(1) Socialista Morena– Como foi possível que os cubanos até recentemente não soubessem nada de Trotski?
Leonardo Padura – Não se sabia praticamente nada porque se aplicou
aqui a mesma política da União Soviética. Havia uma aliança tão estreita
que não podia ser diferente. Trotski era o inimigo inominável. Não se
publicavam obras dele nem sobre ele, ninguém sabia quem era realmente.
Só há poucos anos, quando, em algumas feiras literárias, a editora
norte-americana Pathfinder, que é trotskista, trouxe alguns livros dele,
e uma editora argentina trouxe sua biografia, é que a informação passou
a circular mais. Mas foi com o meu romance que os cubanos o conheceram.
SM – Seu próprio interesse por Trotski começou como?
LP – Na época da universidade ouvi falar algo, mas não se mencionava
ele nas aulas. Esse fato aumentou ainda mais minha curiosidade a
respeito de Trotski, e, em 1989, na primeira vez que fui ao México,
conheci a casa dele em Coyoacán. Fiquei muito emocionado. Era um lugar
escuro, sombrio… Claro que nem imaginava que um dia iria escrever um
livro a seu respeito. Uns anos depois dessa visita, soube que Mercader
viveu em Cuba, mas ninguém tampouco falava disso. Em 2005, 2006, quando
decidi escrever o romance, procurei alguém que sabia que o conhecera
pessoalmente e a resposta que recebi foi um rotundo “não”.
SM – O que há de ficção e realidade na trama?
LP – Há muito dos dois. A vida de Trotski está toda biografada, cada
minuto de sua vida, então tem muito de investigação histórica nas cenas
narradas. Com Mercader é diferente porque se conhece muito pouco da vida
dele. Sua vida é uma mentira, uma criação dos órgãos de inteligência
soviéticos. O terceiro protagonista, o cubano que conduz a narrativa,
também está documentado. Tudo que acontece com ele aconteceu com pessoas
da minha geração.
SM – Se deixa notar no livro que você sente simpatia por Trotski…
LP – Creio que existe uma simpatia natural pelos derrotados, pelos
que perderam. Além disso, como Trotski tem a figura de Stalin como
antagonista, ele se torna um dos personagens mais simpáticos do mundo…
Stalin é monstruoso. Trotski manteve sempre esse pensamento utópico de
que a revolução era possível.
SM – Me parece uma pena que os cubanos não tenham conhecido o outro lado dessa história.
LP – Sim, é um personagem que talvez pudesse dar aos cubanos uma alternativa de pensamento socialista.
SM – Há quem ache que não faria diferença se fosse Trotski o vencedor diante de Stalin. Você concorda?
LP – Essa seria uma especulação histórica e a história se analisa com
o que ocorreu, não com o que poderia ter ocorrido. Trotski talvez
pudesse fazer a mesma política, mas talvez não achasse necessário matar
20 milhões de pessoas para isso. Trotski era um político, Stalin era um
psicopata. Trotski poderia ser duro, reprimir, mas não de uma maneira
doentia.
SM – Você se incomoda de falar sobre a política em seu país?
LP – Eu sempre prefiro falar de literatura, mas no caso de Cuba é
inevitável. É um país onde existe um governo e um partido que são a
mesma coisa e onde todas as decisões são políticas, então é impossível
não falar.
SM – Há mais liberdade hoje em Cuba?
LP – Há mais do que há alguns anos. Há alguns anos eu não poderia ter
publicado este livro, por exemplo. O que não quer dizer que haja
absoluta liberdade de expressão, continua existindo censura. Em nível
econômico houve muitas mudanças importantes, imprescindíveis. Chegamos a
um ponto de imobilismo e crise insustentáveis. Se está movimentando
economicamente o país. Mas as mudanças têm que ser mais profundas. Tem
de haver mais abertura comercial, mais convênios com investidores
estrangeiros, porque o país não tem capital para se modernizar. Tem que
ter também mais espaço para a crítica, um diálogo crítico mais aberto
para que se possa encontrar soluções, chegar ao consenso.
SM – O caminho está aberto?
LP – Está demarcado, mas a entrada é muito estreita… O modelo está
mudando, mas tem que mudar muito mais para que as pessoas que pensam
diferente também tenham direito à opinião.
(2) O homem é tranquilo, mas deixa escapar algum “que merda” de vez em
quando, principalmente quando fala da liberdade crítica e, nesse
momento, seu semblante se faz mais enérgico. A Leonardo Padura (Havana,
1955) os cubanos se aproximam para perguntar por Mario Conde, seu
personagem de policial negro, como se fosse alguém de carne e osso.
Outros, dentro e fora de Cuba, continuam intrigados pelo livro El hombre
que amaba a los perros, publicado pela Editora Tusquets em 2009. O fio
condutor é a perseguição de León Trotsky até seu assassinato no México,
mas a novela excede longamente o magnicídio cometido por Stalin.
Um dos grandes temas do livro é o fanatismo. O de Stalin, que
manda assassinar León Trotsky. O de Kotov, encarregado pela KGB de
conceber o plano e executá-lo. E o de Ramón Mercader, que o assassina. O
que é um fanático?
–A exacerbação de uma ideia, de um sentimento ou de uma preferência. O
fanatismo esportivo é o primeiro que vem à mente. É o mais massivo, mas
pode ser o menos problemático. Já o fanatismo político sim pode ser
muito daninho. Acho que as pessoas têm o direito de ter uma crença
política, sempre e quando essa ideia política não seja agressiva,
prejudicial. Tampouco lesiva da dignidade, da liberdade ou da
integridade de outra pessoa. Tu podes ser de esquerda ou de direita, ou
mais comunista ou menos comunista, mas não tens direito a impor-te aos
demais e, do teu fanatismo, da tua crença absoluta, conceber que os
demais devem pensar igual a ti.
A esquerda tem uma forma própria de fanatismo?
– Há uma forma de fanatismo socialista ou comunista que é muito
complicada: a ideia de que, por teu bem, tens que ser obediente e tens
que aceitar a opinião da maioria. Isso vai contra a liberdade de opção.
No livro, Trotsky também é outro fanático.
Por quê?
– Até o final de sua vida teve apenas uma convicção e não mudou.
Inclusive foi capaz de sacrificar a sua família. Estava tão convencido
de que o socialismo era a solução para os problemas da humanidade, que
nem sequer quando pôde comprovar que a prática socialista à maneira de
Stalin, que foi a única que se pôs em prática, podia levar aos desastres
e aos crimes que levou, mudou de ideia. Era anti-stalinista, mas nunca
deixou de ser um comunista convencido e o escreveu e o expressou.
Coloco-me como advogado do diabo e digo: “Stalin foi a
deformação monstruosa de uma essência nobre”. E posso dizer o mesmo do
próprio Lênin.
–Também se pode dizer, e tens razão ao dizê-lo. O que acontece é que
toda a razão e todas as verdades podem ser relativas, discutidas. E a
posição de advogado do diabo te da a vantagem de poder encontrar o
ângulo do qual uma verdade pode parecer absoluta ou uma afirmação pode
ser rebatida. Mas sim, acho que, em essência, Trotsky foi também um
fanático e que Stalin não foi só uma ideia, mas uma prática.
Sabemos o final do homem que amava os cachorros. Trotsky será
assassinado. Mas, inclusive sabendo, o efeito é desesperante para o
leitor: é a história de uma vítima perpétua.
E como seriam os fanatismos de Stalin, de Kotov e de Mercader?
– O de Stalin, doentio. Era um homem doente de poder que se achava um
predestinado. O de Kotov é um fanatismo cínico: sabia o que estava
fazendo, porque o estava fazendo. Obedecia, mas sempre com uma posição
na qual sabia que estava transgredindo determinados princípios. Ramón
ostenta um fanatismo obediente, quase canino, e que os cachorros me
perdoem. O de Ramón é um fanatismo simples, tanto que no final, Iván
duvida se deve sentir compaixão por ele ou não. Pergunta-se se este
homem não havia sido tão vítima como o próprio Trotsky, que ele havia
vitimado. Essa foi também minha dúvida.
Ainda o é?
– Veja bem, não tenho uma resposta definitiva, apesar de ter
convivido com este personagem cinco anos, investigando e escrevendo.
Acho que isso faz mais interessante o personagem. Humanamente, a opção
de Mercader não tem perdão. É possível compadecer-se de um pecador, de
um assassino, mas também tem que ter uma análise diferente quando está
frente a culpas, não?
Falavas, recém, da investigação.
– O livro me obrigou a um estudo muito profundo de fenômenos
históricos que se revisaram a partir dos anos 90. Também o fato de que
Ramón Mercader fosse um personagem histórico sem história me obrigou a
completar a imagem de Ramón lendo pelos arredores para ter uma ideia de
onde estava, de como podia comportar-se, de que coisas haviam acontecido
com ele... E fechei o período de investigação no momento em que Ramón
assassina Trotsky. O trotskismo é um fenômeno que, em suas origens,
inclusive, não existia. Era uma invenção de Stalin, que o necessitava
para converter Trotsky no inimigo.
Em que medida o fanatismo de Stalin, que definias como doentio, era doença ou era sistema?
– Era as duas coisas. Stalin, de sua convicção, sua experiência, seu
fanatismo, de sua crença e da situação histórica em que chega a ter a
possibilidade de armar-se de poder na URSS, cria um sistema que não só
tem um fundamento filosófico no marxismo ou nas contribuições do
leninismo. É praticamente construído pelo pensamento e pela obra de
Stalin. São chaves todos os processos que começam a ocorrer desde 1929: a
coletivização, a própria perseguição de Trotsky e de todos os velhos
bolcheviques, estivessem ou não, em seu pensamento, mais próximos a
Trotsky ou a Stalin. Também assassinou stalinistas. Stalin não era
nenhum pensador. Queria sê-lo: escrevia livros, filosofava, fazia
teorias e estudava a linguística. Tentava ser como Lênin e Trotsky,
queria ser culto. Mas a cultura se negava pela fanatização e pela
criminalização a que submeteu a sociedade soviética.
Ou seja, que Stalin não sentia culpa nem esgrimia uma atitude cínica
– O cinismo supõe um olhar um pouco distante das coisas. Kotov o
tinha. E ao mesmo tempo era uma destas criaturas que assumem a função de
carrasco social com uma tranquilidade e uma rapidez tremendas. Houve
muitos como ele. Orlov, por exemplo. É interessante que Kotov entra na
proto-KGB dos primeiros tempos porque lhe davam uma quota adicional de
cigarros e um par de botas e porque também lhe concediam licença para
matar. Depois vai trabalhar no estrangeiro e se cultiva. É um homem de
grande inteligência. O plano para assassinar Trotsky foi um dos mais
elaborados e mais rebuscados que se possam imaginar. Quando veio a morte
de Stalin e o encarceram, vive doze anos em uma espécie de gulag para
agentes da KGB. Nunca perdeu o cinismo e tampouco perdeu algo que talvez
seja o único que o humaniza: seu desejo de seguir vivendo. Há um
elemento histórico real e é que, em um campo de concentração, foi
operado a sangue frio, sem anestesia, de câncer de cólon. E sobreviveu.
Fica claro que “O homem que amava...” não é um livro de
história. Como te chega isso? Que ruído te produz a tensão entre a
História e a história que você conta? Falando de Tinissima, seu livro
sobre Tina Modotti, Elena Poniatowska me disse em uma entrevista que ela
primeiro investigava muito porque era um hábito jornalístico do qual
não podia desprender-se.
– A investigação é uma disciplina que me atrai muitíssimo e desfruto
cada vez mais, tanto da investigação como da escrita. Na escrita tenho
absoluta liberdade. Na investigação tens a liberdade de escolher o que
outros te propõem. Na investigação, os descobrimentos têm um atrativo
muito grande e a gente vai mudando os preconceitos graças às evidências.
Nesta história específica, como no caso da história de Tina, acontece
algo que complica a relação do investigador com os fatos. Enquanto lia
autores e testemunhos, eu tinha a convicção de que podiam estar
mentindo. O assassinato de Trotsky e seus arredores estão cheios de
mentiras. Tantas que se escreveu uma história, que depois foi reescrita,
se continuará reescrevendo e se poderá voltar a reescrever na medida em
que apareçam documentos, evidências e análises que permitam ter outra
perspectiva. Por isso, neste caso, sempre se tinha que suspeitar da
fonte, e isso fazia tudo mais atrativo.
No momento de escrever, como você faz para se desprender da investigação?
– É difícil. Tens que desprender-te da investigação e começar a ter
um enfoque de fora para fazer teu exercício como romancista. De todas as
formas, há um processo em minha escrita que me leva a fazê-lo, e é que a
primeira versão que eu escrevo de meu romance está muito apegada à
investigação. Mas, a partir daí, eu prescindo da investigação. Já sei
que tenho datas que coincidem historicamente, lugares nos quais estão os
personagens que coincidem com a realidade e tenho montada uma trama que
historicamente se sustenta. Mas a partir daí começo a reescrever o
livro, a fazer versões do romance e, no final, chega o ponto em que
estou tão longe que inclusive me custa saber se o que estou dizendo é
uma verdade historicamente comprovada ou se é uma verdade novelesca.
Nesse ponto terminaste
– Não, os romances nunca se terminam. Abandonam-se. Chega um ponto em
que estás tão cansado dessa história, que te dizes “até aqui cheguei”.
Voltando ao grande tema do fanatismo, em que fanatismo pensou antes de escrever?
– Pensei muito nos fanatismos religiosos. Como uma pessoa, por uma
crença religiosa, pode chegar a fazer o mesmo que faz Ramón Mercader?
Existem pessoas que, por acreditarem em Deus ou por crerem no mundo
melhor, são capazes de assassinar outros. Inevitavelmente, o fanatismo
nos conduz ao fundamentalismo. Um fundamentalista é alguém que crê que é
dono da verdade e, por essa verdade, é capaz de fazer qualquer coisa,
inclusive as que a maioria das pessoas considera eticamente reprováveis.
Matar
– Entre outras coisas.
E morrer?
– A cultura da morte é muito mais complicada e é também parte do
fanatismo. No caso específico cubano, por exemplo, no hino nacional se
canta à morte. Morrer pela pátria é viver.
Mas ali existe uma concepção romântica
– Claro, é a época. Talvez a decisão do indivíduo, da imolação, pode
ter um elemento, como tu dizes, perfeitamente romântico, no sentido
histórico, mas no sentido contemporâneo também, que o faz menos
agressivo. Não é o mesmo tu decidindo por tua vida que se tu decidires
pelas vidas dos outros.
Ao falar do comportamento canino de Mercader, você pediu perdão aos cachorros. Como são teus cachorros? Os reais, digo.
– Tive tantos cachorros na minha vida... Uns duraram muitos anos,
outros menos. Uns chegaram pequenos, outros adultos. Uns foram
recolhidos das ruas, outros decidiram que a casa onde queriam morar era a
minha casa. Quase nenhum de alguma raça legítima. Todos eles bastardos.
Enquanto escrevia este romance, tinha dois. Uma cadela que morreu há
cinco meses, Natalia. E não por Natalia Sedova, a mulher de Trotsky. Era
uma senhora gorda que dormia todo o tempo no sofá, muito placidamente.
E, desde antes de Natalia, temos um cachorro que tem dezesseis anos
agora, que se chama “Chorizo” e que foi como uma criança em minha casa, e
agora é uma criança que se tornou um ancião, e é um ancião em tudo, mas
tratamos de dar a melhor vida possível aos nossos cachorros.
Cuba é o cenário fixo sobre o qual gira o romance. Como é a tua Cuba real?
– Sou essencialmente crítico com respeito à realidade cubana. Isto
significa que tenho uma responsabilidade, porque posso usar a palavra e
que a minha palavra seja lida. Tenho que cumprir com essa
responsabilidade civil, intelectual e cidadã. Supostamente Cuba é um
país socialista, o direito à palavra é fundamental. No caso cubano
todos, querendo ou não, tivemos que participar nas vicissitudes da vida
cubana. Eu, com 16 anos, estava em um campo de cana, cortando cana para o
grande salto econômico do país. Cumpri meus 30 anos na Angola, na
guerra, como correspondente civil. Ao lado da minha cama tinha um AK-47
com quatro carregadores para se, em algum momento, acontecesse qualquer
coisa. Nos cinco anos do período especial, até 1995, quando deixei de
trabalhar na revista e já fiquei trabalhando em casa, ia e vinha do
trabalho de bicicleta, com chuva, sol, calor ou frio, 20 km de ida e 20
de volta. Fizemos todos esses sacrifícios durante todos esses anos, e
decidimos permanecer em Cuba. Se os sacrifícios não me dão direito a
falar sobre Cuba, que merda pode me dar direito de falar sobre meu país?
Portanto, acho que se pode fazer essa crítica e inclusive se pode ser
muito duro nessa crítica. Os governos não são infalíveis, sejam
socialistas, comunistas, se chame Fidel Castro, Raúl Castro, ou como
quer que se chame, e se tem que ter direito a essa opinião, e eu o
pratico.
Termine de contar isto: “Decidimos permanecer”
– Sim, porque foi uma decisão pensada. No princípio dos anos noventa,
a situação em Cuba estava em umas condições que o mais lógico era
deixar o país. Não sabíamos se no dia seguinte íamos comer algo, se
íamos ter eletricidade, o que ia acontecer com a vida e com tudo o que
constitui a existência das pessoas. E eu, racionalmente, decidi
permanecer em Cuba. Estive nos Estados Unidos, na França, na Espanha, na
Itália. Disse: “Não, eu fico aqui porque sou um escritor cubano e quero
escrever sobre Cuba, e quero fazer minha carreira aqui, apesar dessas
dificuldades”. A partir de certo momento, tive possibilidades econômicas
muito superiores ao resto da sociedade cubana, mas foi resultado de meu
trabalho. Não foi algo que me caiu do céu. Tenho que mandar dinheiro ao
meu irmão de Miami, não é ele que me manda. E tudo isso faz com que,
apesar de que minha situação econômica mude, minha posição civil
continue sendo a mesma e minha posição política também. Não milito nem
nunca militei em um partido. Não sou militante de nenhum partido, nem
oficial nem da dissidência porque, sobretudo, lutei pela minha
independência, e desde essa independência quero expressar minha crítica
com respeito à realidade cubana e inclusive ao governo cubano.
Por que a realidade cubana tem aspectos, em seu juízo, tão
críticos e realidades como a formação de médicos muito competentes? Não
só a Bolívia e a Venezuela apelam aos médicos cubanos. O Brasil acaba de
firmar um acordo para receber seis mil médicos em planos de ajuda
– Sem dúvida Cuba é um país muito peculiar, desde suas origens. E a
revolução potencializou essa peculiaridade cubana. É verdade que em Cuba
existem planos sociais que permitiram que a pobreza, ainda que
generalizada, não seja miséria. Em Cuba não morre ninguém de fome.
Conseguiu-se que a medicina seja universal e gratuita. Às vezes te custa
mais conseguir uma aspirina que uma ressonância magnética. Essas
contradições são muito visíveis em Cuba. E não se pode discutir que
houve uma grande quantidade de progressos sociais com respeito à mulher,
ao negro, ainda que o tema do negro continue sendo um assunto que não
se resolveu completamente em Cuba. Não há discriminação racial, mas o
racismo é algo que está na mente das pessoas. Superaram-se,
afortunadamente, políticas restritivas aos homossexuais e aos crentes.
Eu lembro que, há muitos anos, havia um jogador de beisebol que era
católico e, quando ia bater, fazia um movimento estranho. Era porque
estava se benzendo e não podia fazê-lo abertamente. Agora não. Agora é
comum os os atletas se benzerem. Todos andam com seu colar no pescoço ou
uma pulseira. E os homossexuais fazem sua vida da maneira que querem.
Ou seja, não há sanção do Estado, mas sim social
– Com respeito à homossexualidade, sim. Em um país onde o pensamento
religioso é muito heterodoxo, mas cuja base é católica, e também em um
país machista, é complicado temas como homossexualidade ou racismo. Mas
tudo isso deveria ser acompanhado ou tem que ser acompanhado de uma
maior liberdade individual. Agora, por sorte, foi aprovada a lei que
autoriza os cubanos a viajar livremente. Também se pode vender a casa a
quem queira. Mas ainda faltam espaços de expressão, de liberdade. A
palavra “dissidência” se carregou de um significado muito pejorativo. Um
dos vazios fundamentais é o que produz a inexistência de uma imprensa
normal. Não chega com certos blogs.
Existe alguma pesquisa que indique tendências de voto para
Raúl Castro se as eleições fossem como em outros países da América
Latina?
–Não. Mas acho que o consenso em torno de Raúl Castro é maior hoje
que há cinco ou seis anos. Eliminou restrições e reconheceu que quem
exerce o poder não deve ser eterno. Em uma idade bastante avançada
descobriu, mas pelo menos descobriu, que somente haja dois períodos de
cinco anos. Como está no segundo mandato, Cuba está começando a viver um
último período de um Castro no governo. Assim que teremos um futuro um
pouco difuso, um pouco difícil de poder desenhar frente a nós. O atual
vice-presidente cubano, que se supõe que seja o primeiro presidente
pós-Castro, Miguel Díaz-Canel, ultimamente fez três ou quatro
declarações muito esperançadoras: falou, por exemplo, do tema da
imprensa e da necessidade de lutar contra o silêncio. Porque em Cuba
tudo se cozinha de maneira misteriosa, em nível de governo. Não se faz
política. E eu não acho que fazer política seja só sair pelos bairros
dando bonés e bandeirinhas, mas também convencer as pessoas de um
programa de governo com o qual se sintam identificadas. O fato de que
uma pessoa como Yoani Sánchez tenha saído de Cuba, tenha feito seu giro
pelo mundo e espero, possa regressar a Cuba normalmente, é uma mudança
social e política inimaginável. E acho que isso é importante, porque
significa a possibilidade de que cada cubano tenha seu espaço. Existe
algo que sempre está no fundo da questão do futuro de Cuba e é a relação
com os Estados Unidos. Esse é um ponto álgido que não se pode
desestimar, porque é uma relação traumática desde o século XIX. E a
política norte-americana tem sido, e é neste momento, muito torpe. Um
governo norte-americano com um mínimo de inteligência o que deveria
fazer é levantar o embargo e dizer: “Vamos ver o que acontece”. Esse é
um tema que está gravitando sobre a realidade de Cuba e que vai definir
muito como será o futuro cubano.
Qual é sua relação com os leitores cubanos?
– Muito intensa. Devo ter sido o escritor que mais vezes ganhou o
prêmio dos leitores que se dá nas bibliotecas públicas de Cuba por
votação. Com respeito às novelas de Mario Conde, há uma identificação
absoluta, tanto que Conde deixou de ser um personagem para converter-se
em uma pessoa. Me perguntam por Mario Conde como se fosse alguém que
vive comigo. Se casou? Não se casou? Continua vendendo livros velhos? E
quando volta? Com El hombre que amaba a los perros aconteceu algo
diferente: foi uma relação mais cerebral. Tenho em casa várias mensagens
que me chegaram por e-mail que me agradecem por haver escrito a novela.
Diziam-me que, graças ao livro, haviam tido ideia, não somente do que
havia acontecido fora de Cuba, mas do que havia acontecido com suas
próprias vidas sem que eles soubessem. Esse sentimento de gratidão é a
maior recompensa que se pode receber por parte dos leitores.
Os ajudaste a viver?
– Os ajudei a entender.
(1) "Socialista Morena", Cynara Menezes
(2) [Martín Granovsky – Página 12]
Tradução de Libório Junior
Diário da Liberdade
Carta Maior
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