filhos de tão hipnotizados por sua doçura e carisma; me faz lembrar de como o líder nato deixava sempre a cargo da então esposa a direção do automóvel da família e outras direções, o que não era pouco numa esquerda também ainda muito machista; ou do intenso debate em que um dos melhores oradores que a república brasileira já viu em atuação convenceu minha mãe a assinar para mim as revistas da Turma da Mônica, com um discurso da maior gravidade e aqueles plurais perfeitos de moço de Simão Dias formado no Atheneu Sergipense. Faz lembrar que antes de tudo isso, ele escrevia e filmava. Tanta coisa.

Nunca tive planos de devolver o livro duas vezes surrupiado, crime prescrito e – espero – já bem perdoado. Gosto de tê-lo aqui perto de mim, de ter esta assinatura elegante à mão para uma eventual consulta. Ela vai me inspirar sempre e inspirar aqueles que descenderem de mim sempre, se descendentes eu tiver, como o dono da assinatura irá. É tudo o que eu consigo dizer neste domingo em que meu coração está muito, muito apertado."


(*) Descanse em paz.

A

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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

"Mestiço é bom" - Darcy Ribeiro

Eu tenho certeza que nós fizemos um país bonito, temos é que enforcar os canalhas. Os finos e educados, temos que enforcar. Mas, olha, o que eu digo, sempre, é muito fácil fazer uma Austrália: pega meia dúzia de franceses, ingleses, irlandeses e italianos, joga numa ilha deserta, eles matam os índios e fazem uma Inglaterra de segunda, porra, de terceira, aquela merda.

O Brasil precisa aprender que aquilo é uma merda, que o Canadá é uma merda, porque repete a Europa. É para ver que nós temos a aventura de fazer o gênero humano novo, a mestiçagem na carne e no espírito. Mestiço é que é bom. Minha carne na Europa nunca foi tomada por portuguesa, ou por espanhola, ou por grega. Perguntaram se eu era persa, porque tinha muito mais cara de árabe, que parece muito mais com cara de índio.

Essas carnes velhas nossas não são caras viáveis na Europa. Então, nós fizemos um povo. Um povo capaz de herdar 10 mil anos de sabedoria indígena, de adaptação ao trópico e fazer uma civilização tropical. Depois é que o europeu chega aqui, plantando trigo. Esse povo está aí e eu digo que somos a nova Roma. Em Roma, querem que vá falar disso, querem que eu escreva mais artigos. E por que nova Roma? Somos a maior massa latina. Os franceses ficaram tocando punheta, os italianos bebendo chianti, os romenos com medo dos russos, quem saiu fodendo por aí foi espanhol e português e fizemos uma massa de gente que é de 500 milhões.

Então, os latinos só se multiplicaram aqui. Há dois mil e quinhentos anos saíram soldados do laço da Etrúria, falando latim, fizeram a França, fizeram Portugal, não sabem como. Pegaram os selvagens de lá, latinizaram e permaneceram. Como é que permaneceram em plena Península Ibérica, com 900 anos de domínio árabe e não se arabizaram? Como é que aguentaram todas as invasões e se mantiveram?

Nós somos melhores, porque lavados em sangue negro, em sangue índio, melhorado, tropical. Então, no futuro, você vai ver daqui a 100 anos, numa reunião, qualquer uma da humanidade, aquele bloco enorme de chineses, vão sobrar chineses, mais da metade dos homens serão chineses. Um absurdo! Vai haver quantidade de árabes, mil milhões de árabes. Importantíssimo, serão uma nova civilização, mil milhões de árabes fiéis à arabidade. Haverá 500 milhões de neobritânicos, haverá muitos outros. E haverá mil milhões de latino-americanos, que somos nós, os latinos. Só nós estamos com a cara lá, nós somos Roma.

Na reunião da humanidade, o que é importante não é a França, a Europa. Aquilo que dizia Sartre. A Europa, aquela peninsulazinha da Ásia, dobrada sobre a África, vai ficar reduzida ao seu tamanho. Vai ficar no mundo, no futuro, a América Latina, e na América Latina o Brasil, o Brasil com 300 milhões de habitantes.

Não é uma beleza? Mas querem acabar com a foda aqui, querem nos liquidar. O que eu quero é que esse povo cresça e esse povo vai realizar sua potencialidade. Não é possível que durante tantos séculos uma classe dominante infiel nos queira explorar como um proletariado externo. Isso não vai continuar, não. Eu escrevi um livro, “O Povo Brasileiro”, que vai ajudar aos brasileiros a se assumirem com orgulho como a nova Roma e entenderem que nós somos muito mais difíceis de fazer do que a merdinha da Austrália. Que nós estamos nos fazendo, que nós vamos amadurecer e é preciso vencer um dia a canalha. Eu quase venci em 1964. É claro que eu não podia vencer, com Lyndon Johnson mandando os navios dele para cá, com o jango não querendo brigar. Mas quase vencemos.

Somos uma Roma tardia. O seu gene tem gene Tupinambá, os que foram mortos. É a herança dos trópicos, vai melhorar. No dia em que a economia não seja para exportar, mas seja, como a norte-americana, para consumir. 

*Capítulo de longa entrevista concedida por Darcy Ribeiro (1922-1997) a Antonio Callado, Antonio Houaiss, Eric Nepomuceno, Oscar Niemeyer, Ferreira Gullar, Zelito Viana e Zuenir Ventura, mediados pelo editor Renato Guimarães. Do livro “Mestiço É Que É Bom” (editora Revan, 1997)